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Memória Roda Viva

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Alfredo Bosi

23/9/2002

Segundo o professor titular de literatura da USP, a colonização seria uma espécie de germe ativo da globalização

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[Programa gravado, não permitindo participação do telespectador]

Paulo Markun: Boa noite. O Roda Viva nos traz hoje um dos mais importantes estudiosos da cultura e da produção literária no Brasil. É o professor Alfredo Bosi, titular de literatura brasileira da Universidade de São Paulo, que pode se tornar o mais novo membro da Academia Brasileira de Letras. O professor Bosi nos concedeu entrevista em agosto e agora, em setembro, lançou-se candidato à vaga deixada na ABL por Dom Lucas de Moreira Neves, falecido recentemente.

[Comentarista]: Cidade Universitária, campus da Universidade de São Paulo, habitat do professor Alfredo Bosi. É aqui que ele divide o tempo entre a sala de aula e o trabalho no Instituto de Estudos Avançados da USP. Descendente de italianos, Alfredo Bosi foi estudar na Itália logo após a formatura em letras na USP, em 1960. Voltou à Universidade de São Paulo dois anos depois e durante dez anos ocupou a cadeira de língua e literatura italiana. Dividido entre duas culturas, em 1972, decidiu-se pelo ensino de literatura brasileira no Departamento de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, onde hoje é professor titular. Seus estudos e pesquisas o tornaram um dos nomes mais representativos da crítica universitária. Alfredo Bosi é autor, entre outros livros, de O ser e o tempo da poesia - leitura de poesia, escrito com outros autores, Dialética da colonização, História concisa da literatura brasileira, um marco em sua obra, e Reflexões sobre a arte e cultura brasileira. Os originais saíram de uma velha e boa máquina de escrever. O professor Bosi não aderiu ao computador e continua datilografando diariamente, produzindo textos que permeiam suas aulas, seus livros, seu trabalho no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Alfredo Bosi é vice-diretor do instituto e editor da revista Estudos Avançados, que tem edição quadrimestral. A revista trata de temas nacionais, políticas públicas e também de questões internacionais, como o terror, guerras e crises que provocam inseguranças e trazem ao mundo moderno novos desafios. No caso da revista, uma busca de idéias e caminhos para discutir e equacionar os problemas contemporâneos. No caso dos livros, uma busca de mais análise e compreensão da vida brasileira, uma busca de uma maior visão crítica sobre a produção literária no Brasil.

Paulo Markun: Para entrevistar o professor Alfredo Bosi, nós convidamos: Augusto Massi, poeta e professor de literatura brasileira da USP, a Universidade de São Paulo; Ivan Ângelo, escritor e colunista do Jornal da Tarde; Maria Victoria Benevides, professora da Faculdade de Educação e diretora da Escola de Governo da USP; Rinaldo Gama, editor executivo do Caderno de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles; Reinaldo Azevedo, diretor de redação do site da revista Primeira Leitura, e Ivan Marques, jornalista, editor-chefe do programa Metrópolis, aqui da TV Cultura, e doutorando em literatura brasileira pela USP. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Hoje o programa não permite a participação do telespectador porque está sendo gravado. Boa noite professor Bosi.

Alfredo Bosi: Boa noite.

Paulo Markun: Dizem que no princípio era o verbo e, no começo, a principal missão que Deus concedeu ao homem, segundo a Bíblia e segundo o texto que está no escrito do senhor, foi de dar nome às coisas. Eu queria que o senhor começasse dando o nome às coisas que nós estamos vivendo hoje no Brasil. Que situação é essa em que nós estamos, em que a própria faculdade onde o senhor se formou, está em greve, porque não tem professor e, no momento em que nós estamos gravando o programa, que será exibido posteriormente, a Universidade Federal do Rio de Janeiro não tem energia elétrica, porque foi cortada pela Light [distribuidora de energia elétrica da cidade do Rio de Janeiro] por falta de pagamento.

Alfredo Bosi: Boa noite a todos. Essa situação específica da universidade tem raízes em um certo abandono que a universidade sofreu, sobretudo as universidades federais durante largos anos. Não se trata, vamos dizer, de uma política deliberada de amesquinhar as universidades. Trata-se de uma visão, um conjunto de formas de pensamento pelas quais o Estado deveria exonerar-se de uma série de responsabilidades que lhe são atribuídas pela Constituição e que vêm, vamos dizer, pelo menos desde os anos 30, sendo o foco da responsabilidade pública. No entanto, por uma série de circunstâncias, algumas econômicas, outras especificamente ideológicas, vem sendo criado um pensamento, ao qual nós resistimos de uma maneira bem veemente, segundo o qual a universidade teria que procurar os seus próprios recursos fora do Estado e essa universidade é cara, elitista, ineficiente, enfim, uma série de mitos que foram desmentidos pelos estudiosos. A Universidade de São Paulo publicou um trabalho – que espero que esteja ao alcance de todos– que se chama A presença da universidade pública brasileira, em que se mostra a extrema importância da pesquisa, da pós-graduação, das universidades públicas e também dos próprios provões.Todos esses instrumentos de avaliação que o governo federal implantou nos últimos cinco, seis anos acabaram dizendo aquilo que todos nós já sabíamos ou suspeitávamos: as melhores universidades brasileiras, as universidades que mais produzem são as universidades públicas. Para dar apenas um dado e não me alongar muito nesse particular, quando foi feito o levantamento das 12 melhores universidades brasileiras, dez são universidades públicas e duas universidades particulares, quer dizer, a gente não vê com demérito as universidades particulares muito boas. Mas, no conjunto, evidentemente, a universidade pública é aquela que está produzindo, de modo que é preciso mudar um pouco a cabeça daqueles que gerem os recursos das universidades públicas e mostrar o quanto elas têm uma função dentro da pesquisa, da vida nacional, da formação de profissionais e o quanto realmente têm respondido àquilo que se lhes dá através das alocações de recursos. Então, quando acredito que seja muito uma questão de cultura profunda, portanto, de valores, quando realmente se aceitar que a universidade brasileira é a grande matriz da pesquisa, a matriz da tecnologia e que, portanto, matriz do ensino e, portanto, ela deve ser inteiramente sustentada e não pró-avaliada. As avaliações têm que vir depois de um projeto longo, faça o projeto e depois se avalia. O governo, infelizmente... como aqui não analiso a boa vontade das pessoas, aqui não está em jogo a competência ou a boa vontade das pessoas que estão ligadas aos ministérios, mas pense o contrário. Pense que é preciso primeiro avaliar e, evidentemente, castigar e punir quem não está bem e depois investir. É exatamente o contrário que se deve fazer. Deve-se dar todos os elementos possíveis e, depois de algum tempo, verificar se as universidades estão correspondendo ou não àquilo que lhes foi dado.

Paulo Markun: Talvez eu tenha misturado as bolas aqui, talvez seja importante fazer uma correção, porque, na verdade, ao misturar a situação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras com a situação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, [o senhor] dá a impressão de que o problema da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras é apenas um problema de recursos. Tenho a impressão de que não, de que a falta de professores é decorrência de um problema mais complicado. Não é verdade?

Alfredo Bosi: Sim. Praticamente o que houve foi uma substituição muito irregular das aposentadorias. Quando se criou, vamos dizer, aquele clima de terrorismo, segundo o qual a pessoa deveria aposentar-se senão perderia uma série de direitos, houve um número muito alto de aposentadorias, particularmente na minha faculdade, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Então o que acontece? Muitos cursos ficaram assim: desertados, desamparados. Não houve uma substituição sistemática, porque quando há uma aposentadoria o recurso reverte para a universidade, não fica alocado naquele mesmo curso onde...

Paulo Markun: Mas não tem a ver com o fato, digamos, do desinteresse dos formandos em se tornarem professores nesse campo específico do conhecimento?

Alfredo Bosi: Não diria isso, acho que há muitos formandos, muitos mestrandos e doutorandos que teriam preparo e teriam interesse em assumir. Só que, não havendo concursos, não havendo as possibilidades, eles foram e vão alimentar cursos das faculdades particulares. O que não é um mal, quer dizer, na medida em que a Faculdade de Filosofia – falo da minha faculdade– está produzindo mestres e doutores competentes, é muito bom que eles sejam os professores. Aliás, numa estatística feita aí parece que 80% dos professores das faculdades particulares são formados pela Universidade de São Paulo.

Reinaldo Azevedo: A sociedade talvez... Não há também nesse campo... falta dinheiro, faltam recursos... Talvez não se consiga, por exemplo, ampliar a fatia dos impostos, especialmente no caso do ICMS [imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços], no caso de São Paulo, para as universidades públicas. E, claramente, há aí uma distância entre aquilo que a universidade demanda, realmente o que ela precisa e os recursos disponíveis, quer dizer, também nessa área o cobertor é curto. Formas algo imaginosas foram pensadas, aí, como as fundações... Em alguns casos funcionam muito bem, em outros casos são outro escândalo. Onde buscar, na sua avaliação – o senhor é uma dos estudiosos da área–, recursos para as universidades? Porque, quando se fala... O Brasil criou uma expressão chamada "vontade política", "se tiver vontade política resolve...". Aí a avaliação é minha, o senhor não precisa concordar: há um candidato aí que acha que se resolve tudo com vontade política; com ou sem dinheiro, tendo vontade política a gente vai lá e faz. Uma espécie de um voluntarismo doidivanas... No caso da universidade, não basta vontade política, precisa de recursos mesmo, de dinheiro, também aí lhe falta. Quais seriam os caminhos para a gente não ficar só, digamos, na crônica... na falta crônica de dinheiro?

