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Memória Roda Viva

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Ricardo Semler

15/1/1990

O empresário, presidente da Semco, fala sobre a forma inovadora com a qual gerencia sua empresa e seus funcionários e reflete sobre as expectativas para o futuro

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[Programa ao vivo, permitindo a participação dos telespectadores]

Jorge Escosteguy: Boa noite. Estamos começando mais um Roda Viva. Este programa é transmitido ao vivo pelas TVs educativas de Porto Alegre, Minas Gerais, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Bahia e Piauí, TV Cultura de Curitiba e TV Cultura do Pará. É ainda retransmitido por mais de 22 emissoras que formam a Rede Brasil através da TVE do Rio de Janeiro. O convidado do Roda Viva desta noite é o empresário Ricardo Semler. Você que está em casa nos assistindo e quiser fazer perguntas por telefone pode chamar (011) 252-6525. A Carla, a Bernadete e a Ana estarão anotando as suas perguntas. Para entrevistar Ricardo Semler esta noite no Roda Viva, nós convidamos os seguintes jornalistas: Fátima Turcci; Milton Horita, repórter de economia do Jornal do Brasil; Alex Solnik, repórter da Folha da Tarde; Sérgio Motta Mello, jornalista; Carlos Nascimento, editor de jornalismo da TV Record; Sérgio Leopoldo Rodrigues, editor de jornalismo da Rádio Nova Eldorado; Eleno Mendonça, repórter de economia do jornal O Estado de S. Paulo; Tão Gomez Pinto, editor da revista Executive News. Na platéia assistem ao programa convidados da produção. Ricardo Semler nasceu em São Paulo, tem 30 anos e é autor do livro Virando a própria mesa, onde relata, com humor e irreverência, a revolução que empreendeu na empresa que herdou de seu pai, a Semco. Abriu a fábrica para os sindicatos, permitiu a criação de comissões de fábrica, aboliu os expedientes burocráticos, demitiu parentes e amigos e, finalmente, promoveu a distribuição dos lucros entre os empregados. É diretor da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo [Fiesp], mas também um duro crítico dessa instituição. Considera atrasados e paternalistas os métodos dos empresários. Boa noite, Ricardo.

Ricardo Semler: Boa noite.

Jorge Escosteguy: Antes de entrar nessa discussão mais empresarial... Você hoje foi personagem de uma notícia: você montou um flagrante de extorsão, extorsão com um fiscal. Como é que foi essa história? Por que você montou isso e qual foi...?

Ricardo Semler: A gente vive falando que o problema do Brasil é a corrupção, que a corrupção não acaba e eu parei para pensar já várias vezes quem é que corrompe mais. E a conclusão é que quem corrompe é quem tem dinheiro. E quem tem dinheiro, normalmente, é empresário. Então, nós nunca vamos conseguir sair desse círculo vicioso se a gente não começar a terminar com esse expediente de corrupção por parte do empresariado. Nós já tivemos várias situações em que fomos - não vou dizer achacados - mas houve tentativa de receber “bola”, propina... e isso o empresário encontra diariamente. Não consegue fazer quase nada neste país [sem] que alguém não te peça “bola” para fazer. E normalmente a gente tem dito "olha, não damos" e a coisa prossegue, e se o cara disser “eu vou multar se não...”, [respondemos] “então multa”, [se dizem] “vou autuar”, [respondemos]" então autua”. E tem sido assim. Mas a gente vem se cansando disso porque isso não tem fim. A única vez em que eu realmente fui mais contundente com a questão, que foi no próprio livro em que eu disse que uma grande parte dos fiscais deste país eram corruptos, [e então] eu fui processado por queixa-crime e pediram que eu provasse algum caso de corrupção.

Jorge Escosteguy: E hoje você provou?

Ricardo Semler: Eu achei muito divertido. Nós fomos deixando a coisa passar e apareceu uma oportunidade. Um fiscal que montava uma operação em que ele dizia: "Olha, aqui o negócio vai ficar ‘preto’. Do lado direito está faltando nome, do lado esquerdo a numeração está errada... isso aqui vai dar uma ‘nota’". Nós ficamos esperando para ver o que dava. O cara começou a fiscalização em agosto e durou até janeiro e o cara não saía lá de dentro procurando coisa. Finalmente quando chegou perto, o cara resolveu “morder”. Em uma dessas conversas ele disse: “Olha, isso aqui é 10%, um  negócio desses... É 150 mil dólares de ‘bola’”. E aí nós tínhamos duas opções: ou deixar autuar e correr de novo aqueles processos normais em que ele diz: “eu sei que você vai ganhar o processo, mas vai ter que pagar advogado, vai ter que ter trabalho e tal... Então [é] por isso que o expediente fácil é me dar 150 mil dólares e o negócio acaba na hora”. E nós resolvemos que nós estávamos cansados disso.  Então eu liguei para o Sayad, que foi muito solícito e falei quem é sério...

Jorge Escosteguy: Sayad?

Ricardo Semler: O João Sayad [economista que, além de  acadêmico da Universidade de São Paulo, foi ministro-chefe da Secretaria de Planejamento da Presidência da República, secretário da Fazenda de São Paulo e secretário de Finanças da prefeitura de São Paulo]. Eu disse: quem é sério nesse governo? Ele falou: “Olha... tem esse, esse”. Parece até que tem muita gente, eu fiquei surpreso. Aí fomos lá, ligamos para o secretário da Fazenda que, por sua vez, “montou” com o secretário da Segurança, delegado geral da polícia e nós montamos um esquema onde nós – empresa – fazíamos... montamos todo o flagrante. Porque há 11 anos que não se pega um fiscal neste país, há 11 anos que não se pega um flagrante. E uma das razões, primeiro: é porque o empresariado normalmente acha mais fácil pagar. Dois: tem medo da retaliação, ou seja... Física, família, a dos fiscais que não param mais de entrar na empresa... E também existe a figura do flagrante preparado. Se você prepara com a polícia, não vale nada. Então nós preparamos sozinhos e foi uma coisa até perturbadora. Começamos a fazer, montamos gravação, montamos vídeos, montamos um monte de coisas e fizemos várias conversas com esse fiscal e a última delas foi na sexta-feira em que ele acertou o valor. Ele disse: “é isso, é para pagar em dez parcelas” e “não sei o quê”... E nós acertamos a primeira parcela para hoje, e hoje às 2 horas da tarde estava marcado para o cara ir lá e receber o cheque dele. E nós precisávamos caracterizar na fita e no vídeo que [era] ele quem estava pedindo, quanto ele estava pedindo, qual era a proposta dele e etc e conseguimos fazer isso na gravação. E hoje nós quase morremos de susto, inclusive, porque eram 2 horas e o cara sempre vinha pontualmente e hoje ele não apareceu até as 3 e pouco da tarde e nós falamos: “vazou, achávamos que os caras eram sérios, mas vazou a informação. Enfim, não vazou. 3h10 o cara apareceu lá; 4h30 os investigadores estavam lá, deram voz de prisão para o cara e é o primeiro fiscal agora em muitos e muitos anos, o Sayad disse que nunca viu isso...

Jorge Escosteguy: Mas parece que ele não age sozinho, há uma quadrilha.

Ricardo Semler: Pois é, ele até indicou nomes da quadrilha e etc, agora vamos ver o que dá, mas de qualquer forma... Ai, que tragédia! [derruba o copo de água]

Jorge Escosteguy: O ex-ministro Paulo Brossard também derrubou, não tem problema!

Ricardo Semler: Mas não é uma comparação muito feliz! [risos] De qualquer forma, o grande perigo é você colocar o cara preso e aí daqui a alguns dias relaxam a prisão e fica por isso mesmo. Então nós estamos acompanhando e acho que dessa vez não vai ser fácil o cara escapar.

Jorge Escosteguy: Mas você acha que esse procedimento é ajudado pelo fato dos empresários acharem mais fácil pagar a corrupção?

Ricardo Semler: Não tenho a menor dúvida.

Jorge Escosteguy: Do que entrar com processo para se defender etc?

Ricardo Semler: Claro. Mesmo montar o flagrante... Não é difícil montar o flagrante, mas você tem que estar disposto e você não pode ter muito a esconder. Porque depois eu pedi ao secretário... Disse: “Agora o senhor faça uma fiscalização correta, não vai deixar a coisa morrer”.

Jorge Escosteguy: Tinha alguma irregularidade na sua empresa mesmo ou não?

Ricardo Semler: Toda vez que você entra no manual de ICM, você passa a mercadoria de um lado para o outro, volta e faz numeração. “Puts”... É o que eles chamam de procedimento ou auto de procedimento, que é uma “multinha de nada” que você emitiu errado ou certo. São sempre auxiliares de escritório que emitem Notas Fiscais, então o cara sempre consegue “fazer uma festa”, mas são valores pequenos. Então nós pedimos agora e eles vão fazer uma fiscalização correta e tal, isso nós estamos sempre sujeitos. Mas o grande objetivo então, resumindo, era incentivar outros empresários a fazerem a mesma coisa, porque dá para fazer centenas de flagrantes por dia, se quiser. Então nós estamos tentando ver se as pessoas se dispõem.

Jorge Escosteguy: Carlos Nascimento tem uma pergunta para você.

Carlos Nascimento: Eu queria, se você pudesse dar, mais detalhes. Pelo que me parece é um fiscal do Estado, um fiscal de ICM, ICMS, Fazenda. Eu queria que você desse o nome dele. Disse que ele citou outros nomes, de que equipe, de que repartição. E mais ainda, que você apontasse... Essas práticas de extorsão elas são comuns só na Fazenda estadual? Nos fiscais federais? Onde é que você tem encontrado esse tipo de prática?

Ricardo Semler: Você percebe que cada vez que você me pergunta isso vem mais queixa-crime atrás, mas depois eu passo para você defender. [risos] O que acontece é o seguinte: a prática é generalizada, esse caso é Fazenda, e o cara chamava Leandro ou Leonor Alvarenga Campos Filho.

Carlos Nascimento: De que repartição, de que bairro, de que delegacia?

Ricardo Semler: Santo Amaro... Santo Amaro... da Fazenda. Foi suspenso hoje, inclusive, pelo secretário da Fazenda. Mas no âmbito federal e municipal e etc, a coisa é muito parecida, é muito parecida. O grau de corrupção em cada uma dessas entidades eu não conheço, com certeza é maior ou menor conforme há quanto tempo existe gente séria na cúpula, se é uma coisa recente e tal.

Alex Solnik: Mas, Ricardo, o governo municipal agora do PT em São Paulo também está praticando, fiscais da prefeitura praticam esse tipo de extorsão também?

Ricardo Semler: Me dá a seguinte impressão: se você disser “a Erundina manda o cara ‘morder’ 10%”, eu tenho certeza que não. Agora, o cara que é fiscal há 20 anos, há 15 anos... Que é concursado... Essa ninguém mexe... Porque só mexe assim, só mexe  num flagrante desses. Se o cara não sair com algemas, esquece. Porque a sindicância não dá em nada.

Carlos Nascimento: Mais de uma vez eu já ouvi as pessoas dizerem assim: “Olha aí, esse fiscal mora nessa casa... Pelo que ele ganha ao longo da vida jamais ele poderia morar nessa casa, ter esse carro, o padrão de vida que ele tem”. Isso para fiscal do estado, da prefeitura, da Receita Federal. Quer dizer que quando há esses comentários, pelo que você tem vivenciado na sua vida profissional, empresarial, aí "tem fumaça e tem fogo"? [referência ao ditado popular que se aplica a situações onde há indícios de alguma coisa]

Ricardo Semler: Tem muito fogo, não tem quase fumaça, porque eles não se preocupam, a impunidade é tal! Esse cara assobiava o tempo todo e aí ele disse: “que coisa gostosa” na hora de receber o cheque! Isso foi a reação dele. Quer dizer, se você pergunta “esse cara está com peso na consciência?”, eu acho difícil, não é? Agora, isso é generalizado e tem uns truques fabulosos. Uns deles é o seguinte...

Carlos Nascimento: É generalizado?

Ricardo Semler: Eu acho. Tenho certeza.

Sérgio Leopoldo Rodrigues: O que eu queria te perguntar é: você acha que essa prática foi estimulada por quem? No Brasil a gente sabe que a corrupção não é uma coisa do fiscal.

[...]: Deixa só ele contar os truques antes.

Ricardo Semler: É um truque só. Tem um truque muito interessante que eu descobri hoje, que é o seguinte: eles compram bilhete de loteria com ágio, aí o cara diz: “ganhei na loteria, meu filho, o que você quer que eu faça? Essa casa no Morumbi... Campos do Jordão... Isso aí eu ganhei na loteria”. [risos]

Tão Gomes Pinto: 150 mil dólares é uma propina especial, algo extra?

