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Jorge Escosteguy: Boa noite, estamos começando mais um Roda Viva pela TV Cultura de São Paulo. A convidada do Roda Viva desta noite é a escritora Rachel de Queiroz. Rachel é cearense, tem oitenta anos e escreve desde os 19, quando foi publicado o seu livro O quinze, que mereceu o prêmio da Academia Brasileira de Letras. Foi militante do Partido Comunista, do movimento trotskista, e presa durante o regime do Estado Novo [segunda metade do primeiro período em que Getúlio Vargas atuou como presidente do Brasil, entre 1937 a 1945. Instaurou-se uma ditadura: Vargas determinou o fechamento do Congresso Nacional e a extinção dos partidos políticos]. É também cronista, jornalista e a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras. Para entrevistar a Rachel de Queiroz, esta noite, no Roda Viva, nós convidamos: o professor e crítico literário Fábio Lucas, ex-presidente da União Brasileira de Escritores; Marcos Faerman, repórter especial do Jornal da Tarde e editor chefe da revista Shalom; Moacir Amâncio, escritor e jornalista do Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo; a escritora Maria Alice Barroso; Jaime Martins, jornalista da TV Cultura; o escritor Caio Fernando Abreu; Miriam Goldfeder, editora da revista Leia, e Gilberto Mansur, jornalista e escritor. Na platéia, estão convidados da produção e companheiros de Angola, da rádio, TV e jornal de Angola, que estão fazendo um estágio na Escola de Comunicação da Universidade de São Paulo. Boa noite, escritora Rachel de Queiroz. A senhora pediu antes que não a chamasse de senhora nem de dona, mas, enfim, vou ver se consigo me acostumar. Hoje [01/07/1991], infelizmente, a literatura brasileira perdeu um grande poeta e um grande cronista, Paulo Mendes Campos. O Brasil tem uma tradição de cronistas, a senhora mesma é uma cronista há muitos anos, uma cronista respeitada. A que a senhora deve essa tradição de crônica no Brasil, uma tradição de cronistas brasileiros? Porque a senhora, apesar de romancista também... foi jornalismo e crônica. De onde vem essa tradição de cronistas brasileiros – e excelentes cronistas–?
Jorge Escosteguy: E, ao mesmo tempo, às vezes, pode ser mais cômodo do que escrever um novo romance, um conto, que dá muito trabalho.
Jorge Escosteguy: A senhora se gratifica mais como cronista ou como romancista? Como é mais reconhecida inclusive?
Jorge Escosteguy: Não sente prazer em escrever?
Jorge Escosteguy: A senhora tem um ponto de vista sempre muito pessimista em relação à vida, pelas suas declarações em entrevistas.
Jorge Escosteguy: Por que esse pessimismo?
Jorge Escosteguy: É mais um jogo do que propriamente acreditar nas coisas ruins da vida?
Jorge Escosteguy: A senhora disse uma vez que a vida não é uma lição, é uma experiência da qual você não é o agente, mas a cobaia. A vida usa a gente?
Jorge Escosteguy: Ela usa a senhora como escritora, como cronista?
Jorge Escosteguy: E isso, de certa forma, se reflete um pouco na sua obra ou a senhora tenta controlar um pouco esse pessimismo?
Gilberto Mansur: Rachel, vou lhe chamar de você mesmo.
Gilberto Mansur: Então está bom, porque os ídolos da gente, nós geralmente chamamos...
Gilberto Mansur: Pois é. Dentro dessa linha que a gente estava conversando aqui, eu li, muito tempo atrás, sobre uma posição sua, de que você não deixaria nenhuma pista para os seus biógrafos, de que você nem faria memórias nem deixaria pistas para os seus biógrafos. Num país onde as pessoas começam a escrever memórias até antes da hora, muito cedo, em que a biografia já esteve na moda e está cada vez mais na moda, você mantém esse ponto de vista, você acha que é isso mesmo? É uma verdade isso?
Caio Fernando Abreu: Rachel, não a conhecia pessoalmente e tenho duas imagens suas tão contraditórias. Quando eu era criança, o meu pai comprava sempre O Cruzeiro [revista semanal ilustrada, de linha editorial totalmente inovadora em relação a outras publicações da época, começou a ser publicada em 10 de novembro de 1928 pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Trazia os mais diversos assuntos: informações sobre saúde, cinema, culinária, moda, política e até fatos sobre a vida dos astros de Hollywood] e eu lia aquela última página que você escrevia. E me lembro até hoje de uma crônica que, na verdade, era um conto, chamada “Miss”. E o meu pai dizia assim: “Não leia essa mulher, ela é comunista”. E depois, anos mais tarde, na faculdade, já em 67, 68, eu andava com um livro seu embaixo do braço, acho que era O quinze. E um colega meu disse assim: “Não leia essa mulher, ela é uma reacionária”. [risos]
Caio Fernando Abreu: Tenta juntar na minha cabeça essas duas imagens.
Caio Fernando Abreu: E por que passou essa imagem de reacionária?
Caio Fernando Abreu: Algo a ver com a revolução de 64?
Caio Fernando Abreu: Mas você apoiou os militares?
Caio Fernando Abreu: Por quê, Rachel?
Caio Fernando Abreu: Mas você não tinha noção das torturas, de todo o horror que aconteceu depois?
Caio Fernando Abreu: Mas ele não conseguiu.
Caio Fernando Abreu: Sim. E sabe‑se que, quando o Castelo Branco sofreu aquele acidente em que ele morreu, ele teria estado com você.
Rachel de Queiroz: Ele vinha da nossa fazenda.
Rachel de Queiroz: Eu até estimo vocês me darem essa oportunidade de desmentir essa história.
Rachel de Queiroz: Porque o Castelo Branco vinha de Quixadá num aviãozinho bimotor do governo do estado, um piper [avião monomotor], se não me engano. E viajavam no avião ele, o irmão dele, o Candinho, a minha amiga Alba Frota, um major do exército que estava servindo de segurança a ele ou de adjunto, sei lá, um ajudante de ordens, o comandante do avião e o filho dele, que servia de copiloto. O menino, o copiloto, foi o único que sobreviveu. E pelo depoimento dele, nós sabemos, que eles vinham de Quixadá para Fortaleza e passavam sobre a linha da estrada, as novas linhas de eletricidade que vinha do São Francisco... As novas linhas, como se chama? De grande força, uma coisa assim.
Rachel de Queiroz: De alta tensão, é isso aí. E o Castelo, então, pediu ao comandante: “Comandante, eu queria tanto”... Porque tinha sido um dos grandes interesses dele na Presidência ver a construção da linha de alta tensão, da linha de distribuição maior do São Francisco. "Queria tanto passar pela linha, queria ver aqueles postes de alta tensão". O comandante ficou indeciso e o menino disse: “Papai, isso é cortar a rota dos jatos, a gente não pode passar”. O Castelo disse: “Só um pedacinho, só para atravessar, só para eu ver”. O comandante disse: “Só um bocadinho então”. No instante em que eles atravessaram a linha, vinha uma formação de três jatos e a ponta de um dos jatos pegou. De forma que o atentado seria impossível, tinham que adivinhar que o Castelo ia pedir, que o comandante não iria, depois cedeu e que o jato iria coincidir naquela hora...