Rinaldo Gama: A propósito, professor, só completando o raciocínio do Reinaldo, a Folha [jornal Folha de S. Paulo] veio a publicar um balanço das propostas dos principais candidatos à Presidência da República para a área da cultura. Como o senhor, que estudou a presença da cultura nas instituições brasileiras, vê a inclinação que esses candidatos apresentam, que é de haver uma presença maior do Estado diretamente na cultura, inclusive com essa aproximação maior, esse entendimento da cultura como educação?

Alfredo Bosi: Bom, vamos por partes. Inicialmente, é uma pergunta que talvez devesse ser dirigida a algum economista da educação, isto é, como conseguir mais recursos. Acredito que, vamos dizer, no histórico da universidade – falo da Universidade de São Paulo, das universidades do estado de São Paulo, a Unicamp e a Unesp estariam também dentro desse raciocínio– foi um passo muito bom, foi um passo, assim, muito progressista, aprovar uma alocação de recursos sistemática, quer dizer, um certo percentual que é retirado do ICMS e que é dividido pelas universidades proporcionalmente às suas necessidades. Isso foi um passo fundamental. Acho que é a partir de agora, que se conquistou isso, que se conquistou muito bem, dentro da política educacional do estado de São Paulo, agora acho que esse é o patamar, essa é a plataforma. Pode-se lutar para conseguir um pouco mais dentro dessa alocação de recursos. Pode-se conseguir um pouco mais e não vejo outra forma de estender, de ampliar. Por outro lado, uma administração interna competente talvez pudesse fazer uma divisão dos bens disponíveis de uma maneira mais racional. Há também essa... Muitas vezes não se pensa que o essencial é, por exemplo, conseguir bons professores de graduação. Pensa-se em outros níveis, na extensão, na pós-graduação, que são, evidentemente, importantes, mas uma política sadia, no caso, é sempre começar pela base, financiar cursos de graduação. Carentes de professores, são eles que devem ser atendidos em primeiro lugar. E acredito que, dentro do orçamento das universidades, ainda haja lugar, ainda haja uma elasticidade para isso, acho que se deve chegar ao limite. A partir daí, verificadas as carências reais, isso tem que ser estudado a fundo, e não assim, demagogicamente.

Reinaldo Azevedo: Queria fazer um parênteses sem que o senhor perca de vista a pergunta do Rinaldo, aí há uma polêmica... E não vou fazer a defesa de um ponto de vista, só queria ouvi-lo a respeito dos 40 mil alunos da USP, é isso? Não sei quantos, mas uma boa parcela – e sem que se mexa na lei que está aí–  das fontes de recursos, uma parcela poderia pagar a universidade, segundo os critérios de renda. E, talvez, se estivesse fazendo justiça social à medida que não há uma obrigatoriedade posterior do aluno formado na USP, por exemplo... Então o sujeito vai lá e se forma em odontologia. Com alguma freqüência, o pai dele já é dentista, já tem consultório; o pai é dentista, o filho se forma dentista com recursos públicos e vai atender a classe média e à classe média alta. Não há nem mesmo a obrigatoriedade de ele devolver para a sociedade, durante um ou dois anos, não sei, uma espécie de serviço civil obrigatório, para compensar a formação que teve. Não há uma obrigação de ele prestar nenhuma forma de assistência social. Chamo a atenção para uma outra perversidade dentro do modelo. Uma boa parcela dos alunos de letras – fui estudante de letras da USP – tem pais pobres ou analfabetos, quando não as duas coisas. Uma boa parcela dos alunos de engenharia, odontologia, medicina tem pais universitários, no mais das vezes formados também no curso que o filho está fazendo. Pergunto: não há aí um mecanismo de apropriação de renda, na medida em que se garante a gratuidade total a esses cursos, sem que se verifique, que se faça um estudo, que se crie um critério, uma peneira, para que aqueles que podem pagar possam pagar e aumentar volume de recursos para a universidade? Independentemente de se manter a universidade pública como está, com as fontes de recursos que tem hoje, se possível ampliá-los, mas se tentar de alguma forma que a sociedade receba de volta aquilo que ela investe também, na forma de serviços ou na forma de pagamento?

Alfredo Bosi: Bom, você coloca um problema grande, mas há um raciocínio paralelo a esse que você está fazendo. Acho que a gente deveria aproveitar o nosso tempo aqui para reconstrui-lo. Nesse trabalho, que tive a oportunidade de coordenar, sobre a presença da universidade pública no Brasil – trabalho que nos foi, aliás, encomendado pelo reitor [Jacques] Marcovitch [formado em administração, já foi pró-reitor de Cultura, diretor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, diretor do Instituto de Estudos Avançados e, de 1997 até 2001, reitor da Universidade de São Paulo], anterior ao atual, e fizemos em torno do ano 2000– houve também o cuidado de fazer uma análise da procedência dos alunos que nos chegam. Então, verificou-se que, de fato, nós não temos alunos dos dois extremos, né? Não temos alunos extremamente ricos, que estudaram nas escolas particulares; esses são só uma parcela da USP, pelo menos não um número significativo. E também não temos os alunos chamados de pobres, que nunca entrariam na USP, mesmo porque o nosso sistema secundário – que é um ponto ao qual gostaria de voltar mais tarde – está sendo tão inoperante, que os alunos que saem do sistema secundário oficial praticamente não têm chances de entrar na universidade. Bom, mas então o que fica entre os dois extremos? É uma vasta classe média com todo o gradiente que existe na classe média. Acho que nós estamos atendendo a essa classe média com os vários gradientes. Também sei que há diferenças setoriais, as faculdades que exigem um alto nível de preparo e um cursinho também, vamos dizer de reforço, essas faculdades com fortes notas de corte têm alunos que acho que são de classe média e média-alta sem dúvida nenhuma. E as faculdades de letras e as humanísticas tem os alunos, em geral, de classe média baixa. Mas, de toda maneira, a idéia de que os ricos, os milionários estão se beneficiando da USP, acho que pode levar a uma certa distorção, porque é a classe média que está usando a USP.

Reinaldo Azevedo: Os milionários estudam fora do país...

Alfredo Bosi: Realmente os extremos não estão [usando a USP]. Agora, são duas filosofias mesmo, que estão aqui em jogo, que é possível, assim, aprofundar. Existe a idéia de que... a filosofia segundo a qual uma coisa é o mundo do mercado, com suas instabilidades e os seus interesses, e esse é o mundo da escola-pagamento. E outra coisa é o mundo público, o mundo do Estado, que se alimenta de toda a sociedade. Então, quando se faz essa pergunta: será que não deveria haver um ensino público pago também? Essa filosofia responde que não, pelo seguinte: já é pago, todos pagamos, não existe nada gratuito, quer dizer, toda a sociedade, através dos impostos, é que sustenta a universidade. A universidade não é gratuita. Ela é gratuita individualmente, mas, do ponto de vista coletivo, ela é paga por toda a sociedade. Então, do ponto de vista democrático-social, o que nós temos? O Estado é uma espécie de mediador entre o mercado, a sociedade livre, todos que contribuem e pagam seus impostos – no caso o ICMS, especificamente – e o aluno. Então, o aluno não recebe diretamente do Estado, ele está recebendo indiretamente de toda a sociedade. Não existe, portanto, o ensino [gratuito]... Rigorosamente falando, conceitualmente falando, todo ensino público é pago por toda sociedade. Agora, com isso não quero fugir ao centro da sua pergunta. O centro da sua pergunta é essa. E a responsabilidade... isso sim, do ponto de vista ético, nos incomoda... E a responsabilidade daqueles que podem, que se valem da universidade e depois vão servir especificamente à classe alta? Acho que é nesse segmento final que deveria haver uma correção. Não que eles cheguem a pagar a universidade, assim como uma coisa de contabilidade, uns pagam, outros não. Acho que a universidade não deve fazer distinções entre o aluno que pode e o aluno que não pode, a universidade tem que ser pública, em que todos estão no mesmo nível de cidadania, isto é, gratuita como é na França, em vários países da Europa, isto é, realmente... É claro que tem outros recursos maiores que os nossos, mas, de qualquer maneira, o que é público é público. Mas a sua pergunta já nos dá uma pista do sentido do que aqueles que receberam uma instrução pública deveriam ter. E aí nós vamos acrescentar, e não subtrair: deveriam ter alguma obrigação posterior, que é talvez essa idéia de um serviço público que eles deveriam prestar. E aí o ideal é que todos o fizessem, não só os odontólogos, mas também os professores. E aí a sociedade estaria vendo concretamente o quanto a universidade está fazendo. Não vou fazer aqui, nem daria tempo, todo o levantamento do que a universidade está fazendo, esse trabalho que nós publicamos. E aqui quero lembrar um nome de um grande cientista, o doutor Alberto Carvalho da Silva, que faleceu há pouco tempo, foi diretor científico da Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo] e colaborou de uma maneira muito intensa nesse levantamento. Esse trabalho mostra, por exemplo, que a universidade, no caso dos hospitais, dos hospitais-clínicas, dos hospitais universitários, atende a milhões de pessoas gratuitamente por ano. Então existe um serviço universitário que é realmente socializador no mais nobre sentido da palavra. Nós chegamos, a universidade chega, além de cursos de extensão... a universidade da terceira idade, quer dizer, nós estamos procurando, sim, devolver o que a sociedade nos dá. Agora, claramente, há distorções no sistema e acho que é muito bom que pessoas como você tenham o olho nessas distorções e as acusem, porque só assim nós teremos, vamos dizer, um modo de compensar. Agora, o pagamento... para mim não resolveria o problema total. É complexo, o Estado tem responsabilidades e tem responsabilidades desde a Constituição de 34. Sempre digo: bendita a Constituição de 34! Benditos os movimentos sociais que acompanharam a Revolução de 30! Espero que essa era não seja apagada, porque a partir de 34 a Constituição começa a alocar recursos, 10%, 20%, o que não havia antes, na República Velha [foi a primeira república brasileira e o termo surgiu em oposição a República Nova inciado com o governo de Getúlio Vargas] – o famoso clube de fazendeiros, como diz o Celso Furtado com muita inteligência – não havia esse interesse. Foi a Constituição de 34, repetida pela de 46, apagada pelas de 67 e 69... O governo militar apagou tudo isso, apagou completamente a alocação de recursos. Mas, felizmente, recuperada em 88. E aí eu gostaria de voltar à pergunta de nosso caro amigo, porque ela ficou deixada de lado, que é o problema da cultura. São duas coisas diferentes. Em um trabalhinho que escrevi para o Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, instituição de pesquisa interdisciplinar dedicada à análise da realidade social brasileira e à participação no debate político e institucional], já faz algum tempo, um pouco antes da Constituição de 88 ser promulgada, chamava-se A educação e a cultura nas constituições brasileiras, o que está dito lá acho que eu ainda poderia sustentar. Ao Estado cabe, sobretudo, a educação básica, em primeiro lugar, depois de um certo patamar a educação superior e, a partir daí, o Estado está subvencionando a cultura. Tenho um pouco de receio de a cultura ser, assim, um apêndice dos presidentes da República, que pensam na cultura como subsídios aqui e lá, dados ao cinema, teatro. E como se isso, de alguma maneira, fosse um patrocínio da cultura. Acredito que a cultura realmente seja uma coisa que emerge da sociedade civil. Realmente é a sociedade que produz a cultura, são os grupos, são os talentos individuais, então... Claro, existem aquelas formas de subsídios, mas tenho um pouco de receio nesse ponto, que é a idéia socializadora extrema de que o Estado deve ocupar-se da cultura, acho que seja, assim... ela induz a um certo cabide de empregos, a essa idéia de que o Estado que deve fazer cultura, não penso assim. Acho que a cultura deve ser amparada, evidentemente, através de várias formas, livros, cinemas, mas de um modo tal, que o mérito seja contemplado, que não haja uma relação muito burocrática entre aspirantes de produção de cultura e o Estado. Não tenho a análise específica de todos os candidatos, o que conheço aqui poderia significar alguma discriminação de um ou outro e não devo fazer isso neste programa. Mas acho que, em geral, a cultura ficou uma espécie de último índice, último capítulo de um programa de governo. Geralmente lá no finzinho eles colocam "também vamos proteger a cultura". É preciso que isso não signifique apenas uma distribuição que pode acabar sendo uma imensa ação entre amigos. Nesse sentido, eu preferiria que a cultura realmente se impusesse e que a ação do Estado fosse basicamente da educação. Aí, sim, o que vem depois, que é a criação, já estaria calçado por uma educação fundamental. Não sei se respondi especificamente...