Ricardo Semler: É razoável, né?

Tão Gomes Pinto: Ou é coisa rotineira? Porque me impressiona a quantia, né?

Ricardo Semler: Também me impressionou a quantia. Não sei se é rotineira, não tenho idéia. Ele, da última vez em que esteve lá, ele me mostrou 5 mil dólares que ele tinha pego de um microempresário, em dólar. Quer dizer, sei lá...

Fátima Turcci: Agora, Ricardo, você vem caracterizando e falando agora que você gostaria de dar um exemplo a outros empresários.

Ricardo Semler: Gostaria de comentar.

Fátima Turcci: Isso que eu queria discutir. Quer dizer... Até que ponto vale, na medida em que assim como você mesmo afirmou, provavelmente a semana que vem a pena é relaxada, ele sai, não dá em nada... Quer dizer, você vira notícia hoje, fica na discussão uns dias e acaba e tudo se resolve. E parece que há, não só esse relaxamento, como o relaxamento da própria população; quer dizer... quem não é corrupto parece que não entrou no esquema e é bobo, né? Quer dizer, a coisa inverteu. Os conceitos, os valores se tornam tão invertidos. Quer dizer, o que mais o cidadão ou cidadãos... O que se precisa fazer para acabar de vez com isso? Quer dizer, um exemplo, é super elogiável o que você fez e tal, mas o que mais? O que mais se pode fazer? Como?

Ricardo Semler: É uma questão de “andorinha em verão” [refere-se à expressão que diz  que “uma andorinha só não faz verão”]. Você diz “eu não vou mudar o mundo”, então você não faz nada. Você fala “quanto é?”.

Eleno Mendonça: Eu queria acrescentar à pergunta dela, que uma das bases do programa do novo presidente Fernando Collor  é justamente o combate à sonegação. Então, eu queria que você desse uma receita de como combater a sonegação para fiscais que ganham pouco e para empresários que estão interessados em acobertar alguma coisa. O que seria necessário ao novo presidente para empreender esse plano?

Ricardo Semler: A impressão que eu tenho é a seguinte: primeiro precisa negociar isso com os empresários. Os empresários precisam estar dispostos, porque só do lado do Estado você não consegue “matar o bicho”. Porque é muito mais interessante. Eles normalmente cobram coisa de 10%. Então o cara diz: “Olha, vai pagar 100 mil dólares de multa ou então 10 de ‘bola’ ?”. 10 de “bola”.

Eleno Mendonça: Como é que seria essa negociação com os empresários?

Ricardo Semler: No começo do governo... Se bem que essa coisa toda dos empresários contra Collor, não sei o que... Isso, obviamente, é tudo papo furado. Então, logo no começo, vão se acertar e num certo momento desse acerto poderia entrar esse tema na pauta. Por exemplo, eu acho que o fiscal... Normalmente esses fiscais corruptos... O cara diz “vai haver combate à sonegação”, o cara dá uma festa regada à champanhe na casa dele, porque é aí que sobem imensamente os honorários dele. Porque 10% de uma coisa muito mais agressiva é muito mais que 10% do atual, mas então simplesmente vai aumentar a renda dele. Deve estimular inclusive o mercado de casas no Morumbi. [risos]

Sérgio Leopoldo Rodrigues: Ricardo, eu só queria terminar a minha pergunta que eu tinha interrompido. Quer dizer, a questão ética de porque da corrupção não é questão só de fiscal. Você tem o exemplo da nação hoje em termos de corrupção de cima até embaixo, você pode começar a pegar casos. Mas você vê que outros casos estão sendo liberados, por exemplo, empresários que voltam para as suas empresas que já tinham sido indiciados por corrupção, estão hoje no comando de empresas etc, etc. Quer dizer, então é um passo. Mas como é que você muda a estrutura toda para que você possa amanhã...? Ou se, pelo contrário, a carga tributária, por exemplo, que também ajuda... Quem compra um imóvel sabe que você paga 10% sobre o valor venal do imóvel para transferir o imóvel para o nome, então quem paga um imóvel 800 mil cruzados vai ter que pagar 80 mil cruzados para registrar, para transferir, é óbvio que todo mundo vai transferir por baixo, fazer por baixo... Quer dizer, uma coisa estimula a outra também?

Ricardo Semler: Não tem muita diferença entre isso e o que a gente tem tentado fazer na empresa há quase 10 anos. Tem muita coisa que nós estamos fazendo, eu falei já com vários empresários antes, eu falei: “O que vocês acham? Vamos tentar montar esse flagrante?”. Eles falaram “você é um trouxa, porque você vai ter represália pessoal. Ainda bem que você não tem filhos senão eles vão ser seqüestrados, você vai ter ‘bandos’, ‘times’ de fiscais lá”. Como nós tivemos recentemente, o pessoal vai lá e fica 6 meses.

Sérgio Leopoldo Rodrigues: E agora como é que vai ser?

Ricardo Semler: Pior não fica. A empresa já está infestada de fiscais por retaliação, então põe mais 100, 200... Vamos acabar logo com isso. Mas chega uma hora que você tem que acabar com a fiscalização, não pode ficar para sempre nisso.

Sérgio Motta Mello: Ricardo, quando você examina o caso da sua empresa especificamente, você que defende aí - está no seu livro as coisas que você vem dizendo - valores em sintonia com a modernidade, esses valores de transparência, da participação, o profissionalismo, fica mais fácil. Eu acho fantástico esse teu gesto. “Puxa vida”, tomara que tenha um peso muito importante, maior do que a gente imagina, tomara que ele consiga realmente vestir de um simbolismo importante essa coisa da corrupção e tomara que outras empresas... e tomara que ele seja realmente caudatário de outras empresas. O que eu vejo como complicado é o que está por trás disso, quer dizer, as empresas para poderem chegar a fazer isso, elas vão ter que se tornar transparentes. Elas tem que se profissionalizar. Agora, às vezes o empresário sente, porque ele [...] deu 50 cruzados para o fiscal da prefeitura que veio ver o negócio da falta de banheiro, [que] ele está com o rabo preso e se sente constrangido com ele. E, além disso, os próprios fiscais, o próprio aparelho do Estado... Para você fazer uma reforma realmente, fazer um check-up revolucionário é complicadíssimo, tem um longo caminho aí. Mas o que eu sinto, o que eu queria falar para você é que não tem outro caminho, que as empresas de alguma maneira têm que se tornar mais transparentes, têm que se tornar mais profissionais para poder sobreviver.

Ricardo Semler: Eu tenho dito muito que o grande agente de mudança deste século no país foi a instalação dos sindicatos de trabalhadores, e poderia também ter sido um grande agente de mudança o empresariado como um todo e não foi. Optou por não ser, optou por dar apoio aos governos que aí estiveram etc.

Tão Gomes Pinto: Onde é que falhou o empresariado nessa trajetória como agente de mudança? Onde é que foi a principal falha?

Ricardo Semler: Principal falha?

Tão Gomes Pinto: É.

Ricardo Semler: Eu acho que ela não foi de momento, ela foi de mentalidade. Foi no sentido de dizer “nós não somos responsáveis por tudo isso, o que interessa é o desenvolvimento. O desenvolvimento gera emprego, então vamos lá”. E a coisa do “bolo, depois a gente divide, depois a gente vê com quem ficam os pedaços” e etc.. Então eu acho que foi um problema de mentalidade. E o Brasil vive um capitalismo absolutamente selvagem. Nós temos algumas exceções aí nas multinacionais, nas grandes empresas, mas [se] você anda pelo Brasil é um capitalismo absolutamente selvagem, não é? A gente fala no salário mínimo de 50, 60 dólares... Está cheio de empresa que o cara devolve metade do salário mínimo fora, ainda, [o trabalho de] mulheres, crianças no Nordeste.

Fátima Turcci: Por falar nisso... Quer dizer, por falar em mudanças e em salários etc você foi um dos primeiros a discutir salário e, segundo você me contou, [discutir] o seu próprio salário com os funcionários. Quer dizer, eles decidem quanto você deve ganhar. Eu queria saber se isso continua, se eles decidirem pagar para eles semanalmente, se você está recebendo deles semanalmente e que tipo de empresa que você acha que pode, hoje, pagar semanalmente?

Jorge Escosteguy: Você está satisfeito com o seu salário?

Ricardo Semler: Eu estou porque isso... eu vou corrigir uma coisa: ele é auto-fixado, ou seja, não fixam o meu salário, eu é que fixo o meu salário. Como também nós temos... Todo mundo que está em cargos de liderança dentro da empresa fixa o seu próprio salário.

Fátima Turcci: E que passa pelos funcionários na avaliação disso?

Ricardo Semler: O processo é mais ou menos o seguinte: a gente sempre fala do biônico, da necessidade da democracia, do voto direto. Nas empresas a coisa mais biônica que existe é o gerente, porque esse cara é nomeado e se ele for esperto suficiente, ele tem um cargo vitalício pela frente. Então nós começamos um processo onde nós dizíamos “nós não queremos líderes, pessoas que tenham cargo de liderança que não sejam ratificados pelas pessoas que eles vão liderar”, então começamos vários processos. Um deles: só é promovido dentro da empresa quem é aprovado por todos os seus futuros subordinados. Então o pessoal faz um perfil do tipo do chefe que eles querem, avaliam os candidatos e escolhem um cara para ver se dá ou não dá. Mas então não é mais possível eu nomear alguém para um cargo de chefia, isso não existe mais. Essa é uma parte do processo. Segunda parte: o cara tem um processo onde ele pode auto-fixar o seu salário, até dentro de parâmetros, não tem muito essa preocupação de parâmetro até. Por quê? Porque a gente diz o seguinte: nós temos uma pesquisa salarial que diz quanto ganha gente que faz coisa parecida com ele [o funcionário da empresa, seja qual for o cargo]...

Fátima Turcci: No mercado? Pesquisa de mercado?

Ricardo Semler: No mercado. Quanto ganham as pessoas dentro. Três: quanto ele gasta? Quatro: quanto ganham os amigos dele? Quer dizer, ele sabe tudo o que nós sabemos sobre salário, então nós damos esses dados todos e nós dizemos: “segunda-feira volta aqui e me diz quanto você precisa ganhar para: 1) você se sentir satisfeito. 2) você se sentir retribuído adequadamente; e 3) você não se colocar numa posição difícil, você não ficar além do mercado ou ficar fora de faixa e etc, porque se você fizer isso nós vamos honrar o salário que você pediu, mas pode ser que daqui algum tempo nós não tenhamos mais função para você nesse salário”. Nós fizemos isso já muitas vezes e é absolutamente espantoso como as pessoas são razoáveis. A gente sempre parte desse pressuposto de que as pessoas são adultas e responsáveis. Ninguém vai querer fixar o seu salário num patamar absurdo para depois ser um incômodo, para depois ser um obstáculo.

Alex Solnik: Ricardo, o que você está programando para a sua empresa a partir de 15 de março, a posse do Collor? O que você está planejando para esse tempo?

Ricardo Semler: Nós estamos tocando a empresa como se a gente não lesse jornal, porque a maior tragédia neste país é você ler o jornal. Além de sair sangue das páginas econômicas, você logo sai tomando medidas. Liquidez, compra ouro, sai “não sei o quê”, e você fica absolutamente tomado por isso. Então, há muito tempo que nós paramos de dar atenção para isso e nós estamos olhando os nossos índices internos: estamos vendendo produtos? Está funcionando? Está “não sei o quê"?...E  estamos vivendo com base nisso. Hoje temos vendas altas. O ano de 89 foi alto, já estamos com o mês de janeiro fechado. Já estávamos fechados no dia 9, quer dizer... Uma coisa de doido.

Eleno Mendonça: Ricardo, essa liberalidade, esse seu comportamento liberal não conflita muito com o fato de você ser um dos vice-presidentes da Fiesp? Não te traz problemas de relacionamento interno? Porque embora a Fiesp tenha um discurso até certo ponto liberal, na prática a coisa não se confirma muito. Então eu queria que você desse um perfil de como que é a convivência do Ricardo Semler com a estrutura um tanto arcaica e o processo estrutural da Fiesp.