Gilberto Mansur: Mas, Rachel, essa história nunca foi contada. Você nunca teve interesse de falar? E ficou essa versão [a do atentado].
Caio Fernando Abreu: Agora, você diz que não vai escrever suas memórias. Se eu falar demais, você me corta.
Caio Fernando Abreu: Porém li aqui, no material que me deram, que você teria planos de escrever um livro de memórias chamado O poder e eu. Daí deduzo que você...
Caio Fernando Abreu: Fiquei assustado.
Marcos Faerman: Você, ainda nessa seqüência política aqui que foi levantada, até tem essa revelação histórica, eu não sabia que o presidente Castelo estava lá na sua fazenda. É uma coincidência notável.
Marcos Faerman: Ia lhe fazer pergunta sobre trotskismo e sobre uma pessoa que amo profundamente, o Lívio Xavier [(1900-1988) jornalista, crítico literário e importante tradutor brasileiro, fundador da Liga Comunista Internacionalista, que era ligada à Oposição de Esquerda Internacional, dirigida por Leon Trótski], que sei que a senhora conheceu. Eu adorava o Lívio. Agora, queria perguntar... aqui vem o repórter. Que tipo de coisa que o Castelo falou nesse último dia, no último momento da vida dele, como é que foi?
Marcos Faerman: Então o De Gaulle queria aprender a dar golpe? [risos]
Marcos Faerman: Rachel, essa sua passagem pelo trotskismo... Alguns intelectuais que militavam no PC não suportaram aquela linha justa do PC e se voltaram para o trotskismo. Um deles [era] o Mário Pedrosa [(1900-1981)], uma belíssima figura, um crítico, um pensador da arte; a Nise da Silveira...
Marcos Faerman: A Nise da Silveira, pelo menos nas vezes em que conversei [com ela], me falou do profundo amor dela pelo [Leon] Trótski e ela é ligada a esse grupo todo...
Caio Fernando Abreu: Dentro de você, o que liga Trótski a Castelo Branco?
Caio Fernando Abreu: Por que essa mudança tão radical?
Marcos Faerman: Houve uma prisão também aí?
Jorge Escosteguy: Rachel, só aproveitando essa questão política levantada pelos dois, o Jaime Souza Marques, aqui de São Paulo, pergunta justamente se você não foi muito patrulhada pelos intelectuais, escritores, pelas suas ligações com Castelo Branco, os militares, enfim.
Jayme Martins: Rachel, você costuma dizer que passaria muito bem sem literatura...
Jayme Martins: ...sem fazer literatura, [diz] que não gosta dos seus livros, que não lê com satisfação uma página já escrita.
Jayme Martins: Mas, ainda hoje, durante a Bienal, a Lygia Fagundes [Telles. Uma das maiores escritoras brasileiras, conhecida por romances, como Ciranda de pedra e As meninas, e volumes de contos como Antes do baile verde e A noite escura e mais eu. Ver entrevista do Roda Viva com a escritora)] me dizia que você é uma mulher de amor ardente. Então gostaria de saber, assim...
Jayme Martins: De amor ardente.
Jayme Martins: Em que outros aspectos da sua vida esse amor ardente se pronuncia, se manifesta – além do seu amor pelo Oyama de Macedo, é claro? O que você considera mais importante e a que você se apega com maior profundidade na vida?
Miriam Goldfeder: Rachel, você se considera uma escritora engajada? Você tem essa trajetória um pouco...
Miriam Goldfeder: E para que serve a literatura?
Miriam Goldfeder: Nesse tempo todo, como é que evoluiu a sua produção literária? Porque você... Independentemente das suas variações de posição política, que são compreensíveis, você poderia explicar um pouco a sua história literária?
Jorge Escosteguy: Rachel, antes de passar para o Fábio, já que a Miriam levantou a questão, o Nelson Rodrigues, aqui de São Paulo, pergunta o que levou você a escrever o seu primeiro livro.
Fábio Lucas: Rachel, o seu nome geralmente é incluído nas histórias da literatura dentro da designação geral de romance do Nordeste. Isso é muito interessante porque nós sabemos que o romance do Nordeste foi a primeira literatura de exportação que o Brasil teve. Na verdade, os romancistas nordestinos foram influir no neo-realismo português e através de canais secretos também chegaram até as colônias portuguesas na África. Agora, tudo isso pelo alto conteúdo político da literatura nordestina daquele tempo. E você conviveu com pessoas como Graciliano Ramos [(1892-1953) escritor alagoano que figura entre os maiores da literatura brasileira. Autor de São Bernardo, Vidas secas e Angústia, dentre outras obras], como Jorge Amado [(1912-2001) escritor baiano que está entre os mais consagrados e traduzidos autores brasileiros; muitas de suas obras foram adaptadas para a televisão], Amando Fontes [(1899-1967) advogado, professor de português, deputado federal e escritor], José Lins do Rego [(1901-1957) escritor consagrado como mestre do regionalismo. Lançou-se na literatura com Menino de engenho (1932), mas sua obra-prima foi Fogo morto (1942), romance que conta a decadência de uma propriedade que explorava a cana-de-açúcar e da família a ela atrelada], enfim, uma geração que influenciou realmente escritores portugueses. Queria o seu depoimento sobre esses escritores, quer dizer: o que você acha da literatura de Graciliano, Jorge Amado, José Lins do Rego? E outra coisa que gostaria de que você explicasse é se esses são os seus escritores preferidos. Você tem outros escritores no Brasil que sejam da sua preferência?
Rachel de Queiroz: Tenho. Vamos por partes. A literatura nordestina teve a sorte de naquele período aparecerem grandes escritores. Eles são importantes não por causa do tema, mas porque eles eram constitucionalmente grandes escritores. O Graciliano, eu o ponho logo depois do Machado de Assis ou ao pé do Machado. Considero o Graciliano um dos maiores escritores que já escreveram no Brasil. O José Lins era um grande contador de história, um grande narrador, era um grande escritor. Jorge Amado, não preciso dizer, a reputação dele é internacional, ele fez um nome internacional. Amando, que era do grupo mais modesto, José Américo eram todos grandes escritores que, por coincidência, nasceram naquela região e escreveram naquele tempo. Aliás, essa coisa vem sempre por ondas, você já reparou?
Rachel de Queiroz: Era a vida pessoal deles todos e acompanhei a obra de um por um, de forma que até é difícil para mim marcar preferências, a não ser Graciliano, que nós todos tínhamos como mestre. Era o nosso mestre, o Graciliano - o velho Graça -, era aquela unanimidade em torno dele.