 Rinaldo Gama: O senhor é mais ou menos favorável a esse modelo de hoje, que é uma intervenção, quer dizer, é uma participação mais indireta...

Alfredo Bosi: Mais indireta, exatamente. Tem que ser discreta a intervenção... Os governos, quando fizeram intervenções maciças na cultura, às vezes cometeram erros graves. Às vezes, não. A Ópera, em Paris, a gente sabe que nunca existiria sem o apoio do governo francês. E é claro que é preciso ter algumas prioridades, que são até prioridades nacionais, que devem ser defendidas. Mas, afora isso, é preciso muito cuidado ao julgar esse problema dos subsídios.

Paulo Markun: Professor, vamos fazer um rápido intervalo e a gente volta logo depois do intervalo com a entrevista do professor Alfredo Bosi.

[intervalo]

 Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o professor titular de literatura brasileira da USP Alfredo Bosi. Infelizmente o programa não permite a participação do telespectador, porque está sendo gravado. Ivan Ângelo e a Maria Vitória têm aí questões a levantar, mas eu queria subverter a ordem em nome do poder que o mediador tem e levantar uma outra questão para a gente nortear o debate. O seu livro A dialética da colonização provocou uma polêmica... Não uma polêmica restrita às páginas de cultura dos jornais, mas uma polêmica importante quando foi publicado. Tem um posfácio de 1992 e depois... Aliás, um post scritptum de 1992 e um posfácio 2001. O que mudou no cenário do que aborda o seu livro no período... no momento em que ele foi escrito para hoje em dia?

Alfredo Bosi: O posfácio, escrito agora, em 2000, nessa última edição, visa principalmente a dar uma síntese, talvez mais específica, do texto todo do livro, né? O livro trata de assuntos muito diferenciados, desde [José de] Anchieta [padre jesuíta (1534-1597) que chegou ao Brasil em 1553, participou da fundação do Colégio da Vila de São Paulo de Piratininga, onde também foi professor. Escreveu cartas, sermões, poesias, a gramática da língua tupi e peças de teatro] e Vieira até a cultura contemporânea, de modo que ele pode desnortear um pouquinho o leitor. Então senti a necessidade de fazer uma síntese dos pontos fundamentais do livro. Nesse sentido, o posfácio tem uma função esclarecedora. Mas há algo, vamos dizer, diferente, que é o problema das relações entre as culturas. Um dos capítulos finais levanta as três grandes formas de cultura do Brasil. A minha idéia é a de que não existe uma cultura brasileira, com esse nome "cultura brasileira", é muito homogêneo, então já vem de longe que é preciso diferenciar a cultura popular, a cultura de massas e a cultura erudita, pelo menos por aí. O que é pouco, ainda, porque quando se fala até em indústria cultural, há vários níveis, né, questão, afinal, aqui está o Canal 2 [número do canal da TV Cultura em São Paulo] para mostrar. E quando se fala em cultura popular também nós temos extremos que vão desde a cultura indígena, a cultura afro a outras formas muito próximas da cultura de massa. E também a cultura, chamada a cultura universitária, ou cultura erudita, ela está cada vez mais, vamos dizer, embebida da indústria cultural e procura entender a cultura popular. Então, achei que o quadro aqui escrito precisava ser, assim, mais matizado, e que havia, vamos dizer, movimentos diferentes dentro da cultura brasileira, que mostram interações muito íntimas entre as várias culturas que inicialmente, didaticamente pareciam três campos assim diferenciais. Então, nesse último livro escrito, embora haja uma série de outras coisas a dizer, uma delas, que acho muito impressionante, é que quando eu separava a cultura popular... A cultura popular tem um fundo religioso, evidente, em toda cultura popular tem elementos emocionais fortíssimos, isso no Brasil, na América Latina, é alguma coisa que salta à vista. Então poderia ficar parecendo que essa cultura popular que tem manifestações religiosas, não teria nada a ver, por exemplo, com a indústria cultural. Isso não é verdade. Quer dizer, se eu continuasse a pensar assim, estaria tendo uma visão distorcida, porque percebi, nos últimos dez anos, por exemplo, no fenômeno das seitas um fenômeno absolutamente extraordinário, que ainda está exigindo uma sociologia dos valores para serem entendidos, porque está em um crescimento notável em toda a América Latina. Não só na América Latina, mas aqui a nossa periferia deveria ser um campo de observação extraordinário. Esse fenômeno das seitas será popular apenas, no sentido, vamos dizer, quase folclórico da palavra? Ou ele tem uma relação muito profunda com a indústria cultural, com uma cultura de massas? Então a gente vê, às vezes, uma exploração que essas seitas fazem através de canais de televisão, que são indústria cultural. Então, eis um exemplo assim, entre outros, de que hoje em dia essas culturas não existem em estado puro; elas podem ter valores populares arcaicos, mas usam instrumentos extremamente modernos, o que é uma coisa muito característica dos nossos tempos pós-modernos. Essa fusão de elementos até instintivos, elementos arcaicos e formas de instrumentos que são extremamente requintados, porque usam a televisão, usam os meios eletrônicos. Então, aí há uma diferença. E uma outra diferença também é que a cultura erudita também se vale bastante, cada vez mais, da indústria cultural. Nós sabemos o quanto alguns autores de talento médio, para usar uma palavra amena, autores que não estariam nunca classificados na literatura como tal, mas em outros campos, graças a uma propaganda maciça, né – e realmente há estímulos que eles lançam em toda parte –, passam a ser considerados autores da cultura erudita.

Paulo Markun: Aqueles que vão para a academia?

Alfredo Bosi: Também.