Ricardo Semler: Quando nós começamos esse processo todo e fomos experimentando - e foi de forma empírica, porque eu sou bacharel em direito, quer dizer... não foi uma coisa técnica -, nós saímos por aí juntando pessoas que tinham ideais parecidos e começamos esse processo de modificação da estrutura da empresa e aí começamos esses programas de participação, desenvolvimento, participação dos lucros. No começo a empresa era muito menor, ela era quase dez vezes menor do que ela é hoje; nove vezes menor do que seis anos atrás e ninguém dava bola. O pessoal dizia “mas é um moleque, quando ele crescer ele vai ver que o mundo é bem diferente”, então passava batido. Na medida em que nós fomos comprando empresas multinacionais; compramos uma, compramos a segunda, compramos a terceira, compramos a quarta... Os caras falaram “opa, aí tem coisa, vamos ver o que é isso”. Então, nesse jogo empresarial, você precisa ganhar pelo placar que está lá no estádio. O placar é lucro, rentabilidade, produtividade, faturamento. Então foi necessário que nós ganhássemos nesse jogo. Isso aconteceu recentemente e eu não escrevi o livro antes de isso acontecer porque eu ia estar sujeito a muita crítica. Isso aconteceu, a empresa cresceu nove vezes, fizemos a coisa e aí as pessoas começaram a achar “era bom trazer o garoto aí mais perto, porque ninguém sabe...”.

Fátima Turcci: É melhor antes ter como aliado do que como inimigo? [risos]

Ricardo Semler: Não sei, acho que as pessoas acharam um bicho esquisito.

[...]: Você começou a incomodar um pouco?

Ricardo Semler: Acho que sim. E aí talvez nessa linha... Não sei se foi nessa linha, mas de qualquer jeito um dia “pintou” um convite da Fiesp, três anos atrás, para ser adjunto do Departamento de Tecnologia e eu comecei a me envolver. Agora, as pessoas me perguntam: “mas por que você foi parar logo na Fiesp, que é tão conservadora etc, etc?” Pela mesma razão que a gente pegou e flagrou o fiscal: tem que começar.

Sérgio Leopoldo Rodrigues: Por exemplo, você não faz parte do grupo da oposição dentro da Fiesp? Um deles, especialmente nessas bases empresariais, você está fora. Por quê? É meio estranho.

Eleno Mendonça: Você chegou a compor com esse grupo, né? Num determinado momento...?

Ricardo Semler: Não, eu nunca cheguei a compor.

Eleno Mendonça: Não?

Ricardo Semler: Não. Desde o primeiro momento eu nunca aceitei porque eu não sabia exatamente qual era o objetivo e algumas coisas me pareciam muito parecidas com que estava lá. E, até certo ponto, às vezes parecia um projeto de poder. Ou seja, trocar uma gestão da Fiesp por outra não era uma coisa que me interessava.

Sérgio Leopoldo Rodrigues: O que seria justo em termos de alternância de poder dentro da Fiesp...

Ricardo Semler: Tem uma coisa engraçada, as pessoas tendem a achar que a Fiesp é uma organização à antiga no sentido democrático e nesse sentido não é verdade. O Mário Amato [nascido em São Paulo, em 1918,  empresário que foi presidente da Fiesp/Ciesp de 1986 a 1992, ficou conhecido por ter dito - às vésperas da eleição que colocaria Lula ou Fernando Collor na presidência da República - que se Lula ganhasse, 800 empresários já estariam de malas prontas para deixar o país] é eleito pelas empresas. O cara vai lá e deposita o seu voto. Mário Amato é absolutamente legítimo.

[...]: Pelos sindicatos? 

Ricardo Semler: Na Fiesp, na Ciesp pelas empresas. Então se as empresas quisessem, já tinham eleito o [ Parece Peliber, mas nào encontrei nada...] 

Sérgio Leopoldo Rodrigues: Quer dizer... O Mário Amato, por exemplo, é o espelho de um empresariado no Brasil hoje, seja ele conservador ou não. Não entrando no mérito.

Ricardo Semler: O Mário Amato é um líder autêntico, não tenho a menor dúvida.

Fátima Turcci: Da mesma forma que o Collor é o espelho?

Sérgio Motta Mello: Comparado aos líderes empresariais, hoje, em outras regiões do país ele é até avançado.

Ricardo Semler: Pois é. Aí é uma questão de ótica. O que eu quis dizer é que ele é legítimo.

Jorge Escosteguy: Você diz que o empresariado, em geral, no Brasil é uns dos setores mais atrasados da nossa sociedade. Por que isso?

Ricardo Semler: Primeiro, eu estava relacionando com essa questão de agente de mudança. Eu acho que é atrasado porque não usa a sua capacidade de mudar o país. Segundo, porque subsiste, ainda, baseado em proteções de tarifas, subsídios, proteção aduaneira, reservas de mercado, relações – e o pessoal sempre fica muito bravo quando eu falo isso -  relações incestuosas com o governo: é nomear ministro, é nomear secretário que era amigo que “não sei o quê” e aí você pega o telefone e diz “ministro, meu filho, eu estou com uma empresa lá no Nordeste, dá para vocês liberarem os incentivos?”. Essa é a história no Brasil.

Fátima Turcci: Isso vai mudar? Vai mudar com o Collor?

Sérgio Motta Mello: Você acha que o presidente Collor quebra isso? Era isso, essa era a pergunta. O presidente Collor projeta valores modernos? Quer dizer, esse contraste entre o arcaico e o moderno, quer dizer...

[sobreposição de vozes]

Sérgio Motta Mello: Acho que se colocou nessa campanha a questão mais do que ideológica, a questão do velho e do novo. Esse novo presidente... ele projeta esses valores novos?

Ricardo Semler: Se você disser do ponto de vista das palavras, sim. Ele diz todas as palavras certas. Por enquanto é só o que eu vi, mas as palavras estão todas certinhas, ele leu o texto correto.

Sérgio Leopoldo Rodrigues: As empresas sobrevivem sem os incentivos? Quantas empresas brasileiras sobrevivem sem incentivo e sem reservas de mercado hoje?

Ricardo Semler: Um número meu “chutado”, mas eu diria que se fosse feito da noite para o dia, eu acho que subsiste mais ou menos um terço. É a impressão que me dá. E sucumbem os outros dois terços.

Milton Horita: Eu queria que você explicasse para a gente como é a sua política salarial, efetivamente, dentro da sua empresa. Você paga salário semanal como os sindicatos estão reivindicando? E eu queria saber se a partir dessas mudanças qual foi o ganho de produtividade que você teve na tua empresa. Efetivamente quanto? Rentabilidade sobre ações? Em relação ao patrimônio...?

Ricardo Semler: Deixa eu começar com a segunda pergunta. Nós... Quando nós começamos tínhamos um índice de produtividade [de] 10.800 dólares por funcionário, uma medida do nosso ramo válido. E o setor andava em 17 e pouco. Hoje, o setor anda em 22.500... Setor mecânico, metalúrgico etc. E nós andamos este ano, a 60 mil dólares por funcionário. Então, hoje nós não nos comparamos com empresas nacionais, nós não temos nenhuma razão de comparar nossa produtividade com empresas nacionais. Porque a gente está se comparando com empresas japonesas, coreanas, suecas, etc que hoje são a nossa meta.

Milton Horita: Você tem rotatividade na tua empresa?

Ricardo Semler: A nossa rotatividade é baixa e para você ter uma idéia, demissões espontâneas - de pessoas que querem sair da empresa - nós chegamos a passar um período de 14 meses, até recentemente, em que o índice foi praticamente zero. Ou seja ninguém, em 14 meses, pediu demissão. O índice de rotatividade é baixo, exceto pelo fato de que a gente vem aumentando muito a produtividade e estamos precisando de menos gente. Então esse é um processo complicado porque hoje nós temos menos gente do que tínhamos no passado, com muito mais faturamento.

Milton Horita: Todos os funcionários têm participação acionária, né?

Ricardo Semler: Tem participação nos lucros, não acionária. Mesmo porque a gente não acredita muito nisso. Eu acho que a maior demagogia que você pode fazer é dizer “está aqui, meu filho, você saiu do Senai, você agora é dono da empresa”. “Quanto que eu tenho?”, “Você tem 0,0004%, mas você é acionista. Então eu quero que você pense como dono”.

Jorge Escosteguy: Você falou em participação dos lucros e eu tenho uma pergunta aqui do telespectador José Luis Diogo, aqui de São Paulo. Ele pergunta: “Como o senhor distribui o lucro para seus funcionários, se no balanço de 31 de dezembro de 88 a sua empresa apresenta um prejuízo, nos últimos quatro anos, de 120 milhões de cruzados; três vezes o capital da época assinado pelo senhor no Diário do Comércio”?

Ricardo Semler: A empresa teve um lucro grande em 86, grande em 87, pequeno ou irrisório em 88 e grande em 89. Então, quer dizer... Não procede. Tanto que, nesse período, nós fizemos várias distribuições de lucro e as distribuições de lucro são o percentual do lucro.

[...]: Na faixa de quanto?

Ricardo Semler: É 22,66% do lucro.

[...]: O lucro é distribuído entre os funcionários?

Ricardo Semler: É o número exato.

[...]: É distribuído proporcionalmente ou de acordo com o cargo?

Ricardo Semler: O esquema é o seguinte: nós, quando implantamos participação dos lucros, nós decidimos que nós não íamos fazer uma coisa paternalista, tanto que hoje eu sou absolutamente contra a Constituição estabelecer a participação dos lucros como uma coisa dada. Isso vira um 14º, 15º [salário]. É o “fim da picada”. O que nós queríamos é que as pessoas participassem do lucro ativamente, então nós entramos em negociação e até foi engraçado na época, porque nós chamamos o sindicato e dissemos “nós queremos negociar”, eles diziam “mas isso é uma coisa que você está dando, como é que você vai negociar?”, “não, nós queremos saber o que é que vocês imaginam” e aí foi negociado durante um ano e pouco. Depois foi assinado finalmente. Desde essa época nós fizemos várias distribuições de lucro e nós adotamos um outro esquema. Há alguns casos, tem três ou quatro casos de participação dos lucros no país em que são basicamente discricionários: a diretoria chega no final do ano e diz “eu acho que deve dar ‘tanto’, é distribuído mais ou menos assim”. E nós decidimos que nós queríamos um critério absolutamente técnico, e começamos um programa com o Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - desenvolve pesquisas que fundamentam reivindicações dos trabalhadores], onde o Dieese dava aula de leitura de balanço para os nossos funcionários. Então todas as nossas pessoas estão passando por esse curso de leitura de balanço: faxineiro, boy [office boy]... Então eles falam “isso aqui é lucro, isso aqui é folha [de pagamento], isso aqui é matéria prima” etc, etc e uma vez por mês esses relatórios estão à disposição para que as pessoas entendam o que está acontecendo. E o critério que foi adotado é o seguinte: cada unidade elege três membros da comunidade de funcionários que então administram esse dinheiro e depois duas vezes por ano - e ele é distribuído semestralmente – faz-se uma assembléia e aquela assembléia é soberana; ele distribui do jeito que quiser: por cabeça, levando em conta salário, assiduidade, tempo de casa e etc. E tem escolhido o critério de distribuição por cabeça.

Jorge Escosteguy: Eu interrompi antes a Fátima porque ela tinha uma pergunta... Por favor.

Fátima Turcci: Você não respondeu nem a minha primeira pergunta e nem a do Milton. Primeiro sobre salário, pagamento semanal... Esse era uma questão. E a outra, pegando carona antes desse papo de lucro, no que você diz que o empresariado é, de um modo geral, reacionário, não adepto a mudanças. O Sérgio disse: pelo jeito a eleição foi entre o novo e o que é arcaico. Quer dizer, a sociedade também não é adepta da mudança? Ela elegeu esse presidente que, segundo você mesmo diz, há uma diferença entre o que ele fala e o que ele talvez venha a pregar... Quer dizer, a sociedade também não quer mudanças? Será que o Brasil também quer continuar como está?