Rachel de Queiroz: O Nordeste mudou. De qualquer maneira, o Nordeste de O quinze, principalmente o Nordeste da Vidas Secas mudou. Eletrificou-se, você tem eletricidade, quer dizer, você tem capacidade para irrigar, já há uma rede de irrigação respeitável pelo Nordeste, já não há mais o retirante na rua. Há o imigrante, que já não vem mais nem de caminhão, vem de ônibus, já foi um progresso. Agora, o problema crucial, que é mesmo a seca, isso ainda não foi resolvido e acho que não foi resolvido ainda em lugar nenhum. A África está se acabando de seca.
Rachel de Queiroz: Claro, é a minha profissão.
Rachel de Queiroz: Gosto, por exemplo, de dona Maria Alice Barroso, muito.
Rachel de Queiroz: Gosto, por exemplo, de Ricardo Ramos, muito. Gosto desses novos escritores que têm entrado, que têm aparecido por aí. É difícil citar uns sem citar todos, mas há uma fauna aí muito boa.
Rachel de Queiroz: Não. Por quê? Essa coisa de... É uma questão tão subjetiva você gostar ou não gostar de um autor e... Por exemplo, o Moacyr Scliar [(1937-2011) médico e escritor da literatura brasileira contemporânea, autor de romances, contos, ensaios e artigos, com obra traduzida em vários idiomas. Membro da Academia Brasileira de Letrras, escreve também crônicas e críticas para jornais e revistas], no Rio Grande do Sul, está fazendo uma obra admirável.
Rachel de Queiroz: Porque o Brasil era menor.
Rachel de Queiroz: Havia uma crítica profissional que não há mais hoje. Hoje eles dão noticiazinhas, em geral encomendadas pelas editoras. A figura do crítico desapareceu, não sei por quê. Talvez seja a evolução dos estudos literários, aquela crítica era impressionista, era a crítica do "gostei, não gostei", podia ser formulada em boas frases, mas eram, na verdade... Não sei se são os novos estudos de literatura que influíram na liquidação do crítico pontificando...
Jorge Escosteguy: Maria Alice Barroso, por favor.
Caio Fernando Abreu: Eu estava pensando nisso.
Caio Fernando Abreu: Mas acho que a dignidade nunca tem que desaparecer.
Caio Fernando Abreu: O que vejo hoje em dia nos jornais, pega-se um livro... Trabalhei em jornal, sou jornalista também. Dizem assim: “Quem quer baixar o pau nesse cara?” [risos] Aí um garoto qualquer de vinte anos vai lá e baixa o pau.
Marcos Faerman: Acho que um problema que acontece com a crítica, que é bem diferente, por exemplo, desse período dos grandes mestres, né, Agripino Grieco [(1888-1973) poeta, ensaísta e crítico literário reconhecido por sua língua ferina ao escrever suas críticas], Álvaro Lins, Alceu Amoroso Lima [(1893-1983) conhecido também pelo pseudônimo de Tristão de Ataíde, foi professor de literatura, pensador e crítico literário. Ao denunciar pela imprensa o cerceamento da liberdade de pensamento, tornou-se forte opositor do regime militar de 1964], o deslumbrante Otto Maria Carpeaux [(1900-1978) um dos mais renomados críticos literários brasileiros, cuja obra é imprescindível para o estudo da literatura ocidental. Com o golpe de 64, que depôs Jango, Carpeaux passou a combater o regime militar, deixando a crítica literária em segundo plano], mestres que eram pensadores da literatura. Agora, não vejo isso que o Caio fala, assim, acho que um pouco levianamente...
Marcos Faerman: Essa colocação do Caio...
Marcos Faerman: Vou fazer a pergunta. Acho que a questão que se coloca – não sei como é que você vê isso – é o chamado crítico literário da universidade. O grande contraponto que existe é entre esse tipo de crítico, como o Otto Maria Carpeaux, e essa crítica acadêmica que inundou os jornais. Não existe mais o rodapé literário, o que existe muito é essa reflexão universitária. Como é que você vê essa produção acadêmica universitária em relação à literatura? Você, como escritora, como é que vê a produção da universidade?
Maria Alice Barroso: Acho que o jornal não dá espaço, Rachel. Nem para o crítico acadêmico.
Caio Fernando Abreu: Rachel, continuando a ser leviano, [risos] você acha que isso que está se passando em relação à crítica literária não está se passando em todos os níveis no Brasil? Como diz o Darcy Ribeiro [(1922-1997) professor, etnólogo, antropólogo, foi senador, reitor da Universidade de Brasília, ministro de Estado no governo João Goulart - ver entrevista no Roda Viva], não é um processo de africanização – com o perdão [do termo], porque o Brasil está passando pela mesma coisa –, de sucateamento, como diz o Moacir Amâncio [poeta paulista e professor de língua e literatura hebraica na Universidade de São Paulo, também atuou como repórter e redator em várias publicações], de vulgarização de tudo?
Jorge Escosteguy: Por favor, um de cada vez. O Moacir Amâncio, só para completar a roda, o único que ainda não fez perguntas. E em seguida o Fábio Lucas.
Rachel de Queiroz: Olha, antigamente um artigo do Tristão de Atayde, Alceu Amoroso Lima, lançava um escritor. Um artigo do Álvaro Lins dava um salto na reputação de um escritor. Mas, talvez porque a sociedade brasileira fosse mais provinciana, tinha aqueles gurus. Hoje diluiu‑se tanto essa autoridade do crítico, que, realmente, se o escritor quer sair do anonimato, tem que ter uma boa campanha publicitária.
Rachel de Queiroz: Praticamente. Hoje as grandes campanhas publicitárias é que fazem um autor desconhecido de repente arrebentar.
Moacir Amâncio: A qualidade não tem importância?
Fábio Lucas: Rachel, o seu ingresso na Academia Brasileira foi um ingresso simbólico, porque, afinal, a mulher passou a ter acesso àquela instituição. Agora, pergunto: por que a Academia não exerce uma função cultural maior no Brasil, por que não publica obras? Por exemplo, obra dos ex-acadêmicos que entraram, ingressaram ali buscando imortalidade? A imortalidade é garantida pela publicação das obras.
Fábio Lucas: Mas ela teve concessões, ela teve doações.
Jorge Escosteguy: Agora, a Vera Lúcia Lobo, da cidade de Araraquara, no interior de São Paulo, pergunta - já que se fala na Academia Brasileira de Letras - por que ela não escolhe sempre realmente escritores e muitas vezes se deixa influenciar por personagens da política?
Caio Fernando Abreu: Como é que uma figura como José Sarney [presidente do Brasil, de 1985 a 1990. É também autor de contos, crônicas, ensaios e romances. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1980], por exemplo, do ponto de vista literário, entrou para a Academia?
Caio Fernando Abreu: Ele é considerado pelos acadêmicos um bom escritor?
Jayme Martins: Rachel, você já disse que depois de 60 anos dando entrevistas, a sua história fica parecendo...