Ivan Ângelo: Então, ia fazer uma pergunta sobre idealismo, que é uma coisa que irmana na nossa geração, mas o senhor citou agora um campo, aí, que me pareceu mais fascinante, que é a ruralização da cidade. Com o êxodo, com o êxodo para as cidades, massas muito grandes de brasileiros no interior vieram morar em grandes centros urbanos, principalmente São Paulo, mas também Rio de Janeiro, Recife, outros... Então, fiquei preocupado durante algum tempo com características do homem rural e do homem urbano. O homem urbano entrega para uma autoridade, para um equipamento de governo, para um equipamento de cidade, muitas das suas digamos reivindicações, muitas das coisas ele delega. E o homem rural, por estar sempre afastado das autoridades e da assistência do Estado, toma muita coisa nas próprias mãos. Isso é um conflito em que, juntando esse pessoal todo em uma região desprotegida e desgovernada, como as periferias das cidades, se não vem para essas regiões, para esses bolsões, algo desse "individualismo" do homem rural, se tem que resolver um conflito, eu resolvo: vou lá e mato. Porque, na literatura brasileira, a violência é sempre representada, quer dizer, sempre não, foi tradicionalmente representada como uma violência no campo, só os autores mais modernos, como Rubem Fonseca [escritor brasileiro contemporâneo, autor principalmente de livros policiais como O caso Morel, A grande arte e Agosto. Alguns foram adaptados e levados às telas de cinema e TV], marcaram bastante a violência urbana. Então, tem-se uma idéia de um homem do interior, o homem rural, como um homem quase, digamos, de reações primitivas e desligadas de um aparato de cidade. E, se pensasse que isso aí não tem algo que ver... E também, como o senhor falou aí, a militância, a militância, não, o problema das seitas, eu chamaria o problema das religiões. E há uma militância evangélica muito grande nesses meios e não há mais uma militância católica nesses meios; houve antigamente as CEBs, houve também no campo até aquela missão do bispo [Dom Pedro] Casaldáliga [catalão, vive no Brasil desde 1968. Ligado a Teologia da Libertação e a luta dos agricultores sem-terra no Mato Grosso e Amazonas, já foi ameaçado de morte várias vezes e, durante a ditadura militar, alvo de processos de expulsão. É poeta e, em 2000, recebeu o título de doutor honoris causa pela Unicamp - ver entrevista com Casaldáliga no Roda Viva], e toda a questão da terra foi discutida pela Igreja, houve grande intervenção, muito interessante, e acho que isso aí trouxe uma espécie de prestígio do demônio, hoje em dia o demônio está na televisão, estão exorcizando toda hora, quer dizer, há um prestígio enorme do demônio. Então são todos problemas que estão ligados a essa vinda do homem do interior para as cidades. Não sei se isso faz alguma coerência ou algum sentido na sua visão.

Alfredo Bosi: Bom, a idéia que o homem do interior, o homem rural seja mais violento...

Ivan Ângelo: [interrompendo] Não, não mais violento. Ele resolve mais as coisas individualmente, é desamparado das ações dos poderes do Estado, da intervenção do Estado nas questões dele.

Alfredo Bosi: Sim. Mas, de qualquer maneira, nós não estamos hoje em um grau de violência urbana maior do que no mundo rural, então eu acho que deveríamos começar analisando as causas dessa violência, por que há essa violência no mundo hoje e por que esse homem que chegou, vamos dizer, desamparado do interior continuou desamparado na cidade. Desamparado de maneira diferente, porque lá, de alguma maneira, ele estava ou ligado ao coronelismo ou então pertencia a uma facção que o defendia ou o atacava. Passando para a cidade, ele entra no caos, não há realmente... ele realmente não tem nenhum amparo, certamente a polícia não tem dado aquele amparo que nós desejaríamos, os aparelhos do Estado são frágeis nesse sentido, então a violência acaba sendo até internalizada, ele mesmo se defende. Precisaria identificar, realmente, qual é o grau dessa violência e se ela tem relação com o fato de ele vir do mundo rural, que seria, vamos dizer, quase genética – ele veio daquele mundo onde se resolviam as coisas, vamos dizer, pela vendetta [vingança em italiano], né?– ou se a violência urbana que existe nas periferias não é um fenômeno específico, realmente de absoluto abandono, é uma vida miserável, então o que ocorre é que há essas reações individuais por falta até de uma comunidade. Agora, a idéia de comunidade é que me parece que pode servir de gancho à sua segunda pergunta: esse homem totalmente isolado, às vezes desempregado, onde ele vai encontrar, então, um grupo que o ampare? Nessas seitas, ficando membro de religiões, né? Quando uso palavra "seitas" é por causa da sedimentação que apresentam, não há nenhum sentido pejorativo. Chamemos religiões, então, se for o caso. Mas, enfim, esses grupos todos o amparam – e o amparam de fato–. Eu pergunto... Sou um frequentador das periferias, sempre, desde o final dos anos 60, começo dos anos 70, estive muito ligado às comunidades de base, tenho uma admiração enorme por um padre operário chamado Domingos Barbé [formador da Pastoral Operária de São Paulo e um dos primeiros assessores de Comunidades Eclesiais de Base. No livro Graça e poder, elabora as razões da necessidade de a luta social brasileira seguir os princípios da não-violência ativa], que foi realmente um dos gurus da minha vida extra-universitária, em Osasco. Ele mostrou claramente o quanto se pode fazer nas comunidades da periferia e vi realmente que a presença da Igreja Católica naquela época foi definitiva, foi marcante, porque unia as pessoas. Aquilo que estava desamparado, estava desgarrado passava a ter nas igrejas, nos grupos de família, nos grupos de mães, enfim, existem várias possibilidades de socialização e passavam a ter uma humanização que foi a base, depois, da defesa dos direitos humanos, né, que hoje está fora das igrejas, nos vários partidos políticos, que, de alguma maneira, passaram a ter vigência nesses últimos... Não importa, houve um fermento na massa. Era uma ação civilizadora no melhor sentido da palavra. E não era uma ação regressiva, no sentido de atribuir a forças demoníacas o mal que estava lá; muito pelo contrário, procurava-se mostrar o quanto as forças sociais e econômicas do capitalismo... Então pude atravessar anos a fio alguma coisa que me fez crescer muito, que a universidade não deu nesse ponto. Foi realmente na militância junto a esses grupos que pude perceber o quanto é possível fazer crescer uma comunidade, vamos dizer, através das lutas locais. Pode ser luta pela água, luta pelo esgoto, luta pela urbanização, luta pela escola, essas lutas é que em pouco tempo fazem crescer extremamente o grupo. E se transformam em massa, massa em grupo humano, em sociedade, em povo no melhor sentido da palavra. Nisso eu acredito ainda. Quanto ao fenômeno da demonização, eu chamaria de regressivo, né? Não quero dizer que o demônio não exista, mas, enfim... Mas digamos que não seja por aí, "no creo en brujas, pero que las hay, hay" [não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem]. O problema da demonização, a idéia de que os males que uma sociedade está vivendo são demoníacos eu vejo, infelizmente, muito espalhada nessas seitas fundamentalistas. É muito curioso, porque isso a gente teve no catolicismo medieval, no catolicismo até pelo menos do século XVII. Na Inquisição, o demônio estava presente, a gente vê as obras do [padre Antonio] Vieira, do [Manuel] Bernardes [padre português (1644-1710) que passou a maior parte da sua vida entre a meditação e a redação de seus livros na cela da Congregação do Oratório até perder a vista e a lucidez dois anos antes de morrer], dos escritores do século XVII: qualquer luzinha que aparece à noite é o demônio. É muito interessante, grandes clássicos nossos têm uma presença muito viva do demônio. Não sei o que aconteceu, que o demônio foi perdendo um pouco a ocupação dentro da Igreja Católica e essas igrejas fundamentalistas populares voltaram fortemente a uma separação entre o que é demoníaco e o que não é. Acho isso de um ponto de vista – não preciso nem dizer– racionalista. Mas, do ponto de vista da humanização, acho uma regressão muito forte. E aí tenho que lamentar que as periferias tenham sido tomadas, a maioria delas, por esse tipo de religiosidade que é o oposto daquilo que a Igreja Católica progressista preconizava, isto é, como faz ainda no mundo rural, como faz na causa dos índios, isto é, que o povo assuma o seu futuro, que entre pela cidadania, diretamente na política, quer dizer, essa função modernizadora no melhor sentido. Hoje a gente está tendo medo de usar a palavra moderno, mas essa função civilizadora no melhor sentido estava sendo apanágio de uma facção importante da Igreja Católica. Realmente, na situação atual, pelo menos nas periferias das grandes cidades, essa força ficou... se não regrediu, ficou assim, estacionária.

Reinaldo Azevedo: Existe um demônio? Essa questão chegou até o Vaticano.

Alfredo Bosi: Acho que não sou uma pessoa capaz de responder a isso... Se soubesse responder isso, eu responderia até as outras perguntas, não é verdade... Mas, como professor de literatura, o demônio, acho que o Guimarães Rosa procurou colocá-lo e depois o tirou da obra dele na literatura [em Grande sertão: veredas, Riobaldo, o protagonista, depois de fazer um pacto com o diabo busca mostrar que ele não existe: "Deus é definitivo, o demo é o contrário Dele..."]... O demônio é muito interessante, de qualquer maneira. Mesmo que não exista, acho que na literatura ele tem uma função muito importante, veja Guimarães Rosa. Mas vamos deixar o demônio em paz. Volto um pouquinho para completar a pergunta do Ivan Ângelo, acho que essas são tendências que a gente vê, assim, estarrecido: como é que os chamados fundamentalismos – falo desses no Brasil, não quero falar de outros que estão espalhados pelo mundo todo–... como é que eles tomaram conta de um vazio que vem basicamente dessa anomia [situação onde faltam coesão e ordem] da sociedade de massas, que a igreja e alguns partidos, não é só a Igreja Católica, evidentemente, existem outras, cito porque foi levantado por você. Mas outros grupos cumprem de alguma maneira humanizar ou civilizar. Mas vejo que essa... como é que podemos dizer? Esse desequilíbrio profundo da civilização brasileira, em que há grandes bolsões de miséria, migrações intensas, favorece a procura de um apoio nessas seitas que, sem dúvida nenhuma, também dão apoio material. Perguntei a algumas pessoas por que saíram da Igreja Católica e entraram na Universal [Igreja Universal do Reino de Deus, fundada no Brasil em 1977 por Edir Macedo] e outras, elas disseram: "porque nós fomos amparados, porque as pessoas nos deram condições e ajudaram a gente a fazer a nossa casa". Quer dizer, há alguma troca nisso. De alguma maneira, eles recebem algum apoio e é aquilo que acaba explicando o crescimento preocupante dessas seitas.