Ricardo Semler: Essa segunda, eu não acho isso. Quando eu digo que ele [Collor] leu o texto certo eu não estou dizendo que ele não o fará. Eu não tenho idéia, eu não o vi fazendo no passado, mas não quer dizer que ele não faça. Poderemos todos ser agradavelmente surpresos. Então eu não diria isso. Então eu diria sim, a sociedade está ávida por mudanças e ele foi o resultado disso. Agora, se fará, em que velocidade, em que profundidade... isso há de ser visto. Eu estou dizendo... eu não estou antecipadamente dizendo que não conseguirá. Até eu acho que, para o país, até era uma solução mais eficaz de curto prazo do que o Lula, porque a falta de preparo era muito grande, a coisa era muito grande para curto prazo. Então, voltando à outra [pergunta]: à política salarial... nós temos absoluta transparência. Os nossos balanços são conhecidos - os funcionários auditam os nossos livros - não tem “caixa dois”, não tem pagamento por fora... Nós temos um balanço conhecido. Então a nossa situação é sempre a seguinte: nossos salários são proporcionais ao que nós conseguimos fazer com uma coletividade. Então quando o salário era pago mensalmente no dia 10, o nosso já era pago no dia 20 e no dia 5; quando caiu para o dia 5, o nosso passou para o dia 3 e 18. Quer dizer, isso está acontecendo... Tem agora convênio com supermercado em que o pessoal faz as compras e debita lá e só paga no fim [do mês]... Tem essas coisas todas e, portanto, estamos negociando também isso. Agora, o mais importante perceber é o seguinte: não é o empresário competente aquele que consegue dar uma de Papai-Noel, que chega lá e fala: “Meus filhos, vocês...”. Todo mundo reconhece que está extremamente defasado, está tudo fora de eixo. Agora eu pergunto: se a gente for lá e os nossos concorrentes todos não fizerem nada, nós vamos ficar com cara de bobo, nós vamos ser uma “bela” experiência em concordata. Então, para ganhar dinheiro é absolutamente necessário que a gente coloque os dados na mesa e que se negocie o que é possível, e as comissões de fábrica são eleitas, todo mundo tem estabilidade na comissão.

Fátima Turcci: Então não é recomendada para todos indiscriminadamente?

Ricardo Semler: Eu tenho impressão que se chegar e disser: vamos então pagar semanal, se o país todo fizer ou se a categoria toda fizer, eu acho fabuloso.

Carlos Nascimento: Agora, Ricardo... Você falou que aumentou a produtividade dos seus funcionários de 10.800 dólares para 60 mil dólares. Muitos empresários que estão nos vendo agora certamente gostariam de fazer o mesmo. Eu pergunto o seguinte: em que tipo de empresa o seu estilo de administração funciona? Ou seja, para quem você recomenda adotar os princípios que você adotou com sucesso? A partir de quantos funcionários, em que ramo de atividade, se é só na indústria, se pode ser no comércio, enfim... A sua fórmula mágica serve para quem?

Ricardo Semler: Primeiro, nós temos, por exemplo, um programa na empresa que a gente chama de brincadeira de “Semcotur”, porque as empresas foram se interessando e diziam “por que essa conversa é muito boa e tal, mas eu quero ver na prática. Posso entrar na sua fábrica?”. Pode. Então começaram a vir empresas, até que chegou um volume que a gente não conseguia mais sustentar, nós montamos o tal “Semcotur”, onde a gente faz isso, mas de forma coletiva. Nós temos 30 empresas por mês e estamos fechados para junho, se alguém quiser visitar só em julho. Significa que tem 180 empresas inscritas para estudar e o ano passado foram centenas. Então a primeira pergunta: que tipo de empresas são essas? Então elas vão desde multinacionais, que é uns 20, 30% do grupo até empresa de comércio, indústria... Quer dizer, uma coisa mais variada, os tamanhos são variados. Nessas andanças em que eu tenho feito em termos de palestras - e eu não faço mais palestras em São Paulo, Rio, não faço palestra para executivo -  eu estou fazendo palestras para universitário, para colegial, no Piauí... Porque não adianta tentar mudar a coisa por aqui, tem que mudar onde as pessoas ainda têm a disposição de começar do zero e onde as coisas ainda não foram feitas. Então eu acho que não existe restrição, acho que uma prova boa disso é que hoje - e essa experiência começou a ter notoriedade no exterior - e hoje tem uma notoriedade acho quem muito grande. Nós não estamos conseguindo dar conta dos pedidos das televisões estrangeiras para fazer programas na empresa e convites de palestras na Suécia, na Finlândia, na África do Sul, em tudo o que é lugar. E temos empresas do porte da General Motors pedindo que a gente vá falar ao conselho de administração e aos 30 presidentes da General Motors, da Oldsmobile, Chevrolet, Pontiac etc em Detroit. Então eu digo... se a General Motors, com 1 milhão de funcionários, está interessada, o problema não é tamanho grande. Se, por outro lado, a nossa filosofia é de que precisa quebrar a empresa em pedaços menores para que todo mundo saiba o que está acontecendo e possa participar, que você não precisa revistar e que você não precise controlar horário. Hoje, nas nossas fábricas, o operário de linha de montagem não tem horário, ele pode entrar entre 7 e 9 [horas], um negócio desses... a critério dele. E sai na hora que ele quer. As pessoas dizem “mas você vai dar isso para um operário irresponsável, que não tem maturidade, não tem cultura?” É um papo furado, é possível com todo mundo porque é uma questão de mentalidade, não é uma questão de porte e nem de ramo, é o jeito de tratar as pessoas, isso vale para hospital...

Milton Horita: Essa técnica administrativa que você usa é apenas nessa área de RH? Deve ter outros mecanismos gerenciais que aumentam a produtividade.

Ricardo Semler: Claro, vou te dar um exemplo: manufatura flexível. Um programa onde a gente... Na fábrica, se você entra numa fábrica nossa, parece que alguém despejou todas as máquinas e foi embora e esqueceu de “botar” no lugar. Por quê? Porque ao invés de você ter uma fileira de tornos, uma fileira de solda... o que a gente tem? Um torno, uma fresa, um soldador. Num grupo. Mas o que nós queremos? Nós queremos que um grupo de oito pessoas faça o produto inteiro. Então o almoxarifado é lá, não tem almoxarifado fechado, eles mesmos decidem como pintar, aonde pintar, que horas chegar, que horas ir embora... porque eles sabem quanto lucro dá, eles sabem o faturamento... eles têm uma plaquinha atrás que diz qual é o faturamento, a meta do mês, quanto falta para chegar lá. Eles sabem tudo. Então, por que nós precisamos ir lá e ensinar para um operário que tem 20, 30 anos de carreira? Pegar um recém-formado que vai lá controlando e te diz “não, isso aqui precisa fazer em 35 segundos a menos”. Essa que é a grande tragédia do ciclo industrial que está obsoletado, esse gigantismo todo em que as pessoas vão e precisam de instrumentos de status. Hoje, na empresa não tem sala fechada. Eu, a última vez que eu viajei, quando eu voltei tinham mudado a minha sala do lugar, e eu falei: “Cadê a minha sala?”, “Agora é em outro andar, é lá na ponta do andar”. Está bom, não me interessa. Nós não temos secretária, não temos estacionamento privativo, não temos cartão privativo, não tem sala fechada, não precisa de nada disso. Se você é competente, você vai ser reconhecido como tal. Nós temos um programa no qual a cada 6 meses todo mundo que tem um cargo de liderança é avaliado pelos seus subordinados. É um questionário de múltipla escolha com 55 perguntas e é preenchido anonimamente por todo mundo que trabalha para aquela pessoa. [Se] a nota começa a cair, nós temos um problema e eu fui o primeiro a me dispor. Eu disse “quando a minha nota começar a cair eu saio da empresa, eu me afasto”. Então nós estamos sujeitos a sermos ratificados a cada 6 meses. Então não é porque eu tenho uma secretária “gostosa”, porque eu tenho um tapete persa que as pessoas vão me dar uma boa nota.

Milton Horita: E as lideranças sindicais que trabalham dentro da sua empresa? Você tem Cipa [Comissão Interna de Prevenção de Acidentes]?

Ricardo Semler: Tem tudo. Temos Cipa, temos CUT [Central Única dos Trabalhadores], temos CGT [Confederação Geral dos Trabalhadores], temos Sindicato Metalúrgico de São Paulo... Cada fábrica tem um desses e nós temos comissão de fábrica, que tem estabilidade e pode ser o que se chama de braço de sindicato. Não tem problema, nunca foi dispensado alguém por...

Milton Horita: Com alguma das correntes [sindicais] você se relaciona melhor com essas suas idéias?

Ricardo Semler: A gente procura não criar um relacionamento, porque nós temos alguns interesses que são naturalmente conflitantes e a gente não quer dar uma de demagogia de dizer “vamos nos entender... Capital de trabalho é harmonioso”. Eu não acredito nisso. Eu acho que o nosso pessoal, obviamente, ganha na faixa mais elevada do país e eu acho que é uma miséria.

Tão Gomes Pinto: Eu queria saber onde que você aprendeu a ser um agente de mudanças tão extraordinário assim? Isso é um processo auto-ditada?... Você foi educado numa geração que via o empresário bem sucedido como o "fat bastard"... o bom “filho da mãe”, que tem que cobrar, que ele tem que ser exigente, durão... Como é que você aprendeu isso tudo?

Ricardo Semler: Não sei, nós estamos aprendendo aos poucos.

Tão Gomes Pinto: O que você leu a respeito?

Ricardo Semler: Na minha experiência especifica... Eu fiz São Francisco [Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo], depois eu fiz [Universidade] Harvard. Eu fiz as escolas mais conservadoras que existem, então não foi por aprendizado acadêmico. Agora, a sensação que eu tinha e talvez por não ter feito administração de empresas, é que eu entrava lá e a gente dizia “não, isso aqui é uma grande família, nos contamos com as pessoas” e tal. Eu via eles saindo sendo revistados para ver se estavam roubando alguma coisa, perdendo ponto porque tinha atrasado 5 minutos... e eu pensava: se a gente confia tanto, é “engraçado”... e essa é uma grande família? E aí você olhava e falava com as pessoas e dizia: “Você é executivo há quanto tempo?”, “30 anos”, “Você está satisfeito?” “Não, mas eu já estou perto da aposentadoria”... Quer dizer, essa era a conversa. Eu pensava com a idade que eu comecei - 19 anos... vou entrar numa empresa com 19 anos, saindo de um grupo de rock, com “rabo de cavalo”? E eu vou entrar numa situação em que eu vou revistar as pessoas, controlar o horário e fazer com que elas fiquem aqui danados até o final da vida, até se aposentar por alívio?

Tão Gomes Pinto: Você reformulou um conceito, devia ser teu também talvez, de que o brasileiro é preguiçoso, o operário, o trabalhador...

Ricardo Semler: Imagina! A nossa experiência é exatamente ao contrário, é fabulosa. As comissões de fábrica, na nossa avaliação interna, nós temos uma avaliação de clima em que as pessoas todas avaliam a comissão de fábrica. A comissão de fábrica é lá em cima [recebe avaliação positiva]. E quando eu comecei o pessoal do nosso conselho dizia o seguinte “você é um biruta, esse negócio de você querer chamar o sindicato...”. Em uma das fábricas nós chamamos o sindicato, nós falamos: “nós não queremos piquetes. [Se] vocês querem sindicalizar, vocês têm acesso livre; nós nunca barramos sindicato na porta, vocês usam o refeitório... Agora, se vocês não conseguirem convencer o pessoal a se filiar, aí é problema seu; nós não vamos filiar gente por vocês, não é? Mas nós também não vamos barrar ninguém na porta”.

Sérgio Motta Mello: Quando você estava falando sobre distribuição de lucros, você disse que alocava uma determinada parte, uma parcela do lucro da sua empresa e as assembléias e as comissões de fábrica decidiam como esse lucro ia ser distribuído. Uma pergunta que é importante para muitos espectadores que estão nos vendo aqui, e os diretores, e as pessoas que tem nível de mando... Quer dizer, os gerentes, supervisores, diretores... Como é que eles participam do lucro da empresa?

Ricardo Semler: Eles participam do lucro do mesmo jeito que o resto, então você divide por cabeça e o cheque é de 20 mil cruzados... Um faxineiro recebe e o diretor recebe o mesmo valor. Quer dizer, o cheque é dividido igualmente para todo mundo. Porém, ele tem mecanismo de remuneração, porque ele tem auto-fixação de salário e ele tem uma auto-fixação de bônus anual. Ele programa uma série de metas, como líder de equipe que ele é, e é ratificado e eleito e etc. Quer dizer, ele é legítimo, ele vai lá dizer “esse ano eu vou fazer a seguinte coisa, se eu fizer eu quero ganhar 50% a mais de bônus”, por exemplo. E de fato, a média eu não sei, deve ser na região de seis, sete salários extras por ano; mas nós temos gente que ganha até oito salários adicionais. Então o cara ganhou os 13 - os 12 mais o 13º - e ganha mais oito se ele chegar no que ele se comprometeu. E ele mesmo faz essa avaliação de se ele chegou ou não.

Sérgio Motta Mello: Quer dizer, ele estabelece a meta no começo do ano?

Ricardo Semler: É trimestral.

Sérgio Motta Mello: Trimestral?