Rachel de Queiroz: Em toda parte há influência política, mas é muito indireta e, em geral, nós recebemos muito mal. O Eduardo Portela, por exemplo, quando se candidatou e era ministro, nós dissemos a ele: “Olha, você é nosso velho amigo, mas ninguém vai votar em você, porque você é ministro”. E uma das causas do Eduardo deixar o ministério é que ele preferiu entrar para a Academia, que era para toda a vida, a “estar ministro”, como ele dizia.
Rachel de Queiroz: O [Paulo] Brossard [jurista, foi ministro da Justiça de 1986 a 1989, durante o governo Sarney - ver entrevista com Brossard no Roda Viva], coitado! Ele tentou entrar quando ministro, não encontrou a menor receptividade. Agora que ele está no Supremo [Tribunal Federal] – e a Academia sempre teve simpatia pelo Supremo –, a gente sempre tem um ministro do Supremo lá na Academia.
Rachel de Queiroz: Mas o Supremo é um poder muito, digamos...
Caio Fernando Abreu: Espiritual.
Jayme Martins: Rachel, você já disse, depois de 60 anos dando entrevistas, a sua história fica parecendo aquele samba de uma nota só. Mas, nesse fim de semana, relendo muitas dessas entrevistas, achei uma série de incoerências e contradições. Por exemplo, o seu primeiro artigo aparecido na imprensa de Fortaleza, com o pseudônimo de Rita Queluz, aos 17 anos, desancava um concurso que se realizava lá para a escolha da rainha dos estudantes.
Jayme Martins: Três anos depois, você era eleita a rainha dos estudantes.
Jayme Martins: Em princípios da década de 30, a jovem Rachel de Queiroz que se engajava no Partido Comunista para botar abaixo o poder instituído, se proclamou ainda agora, há pouco, anarquista. No entanto, depois de cinquentona, tem aí uma série de namoros e aproximações com o poder.
Jayme Martins: Acabou, inclusive, representando o poder brasileiro junto às Nações Unidas.
Jayme Martins: Você já disse que jamais escreveria um livro de memórias, no entanto, se enfeixarmos aí muitas de suas crônicas num volume, daria um respeitável livro de memórias. A senhora já disse que jamais iria para uma tarde de autógrafos, porque se sentiria como um bode numa canoa, no entanto hoje a vi distribuindo autógrafos para uma legião de jovens que a procuravam na Bienal Nestlé.
Jayme Martins: Deixe-me acabar.
Jayme Martins: A senhora me disse outro dia que jamais apareceria num programa como esse, porque parece, assim, uma metralhadora giratória.
Rachel de Queiroz: E não é?
Rachel de Queiroz: Estou me sentindo num [...].
Rachel de Queiroz: Pergunte ao Shakespeare, ele que define mulher como “inconsistência, teu nome é mulher” [na verdade, o príncipe de Elsinor, Hamlet, desgostoso com o casamento da mãe com seu tio, disse "Fragilidade, teu nome é mulher!", generalizando, estendendo o caráter da mãe para todo o gênero feminino] coisa parecida assim. [risos]
Rachel de Queiroz: Ainda existem.
Rachel de Queiroz: Mamãe era uma grande leitora. A dona da biblioteca era ela. Ela era muito dos autores franceses, [Honoré de] Balzac [(1799-1850) um dos maiores nomes da literatura mundial. Sua obra mais conhecida, A comédia humana, retrata a realidade da vida burguesa da França de sua época], [Gustave] Flaubert [(1821-1880) mestre do romance realista, autor de Madame Bovary (1857) e Educação sentimental (1869)]. Eles eram muito ecianos lá em casa: do Eça de Queiroz [(1845-1900) importante escritor do realismo português do século 19]. O Machado era um ídolo, um deus. Mamãe era muito bem orientada literariamente. Esses modernos que iam saindo todos, aqueles que estavam na moda, os americanos traduzidos, porque lá em casa eles não liam inglês. Liam francês, espanhol, português. Era o tempo do francês, não é? As pessoas de cultura sabiam francês. O inglês veio depois, com a guerra, a Segunda Guerra [Mundial]. De forma que era muito rica, muito cheia a biblioteca de mamãe, principalmente de autores europeus. O Thomas Mann [(1875-1955) escritor alemão, consagrou-se com seu romance A montanha mágica (1924), pelo qual recebeu o prêmio Nobel de literatura] era uma das paixões dela.
Rachel de Queiroz: Tradutora foi uma questão de subsistência. Eu já traduzia do inglês e o francês era praticamente a minha segunda língua, porque me criei em colégio de feiras francesas.
Rachel de Queiroz: O cronista em geral é uma testemunha da época, do momento, é muito circunstancial. E a gente sempre tem uma pitada de política na crônica ou pelo menos uma brincadeira. A crônica é um gênero extremamente elástico, de forma que vai se adaptando muito à época. Aquilo que escrevi em 1940 deve ser bastante diferente do que estou escrevendo em 90, mas a gente muda, envelhece, aprende, apanha, tudo isso se reflete no que escreve, é um espelho de si mesmo.
Rachel de Queiroz: Olha, o Brasil cresceu.
Rachel de Queiroz: Não, não melhorou nem piorou. As pessoas não mudam tão depressa nem mudam tanto. Mudam as paisagens, as chaminés, as fábricas. Eu estava lembrando, quando entrei aqui, quando vim a primeira vez a São Paulo, em 31, chamava‑se a “cidade das mil chaminés”. Não havia ecologia nesse tempo e chaminé era solta por aí.
Miriam Goldfeder: Rachel, você já disse várias vezes que os jornalistas sempre repetem as mesmas perguntas. Qual é a pergunta que você gostaria de que lhe fizessem e qual seria essa resposta que você nunca deu?
Gilberto Mansur: E a resposta? [risos]
Jayme Martins: Uma pergunta mandada pelo Ricardo Ramos. [lendo a pergunta] “Como uma das grandes figuras do romance de 30, você acha que o ciclo terminou? Não digo em termos de motivação, pois a terra, o homem e a sua condição dramática estão lá. Mas há algum projeto literário pessoal voltado para o Nordeste?"
Fábio Lucas: Há uma estudiosa aqui em São Paulo, Cristina Ferreira Pinto, que fez um livro [O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros] sobre as personagens femininas na literatura brasileira, principalmente a formação, os livros de aprendizagem. E ela usou como exemplo a Lúcia Miguel Pereira [(1901-1959) crítica literária, romancista, tradutora, autora de livros infantis e biógrafa de autores como Gonçalves Dias e Machado de Assis], o seu livro, As três Marias, e as obras de Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector [(1920-1977) ucraniana naturalizada brasileira, jornalista e uma das escritoras mais intrigantes e ousadas da literatura brasileira moderna]. E nas conclusões, ela acha que, no caso de Lygia e de Clarice, o drama da mulher ali retratado é mais autêntico pelo fato de que as protagonistas rejeitam os modelos patriarcais de comportamento, enquanto no seu livro e no da Lúcia Miguel Pereira ainda há uma espécie de determinação, de desesperança no final do destino de cada personagem. Ou seja, uma punição pela tentativa de elas quererem se tornar independentes. Ela não recusa o seu trabalho, mas, na verdade, acha que o modelo adotado pelas duas primeiras autoras era mais concernente ao envolvimento cultural daquela época. A mulher não tinha ainda condições de se afirmar plenamente. E portanto, na medida em que procurou certa independência, as personagens também foram destinadas a um final de desesperança e uma certa atitude de passividade ou de crescimento regressivo a partir de certo momento da ficção. Você concorda com essa divisão entre as quatro grandes autoras brasileiras que iniciaram essa perspectiva, que é a análise da formação da personagem feminina em nossa ficção?