Maria Victoria Benevides: Gostaria primeiro de dizer que quem conhece o professor Bosi, assim, só de conversa e de aula tem aquela impressão de um homem de uma grande elegância, de uma grande doçura nos gestos, na maneiras de falar, com uma grande erudição e um professor excelente etc. Mas eu queria lembrar que, por trás dessa elegância, que, aliás, é agradabilíssima – seria tão bom se nossas relações, inclusive no campo político, da convivência acadêmica, fossem marcadas por essa elegância–...  eu queria chamar a atenção que, por trás desse lado suíço, digamos, temos um vulcão siciliano, que, aliás, está perto das origens mediterrâneas do Alfredo. E esse vulcão siciliano é uma pessoa extremamente radical no seu compromisso político-social, aliado à educação e aos direitos humanos. E uma pessoa profundamente indignada com a injustiça, com a desigualdade, com a falta de liberdade, ou seja, com a falta daquele tripé que tem mais de 200 anos, mas que ainda não chegou aqui no Brasil, da liberdade, da igualdade e da solidariedade [ideais que nortearam a Revolução Francesa].  Então gostaria de que o professor falasse sobre o seu engajamento de tantos anos na luta pelos direitos humanos. Principalmente porque nós, que somos companheiros nessa luta já há bastante tempo, sabemos de toda uma campanha de deformação, muitas vezes uma campanha voluntária, cruel, demoníaca, no sentido do mal, de confundir defensores de direitos humanos com defensores exclusivamente de bandidos. Somos acusados de tantas coisas que a própria idéia de direitos humanos fica confusa e muita gente não tem nem coragem, por exemplo, de se apresentar para o seu eleitorado ou em atividades públicas como defensor dos direitos humanos. E, principalmente, também, pelo outro lado de tradição exclusivamente liberal, no sentido clássico, e o professor Bosi é autor de um ensaio maravilhoso sobre os dois liberalismos na tradição brasileira, que está, aliás, publicado nesse A dialética da colonização. E, nessa tradição liberal mais clássica, os direitos humanos são exclusivamente colocados no plano do indivíduo – as liberdades pessoais, os direitos cívicos, que são importantíssimos, evidentemente são importantíssimos e inegociáveis–. E deixa-se em segundo plano essa dimensão crucial, principalmente em um país como o nosso, numa América como a nossa: os direitos econômicos, sociais e culturais. Aliás, perfeitamente acolhidos na nossa Constituição de 88, como se eles não fizessem parte do que nós chamamos de direitos fundamentais, ou seja, são direitos fundamentais, são direitos que obrigatoriamente devem ser reconhecidos, protegidos e garantidos para todos. Nós vemos, por exemplo, uma grande potência, como os Estados Unidos, que quer mandar no resto do mundo e já manda do ponto de vista comercial, econômico e militar. Mas também quer mandar no resto do mundo no sentido de uma visão dos direitos humanos e sempre deixou em segundo lugar esses direitos econômicos, sociais e culturais, inclusive essa última geração dos direitos humanos, que é o direito ao meio ambiente não degradado, a preservação ecológica, o direito das próximas gerações etc. Os Estados Unidos, desde 66, nunca mais ratificaram nenhum dos contratos internacionais na área de direitos humanos e querem dar lição de direitos humanos para o mundo todo. Então, gostaria de vê-lo lembrar no que consiste essa sua luta constante, desde o tempo da ditadura. E ainda peguei aqui um belíssimo artigo seu, publicado no Jornal da USP em 97, no congresso dos estudantes, sobre uma homenagem ao nosso aluno Alexandre Vanucchi Leme, que foi preso, torturado e assassinado nos porões da ditadura. E, quando o professor Bosi lembra, quando a gente faz esse exercício de memória e aí a gente encontra aquela elegância da erudição do Alfredo, ele diz: "... a memória é, na metáfora corpórea de Santo Agostinho, o ventre da alma. Lembrar é saber de cor, cor é coração, mas cor é também a raiz da palavra coragem". Então, memória sem sentimento e coragem, diz o Alfredo, são palavras imbricadas. Então isso tudo, na sua visão de direitos humanos, que começou com esse movimento contra a ditadura, e hoje... e de alguns anos para cá, se espalha pelo seu seguinte trabalho na periferia, pela sua dedicação à escola pública, à formação de professores e, principalmente, a esses direitos econômicos, sociais e culturais.

Alfredo Bosi: Agradeço essas palavras generosas, Maria Victoria, você que é reconhecida nossa companheira de tantos anos pelas mesmas lutas... Em primeiro lugar, concordo e lastimo – mas realmente não basta você lastimar, é preciso lutar–... concordo com essa idéia de que a expressão direitos humanos foi extraordinariamente distorcida junto até a cultura popular. Fico muito preocupado com isso, com essa história de como reverter isso. Porque muitas vezes a gente está no táxi, conversando com o motorista, e alguma coisa acontece, ele fala: "o culpado são os direitos humanos". Ele diz essa expressão e a gente fica estarrecido, porque evidentemente ela é tão contraditória, né? "O culpado são os direitos humanos". E, com isso, ele quer dizer que a culpabilidade vem de uma benevolência extrema para com os bandidos, os assassinos, e que essa benevolência, então, é que estaria produzindo a impunidade. Quer dizer, o sentimento que a pessoa simples tem é puro, quer dizer, a expressão é errônea. Mas vem de dentro, de uma indignação. Quer dizer, nós estamos assim, como ele diz, "nós estamos dentro das nossas casas presos", como eles dizem, "e os bandidos estão fora, e ainda por cima os direitos humanos os protegem". A gente entende bem, precisamos entender bem quais são as motivações para poder, vamos dizer, ir ao fundo do problema. Então, em primeiro lugar houve essa distorção e essa distorção, como você sabe, foi feita através dos programas de rádio. Existiam dois ou três políticos radiofônicos, que usavam constantemente essa expressão contra o trabalho da comissão dos direitos humanos e contra todo o trabalho, pelo menos, desde o começo dos anos 70. Você acompanhou tudo isso muito de perto, a Comissão dos Direitos Humanos, instalada por Dom Paulo Evaristo [Arns], e que realmente tinha...

Maria Victoria Benevides: Comissão de Justiça e Paz...

Alfredo Bosi: Comissão de Justiça e Paz, a que nós pertencemos... Então essa relação direta com a repressão... quer dizer, se quisermos fazer a história do termo "direitos humanos", da expressão direitos humanos, pelo menos a partir de uma certa data, como é que eles generalizaram? Vem da ação da arquidiocese, sem dúvida nenhuma, das visitas aos presos políticos e toda uma movimentação jurídica para dar um apoio a essas ações e, de alguma maneira, minimizar o que estava acontecendo nas cadeias políticas, digamos assim, a memória deve ser reavivada do que aconteceu no final dos anos 60 e ao longo dos anos 70. Então a expressão dos direitos humanos está muito próxima disso. É claro, como você diz muito bem, que ela deveria ser generalizada. Vejo o trabalho da Comissão Justiça e Paz, vejo dentro do Instituto de Estudos Avançados, que eu tive a honra de dirigir durante alguns anos, a criação de uma cátedra para a educação dos direitos humanos, que está atualmente sendo regida pelo professor [Dalmo] Dallari [professor aposentado da Faculdade de Direito da USP] e tem uma finalidade a que a Faculdade de Educação responde de uma maneira muito feliz: preparar uma espécie de vasto "segundo escalão". É claro que há os grandes intelectuais que escreveram sobre isso recentemente, o professor [Fábio Konder] Comparato [também professor aposentado da Faculdade de Direito da USP] escreveu um livro extraordinário sobre a história dos direitos humanos, enfim, há os intelectuais que já se posicionaram e que tem, vamos dizer, um lastro cultural que nos ajuda a pensar o que são os direitos humanos, de todos os setores, não só setores formais, mas também setores substanciais. Mas aquilo que me engajou durante muitos anos – espero que ainda tenha força para continuar me engajando – é a preparação, junto aos jovens, de uma faculdade de direito, de uma faculdade de educação, de uma faculdade humanística e, por que não, nas faculdades técnicas também, esses jovens que vão ser os multiplicadores. Porque o que está faltando é justamente essa função intermédia para que de alguma maneira as pessoas que estão na base comecem a internalizar a idéia de que direitos humanos são fundamentais, não só, mas sobretudo que essa expressão seja uma expressão que apague esse elemento negativo. Então concordo plenamente com o que você disse e acho que uma das táticas da luta é a formação desses grupos intermediários, ou seja, que a faculdade de educação está nos ajudando para isso.

Maria Victoria Benevides: E a faculdade de direito também? Curso de direitos humanos para profissionais do direito?

Paulo Markun: Professor, nós vamos fazer mais um rápido intervalo e a gente volta já, já.

[intervalo]

 Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva essa noite entrevistando o escritor e professor titular de literatura brasileira da USP Alfredo Bosi. Infelizmente, o programa não permite a participação do telespectador, porque está sendo gravado. A pergunta é de Augusto Massi.

 Augusto Massi: Bom, eu gostaria de encaminhar um pouco para a literatura, não como um pólo que seria oposto ao que tem sido até agora comentado e discutido aqui, mas exatamente tentando pensar essa relação. Como um homem, supostamente de letras, vem participar de um programa como o Roda Viva, em que boa parte das perguntas são direcionadas mais para uma dimensão intelectual, política, educacional, questões bastante amplas... A idéia que a gente tem é que a literatura cada vez mais perde espaço na sociedade e não acompanha essa indústria cultural. Vejo que, pela formação, que é exatamente o ponto que queria que o senhor comentasse, até de pensadores como [Giambattista] Vico [filósofo italiano (1668-1744) para quem a história é cíclica e a fala é mais que a representação verbal do mundo: é a expressão de um poder inventivo. Foi professor de retórica da Universidade de Nápoles, mas tinha saúde precária e viveu em condições de pobreza. Seu trabalho só ganhou maior repercussão no século XIX], [Antonio] Gramsci, que vem de uma tradição italiana... Como o senhor realizou essa passagem? Não sei se é uma passagem, inteiramente, mas como o senhor foi incorporando a literatura para poder abrir para essa questão mais ampla, que eu diria que é o debate das idéias, não ser somente um crítico literário.