Ricardo Semler: É esse o raciocínio. E aí ele se chegou ou não, ele põe ponto. E aí ele diz “faturar 50 milhões de dólares, isso vale tanto... [por exemplo] 8 pontos”, chegou lá e ele se pontua e tal.

Sérgio Leopoldo Rodrigues: Eu queria te fazer uma pergunta. O Tão tinha tocado na história que eu queria perguntar. Muita gente sabe que eu te conheço e pergunta como é o Ricardo “tipo assim” na intimidade. O cara tem 30 anos, é empresário, bem sucedido, mas há menos de 10 anos, como você mesmo disse, você tocava guitarra e cantava rock. Se você estivesse andando na rua com esse terno verde oliva que você está agora, bonito (eu pensei que você vinha sem gravata)... [risos] E no lado contrário estivesse vindo o Ricardo roqueiro e um encontrasse com o outro, o que um diria para o outro? Você diria que o outro é muito... e você é o careta hoje? Como é que seria o diálogo não só musical, mas um diálogo entre os dois, o que mudou no Ricardo empresário e no Ricardo que era roqueiro? Quem é o Ricardo?

Ricardo Semler: A impressão que eu tenho é a seguinte: primeiro eu acho que é uma evolução natural, eu consigo achar muitos paralelos entre o tempo em que você está no conjunto[musical], você precisa montar um show, você precisa se relacionar com outras pessoas que vão tocar outras coisas. E eu tenho comparado muito a empresa com uma sinfonia, com uma orquestra sinfônica. Porque a única chance de uma empresa ir para frente sem todos esses mecanismos de controle, de rigidez, de opressão que são necessários no gigantismo, o único jeito é se todo mundo estiver tocando a mesma partitura.

Sérgio Leopoldo Rodrigues: O que você diria para o outro - para o roqueiro – hoje? O que você acha que ele te diria como empresário?

Ricardo Semler: Eu tenho impressão que se eu tivesse tratando com um filho, por exemplo, se fosse essa situação eu acho que eu faria o que meu pai fez na época que era dizer “vai, meu filho, se você conseguir ser um Bruce Springsteen [roqueiro norte-americano], parabéns; se você não conseguir, sempre a gente arruma um empreguinho para você aqui no Departamento de Compras.”

[risos]

Jorge Escosteguy: Desculpe, Sérgio, nós vamos precisar fazer um rápido intervalo. O Roda Viva volta daqui a pouco entrevistando o empresário Ricardo Semler. Até já.

[intervalo]

Jorge Escosteguy: Voltamos com Roda Viva, que hoje está entrevistando o empresário Ricardo Semler. Você que está em casa e quiser fazer perguntas por telefone pode chamar (011) 252-6525. Tem aqui três perguntas de telespectadores, mais ou menos sobre o mesmo assunto, em torno da Fiesp. A Zelinda Soares, de Porto Alegre, pergunta como sente a aceitação das suas idéias dentro da Fiesp junto a outros empresários? O Rodrigo Costa, aqui de São Paulo, pergunta como o senhor analisa a atuação da Fiesp nas últimas eleições presidenciais? Isaac Pereira Piau, aqui de São Paulo também, pergunta se você ficou com medo, como o Mário Amato, do Lula ganhar as eleições? Sobre esse relacionamento, ainda lembraria uma notícia que saiu recentemente nos jornais de um dos diretores da Fiesp, o Elias Haddad, que teria chamado você de moleque e irresponsável.

Ricardo Semler: Não deixa de ser agradável ser chamado de moleque, já estou naquela fase em que estou me sentindo velho. Claro que o relacionamento não é fácil. Por “n” razões. Primeiro, porque a média, a faixa etária não é exatamente a minha. De vice-presidente, por exemplo, eu tenho 30 [anos], o próximo acho que tem 58 e aí vai, e vai rápido. É claro que é uma mudança de geração que você não muda com um piscar de olhos. Todo esse trabalho meu lá, é um trabalho um pouco quixotesco, quer dizer, eu às vezes participo de reuniões onde eu sei que eu sou mal visto, as pessoas olham feio, eu vou falar e as pessoas devem pensar “ih! Aí vem”. Aí eu falo alguma coisa, aí a gente põe em votação e eu perco tudo. Eu nunca ganhei nada até hoje. [risos] Então faz parte do processo. Se você encarar com bom humor é muito divertido. Agora, eu acho que a sensação da necessidade de renovação existe e é a única razão do porquê eu estou lá. Se Mário Amato não tivesse, no fundo, a vontade de mudar aí não valeria a pena. E eu sinto que existem pessoas - e não são maioria - que prevêem a decadência lenta dessa instituição e que vem vindo de todas as entidades...

Jorge Escosteguy: Mas a vontade de mudar de repente podia ser mudar de país [risos], como ele falou depois das eleições. O telespectador pergunta se você teve o mesmo medo do Mário Amato?

Ricardo Semler: Não tive o mesmo medo, foi uma situação mal entendida, infeliz com o Mário. Mas, de qualquer forma, eu acho que o Mário continua sendo, sempre foi um grande patriota, um homem generoso etc. Eu não vejo o Mário nesse estereótipo, mas ele está numa posição muito complicada e ele tem que ser o bode expiatório dessas declarações, esse é o papel dele. Tentando pegar uma das outras perguntas aí, o relacionamento nas reuniões, nos debates etc é cordial o suficiente para que eu ainda tenha espaço para falar o que eu acho. E faço isso sem essa preocupação de ganhar pontos ou de ganhar decisões. Eu lembro que eu tomei uma posição no sentido de que o salário mínimo... nós íamos propor que o salário mínimo aumentasse 5% ao mês durante 5 anos etc e foi derrotada com veemência... e agora temos uma situação de 3%. Quer dizer, é uma necessidade que o empresário conservador tem de reter o que ele já tem. Ele tem um pavor... O empresário, como perfil, é muito auto-centrado e ele tem pavor de que tirem aquilo que ele conquistou durante a vida, e muitas vezes - na maioria das vezes - a duras penas.

Jorge Escosteguy: Agora, e a atuação da Fiesp durante as eleições? O que você acha?

Ricardo Semler: Fora algumas declarações... Eu acho que a Fiesp esteve no papel dela, que é defender o ponto de vista do empresariado que elegeu os diretores que estão lá e etc. Mas, o que eu tenho sempre dito, que eu acho que é, em muitas situações, as pessoas que elegeram e as pessoas que procuram a Fiesp são infelizes. E eu acho que nesse sentido a Fiesp tem se saído relativamente bem, eu acho que poderia ser até muito pior. Eu acho o que chama atenção são as declarações isoladas, mas a atuação é de uma entidade de classe que, com as pessoas que tem, com os presidentes de sindicato que tem, ela está mais ou menos no papel dela.

Jorge Escosteguy: Fátima, por favor.

Fátima Turcci: Ricardo, se você dá uma de Quixote junto aos empresários, que tipo você faz junto às tuas platéias preferidas? Que, segundo você diz, parece que hoje são os jovens, universitários e tal. Que papel você faz? Você acha que essas mensagens que você tem jogado têm sido absorvidas? Você acredita nessa virada de mesa agora sobre uma nova geração?

Ricardo Semler: Eu acho que eu fico até com cara de Sancho Pança [personagem de Dom Quixote] para esse pessoal, porque eu sinto que o pessoal tem a vontade de mudar e eu sinto uma vibração muito grande. Eu fui agora a Salvador, no dia 19 de dezembro, no dia mais infeliz do ano, dois dias depois da eleição. Não estava o resultado, estava chovendo, estava inundada a cidade e eu fui no Centro de Convenções, que é longe pacas, e tinha 800 lugares e eu falei “tá louco? Sem propaganda, sem nada e tudo isso de lugar?”. E tinha gente de pé atrás, todos os corredores tomados... Na Bahia. Então eu digo: deve ter gente acordada na Bahia! A mesma coisa aconteceu em Fortaleza para 1.200 pessoas numa sala de 500 lugares. As pessoas estão acordadas e essas pessoas têm uma vibração enorme.

Fátima Turcci: Você cobra as suas palestras?

Ricardo Semler: Não. Inclusive uma coisa interessante que eu falei agora que começou essa fase internacional... Para falar no Brasil, para falar nas universidades, eu não cobro nada e nem deixo ninguém pagar nem a minha passagem aérea, pago tudo. Agora, para sair do país eu cobro a mesma coisa que os gringos cobram para vir aqui: 12 mil dólares, 15 mil dólares, 20 mil dólares por palestra, então é a mesma coisa.

Fátima Turcci: Tem feito quantas por ano?

Ricardo Semler: A idéia é fazer no máximo 8 a 10 fora do Brasil.

Fátima Turcci: Fora do Brasil, por ano?

[sobreposição de vozes]

Eleno Mendonça: Ricardo, é o seguinte, você começou aí na sua exposição e voltou a criticar - como a maioria dos empresários - os incentivos, os subsídios, e eu incluiria aí os empréstimos no BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], as linhas Finame [Financiamento de Máquinas e Equipamentos] e por aí. E a Semco, em nove anos, cresceu uma Semco por ano. Você, ao mesmo tempo, implementou a prática de distribuição de lucros. Eu queria saber o seguinte: qual é a receita, de onde tirar capital para crescer tanto assim e onde é que a Semco aplica o seu capital de giro? Se você faz parte do grande bloco de empresários que está aplicando no mercado na ciranda financeira?

Jorge Escosteguy: Por favor, Ricardo, pegando uma carona na pergunta do Eleno: tem dois telespectadores... O Carlos Alberto Belizário, da cidade de Assis, ele diz que no seu livro você diz que é viável o empréstimo junto a  instituições financeiras para o crescimento de uma empresa. Eu gostaria que o senhor confirmasse essa viabilidade nos atuais níveis de juros do mercado financeiro. E Wilson Gimenez, aqui de São Paulo, pergunta se você recomenda fazer empréstimos com essas taxas de juros para comprar outra empresa ou para se desenvolver?

Ricardo Semler: O crescimento nosso aconteceu sem um centavo de empréstimo, nós nunca tivemos um centavo do BNDES, não usamos dinheiro do Finame, não tivemos dinheiro do governo, não tivemos do governo do estado, não tivemos subsídios, não tivermos reservas de mercado, não tivemos capital, nada em absolutamente dentro dessas linhas. E temos muitos concorrentes e multinacionais.

[...]: Você aprova as empresas que usam esses expedientes ou não? 

Ricardo Semler: Eu acho que não é necessariamente um expediente, tem motivos perfeitamente legítimos, a exemplo da indústria de papel e celulose: saiu do absolutamente nada, virou uma das grandes indústrias dos papéis e celulose do mundo, é moderna, é tecnologicamente avançada. Ali foi com o dinheiro do BNDES, então eu acho que está tudo certo. Agora, está cheio de empresa por aí onde o dinheiro não foi exatamente aí. Então eu não acho que é um expediente institucionalmente, eu acho que é o uso que determina. Eu acho que tem muitos empresários sérios que usaram o BNDES de forma séria, pagaram e acabou. Mas nós não usamos.

[...]: Capital de giro [capital utilizado pelas empresas para que elas efetivamente funcionem, geralmente variando entre 50 e 60%]...

 Ricardo Semler: Capital de giro de empréstimo. O nosso capital de giro, se ele tivesse sido colocado na ciranda financeira, nós seríamos hoje uma empresa muito rica e do mesmo tamanho que antes. Então na medida em que nós somos uma empresa que cresceu nove vezes, necessariamente o nosso capital de giro teve que ser aplicado nas aquisições. Quer dizer, não tem forma matemática que lida com isso.

[...]: E no dia-a-dia como é que isso funciona, Ricardo?

 Ricardo Semler: Nós temos sempre... se você perguntar numa segunda-feira “tem dinheiro no over [refere-se a overnight: movimentações financeiras efetuadas durante o dia, para renderem o suficiente para poderem ser resgatadas no dia seguinte]?” Claro que tem, mesmo porque o nosso capital de giro vai de fornecedor, vai para o cliente, tem toda aquela... Mas não existe sobra de caixas aplicados no over porque eles voltam todos para uma nova aquisição, para uma nova fábrica. Nós expandimos duas fábricas no último ano, fábricas novas... Então o dinheiro volta imediatamente.

[sobreposição de vozes]

Ricardo Semler: Sobre a taxa de juros e dos empréstimos. Eu não sei bem qual é o contexto do livro aí, então estou meio esquecido, mas eu acho que eu quis dizer o seguinte: que nós crescemos com empréstimo bancário, porque na época nós tomamos dinheiro, alguns [empréstimos] enormes para comprar essa empresa, porque nós acreditávamos nisso. E de fato nós tivemos muita dificuldade para pagar. Só em 86 é que a gente ficou livre de dívidas e aí começamos a ter caixa etc. Tranqüilo.