Fábio Lucas: Porque ela acha, por exemplo, que o seu feminismo tem muito do modelo patriarcal.
Fábio Lucas: Justamente por isso.
Caio Fernando Abreu: Mas, Rachel, se você pensa que a vida é uma coisa tão amarga - e não concordo -, como é que você vê a morte?
Gilberto Mansur: Rachel, você não dá impressão de viver, de ser um ser humano de baixo-astral, acho que você joga isso na sua literatura.
Jorge Escosteguy: Aliás, a Yolanda Juliano, aqui de São Paulo, inclusive, pergunta qual é a receita da sua jovialidade aos 80 anos, apesar de todo o seu baixo-astral.
Jorge Escosteguy: É o baixo-astral que mantém a jovialidade?
Jorge Escosteguy: Por favor, só um minutinho, Jayme, nós vamos ter que fazer um rápido intervalo, há varias pessoas querendo perguntar. O Roda Viva volta daqui a pouco, entrevistando hoje a escritora Rachel de Queiroz. Até já.
Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva, que hoje está entrevistando a escritora Rachel de Queiroz. Rachel, no primeiro bloco a gente falou muito sobre a Academia, você defendeu a Academia, eu queria relembrar algumas coisas. Você foi a primeira mulher a entrar na Academia. Como é entrar na Academia, ser a primeira mulher a entrar na Academia? Foi difícil, teve problemas ou no fundo já estava tudo combinadinho ou já estava acertado que finalmente a mulher poderia entrar?
Jorge Escosteguy: Eleição direta?
Jayme Martins: Dizem que a brasileira se antecipou à francesa.
Caio Fernando Abreu: Rachel, queria saber.
Rachel de Queiroz: Era mais fácil ali, todo mundo era meu amigo, eu já estava nessa vida. De forma que não pleiteei, não pedi votos, não telefonei, não visitei. Fui-me embora para o Ceará, mas tinha grandes amigos lá dentro: Adonias Filho, Otávio de Faria [(1908-1980) crítico, ensaísta, romancista e tradutor carioca], Odylo Costa Filho [(1914-1979) jornalista, cronista, novelista e poeta maranhense], tinha uns dez ou doze amigos meus, companheiros de trabalho.
Rachel de Queiroz: Não, não cabalei, nunca pedi um voto. Os votos foram espontâneos, lá entre eles. Naturalmente que os meus amigos fizeram alguma coisa, mas não sei, estava no Ceará. Quando inventaram essa história da candidatura, fui-me embora para a fazenda e passei lá uns quatro meses.
Rachel de Queiroz: Não, porque ia todos os anos para o Ceará, então fui para a minha temporada regular lá, como ia todos os anos.
Rachel de Queiroz: Nada de misterioso. [risos]
Rachel de Queiroz: Vou mandar lhe fornecer o gibi – é o nosso boletim de todas as reuniões – e você verá. Discute‑se literatura, dicionário, apresenta‑se livro.
Rachel de Queiroz: Porque a Academia é uma instituição privada, um clube fechado de escritores que não é uma instituição pública, não recebe dinheiro do governo, não é estipendiada e tem a sua ação restrita porque é esse o seu destino. Ninguém prega as excelências da Academia nem ninguém discute. A Academia existe como ela é.
Rachel de Queiroz: As eleições acadêmicas, como a daqui, da Academia Paulista de Letras, se fazem, apresenta‑se o candidato, assumem‑se os compromissos de voto, faz‑se a eleição. O Mário Quintana sempre foi muito mal apresentado quando já havia outros candidatos comprometidos...
Rachel de Queiroz: Pois é, mas você já prometeu dar o seu voto, já aceitou um determinado candidato, não pode de repente abandonar porque deu o capricho do Mário Quintana naquela hora. Se o Mário Quintana tivesse sido devidamente aproveitado, teria entrado na primeira vez. Agora, havia um elemento de...
Rachel de Queiroz: Olha, tenho um temperamento muito bovino, sou muito calma, em nenhuma das duas realmente me afligi. O assalto foi muito desagradável, mas eu tinha uma impressão meio irreal, parecia que aquela coisa não estava acontecendo mesmo. Ao mesmo tempo em que estava sofrendo o assalto, eu estava sendo espectadora do assalto. E os rapazes, os assaltantes, era muito curioso o comportamento deles, de forma que eu estava danada da vida, porque estavam carregando as minhas jóias, minhas coisas, mas, ao mesmo tempo, estava sendo espectadora daquilo. E as prisões, a prisão do Vargas, por exemplo, aquela grande prisão em 37... Na verdade, fiquei no Corpo de Bombeiros, na sala do cinema, que eles desmobilizaram para mim, muito paparicada pelos bombeiros e pelo comandante.
Rachel de Queiroz: Faziam até serenatas para mim. [risos] Foi um período até de férias, eu estava numa fase meio atribulada da vida.
Rachel de Queiroz: Olha, essas críticas nunca me impressionaram, porque eu já estava zangada com eles, não estava disposta a me interessar pelo que eles diziam. Na verdade você vê que não é propriamente uma crítica literária, era uma crítica apaixonada. E as minhas turras com o partido duraram muito tempo. Nós nos patrulhamos reciprocamente, no fundo era divertido.
Rachel de Queiroz: Queria dar só um aparte ligeiro: não sou apaixonada pela Academia, não sou defensora da Academia.
Rachel de Queiroz: É isso exatamente a minha posição e a da maioria dos acadêmicos. São amigos, companheiros de trabalho, com quem a gente convive há muitos anos. Por exemplo, admiro profundamente o Abgar [de Castro Araújo Renault (1901-1995), professor, educador, político, poeta, ensaísta e tradutor brasileiro], acho que no momento é o maior poeta vivo – tirando-se o João – que é hors-concours [diz-se de algo tão bom, que não tem comparação com nada do mesmo gênero].
Rachel de Queiroz: Então, eu via, conversava, discutia poesia com o Abgar, trocávamos idéias. É um bom convívio, há muitos bons camaradas que a gente preza e há até aqueles com que a gente pensava que tinha divergências grandes e descobre-se, com o convívio, praticando aquela solidariedade...