Rinaldo Gama: E a passagem da literatura italiana para a brasileira que, na verdade, é um momento importante da formação também…

Alfredo Bosi: Fico muito feliz de que você se lembre desses dados da minha formação, nomes como Vico, Gramsci, porque, pela leitura desses filósofos italianos de épocas tão diversas, o Vico, do século XVIII, e o Gramsci, do século XX, um historicista, vamos dizer, quase idealista, e o outro marxista... Essa leitura, de um lado, me mostrava a conexão muito profunda entre a literatura e a história, a literatura e os valores em geral, a literatura e a filosofia, quer dizer, é uma formação que abre sempre, que mostra sempre como a literatura exprime, representa situações que não são a literatura em si mesma. A literatura tem esse aspecto transitivo, ela vai para a sociedade. Agora, ao mesmo tempo, como professor de literatura, como crítico literário, como amante da literatura, a gente sabe que é um outro movimento. Há um movimento da literatura que sai do escritor, que vê o mundo, que vai para o mundo e que observa, e depois há um momento de interiorização. Essa tradição, que acaba em Croce [filósofo e idealista italiano (1866-1952), escreveu sobre o marxismo e se opôs ao fascismo. Durante 40 anos publicou inúmeros artigos no jornal A Crítica, fundado em 1903 por ele mesmo], mostra que não há literatura que não seja ao mesmo tempo representação da sociedade e expressão do sujeito. Ela não é meramente uma representação da sociedade, ela não é uma crônica; poderia ser, mas não é. Ela é o mundo visto por uma perspectiva e essa perspectiva é fortemente subjetiva. Então a literatura é um ato que é ao mesmo tempo social e individual. Então, nos cursos que eu dou ou no que eu escrevo, estou sempre preocupado com esse ir-e-vir. Como é, por exemplo, que Machado de Assis vê a sociedade brasileira? Ele não é um historiador da sociedade brasileira. Ele vê a sociedade brasileira, ele vê o patriarcalismo, vê o escravismo, vê aquelas assimetrias todas, mas ele interpreta isso por um certo viés, que é aquele viés cético, pessimista, moralista – moralista no sentido francês da palavra, isto é, estudioso da moral, estudioso dos costumes, estudioso do egoísmo humano–. Então Machado de Assis seria um exemplo muito vivo – infelizmente não podemos desenvolver aqui, temos que desenvolver nos cursos– de alguém que olha a sociedade, olha, vamos dizer, o que está muito perto, mas ao mesmo tempo é capaz de colocar uma lente poderosa e ver dentro de si mesmo como é que essa sociedade se perfaz. Então, esse ir-e-vir entre o objetivo e o subjetivo é que dá à literatura essa riqueza extraordinária, que eu acho que é uma riqueza que está, às vezes penso, além das ciências humanas, porque as ciências humanas, algumas delas, se desejam muito objetivas, estatisticamente objetivas. E a literatura consegue esse grau de objetividade de ver a sociedade, mas sempre mediante um perspectiva individual, por isso é que os estilos são tão diferentes.

Ivan Marques: Professor Bosi, eu gostaria de focar em um aspecto que acho muito interessante da sua obra. Por causa do seu modo dialético de pensar e de escrever, várias pessoas, vários leitores seus, identificam uma certa tensão dramática nos seus textos. Ou seja, é como se eles conciliassem duas atitudes que se opõem: de um lado, a gente tem a atitude do intérprete que, segundo o senhor, é o mediador por excelência; de outro lado, a gente tem o pensamento crítico, que é sempre agudo, é sempre polêmico, enfim, ele re-propõe as coisas de outra maneira. A mediação parece que impõe a tarefa de compreender, de “dialetizar”, de perceber o contraditório, que é um exercício muito característico seu, e ao mesmo tempo o pensamento crítico impõe a necessidade de resistir. Então, compreensão e resistência são as duas palavras- chave, digamos assim, para compreender o seu pensamento. Isso lembra, de certa forma, o compasso do conselheiro Aires, do romance [referente ao livro Memorial de Aires] do Machado de Assis, que é tão admirado pelo senhor, que é essa capacidade de se abrir para os extremos. E, naquele ensaio de que eu gosto muito, "Os estudos literários na era de extremos", há uma afirmação do senhor de que “é preciso compreender resistindo e resistir compreendendo”. Queria saber como é que o senhor vê essa dualidade, o que é que se ganha e o que se perde, digamos assim, da passagem dessa cultura de resistência para uma escrita da compreensão?

Alfredo Bosi: Bom, o que a gente chama de compreensão, que vem de uma tradição hermenêutica [metodologia que trata da compreensão humana por meio da interpretação de textos escritos] alemã, é uma atenção muito aguda ao que o texto diz. É preciso ficar muito próximo do texto, perceber quais são as suas entrelinhas, perceber qual é o seu contexto. Então acho isso fundamental. O primeiro passo do crítico literário é compreender o que está escrito, não atribuir ao que está escrito mensagens ou valores que seriam os dele, mas que podem não ser do autor, que é uma das coisas que o [Otto Maria] Carpeaux [escritor austríaco (1900-1978) que viveu por 37 anos no Brasil; foi um dos maiores críticos literários do país] fazia admiravelmente bem. Ele sabia, por exemplo, que estava lidando com um escritor que tinha até idéias reacionárias, mas que conseguiu ter uma visão abrangente da sociedade, Dostoiévski, por exemplo, então reabilitado pelos soviéticos, antes é exorcizado, depois reabilitado, porque apesar de todas as idéias conservadoras e até um certo misticismo, ele tinha um conhecimento agudíssimo da sociedade russa e conseguiu projetá-lo muito bem. Então, a compreensão é o primeiro passo e acho que direito ele acompanha o tempo todo. Agora, a resistência é um outro momento. É o momento em que o autor, o crítico, dentro de um repertório vastíssimo que ele tem diante de si, que é toda história literária, escolhe momentos da história literária, que podem ser até muito antigos. Pode ser um Vieira, pode ser um escritor do século passado, pode ser um Machado de Assis, pode ser um Raul Pompéia [abolicionista (1863-1895), foi escritor, ilustrador e jornalista. Sua principal obra foi O Ateneu. Suicidou-se aos 32 anos], pode ser um pouquinho mais próximo, um [Afonso Henriques de] Lima Barreto [(1881–1922) escritor carioca e mulato. Pré-modernista, é considerado o pioneiro do romance social, autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma e O homem que sabia javanês], evidentemente muito mais militante, pode ir chegando até nós, pode ser um [Carlos] Drummond [de Andrade], pode ser um poeta como o Murilo Mendes [poeta modernista (1901-1975), mineiro como Drummond. É dele a frase “sem esperança não surge o inesperado.” Passou os últimos anos de sua vida na Itália], o que acontece é uma escolha que ele faz. Independente da compreensão, que tem que ser global, ele pode com seu olho crítico escolher momentos em que há uma tensão contra-ideológica. Acho que isso faz um pouco parte do que a gente chamaria uma crítica da esquerda ilustrada, não uma crítica sectária, mas uma crítica que procura detectar nos autores às vezes fortes contradições, por exemplo, o trabalhinho que eu escrevi sobre [Luís Vaz de] Camões, Os Lusíadas, sobre a época da colonização. Os Lusíadas são uma exaltação absoluta das viagens de Vasco da Gama, isto é, o momento em que Portugal passa a dominar os mares. No entanto, no momento exato da partida, quando estão saindo do resteiro, quando estão saindo, o que acontece? O velho do resteiro aparece e amaldiçoa aquela viagem que vai desertar Portugal, vai transformar as mulheres em viúvas, as crianças em órfãos, enfim, vai empobrecer, como de fato empobreceu, o campo de Portugal. Era o momento de Camões colocar isso, na hora que todos estavam festejando a saída de Vasco da Gama? Ele, que é o grande poeta, mais do que um poeta que quer exaltar Portugal é o homem que tem essa sensibilidade para a contradição. Então escolhi esse texto, que está na Dialética da colonização. Poderia escolher tantos outros, para mostrar que a compreensão tem que ser global, mas os valores que nós escolhemos são valores de resistência às ideologias dominantes.

Reinaldo Azevedo: Professor, acho que poucos escritores, pensadores, críticos brasileiros conseguem fazer com tanta elegância, como o senhor consegue, a passagem, digamos, vou chamar genericamente, se estiver errado você me corrige, do marxismo e a concepção de uma visão de mundo absolutamente atenta às condições materiais de vida e da sociedade e transformar isso numa análise da cultura brasileira e da cultura contemporânea. E, ao mesmo tempo, todos sabem, o senhor é católico e profundamente católico: que eu saiba, exerce a religião...

Maria Victoria Benevides: Acima de tudo cristão.

Alfredo Bosi: Obrigado.

Reinaldo Azevedo: Como é que convivem, eu queria que você falasse um pouquinho, essa visão tão aguda da realidade brasileira e essa consciência das condicionantes materiais da vida, como diria em última instância, bom, o fundo da consciência a Deus pertence e pronto. Queria que o senhor falasse um pouquinho dessa tensão, como é que administrou isso ao longo da vida, porque a muitos essa contradição custou muito caro, né, uma dualidade que nunca se resolveu, no fim das contas. Eu queria que o senhor falasse um pouquinho a respeito.