Jorge Escosteguy: E uma situação como hoje?

Ricardo Semler: Hoje é uma situação tranqüila.

Jorge Escosteguy: Não, eu digo... Tomar empréstimos numa situação como hoje.

Ricardo Semler: Eu não conheço nenhum negócio fora... É lenocínio ou latrocínio? Lenocínio, né? E cocaína que consiga pagar esses juros, o nosso negócio não paga esse juros [risos]. Então se você disser: dá para ganhar 60% ao mês? A resposta é não. Não dá, eu não consigo. Então alguém poderia tomar um empréstimo e com isso construir uma empresa? Eu acho que não, eu acho que é totalmente inviável.

Jorge Escosteguy: O Sérgio Motta Mello, por favor.

Sérgio Motta Mello: Ricardo, nós estamos assistindo hoje no mundo inteiro... Veja o que está acontecendo na Europa Oriental e aqui no Brasil mesmo... Você aí pilotando aí no comando da tua empresa. Há um resgate de valores da democracia, do liberalismo e tal. Eu queria te fazer um convite a uma pequena reflexão... quer dizer, você acha que George Orwell [(1903-1950) escritor britânico, nascido na Índia, que escreveu entre outros, A revolução dos bichos] que escreveu 1984 [ficção satírica futurista sobre o controle e tirania do Estado em relação aos indivíduos], que era um livro que previa um regime totalitário e tal, estava errado? Nós estamos caminhando mesmo para a democracia, para esses valores, esse é o caminho do mundo?

Ricardo Semler: É a impressão que eu tenho. Eu acho que, hoje, falar em todos os “ismos” é uma coisa obsoleta. Eu não consigo hoje qualificar... “Favor explicitar o que é socialismo versus o que é capitalismo...”, não tenho a mínima idéia. Porque se você olhar a participação dos lucros, que parece à primeira vista uma coisa mais socialista, ela é só aplicada nos regimes capitalistas. Você pega sistemas onde as pessoas se perpetuam no poder, isso é encontrado no sistema capitalista - e não no sistema socialista - nas empresas, por exemplo. Então para mim é muito confuso isso. Eu tenho a impressão de que em uma dessas conversas no exterior eu usei um termo em inglês, best of “isms”, como sendo o melhor de todos os “ismos”... E eu acho que o melhor dos “ismos” é “pinçar” algumas coisas que funcionaram no socialismo, porque uma sensação que eu tenho, sempre de certo descrédito, é quando os empresários sentam e dizem “está vendo, ganhamos”. Se você lê a revista Time, por exemplo, você pensa que eles estão em festa o ano todo, em euforia: “Caiu o Muro [de Berlim]! Caiu a Romênia! Caiu “não sei o quê”! Vai cair a Albânia!”. Está tudo caindo, menos nos Estados Unidos. Agora se você olhar os números não é bem verdade, porque os Estados Unidos é um dos poucos países que está em franco declínio em termos de PIB, em termos de déficit público etc. E esses países todos têm uma situação muito triste do ponto de vista de liberdade. Não é verdade em termos de renda per capita.

[...]: A Romênia não devia um tostão. 

Ricardo Semler: Pois é. Não são economias endividadas, são economias onde não existe a miséria absoluta e são economias que se resgataram em termos de per capita, então essa história eu acho muito suspeita.

Milton Horita: Essa história de que o comunismo acabou... Parece que você não concorda muito...

Ricardo Semler: Não. Como eu não concordo com liberalismo que você mencionou várias vezes, no liberalismo puro. Eu acho que os liberais puros são os xiitas do capitalismo. Eles são os Marx do capitalismo, o Marx é lindo você ler – eu não li O capital – então você lê aquilo e é lindo, não tem nenhum problema aí, não é isso? É a mesma coisa que o liberalismo, você lê e diz: falta total do Estado, absoluta liberdade, maravilha. Agora, se você pergunta onde é que tem isso? Tem na Inglaterra e nos Estados Unidos. Inglaterra e Estados Unidos estão em franco declínio. Nos Estados Unidos foi feito recentemente um estudo pela Universidade de Harvard para descobrir qual é o grau de alfabetização funcional. E eles fizeram o seguinte: eles pegaram o mapa com a projeção Mercator, que é aquela que tem o Brasil no meio, e deram a alunos de 18 anos e disseram “apontem os Estados Unidos nesse mapa” e 42% das pessoas apontaram no Brasil os Estados Unidos, porque era o maior país e no meio do mundo. “Então isso aí deve ser nós...”, esse é o raciocínio. A mesma coisa... Fizeram um estudo de uma conta de 10 dólares... uma nota de 10 dólares no centro do restaurante gasta 2 dólares e mais 4, quanto você tem de troco? 62% das pessoas não souberam responder. Então eu pergunto: o que está acontecendo aí? Acho que o índice de analfabetismo funcional hoje deve ser na região de 30, 29% nos Estados Unidos.

Tão Gomes Pinto: Se amanhã o futuro presidente ligar para você e perguntar: Ricardo, você quer ser meu ministro da Economia, o que você responderia?

Ricardo Semler: A resposta é não, por “n” razões.

Tão Gomes Pinto: Então me sugere um perfil?

Ricardo Semler: Eu sugiro o meu! Os meus ídolos são todos tucanos [do PSDB, Partido da Social Democracia Brasileiro], eu sugiro José Serra [economista, político do PSDB, começou a carreira política como presidente da UNE (1963/64), foi fundador do PMDB, secretário estadual, deputado federal (1986 e 1990) senador (1998), ministro da Saúde (1998), prefeito de São Paulo (2004) e governador do estado de São Paulo (2006) - ver entrevista com Serra no Roda Viva]. Agora, o que eu quis dizer com esse “não” é o seguinte: primeiro, você para trabalhar para um chefe, e aí essa sensação do Mário Amato, que é meu patrão na Fiesp... Eu me sinto confortável porque Mário Amato nunca me passou a perna, sempre foi fiel, sempre foi leal. Nós sempre tivemos diferenças de opinião, mas nós sempre reconhecemos que tem lugar numa entidade dessa para opiniões tão diversas. Agora, eu não sei se isso é verdade com o Collor, porque o que eu vejo... os primeiro sinais do Collor são perturbadores, porque são sinais que o xá do Irã tinha, tem um monte de gente que tinha esses sinais também. Gastar 300 mil dólares e dizer “eu não quero nem saber se acham ou se não acham, porque eu tenho” aí eu pergunto: vamos dizer que você gaste 10% da sua renda em viagens de prazer, é bastante... Se ele gasta 300 ele deve ganhar 3 milhões de dólares por ano. Eu gostaria de ver da onde é que a receita dele é 3 milhões de dólares por ano? Porque aí é legítimo, até se dizer “eu paguei” tudo bem, você pagou, mas explica direitinho como é que esse dinheiro entrou, está na sua declaração de Imposto de Renda de Pessoa Física? Duvido.

Sérgio Leopoldo Rodrigues: Você na economia me parece social democrata. E na política?

Ricardo Semler: A mesma coisa, eu sou tucano apesar de não ser filiado. Votei no Serra, votei [para presidente da República] no Covas [Mário Covas]. Quer dizer, eu acredito nessa linha.

Sérgio Leopoldo Rodrigues: Porque você é oposição dentro da Fiesp... No segundo turno você votou em quem? Então, eu queria perguntar para você porque não fazer uma Fiesp paralela como faz o [...], por exemplo? Você poderia participar sem hostilidade, mas participar de uma oposição interna, por exemplo.

Ricardo Semler: Porque a minha crença absoluta é de que você precisa fazer a mudança de dentro para fora. Porque se fosse fazer de fora para dentro, aí ficar escrevendo artigo na Folha [de S. Paulo] e no Estado [de S. Paulo], essa Fiesp não serve para nada e tal. O negócio é fazer lá, lá é que é complicado, então você tem que fazer de dentro para fora.

Jorge Escosteguy: Você disse que votou no Covas, só pode ter sido no primeiro turno. No segundo você votou em quem?

Ricardo Semler: Essa é a única pergunta hoje que eu vou evadir [risos], pelo seguinte: eu votei no Covas e no segundo turno eu posso te dizer uma coisa, minha cabeça esteve com Collor e meu coração com Lula. E o voto final eu acabo não dando pelo seguinte: as poucas vezes que eu fiz isso eu entrei numa super “fria”, porque tinha gente que falava “eu gostava tanto, ia fazer na minha empresa, mas descobri que o cara é... esquerda ou direita” ou alguma coisa. Ou “achava que era progressista e descobriu que é Collor; achava que era conservador, descobri que é Lula”. Então eu descobri no fim, como nenhum dos dois seria o meu candidato, nem de longe, e o meu candidato real era o Covas, eu descobri que eu não ganhava nada toda vez que eu divulgava isso, porque virava uma polêmica louca. Então uma razão única.

Jorge Escosteguy: Mas em um dos dois você votou, ou você anulou e votou em branco?

Ricardo Semler: É, em um dos dois eu certamente votei.

Alex Solnik: Você sentiu na sua fábrica algum desânimo dos empregados pela vitória do Collor?

Ricardo Semler: Olha, nós fizemos prévias. Foi muito interessante, porque apresentou uma coisa muito, muito interessante. Nós, nas várias fábricas - e acho que fizemos em algumas fábricas - nós imaginávamos que ia dar Lula direto, porque são todos sindicatos metalúrgicos, são CUT etc. Mas não. Em quatro das cinco fábricas deu Covas. Isso era um primeiro sinal muito interessante. Se você consegue conviver com as pessoas num ritmo de igualdade maior, de mais participação, as pessoas perdem a necessidade de ir para extremos. O cara não precisa ir para Lula para mudar a situação, porque uma situação Covas é suficientemente equilibrada. Eu senti um certo desânimo depois. Bom, no segundo turno foi absoluto, acho que foi 75% o Lula, então houve um certo... acho que houve um certo desânimo, sim, nos primeiros dias e tal. Mas o brasileiro é absolutamente conformista, eles vão tocar o barco para frente. O que eu acho que é o grande problema do empresariado também, porque o empresariado dois, três dias antes estava histérico. Eu conheço duas famílias que mandaram móveis, jóias e não sei o que embora para fora do país [risos]. Então os empresários estavam histéricos. Esse negócio do Lula “nós nunca imaginávamos e não sei o quê”, passou, aí o pessoal relaxou e gozou, é como se eles acordassem de uma noite mal dormida. Foi um pesadelo o Lula e acabou. E agora pode continuar tudo como era.

Carlos Nascimento: O que você acha dessas primeiras movimentações do presidente eleito? Você já falou do estilo centralizador, que parece que você não aprova; dessa viagem mal explicada para o exterior; mas, sobretudo, quanto aos nomes das pessoas que estão fazendo parte do círculo íntimo do presidente e os dois nomes até aqui ventilados já para o ministério, Bernardo Cabral na Justiça e provavelmente a Zélia Cardoso de Mello para a Economia. O que esse grupo que cerca o presidente... Que tipo de esperança, expectativa cria em você?

Ricardo Semler: Outro dia eu estava falando com os economistas...

Carlos Nascimento: Você acha que ele está sendo bem aconselhado, ele está no caminho certo?

Ricardo Semler: A sensação que eu tenho é do seguinte: a Zélia e o pessoal que está com a Zélia - Ibrahim Eris [economista que, durante o governo de Collor, era presidente do Banco Central do Brasil e fez parte da equipe que criou o Plano Collor]... - tem muita gente séria, muito boa etc. Outro dia eu estava bem impressionado com a Zélia e tal, eu perguntei para um grande economista e eu disse “já que você estudou com a Zélia e tal, como é que é a Zélia?”. Ele falou  “A Zélia é brilhante na área dela”. Eu falei: “Qual é a área dela?”. Ele falou “história econômica de Minas Gerais no período escravagista”. Aí eu fiquei preocupado, mas parece que, de qualquer jeito, também nessas áreas ela está aprendendo rápido. Eu acho que como não estavam preparados do lado do PT, também não estavam preparados do lado Collor.

[...]: Você prefere a linha do Daniel Dantas? 