Rachel de Queiroz: Você acha que vou lhe dizer isso? [risos]
Rachel de Queiroz: Você acha que vou dizer isso dos meus companheiros da Academia? Há uma coisa chamada esprit de corps [espírito de equipe], a gente briga entre si.
Rachel de Queiroz: E não é?
Rachel de Queiroz: Até que poucos. Aqueles que, por exemplo, às vezes, são malsinados. Na verdade, são intelectuais de outros ramos, são juristas ou são... Tem sua justificativa.
Marcos Faerman: Você fez parte de uma revista, O Cruzeiro, que foi uma revista importante que tinha uma tiragem fabulosa, e chegava na casa de muita gente. Ela tinha à frente dela uma figura chamada Assis Chateubriand. Você tinha contato com o Chateubriand, que era uma pessoa muito presente na redação? Você freqüentava a redação do Cruzeiro ou mandava as crônicas?
Marcos Faerman: A sua relação com O Cruzeiro...
Marcos Faerman: E, aliás, agora o Fernando Morais [jornalista, político e escritor mineiro especializado em biografias. Várias delas já foram adaptadas ao cinema, como Olga e Chatô] está escrevendo sobre a vida do Chateaubriand.
Maria Alice Barroso: Mas, Rachel, ele a prestigiava, não?
[...]: E o [Francisco] Franco [(1892-1975) militar e político espanhol, tomou o poder por meio de um golpe de estado, dando início à Guerra Civil Espanhola. Adotou um sistema político repressivo e autoritário, mantendo-se no poder de 1938 a 1975] também.
Rachel de Queiroz: O Franco também era outra bête noire minha, mas o Salazar era a minha vítima predileta. E o Chateaubriand andava muito pela Europa e vendeu um número do O Cruzeiro ao Salazar, ao governo português. E, em O Cruzeiro, como disse, não faziam censura nenhuma, nunca ninguém lia o meu artigo. Quem lia o meu artigo era o linotipista, de forma que, no número que o Chateaubriand vendeu para o Salazar, saiu uma crônica minha dizendo horrores do Salazar. Quando a revista chegou em Portugal, foi aquele Deus nos acuda: cortaram a revista de gilete, devolveram a revista, não queriam pagar o Chateaubriand, foi um horror. Então, me telefonaram: “Rachel, a sua crônica deu um bode danado, o que você vai fazer”? Digo: “É muito simples. Eu te faço uma carta renunciando à colaboração, saio do Cruzeiro e limpo a tua fachada”. Ele disse: “Não, não, nós vamos enfrentar, deixe o Chatô chegar”. O Chatô iria desembarcar dentro de dois ou três dias, vindo justamente de Lisboa. E o Leão foi muito tímido para o aeroporto esperando o destampatório do Chatô. Quando o Chatô desce do avião, ele diz: “Chatô, você viu aquele negócio, aquela encrenca que deu com a crônica da Rachel?" Disse o Chateaubriand: “Sabe que achei aquilo até bom? Esses portugueses estão ficando muito bestas!” [risos] Era assim o Chateaubriand.
Miriam Goldfeder: Rachel, virando um pouco o jogo, você já fez psicanálise ou a sua literatura é a sua psicanálise?
[...]
Rachel de Queiroz: Há muitos anos ele se apaixonou por psicanálise e começou a me seduzir para fazer psicanálise com ele. E fui, até me interessei, quando ele disse assim: “Olha, por alguns meses já te livro de todos os teus grilos”. Disse: “mas, Fernando, se você me livrar dos meus grilos, como é que escrevo?” [risos]
Jayme Martins: Rachel, revirando mais um pouco o jogo, como foi a sua aventura com o computador? Você já trocou a sua máquina de escrever comum por um Toshiba mil?
Rachel de Queiroz: Não.
Jayme Martins: Depois do computador, desembestou a escrever mais ainda?
Jorge Escosteguy: Opa!
Jorge Escosteguy: Você diz o trajeto do computador?
Jayme Martins: Prenderam o contrabandista?
Gilberto Mansur: Rachel, nessa área, o seu relacionamento com a televisão também não é muito bom, me parece. Há pouco você estava querendo ir embora. Acho que você teve uma peça... não sei se As três Marias foi adaptada para novela...
Gilberto Mansur: E as novelas?
Gilberto Mansur: Aí você rompeu com a televisão?
Jorge Escosteguy: Aí o esperto foi o doutor Roberto, que lhe pagou imediatamente para você gastar o dinheiro e ficar tudo tranqüilo?
Jorge Escosteguy: Essa pergunta sobre televisão foi feita também por Marcelo Brás, aqui de São Paulo.
Jayme Martins: Ah, deixe-me complementar essa pergunta aí. Você já disse que a gente é imortal, porque não tem onde cair morto.
Jayme Martins: Pois é, mas a senhora já repetiu, no entanto a senhora é fazendeira. No Rio de Janeiro, a senhora tem um apartamento num edifício que leva o seu nome. Os direitos autorias já deram para tanto?
Caio Fernando Abreu: O seu latifúndio é produtivo ou improdutivo?
Miriam Goldfeder: É o seu lado ecológico? Conta para a gente o seu lado ecológico.
Jorge Escosteguy: Rachel, o Sérgio Fernandes, aqui de São Paulo, do bairro da Pompéia, pede a sua opinião sobre dois políticos do Nordeste. Um não é bem do Nordeste, mas, enfim... É o Fernando Collor [de Mello], atual presidente da República, e o Luiz Inácio Lula da Silva [candidatou-se à Presidência da República em 1989, mas perdeu a eleição para Collor de Mello]. O Carlos Silva, de Fortaleza, também pede a sua opinião sobre o presidente Collor, que estaria, inclusive, destinando mais recurso para o seu estado, Alagoas. Kátia Mazolino, de São Caetano, também pergunta o que você acha do governo Collor.
Jorge Escosteguy: O que a senhora acha do capitão do navio?
Miriam Goldfeder: O navio está fazendo água já?
[...]: É uma jangada.
Jorge Escosteguy: E o Lula?
Marcos Faerman: Nessa etapa dele como governante no Rio de Janeiro, essa Linha Vermelha, essa coisa toda, o Brizola está indo bem ou, na sua opinião, o Brizola está indo mal?
Marcos Faerman: Mas você é a favor dos Ciep’s [Centro Integrado de Educação Pública, criado no primeiro governo de Leonel Brizola no Rio, em 1983, idealizado pelo antropólogo Darcy Ribeiro, destacando-se entre suas propostas a integração escola-comunidade, oferecendo atividades de lazer em bairros carentes], dessas escolas grandes?
Marcos Faerman: Então é uma questão de pele.
Caio Fernando Abreu: Rachel, eu me dou o direito de discordar do que você disse do PT e do Brizola. Você não acha que o Collor está dando continuidade ao que havia de mais lamentável no golpe militar de 64 que você ajudou?
Caio Fernando Abreu: Não, estou perguntando.