Alfredo Bosi: Essa é a pergunta mais difícil que alguém poderia ter feito, mas agradeço que alguém tenha feito. Poderia responder assim, com certa simplicidade, dizendo o seguinte, te dando um dos filósofos que eu aprecio muito e, aliás, era um filósofo ateu agnóstico, que é Benedito Croce. Croce é um homem assim, agnóstico, não é que ele fosse ateu militante, mas tinha, vamos dizer, uma formação kantiana [relativo a Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão e catedrático da Universidade de Königsberg. Seu livro mais influente é Crítica da razão pura, no qual distinguiu o "conhecimento puro", os princípios ou juízos "a priori" necessários até mesmo para que se deem as experiências, do conhecimento empírico, cuja generalidade é suposta e relativa, no lugar de uma "universalidade verdadeira e rigorosa"] e achava que não se deve acreditar em nada que, vamos dizer, não tem alguma evidência, então ele era um agnóstico. Mas, em um certo momento, na sua juventude, final do século XIX, Croce enfrentou o marxismo, que já estava crescendo na Itália, através de [Antonio] Labriola [(1843-1904) teórico marxista, professor da Universidade de Roma cujas idéias exerceram forte influência sobre Gramsci, fundador do Partido Comunista italiano, e Benedetto Croce, fundador do Partido Liberal] e outros, no sul da Itália, o marxismo tinha muita força nesse período da formação do Croce. Ele, embora tivesse uma formação idealista, hegeliana [referente a Friedrich Hegel, filósofo idealista e dialético para quem o universo está em constante mudança. O "espírito do mundo" se encontra em níveis crescentes de consciência: indivíduo, família, comunidade, sociedade, Estado até atingir a razão absoluta.  Influenciou fortemente o materialismo dialético de Karl Marx], ele não pôde deixar, vamos dizer, de enfrentar o marxismo. Então, o que ele diz do marxismo? Ele diz que o marxismo era um excelente cânone – ele usou essa palavra – historiográfico, para analisar a história da economia dos povos, sobretudo a partir do capitalismo, a partir da formação do capitalismo, que admiravelmente Marx faz no O capital, como se formou o capitalismo. Esse é o tema de Marx e, como a gente sabe, ele mostra alguma coisa que hoje está evidente, que é a globalização mesmo, né? Ele começa dizendo algo que hoje é o pão nosso de cada dia, que é a globalização econômica, e não só econômica, mas também cultural. Então, Marx ficava nessa definição, ele não transformava o marxismo em uma filosofia global que explicasse todos os comportamentos, todas as esferas de vida, a  esfera ética, a esfera estética, a esfera dos valores, essas esferas das quais ele, como filósofo, acreditavam dizer fortemente, elas não poderiam ser explicadas e reduzidas apenas ao mecanismo econômico, embora, sem dúvida nenhuma, os mecanismos econômicos têm uma influência terrível nos comportamentos. Mas o simples fato de eu dizer que elas tem uma influência terrível é sinal de que dentro de mim há uma consciência que julga, porque senão não haveria espaço nem para julgar. Se o determinismo econômico fosse tal, que cobrisse todas as esferas da nossa vida, não haveria campo nenhum, espaço nenhum da consciência para julgar. Então o marxista, vamos dizer, ortodoxo, materialista ortodoxo, no sentido da vulgata marxista, não teria como, a não ser apelando para a dialética, que é a religião do marxismo, quer dizer, a dialética... Quando introduz na dialética a idéia que nega totalmente a que está e se produz totalmente outra coisa, acho que é um milagre divino. Um salto, bendito salto...

Reinaldo Azevedo:  Uma passagem inexplicável.

Alfredo Bosi: ...mas que o materialismo nu e cru não permitiria, porque o materialismo nu e cru é força determinante, não há como sair de lá, todos estamos acachapados sob a determinação. Então, não posso dizer-me marxista, não posso. Não seria, vamos dizer, alguma coisa de boa fé. Eu diria que Marx fez análises admiráveis da situação econômica do mundo de meados do século [XIX] e que houve discípulos admiráveis que levaram adiante, mas que o marxismo não tem uma abrangência filosófica tal, que explique todos os problemas, desde o conhecimento até os problemas, vamos dizer, de uma transcendência. Então, essa fé que não perdi – não é verdade, num sentido da história... Há um marxista do qual me aproximo muito, que é o [Ernest] Bloch [pensador judeu-alemão (1885-1977) que seguia um linha revolucionária e utópica, influenciada por Hegel e Marx], que dizia: "eu não acredito em Deus, eu não acredito em Jesus Cristo", ele dizia, "o que faz dele extraordinário". Dizia que Jesus era um ateu, porque ele diz assim: "quem me vê, vê meu pai", que é uma coisa extraordinária, no fundo, um interpretação materialista. Ele dizia o seguinte: um  homem que sabe que vai morrer, que tem todas as fragilidades do mundo e que, no entanto, se coloca como se fosse um Deus... Não é a minha posição, evidentemente, mas entendo que é essa revolução que o cristianismo trouxe e que ainda está dentro de nós, mesmo que fôssemos ateus. Existem valores que ficaram, assim, laicizados, leigos, valores de fraternidade e solidariedade, que são valores cristãos, foram assumidos pelos não-cristãos. Agora, então, não existe em mim nenhuma confusão, não sou materialista. Tenho isso muito claro, não me passo por materialista, embora essa palavra tenha um prestígio muito grande na universidade. Não sou materialista, mas aceito a teoria do marxismo, por isso é que me considero uma pessoa de esquerda, socialista. Me considero uma pessoa de esquerda, porque acho que a análise de Marx, até o momento, foi insuperável do ponto de vista das contradições econômicas do capitalismo que gerou, gera. Está aí a guerra, que é uma espécie de fruto de tudo isso.

Rinaldo Gama: São duas questões muito pontuais, que de algum modo resumem essas últimas colocações que o senhor fez. Nós falamos aqui sobre a crise, o problema que a Igreja Católica enfrenta diante, por exemplo, dos evangélicos. Isso é muito comentado, isso chama muita atenção. Mas a gente tem se preocupado pouco, me parece, com o... não digo desaparecimento, mas um certo afastamento, uma diminuição do pensamento católico na análise da conjuntura intelectual, cultural do país. O senhor é um representante, não digo solitário, seria um exagero, mas já houve momentos da nossa história em que a presença do pensamento católico foi mais forte, isso de um lado. E, por outro lado, quando o senhor diz que é preciso ter esse olhar da resistência em comparação com a compreensão, eu queria lembrar aqui também o outro aspecto que é o do estranhamento, para que o senhor chama atenção no livro O ser e o tempo da poesia, da necessidade da arte provocar aquilo que é estranho. Isso está presente não apenas na análise da poesia, parece que é uma constante em todo o seu pensamento. Seja na análise da cultura, o senhor critica a cultura da repetição, seja na análise do que um garoto deve ler na sala de aula, porque o senhor é contra esses livros paradidáticos que falam de videogames etc, em favor, evidentemente, de uma leitura de clássicos, e seja, finalmente... No caso da poesia, o senhor critica o neomaneirismo, como o senhor chama, que é aquele movimento que faz com que os autores passem a fazer a maneira dele, a maneira de Drummond. Então, na verdade, o estranhamento seria o mais importante para conduzir ao sublime na arte. Então são duas questões, o problema do pensamento católico, que está quase ausente ou muito diluído, por um lado, e por outro lado a questão do estranhamento que também vem sendo pouco cultivado no nosso meio, no mínimo literário.

Alfredo Bosi: Bom, são duas perguntas bem diferentes, vou procurar ser sintético. O que a gente chamaria de um pensamento católico realmente talvez seja um abuso de terminologia. É claro que o catolicismo, através dos séculos, acompanhou, foi uma das vozes fundamentais da cultura, pelo menos até a época das luzes [Iluminismo], até o século XVIII. A partir da época das luzes, não acredito que tenha havido um pensamento católico novo, porque realmente aí a modernidade exigia um outro tipo de linguagem que é a linguagem que continuou crescendo até hoje. De modo que o que houve, sobretudo nos anos 1950, 1960 – e no Brasil por uma forte influência francesa –, foi um desenvolvimento do que a gente poderia chamar de uma doutrina social católica ou cristã, que procurava, assim, aprofundar certos deveres que todo cristão deve ter para com o próximo e que, no caso da Igreja [Católica] brasileira, acabou pela opção pelos pobres, que acho que foi uma opção muito feliz. Então, sempre digo que para compensar a opção pelos ricos que a Igreja [fez por] tantos séculos, né... Mas, de qualquer maneira, não acredito que o pensamento católico – nesse ponto não sou católico ortodoxo– exista atualmente ou que ele deva impor-se, porque, efetivamente, há uma doutrina religiosa. Mas o que vejo hoje, nos seminários, nos meios cristãos é que se estuda um pouco de tudo, estuda-se Marx, estuda-se existencialismo, estuda-se [Martin] Heidegger, então, não há mais isso, as universidades católicas não produzem nenhum pensamento católico. E até é muito bom que seja assim, elas mostram que são o fermento da massa. Eu lamentaria que a doutrina social regredisse, acho que a doutrina social foi muito boa. Está aí padre Wilhelm [Emmanuel von Ketteler (1811-1877)], que veio ao Brasil, formou-se em economia e humanismo, enfim, os frutos foram excelentes da doutrina social, eu gostaria de que eles fossem aprofundados. E talvez agora, como a globalização, o neoliberalismo, esse pensamento esteja na defensiva. Mas é curioso, porque esse pensamento está na defensiva e esses pensamentos de esquerda também estão. Então eu vejo que a doutrina social católica hoje está junto com as doutrinas socialistas no momento de provação de defensivos. Bom, isso em relação ao pensamento em si que eu não vejo que ele exista, mas que ele tem um lado social importante que nós gostaríamos de alimentar. A segunda pergunta é muito próxima dos meus interesses de professor de literatura, eu fico muito contente que você tenha feito. Eu acho sim que os alunos devem ter, devem ser expostos, para usar uma palavra moderna, ao que de melhor a literatura produziu durante os séculos. Fiquei muito aborrecido de ver os parâmetros curriculares feitos pelo Ministério da Educação, por alguns assessores menos avisados, que seria interessante tirar a literatura do curso secundário e colocar só as linguagens, que é uma coisa assim, abstratamente, significa o quê? Não se sabe o que é, pode ser que seja tanto história em quadrinhos, que é uma linguagem muito respeitada, como pode ser o que há de pior da cultura de massa. Então veja, acho que ao contrário: o aluno deve ler. Eu dava para os meus alunos do colegial, nos anos 1960 e 1970, textos de Camões e os alunos ficavam muito entusiasmados, né? Alguns subiam até, com aquela paixão adolescente, subiam na cadeira e começavam a dizer: "eu sou o gigante Adamastor". E começavam a recitar e recitavam assim instâncias inteiras. Como? Será que era possível? É possível sim. É possível dar o que de melhor a cultura de todos os tempos produziu. As tragédias gregas têm uma beleza extraordinária, para falar de alguma coisa remotíssima no tempo. Então, o estranhamento, sem querer usar a categoria formal do estranhamento da teoria literária, significa dar ao jovem alguma coisa que normalmente ele não recebe através da cultura de massa. Tem que dar coisas absolutamente diferentes. Como dizia um grande amigo meu – diz ainda, o Flávio de Jorge –, contrariamente à pedagogia da preguiça, que acha que a gente deve dar o mínimo, ao contrário, a gente deve dar o máximo para que os alunos possam ir escolhendo e filtrando. Então se alguma atitude pedagógica válida é essa: é preciso dar o que há de melhor na cultura sem receio de parecer elitista – uma palavra completamente inoportuna, no caso, e improcedente – e dar tudo o que é de bom para que o aluno tenha, alguma vez na vida, pelo menos, a chance, a ocasião de ver o que a humanidade produziu de mais belo. Isso eu diria como resposta.