Ricardo Semler: Eu conheço Daniel Dantas  pouco... Eu sempre me sinto meio mal com alguém que só sabe ler livro que tem fórmula e que há 15 anos não vai no cinema porque não consegue se concentrar no filme. Então o diálogo é difícil, não é o meu tipo de raciocínio. Tenho a impressão de que eu não prefiro, entre outras coisas, porque eu desconfio muito dos ímpetos juvenis, por boas razões. Eu conheço bem o que pode acontecer. E eu acho que essa coisa de dizer “agora vamos...”, a sensação de que os fins e os meios estão muito complicados. Vamos dar um feriadão, o pessoal não vai nem perceber, quando voltar não tem mais reunião, mas em compensação... ou vamos dar, vamos fazer com BTN [Bônus do Tesouro Nacional] cheia, a BTN cheia é uma sacanagem... A mais bonita. Porque você diz o seguinte: “eu vou pagar com correção plena, BTN cheia”, se diz: bom, cheia é o contrário de vazia, então o cara vai pagar a correção, vai ser uma coisa linda e ele vai pagar no final do mês. E assim ele “afanou” 50% da dívida interna.

Fátima Turcci: Eu tenho alguns sinais, esse que eu ia pegar... Quer dizer, apesar da observação do seu amigo a respeito da Zélia e de alguns economistas, já existem alguns sinais do que se viria a fazer. Entre esses sinais algumas coisas com as quais, pelo seu estilo, pelo seu jeito de administrar você provavelmente - pelo que eu já li e a gente já conversou - você concorda. Privatização, abertura de mercado... Quer dizer, abertura mesmo a um mercado internacional para aumentar concorrência, eliminar cartéis, monopólios, oligopólios e etc. Por sinal a palavra está hiper desgastada. Ou senão congelamento, algum tipo de mecanismo para brecar rapidamente a inflação. Enfim, existem alguns sinais... A questão da redução no déficit público... parece estar repetindo o mesmo disco, é meio desgastante, parece que você já ouviu essa história antes. Porém esses sinais existem. A questão é confiar-se em que vai ser possível executar. Aí entra a questão Congresso. Quer dizer, não mais temos um sistema em que apenas uma equipe híbrida resolve no seu gabinete fazer alguma coisa. Enfim, você tem um Congresso, portanto, você tem pessoas nas quais nós – sociedade - votamos, colocamos lá. Você tem essa esperança, você acha que vai por aí, é esse o caminho?

Ricardo Semler: Tenho, talvez como todo brasileiro eu tenho esperança até contra os fatos, mas eu tenho sim. O Collor me parece um negociador, eu não vi nenhum sinal de alguém flexível, que conversa, cede para achar um meio termo. Me parece que ele vai usar o Congresso como uma jaca, para dar chute; então eu acho que vai ser muito complicado isso e eu acho que o timing vai ser muito interessante, vai ser um dos pontos mais curiosos, porque se ele adotar o congelamento logo no começo ele sabe que fica um ou dois meses baixo, quando chegar por setembro está explodindo de novo e aí o PT toma o Congresso e aí acabou a conversa.

Fátima Turcci: Mas podiam não tomar as outras medidas. Ou não?

Ricardo Semler: Essas outras medidas - então abrindo um parênteses... Como eu te disse, a minha cabeça está com ele porque o texto está certinho. Agora, eu pergunto: privatizar o que, por que preço? Se disser: CSN [Companhia Siderúrgica Nacional] perde 200 mil dólares... Vamos dar, que é melhor dar do que perder “não sei o quê”, eu não concordo. Porque alguém investiu 15 bilhões de dólares para fazer aquela usina e é só liberar a tarifa que aquilo vira viável. Então eu quero a CSN, quer me dar? Porque é só depois liberar a tarifa para mim, tem esse “detalhezinho”, porque para o governo não está liberado. A Petrobras perde também 100, 150 milhões de dólares por ano, agora é só um “aumentinho” de tarifa em dois meses, a Petrobras ganha rios de dinheiro. Eu pergunto: vai privatizar em qual das condições? Então essa questão eu acho muito complicada, eu acho que essa bravata toda de dizer “vou privatizar a qualquer preço”, isso eu acho uma loucura. Eu acho que esse patrimônio é nosso. Nós pagamos imposto “pra burro”, constituíram esses negócios, gastaram bilhões de dólares para construir essa empresa e não vão entregar por aí por 100 milhões de dólares para o primeiro empresário que aparecer. Não tem empresário neste país que tenha coragem para comprar uma estatal dessas no estado que ela está. Ele vai exigir tudo aquilo que faria ela rentável como estatal.

Alex Solnik: Agora, Ricardo, tem economistas sérios e muito respeitados que prevêem um plano seguinte: de qualquer forma, com anúncio ou sem anúncio, o governo vai ser obrigado a dar um calote na dívida interna, porque sem esse procedimento a recessão será inevitável. Eu não sei se eu posso citar, mas é colunista muito respeitado. Você tem esse medo de que vai acontecer isso?

Ricardo Semler: Eu tenho, como eu falei da BTN cheia aí... Eu tenho a impressão de que o estilo Collor é de dar um golpe de gentleman. Eu acho que ele é um político hi tech, eu acho que ele não vai dizer “eu não pago por um seguinte...”, ele vai dizer: “Não, porque BTN cheia, cheia”. Aí você diz: mas e no final do mês? “final do mês o que você quer que eu faça? Mas é cheia”. Então eu acho que vai ser um calote muito bonito. Nós vamos gostar de ver.

Eleno Mendonça: Ricardo, você falou que depois do primeiro turno sua cabeça ficou com Collor e o coração com Lula. Em uma reportagem que você concedeu exatamente entre o primeiro e o segundo turno que você dizia o seguinte: que você não votaria no Collor de maneira nenhuma, mas que o Lula também não era o candidato dos seus sonhos, porque o programa do Lula tinha uma série de falhas. Então eu pergunto, mesmo depois do apoio do Covas... O apoio do Covas, aliás, não foi suficiente para você anular? E o que havia de errado no programa do Lula na sua opinião?

Ricardo Semler: Primeiro, eu não teria anulado por causa da orientação do Covas. Mesmo porque eu não sou filiado, mas mesmo que eu fosse filiado, por orientação do partido... Mesmo assim eles deixaram à disposição um pouco... Agora, o problema do PT para assumir o governo... Nas conversas que eu tive, e várias, com os dirigentes do PT, a gente tinha a conversa no seguinte sentido: “Precisa acabar com essa coisa das montadoras. Montadoras têm um cartel, precisa acabar com isso”. E como é que vai acabar com isso? “Nós vamos imediatamente dar subsídios para os japoneses virem para o Brasil”. Eu disse o seguinte: não existe ninguém mais mestre na arte de cartel do que japonês. Eles inventaram essa palavra, se vocês quiserem vocês vão trazer a [...] por exemplo, que hoje vende 280 mil carros por ano nos Estados Unidos a 3 mil dólares cada. Um Santana Quantum aqui custa a mesma coisa que um Mercedes de 200E... e não tem comparação de carro para carro. Então a minha sensação é de que eles tinham toda a boa vontade, mas não estavam versados nessas questões todas, nem podiam estar. O Lula, se assumisse a dívida interna... [se corrige] O dinheiro no open que estava em 67, 68 bilhões de dólares... Eu disse que eu cortava a orelha se eu tivesse mais do que 15 no dia da posse.

Sérgio Leopoldo Rodrigues: Mas e com o calote?

Ricardo Semler: Isso é que a tragédia. O calote seria ao contrário, mandaria para o exterior esse dinheiro.

Sérgio Leopoldo Rodrigues: Mas você está acreditando no calote da dívida interna?

Ricardo Semler: Estou o quê?

Sérgio Leopoldo Rodrigues: Acreditando no calote da dívida interna?

Ricardo Semler: Eu estou acreditando no que vai acontecer, não estou dizendo que é bom.

[...]: Isso não pode provocar também uma invasão? 

Sérgio Leopoldo Rodrigues: Mas é a mesma coisa, vale para um, vale para outro.

Ricardo Semler: Entre aqui e 15 de março você pode ter certeza de que se os sinais não forem muito fortes, é por isso que estão tentando modificar o cenário, nomear ministros logo para criar um pouco de credibilidade nesse sistema, porque senão vai ter invasão nesse sentido.

Milton Horita: E como é que você está preparando a sua empresa? Que estratégia defensiva você está fazendo? Você está adotando alguma medida especial tipo cesta básica para os empregados, aumentando linhas telefônicas?

Ricardo Semler: Linhas telefônicas?

Milton Horita: Na Argentina com hiperinflação as pessoas tiveram mais necessidade, mais demanda de administrar seus recursos, então as corretoras ficaram com dificuldades de atender chamadas de alguns clientes, aconselharam a...

[risos]

Ricardo Semler: Você está dizendo que a solução para a hiperinflação é a secretária eletrônica? Mas, por exemplo, cesta básica... Nós somos contra cesta básica. Absolutamente contra. Porque nós somos contra qualquer medida que seja paternalista. Eu não quero nem saber o que uma pessoa que trabalha para mim vai comer e muito menos dizer para ele que vai ser 5 quilos de arroz, 5 quilos de feijão e “não sei o quê”. E também não quero dar nada. Eu quero ter certeza que ele tenha um salário digno e com isso ele sai lá e compra o que ele quiser. Essa coisa de ficar dando é o fim da picada e nós evitamos isso ao máximo.

[...]: Só pegando uma carona aqui... 

Ricardo Semler: Só acabando, senão vai parecer que eu não respondi a pergunta. Como é que nós estamos nos preparando? Primeiro, nós estamos colocando um pouco de dinheiro dentro do negócio, ou seja, dentro do giro, estoques e outras coisas que nós sabemos que nós vamos precisar mais dia, menos dia e estamos, como um todo, colocando as coisas fora do open na medida do possível, porque o open é o que está mais...

[...]: Isso de todas as empresas... 

Ricardo Semler: Eu digo na produção mesmo, em matéria prima, em qualquer outra coisa para ficar fora... e coisas atreladas ao dólar oficial... Cobre, as coisas que a gente usa, porque o dólar oficial tende a dar um pulo de 20, 25, 30%.

Sérgio Motta Mello: Mas até que ponto, quer dizer, um calote da dívida interna seria eficaz na medida em que, em função do exemplo argentino, as empresas hoje estão se preparando. Quer dizer, hoje eu tenho certeza que, hoje, se pegar a maioria das empresas brasileiras e, daqui um mês, 90% de todas as empresas brasileiras estarão protegidas contra o calote da dívida interna, comprarão ativos reais, partindo para um terreno, quer dizer...

Ricardo Semler: Mas eu não quis dizer em momento nenhum que o calote vai ser o grande instrumento do Collor, eu não acho que seja isso. Eu acho que é mais uma coisa que vai aparecer por aí de uma forma sofisticada, de uma forma singela, mas de qualquer jeito tem muita gente de fundos de pensão que não consegue mexer muito, tem pouca mobilidade. Então sempre vale a pena dar uma “pegadinha” nesse pessoal.

Jorge Escosteguy: Dois telespectadores: o Malcon, aqui de São Paulo e Ednéia Gimenez, de Belo Horizonte, querem saber como aplicar esses princípios que você aplica nas suas empresas em uma micro empresa, numa pequena empresa, como distribuir lucros, como aproximar a filosofia da sua empresa a essas empresas pequenas?

Ricardo Semler: Em tese não tem diferença. No trato das pessoas tanto faz. Se você for uma micro-empresa e você estiver disposto a dizer quanto você ganha, quanto custa a matéria prima, quanto é a folha, quanto é o lucro... Se você estiver disposto a dizer 15% disso ou 20% disso nós vamos “rachar” , você tem a filosofia aplicada na prática. Aí você diz: mas com sete funcionários? Com três, com dois, com oito, que diferença faz? Quer dizer, é um jeito de encarar o mundo, não é uma necessidade estrutural. Porque isso acontece dos dois lados, os microempresários dizem “mas eu sou pequeno demais” e os grandes “eu sou grande demais”, então todo mundo é um pouco demais para alguma coisa. Então eu coloco isso em dúvida, acho que não tem demais. Então eu acho que é, por exemplo, você tem sete funcionários. Por que você precisa estabelecer o horário desses caras chegarem e irem embora? Será que eles não são responsáveis o suficiente para dizer: “nós estamos aqui para fazer o quê? Para vender isso.” Você chega na hora que você achar certo, vai embora na hora que você achar certo, mas faça com que isso aconteça. Então não tem diferença conceitual entre uma coisa e outra.