Rachel de Queiroz: No golpe em que ajudei, não. Ajudei o Castelo. O resto não. No AI-5 não tive a menor participação...
Caio Fernando Abreu: Depois do AI-5, você não acha que o Collor está dando continuidade a isso?
Caio Fernando Abreu: Não, eu queria me limitar a essa pergunta: você não acha que o Collor dá continuidade à deturpação?
Caio Fernando Abreu: Tenho uma interrogação aqui.
Caio Fernando Abreu: É o mínimo.
Caio Fernando Abreu: Acho que é o mínimo, liberdade.
Caio Fernando Abreu: Tenho 42 anos e estive preso em 68.
Caio Fernando Abreu: Acho que estou aprendendo coisas.
Caio Fernando Abreu: Bom... [abre os braços, desistindo de continuar a discussão]
Rachel de Queiroz: De ter nascido, de ter vivido, de ter feito tanta bobagem. Eu me arrependo de quase tudo.
Caio Fernando Abreu: A força oficial não estaria aqui.
Jorge Escosteguy: Ela não tem qualquer dependência ou atrelamento do governo, portanto todos nós temos a liberdade...
Jorge Escosteguy: Alguns governantes tentaram fazer dela um instrumento político.
Jorge Escosteguy: Felizmente, eles não estão mais aí.
Jayme Martins: Mais uma pergunta que me manda fazer o Ricardo Ramos. [lendo] “Além da superior romancista, nós temos a Rachel teatróloga, a escritora de literatura infanto-juvenil, a tradutora, todas modelares. Mas vem avultando, desde A donzela e a moura torta até Mapinguari, a cronista admirável. Só que, entre as suas crônicas, sem dúvida, excelentes, há contos da maior estatura. Por que você nunca desencantou explicitamente um livro de contos”?
Marcos Faerman: O seu contista favorito?
Marcos Faerman: Na literatura internacional, algum mestre particularmente apreciado?
Gilberto Mansur: Rachel, e a literatura infantil, juvenil, essa literatura para criança e para jovem? Você escreveu dois livros...
Gilberto Mansur: Dentro do seu pessimismo, desse seu baixo-astral, escrever para criança lhe dá alguma gratificação?
Fábio Lucas: Mas isso foi sempre assim ou só depois que você teve netos?
Jorge Escosteguy: Por falar em criança, Rachel, o Paulo Siqueira, da cidade de Campos de Jordão, tem 12 anos, telefonou para cá e gostaria de que você dissesse a ele se uma criança nasce escritor ou se precisa trabalhar muito para se tornar escritor.
Rachel de Queiroz: Você vê como criança tem bom senso! Diga a ele que a criança tem que ter um donzinho, ter um começo e aí, se ele cultivar o dom, pode vir a ser um grande escritor.
Rachel de Queiroz: Vendo, os livros vendem. O quinze está na 45°, 48° edições, todos os outros têm um bocado de edições. [sobreposição de vozes]
Jorge Escosteguy: Consegue receber os direitos autorias?
Miriam Goldfeder: Isso a deixa feliz, saber que você é lida? Ou isso é indiferente?
Marcos Faerman: Rachel, você era amiga do José Lins do Rego?
Marcos Faerman: Mas vocês tinham uma grande briga, pelo menos.
Marcos Faerman: Ah! [rindo e apontando para Rachel]
Jorge Escosteguy: Quem era Flamengo e quem era Vasco?
Marcos Faerman: E dava briga?
Marcos Faerman: E como é que era essa coisa, assim, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz discutindo?
Marcos Faerman: Aquele miserável time do Vasco?
Marcos Faerman: E com o seu marido também?
Marcos Faerman: E o seu neto?
Jayme Martins: Rachel, você costuma dizer que não gosta de ler os seus livros. Mas qual deles é o que mais se aproxima daquele que você gostaria de ler?
Fábio Lucas: Há pronunciamentos seus muito favoráveis a João Miguel, por exemplo, e a Dora Doralina, não?
Moacir Amâncio: Rachel, como é isso de não gostar do livro, é senso crítico exagerado? O que é isso? É difícil para a gente entender.
Gilberto Mansur: Rachel, quando você diz que a sua verdadeira profissão – já tinha lido sobre isso também–, mais do que cronista, romancista, teatróloga, é jornalista... Agora, você chegou a exercer, exerceria com prazer, como repórter ou...?
Gilberto Mansur: Isso lá no Ceará?
Marcos Faerman: Agora, só tenho uma curiosidade, porque nessa coisa de redação de jornal, era muito raro se encontrar uma moça numa redação.
Rachel de Queiroz: Não tão raro...
Marcos Faerman: Tenho trinta anos de vivência como jornalista...
Marcos Faerman: Havia três mulheres. Acredito que o Ceará realmente, nesse caso, é recordista no Brasil, porque moças em redação de jornal não era [fato] muito comum assim há 30 anos atrás. E como era a vivência de uma moça dentro de uma redação de jornal com os colegas?
Rachel de Queiroz: Comecei... Primeiro, como disse, a minha família era uma família de intelectuais. A gente conhecia todos os intelectuais da terra, a gente se visitava, eram amigos de meus pais quase todos. O dono do jornal em que comecei a trabalhar era amigo fraterno do meu pai. O Demócrito Rocha [1888-1943) poeta e jornalista brasileiro, fundador do jornal O Povo, no Ceará, em 1928] era amigo meu e da minha família, o [dono] do segundo jornal em que trabalhei, que ainda hoje é O Povo. Ainda hoje sou colaboradora do O Povo. De forma que, nos jornais em que eu trabalhava, era aquele ambiente muito amigo, nunca senti... E quando, aos 29, 28 anos, vim trabalhar no Rio, no Diário de Notícias, já tinha várias mulheres trabalhando.
Rachel de Queiroz: O Oswaldo Orico ficou safado da vida de não ser a Dinah, que era a candidata dele. Ele era um homem brigão e a Dinah tinha lutado lá na Academia pela candidatura. Eu também queria que ela fosse a primeira candidata, nós éramos muito amigas; até ela morrer, a Dinah e eu éramos amigas unidíssimas, amigas fraternas, e queria que fosse ela a primeira candidata.
Rachel de Queiroz: O primeiro marido dela era meu primo-irmão, o Narcélio [de Queiroz, advogado e literato]. E nós ficamos amigas, cheguei a brigar com o Narcélio. Quando ela brigava com o Narcélio, eu ficava ao lado dela, porque o casamento foi muito difícil, eles tinham muitos problemas. Então a minha candidata era a Dinah, mas ela tinha criado aquele ambiente meio adverso por causa da luta dela para ingressar na Academia e veio me pedir: “Rachel, pelo amor de Deus, aceite essa candidatura, porque a única maneira de eu entrar é você entrar primeiro”. De forma que...
Rachel de Queiroz: O Oswaldo Orico, depois ficamos grandes amigos, ele até... Ele sentava junto de mim nas sessões, ficamos grandes amigos. Sou justamente a relatora do Prêmio Oswaldo Orico.