Ivan Ângelo: Gostaria de saber como o senhor vê como se articula a globalização com a colonização. Digamos, a colonização em um período histórico amplo e a globalização como um fenômeno premente, mais moderno, quer dizer, tornou-se muito maior. Então, como se articula na expressão da cultura hoje, nos meios de comunicação, nas artes tão prestigiadas...

Alfredo Bosi: Bom, do ponto de vista histórico, a globalização começa, realmente, com as grandes descobertas, as grandes conquistas, isso já é consenso. Todos os historiadores nos ensinam que a globalização começa quando aquele pequeno núcleo que era a Europa, e não toda a Europa, mais a Europa mediterrânea do que a central, essa Europa, que era o mundo até o século XV, descobre a África, descobre as Índias, descobre as Américas. Então, Colombo foi o primeiro agente da globalização. E daí por diante a coisa não parou mais. Nesse processo a colonização passa a ser uma espécie de germe ativo da globalização. E que depois a gente vai... Esse termo globalização que nós usamos hoje, um sentido quase específico que a globalização...

Ivan Ângelo: Mais eletrônico...

Alfredo Bosi: ...é, da mídia, globalização financeira, globalização do poder mesmo é uma espécie de ponto extremo que Marx disse isso admiravelmente bem em O capital, como é que o capitalismo se estende, ele não deixa nenhum espaço onde ele possa se apropriar, onde haja bens, ou bens materiais, ou pessoas, ele se apropria de tudo, ele tem uma força expansiva extraordinária. Então, a globalização hoje é mais do que a colonização. Posso usar a palavra colonização, talvez, no sentido metafórico, né. Como dizia Edgard Morin [sociólogo, antropólogo, historiador e filósofo francês, seu verdadeiro nome é Edgar Nahoum. Nasceu em 1921 e é considerado um dos maiores pensadores da atualidade - ver entrevista com Morin no Roda Viva] "agora são as almas que são colonizadas". Primeiro são os corpos, agora são as almas que são colonizadas. Por que isso? Porque a globalização não é um processo homogêneo e democrático, estamos cansados de saber, que ela tem alguns pontos... Até um professor nosso, do nosso instituto, o professor Paulo Nogueira Batista Júnior, que escreveu vários ensaios econômicos interessantes e escreveu um trabalho muito polêmico... Ele nega que haja uma globalização no sentido de uma equalização dos bens. O que existem são realmente algumas matrizes, que estão nos Estados Unidos, na Europa, no Japão, sobretudo mais nos Estados Unidos, mas não só, e essas matrizes é que espalham através de um processo de multiplicação extraordinário. Espalham palavras, imagens, valores, condutas, e estas é que passam a ser generalizadas. Então a globalização é uma globalização no sentido de centros que se espalham e que dominam. E que se isso for verdade, que a globalização não é um processo democrático em que todos mutuamente se beneficiam, mas ao contrário, é um processo que há grupos dominadores e grupos dominados, então nós teremos uma espécie de volta à colonização. Porque a colonização que era simplesmente um germe inicial, quer dizer, a Espanha, Portugal, Inglaterra, que se espalhavam, depois as potências coloniais do século XIX aderiram, a França, a Alemanha, aquela colonização que parecia ter sido superada por uma grande multiplicação de bens, de uma troca de informações, que é o que se julga que a globalização traz, ela acaba tendo características dolorosas, ela acaba tendo características de dominação.

Reinaldo Azevedo:  Há brechas para se armar, para uma resistência, para uma afirmação de culturas nacionais? O senhor é otimista a respeito disso? É possível resistir aí também?

 Alfredo Bosi: Vejo o seguinte: é um processo, assim, amplo, que precisa ser estudado mais de perto, mas, pelo menos, isso se diz, da "era dos extremos" [o século XX, que teria sido "breve", iniciando-se com a deflagração da Primeira Guerra Mundial e encerrando-se com a queda do Muro de Berlim] do [Eric] Hobsbawm [historiador inglês de orientação marxista, nascido no Egito em 1917, fez grandes estudos sobre classe social e cultura e é autor de importantes obras da história contemporânea, destacando-se a série Era das revoluções, Era do capital, Era dos impérios e Era dos extremos] que poderia ser datado, o que estamos pensando. Existem ao mesmo tempo um globalização extraordinária, do ponto de vista da mídia, e existe o renascimento das culturas locais, que pode ser bom e pode ser mau, evidentemente. Se for agressivo, se for um fundamentalismo nacionalista agressivo seria muito mau, mas se for uma volta para os problemas específicos, para os valores específicos daquela região, é muito bom, vamos aproveitar o que de melhor a tradição tem e não entregar tudo para a globalização. Então, acho que as brechas existem sim, existem brechas... Nós não estamos em um pensamento único. Quem foi ao Fórum  [Social] de Porto Alegre e viu, assim, aquelas 30 mil, 40 mil pessoas, eu tive a oportunidade de participar, vi que não dá mais para falar em pensamento único, né? Já há um pensamento único e há uma dialética desse pensamento, que está espalhada em toda parte. Agora, é uma luta desigual, isto vocês sabem: que é uma luta desigual. Mas é uma luta.

Maria Victoria Benevides: É uma luta e o senhor falou tanto aqui em culturas, uma pergunta curtinha. É impossível ignorar que nós estamos em um período quentíssimo de disputa eleitoral. E há algo que tem sido muito repetido é que é preciso ser doutor, ter preparo, ter estudo, ter um diploma para ser governante. O que o senhor acha disso? O senhor que fala da variedade das culturas e de ser contra um pensamento único...

Alfredo Bosi: É. O mito do doutor é realmente uma das heranças que temos, heranças coloniais, alguns acham heranças ibéricas, dos títulos, nós estamos engolfados nisso. Agora que vim para cá, conduzido por um motorista muito inteligente aqui do Canal 2, Sr. Alves, ele me disse: "Professor, quando querem tirar alguma coisa de mim na prefeitura, me chamam de doutor". Então, ele diz: "Fico muito lisonjeado, porque sou chamado de doutor e, para ser chamado de doutor, basta estar de terno e gravata para que a gente se distinga e seja chamado de doutor". Então, realmente existe isso, isso está muito interiorizado, não só nas elites, mas também no que a gente chama de "povão". Realmente, acredita-se no doutor, que é o contrário do mestre. Porque o mestre, o povo mais tradicional, acha que um carpinteiro é um mestre, que um oficial é um mestre, que há uma maestro que toca música, então existe a idéia do mestre, que, de alguma maneira, tem uma origem na autoridade, na autoridade, vamos dizer, de uma competência junto à comunidade. E o doutor, não, o doutor se afasta da comunidade, ele ganhou o título, sobretudo, ganhou o anel com uma determinada pedra preciosa, dependendo da cor da sua profissão. E tudo isso é um elemento de afastamento, que significa a continuidade de uma sociedade muito autoritária. Acho que nós, que somos da Universidade de São Paulo, e conquistamos o título de doutor por nossas teses, devemos distribuir, devolver a nossa sociedade a idéia de que o doutor seria o homem da competência, e não o homem, vamos dizer, que tem que ter poder porque é doutor. "É bom aquele saber só de experiências feito" - que diz Camões. Saber só de experiências feito. Que esse nos governe!

Maria Victoria Benevides: Que bom.

Paulo Markun: Professor Bosi, muito obrigado pela sua entrevista. Muito obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. E nós voltamos na próxima segunda-feira com mais um Roda Viva. Uma ótima semana e até segunda.
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