Carlos Nascimento: Uma das opções que apresenta para a indústria brasileira daqui para frente é entrar pesadamente na competição internacional exportando. Competindo com Estados Unidos, Japão, com o mercado comum e com os chamados Tigres Asiáticos. Qual é o grau de preparo que a indústria brasileira tem, hoje, para entrar nessa competição sem grandes investimentos? Ou seja, nós estamos mais perto de um sucateamento, como aconteceu na Argentina, ou tem “gás” ainda se o novo presidente, enfim, criar ânimo nos empresários e dizer “bom, gente, vamos partir para a briga, vamos exportar, produzir, competir”. Nós temos “gás” para isso ou não?

Ricardo Semler: Acho que temos “gás”, eu acho que os empresários são muito competentes. Aí me parece uma coisa irônica, mesma coisa dizer “os atrasados”, “os arcaicos” e ao mesmo tempo “competentes”, eu acho que sim. O que eu acho é que a competência deles é mal utilizada, é utilizada para corrupção, é utilizada para subsídio e mesmo onde não é, e muitas empresas realmente não dependem disso para terem o seu sucesso, 30% do seu tempo é dedicado a entender decretos e a ler o jornal. Então nesse sentido eu acho que tem muita competência sobrando que pode ser usada, então eu acho que esse desafio pode ser vencido pela competência. Eu acho que tem.

Carlos Nascimento: Como que está hoje o parque industrial brasileiro... Máquina, equipamento, tecnologia...?

Ricardo Semler: Acho que está atrasado, acho que não é sucateado, acho que não é nada disso, não acho que é esse atraso todo que as pessoas dizem. Mas realmente não tem tido incentivo de mercado, de situação para o pessoal investir em máquinas. Mas podem fazer isso da noite para o dia. Mesmo porque eu estimo que os empresários do Brasil como um todo tenham lá seus 50, 60 bilhões de dólares fora do país. Então é só trazer 15, 20 que a economia já explode. Você não é capaz de... Eu acho que os anos 90 vão ser anos de boom, eu acho que o Brasil vai ter anos de fantástico crescimento e nós estamos nos preparando para essa...

[...]: 90 é recessão, né? 

Ricardo Semler: 90 vai ser mais um daqueles anos “borocochô”: que congela, descongela, vai lá e diz “olha, você lembra do meu preço? Agora ele é outro...” Acho que vai passar o ano assim. Mas, olha, eu no começo do ano passado eu achava que a economia ia crescer 4%, todo mundo falou você é um biruta completo, porque a coisa estava a crescer e deu 4%, eu acho que pode trabalhar de novo com 2, 3%.

Tão Gomes Pinto: Sem nossa economia subterrânea quanto que teria sido o crescimento?

Ricardo Semler: Eu tenho impressão agora de alguns estudos que existem por aí, que a economia subterrânea é na ordem 110, 120 milhões de dólares. E as pessoas perguntam: mas isso é tudo microempresa que não paga imposto e “não sei o quê"? Não é, porque um dos grandes fomentadores da economia informal não é a empresa informal, mas sim a informalidade das empresas formais [risos]. Eu acho que essa é muito mais séria e muito mais volumosa, que é o super faturamento, que é o “caixa dois”. Isso é brutal.

Sérgio Leopoldo Rodrigues: Quer dizer, de qualquer maneira você está otimista com o futuro do governo Collor, você acha ruim no primeiro ano e nos outros quatro...

Ricardo Semler: Estou, porque eu acho que é inevitável. Mesmo que ele não seja muito competente, é inevitável que o Brasil vá para a frente porque a economia internacional vai deslanchar.

Tão Gomes Pinto: Mas o Brasil não está fora do fluxo de capitais, falam que vai para o novo mercado europeu?

Ricardo Semler: Quando se fala do fora da rota e você mencionou essas coisas dos Tigres Asiáticos. Eu não acredito na teoria dos blocos econômicos e acho, inclusive, que a reação dos empresários é perigosa, porque o pessoal diz: você vai ter um bloco asiático, vai ter um bloco europeu, vai ter um bloco norte-americano, então precisamos criar um bloco latino-americano que eu chamo o bloco dos “los pobrecitos”, e que não me dá ganho nenhum de entrar nesse negócio. Então eu não acredito nisso. Eu acho que o que vai acontecer é um inter-relacionamento muito complexo, empresas japonesas que são donas de quadros Van Gogh, de empresas holandesas que têm empresa em Kyoto e assim por diante. Eu acho que é isso que vai acontecer. Se isso for acontecer, sempre tem lugar para o Brasil e com 25 a 30% de desvalorização, o Brasil tem um produto relativamente competitivo. Mas aí que entra outra coisa que eu tenho dito muito: eu acho que muitos empresários brasileiros acabam sendo meramente corretores de miséria, especialmente no interior do Nordeste. Porque o cara, o que ele tem? Ele tem gente precisando de emprego a qualquer custo e aceitando a qualquer preço. Dois: ele tem proximidade do mercado exportação e três: tem uma matéria-prima. Ele pega aquilo, transforma de algum jeito e exporta. Você pergunta: nessa exportação qual é o conteúdo de miséria? É grande, ele é um exportador de miséria. Mas isso podia ser um filão para o Brasil; o nicho do Brasil no mundo poderia ser não criar mercado interno e ser um grande exportador de miséria. E aí eu digo baseado nas viagens que eu tenho feito pela Índia, pelo Paquistão, pelo Afeganistão, pela China, que eles têm muito mais miséria para oferecer, que nem na questão miséria a gente consegue ganhar.

Fátima Turcci: Ricardo, essa carona que eu queria pegar. Uma hora você inclusive comentou que não lê jornal porque tudo é muito tragédia, e eu sei que você lê. O telespectador, provavelmente. [...] Apesar de ter muito mais otimismo da sua parte do que a média de quem senta nessa cadeira que você está. Agora tem um outro lado seu, que de vez em quando você também vai em alguns programas e conta, que são as suas viagens; suas viagens mais para o turístico do que essas para as palestras... Viagens exóticas. Eu queria saber um pouquinho do jovem, do garotão de 30 anos.  O que ele faz? Quer dizer, ele não faz só palestras...

Ricardo Semler: Moleque, moleque... [risos]

Fátima Turcci: O que ele gosta? O que você gosta de fazer? O que você faz?

Ricardo Semler: Essa questão das viagens ela veio de uma questão profissional, porque quando eu comecei na empresa eu chegava cedo, saía tarde - era o trabalhador exemplo, o operário padrão - e eu achava que era importante dar o exemplo para as pessoas, para as pessoas verem que tem que trabalhar duro e tal. E com o passar do tempo que eu fui reconhecendo que existem coisas muito mais importantes. Uma delas é o que você está fazendo, não quanto esforço você está gastando para fazer. Com o passar do tempo eu me preocupei muito em fazer com que a empresa tivesse êxito como instituição e que as pessoas não dissessem “isso é coisa do Ricardo, Ricardo é que fez”, porque não é verdade. Então eu achei que o melhor mecanismo para a empresa criar um grau de auto-confiança era eu desaparecer por períodos. Então, no começo eu viajava, eu tirava uma semana, eu ligava de manhã e ligava de noite. “Como é? Chegou aquele telex? E, não sei o que, esse cheque e tal”... E aí com o passar do tempo eu fui criando uma coragem para me considerar menos insubstituível, o que é um golpe à vaidade muito forte. Porque você volta, como aconteceu...

Fátima Turcci: A empresa está melhor de que quando você saiu. [risos]

Ricardo Semler: É uma tragédia isso. Mas aí eu comecei... Então eu vou seguir alguns objetivos de vida que eu tenho que não só os de ganhar dinheiro e de ter uma empresa bem sucedida etc. E aí eu comecei a viajar e numa dessas viagens eu resolvi retraçar a rota do Marco Pólo [explorador italiano do século XIII, famoso pelas viagens ao Oriente, principalmente à China onde viveu por alguns anos e teve grande influência, cujos relatos e descobertas expandiram horizontes culturais, geográficos e políticos] e aí eu fui ao Afeganistão, Paquistão, Himalaia, Tibet, Nepal, China, deserto de Gobi... E nesses lugares eu fiquei oito semanas fora e em oito semanas eu não telefonei. E eu voltei e estava tudo muito em ordem.

Fátima Turcci: E roteiro bem fora... não só ele é fora da rota, como fora dos padrões de que um empresário viaja. Provavelmente sem nenhuma Mercedes, sem nenhum avião à sua espera, sem Limosines....

Ricardo Semler: Talvez, mas de qualquer jeito tem essa questão da idade... Eu desci o [rio] Nilo num barquinho de duas pessoas, atravessei o deserto do Saara, eu faço outras coisas... Fui acampar na África, safari de balão... Quer dizer, essas coisas a mim me dão muito prazer, mas eu também fui para as Ilhas Seychelles! [ilhas na costa do Quênia, na África] Eu não me envergonho disso. E ainda disse que o Collor foi para a única ilha vagabunda que tem no Seychelles, eu não sei quem andou aconselhando ele... Mas só tem uma onde tem aeroporto, Shariton e Hilton, e ele foi para aquela. Todas as outras são bonitas. [risos]

[...]: É verdade que você não atende telefone? 

Ricardo Semler: Não. Na verdade, inclusive, eu tinha até dois anos, três anos atrás... tinha três secretárias, depois eu tinha duas secretárias, depois eu tinha uma secretária, agora acho que eu tenho meia secretária; que é mais ou menos de atender recado, passar uns telex e coisa. Mas eu faço tudo: eu mando a minha própria carta... Para receber uma carta datilografada minha só Papa, embaixador... Menos do que isso é escrita a mão, porque eu faço na hora e mando embora... Fax, essas coisas todas... E atendo os meus telefonemas, então eu recebo na verdade um volume um pouquinho complicado... Eu recebo 25, 30 telefonemas por dia; eu recebo 10, 15 cartas por dia e é um pouco duro responder tudo isso, mas eu resolvi que eu ia fazer isso pessoalmente. Porque antes era assim: eu olhava e dizia “moça, onde é que eu devia estar agora?”, “Você devia estar na [avenida] Paulista, 1302. Está aqui o mapa”. Aí que eu percebi que eu não tinha nenhum controle sobre a minha vida.

Tão Gomes Pinto: Você atende pessoalmente os seus telefonemas?

Ricardo Semler: Eu atendo pessoalmente os meus telefonemas, quem já tentou me ligar...

[...]: Quando é jornalista você manda dizer que não está! [risos] 

Fátima Turcci: Ai, que injustiça!

Ricardo Semler: Não é verdade! Você nunca teve essa experiência, né? Quem tiver é só me falar, por favor.

Jorge Escosteguy: Uma última pergunta... O nosso tempo está se esgotando. Só para voltar ao começo da nossa entrevista, aquela questão da corrupção de impostos... O Jacques Rotzer, aqui de São Paulo, ele pergunta: se [para] uma firma que paga todos os impostos regularmente é viável competir com outras que não pagam, que sonegam? Como você falou no começo.

Ricardo Semler: Essa é a nossa experiência. Nós estamos há 10 anos nesse negócio, conseguimos crescer 9 vezes, nunca vivemos de “bola”, nunca vivemos de propina e está aí... E são multinacionais e algumas delas são nacionais que realmente - pelo que me consta - não são muito ortodoxas no pagamento de impostos. Agora, se você tem um produto diferenciado, se você tem um produto bom, se você tem gente que realmente garante a qualidade do seu produto, garante o atendimento e “não sei o quê”, o cliente prefere pagar um adicional seu e ter um produto confiável do que comprar de um cara “olha, é ‘meia nota’, mas o senhor deposita lá na minha conta, depois eu dou a devolução por fora”. Eu acho que os clientes também não se sentem bem, eu não sei... Eu acho que muita gente não se sente bem. Essa idéia de que todo mundo gosta de ferrar o governo eu acho que é institucionalizada, mas eu sinto que a seriedade depende um pouco das pessoas comprarem de outras pessoas sérias. Então eu não acredito nisso, eu acho perfeitamente viável.

Jorge Escosteguy: Nós agradecemos, então, a visita [de] hoje aqui nos estúdios do Roda Viva  do empresário Ricardo Semler. Agradecemos também a presença dos nossos convidados e dos telespectadores que telefonaram. Há aqui várias perguntas que não foram feitas e serão entregues ao Ricardo, inclusive telespectadores perguntando como podem fazer para trabalhar nas suas empresas, dão telefone, etc e uma telespectadora que diz que você é simplesmente fantástico e pergunta se quer casar com ela! Eu não dou o nome, mas te passo o telefone.

Ricardo Semler: Quero. Em princípio, sim. [risos]

Jorge Escosteguy: Uma boa noite a todos, Roda Viva volta na próxima semana às 21h30 da noite. Até lá.

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