Rachel de Queiroz: Pois é.
Rachel de Queiroz: Sim, senhor.
Rachel de Queiroz: Não fui eleita porque, segundo nós alegávamos, a eleição foi roubada. Pode ter sido por falta de voto mesmo, mas a alegação do Partido Socialista é que a eleição tinha sido roubada. As eleições naquele tempo eram muito bravas.
Rachel de Queiroz: É muito curiosa a revolução que o Castelo Branco fez... ele nunca conspirou. A gente conspirava durante o governo do Jango, porque nós tínhamos apoiado o Jânio Quadros – eu e o meu grupo de amigos, a gente tinha apoiado o Jânio Quadros. O Jânio foi praticamente deposto, o Jânio saiu porque obrigaram. A gente sabe, não precisa discutir uma história velha. E ficamos na moita. Aí veio o Jango com todo o seu esplendor caudilhista e fascista, na nossa opinião. E a gente estava vendo começar de novo aquela história de pelego, e começamos a conspirar, os antigos democratas diante de pré-Getúlio e durante Getúlio. E o Castelo, não, ele não entrava. Ele dizia que era general na ativa e general na ativa tem que obedecer e não entra em motins e revolução. [sobreposição de vozes]
Jayme Martins: Mas há alguma confidência que revelasse o desgosto dele com relação ao rumo que tomou 64?
Caio Fernando Abreu: Quero falar uma última coisa. Estou me sentindo muito constrangido de estar aqui.
Caio Fernando Abreu: E a última coisa, não vou me tornar constrangedor. Por várias coisas que você falou, concluo que você colaborou para coisas muito negativas nesse país, no meu ponto de vista. Compreendo que todos nós somos humanos, erramos, nos equivocamos e tal, mas estou me sentindo extremamente constrangido de estar na posição de render homenagem a um tipo de ideologia que profundamente desprezo.
Jorge Escosteguy: Caio, você tem que fazer perguntas, e não render homenagem, desculpe.
Jorge Escosteguy: A entrevistada é a escritora Rachel de Queiroz.
Rachel de Queiroz: Gostaria de responder a você que nós estamos num país democrático, eu respeito as suas posições e espero que você respeite as minhas.
Caio Fernando Abreu: Respeito, tanto que me calo.
Marcos Faerman: Teve um episódio com o general Lott, superatritado.
Marcos Faerman: Como é que foi esse episódio?
Marcos Faerman: Tinha uma carta sua?
Jorge Escosteguy: O que você tinha contra o general Lott?
[...]: Chegou-se a falar que você seria ministra da Educação, não é?
Marcos Faerman: Por que razão?
Marcos Faerman: E o dicionário do Jânio?
Marcos Faerman: Você chegou a conhecer a obra literária de Jânio Quadros?
Marcos Faerman: Obra cultural do Jânio.
Gilberto Mansur: Era uma gramática. Ele tem um livro de contos também.
Jayme Martins: Rachel, onde você se sente melhor realizada: como escritora, como cozinheira, como bisavó, como que outra coisa?
Jayme Martins: E como cozinheira?
Jorge Escosteguy: Rachel, o Jovino Ribeiro, aqui de São Paulo, pergunta: “A senhora se diz contra o striptease do memorialismo. O que dizer do seu primo, Pedro Nava [(1903-1984) autor de valiosa obra memorialística, que começou a ser escrita em 68 sobre o período histórico situado entre 1840 e 1860], que fez um imenso striptease”?
Jorge Escosteguy: E ele dizia o quê?
Marcos Faerman: O Pedro Nava tem uma memória prodigiosa, é deslumbrante a obra de memória dele. Aquilo tudo é verdade, quando o Pedro Nava conta aquelas minúcias da infância?
Marcos Faerman: Isso é que queria saber.
Marcos Faerman: Ele anotava tudo, né?
Marcos Faerman: Ele lhe apresentou ao seu marido?
Marcos Faerman: E o Pedro Nava tinha obsessão por anotar coisas?
Marcos Faerman: E como escreveu!
Marcos Faerman: Um escritor deslumbrante.
Rachel de Queiroz: Bem, nenhum meu.
Rachel de Queiroz: Peço sugestões. Nunca pensei em ir para uma ilha deserta, não vejo com simpatia essa idéia, de forma que nunca pensei, mas peço sugestões. São os que a gente... O quê? Talvez O morro dos ventos uivantes, da Emily Brontë [(1818-1848)], talvez um [Fiódor] Dostoiévski [(1821-1881) um dos maiores escritores da literatura russa], talvez o Machado [de Assis]...
Rachel de Queiroz: Não. Talvez o Angústia, do Graça [Graciliano Ramos].
Rachel de Queiroz: Mais perto?
Rachel de Queiroz: Poeta, o Manuel [Bandeira (1886-1968). Poeta e cronista modernista, foi também crítico de arte, professor e pesquisador. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras]. Eu levava mais de cinco. Se pudesse, levava mais cem para me abastecer. Se era uma ilha deserta, tinha muito tempo para ler.
Rachel de Queiroz: Foi muito divertido, porque cada escritor só se preocupava com uma coisa: enrascar o próximo.
Rachel de Queiroz: Fizeram o emaranhado todo e me deram o abacaxi. E tive que assassinar uma porção de pessoas.
Rachel de Queiroz: Era mais uma brincadeira.
Rachel de Queiroz: Acho que está. Mas tinha um outro [livro], teve outro [Brandão entre o mar e o amor], com Aníbal [Machado], Jorge Amado, José Lins, creio, e eu. Éramos cinco, não me lembro quem era o quinto.
Rachel de Queiroz: Foi Graciliano.
Rachel de Queiroz: Acho que só esses dois livros sim que a gente fez foi mais uma brincadeira. O do MMM foi invenção de João Condé [(1912-1996) jornalista pernambucano]...
Rachel de Queiroz [interrompendo]: Que reverencio.
Rachel de Queiroz: Excelente, é lapidar, admiro muito o Quintana e gosto muito da poesia dele e votei nele quando quis entrar na Academia.
Jorge Escosteguy: Por que a experiência na vida só serve para ver o tempo perdido?
Jorge Escosteguy: Com todo esse seu baixo-astral, eu lhe perguntaria: qual seria o seu epitáfio?
Jorge Escosteguy: Bom, nós agradecemos então a presença hoje à noite, no Roda Viva, da escritora Rachel de Queiroz. Antes, eu gostaria de ler dois telefonemas que deram para você. O José Olímpio Neto diz que está feliz de ver uma amiga de tanto tempo na televisão e a prima de Beberibe, no Ceará, Maria José Bessa, telefonou. Agradecemos também aos companheiros escritores e jornalistas que ajudaram a entrevistar a Rachel de Queiroz, aos telespectadores, lembrando que as perguntas que não puderam ser feitas por telefone serão entregues à Rachel após o programa.