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Paulo Markun: Boa noite. O Roda Viva nos traz hoje um dos mais importantes estudiosos da cultura e da produção literária no Brasil. É o professor Alfredo Bosi, titular de literatura brasileira da Universidade de São Paulo, que pode se tornar o mais novo membro da Academia Brasileira de Letras. O professor Bosi nos concedeu entrevista em agosto e agora, em setembro, lançou-se candidato à vaga deixada na ABL por Dom Lucas de Moreira Neves, falecido recentemente.
Paulo Markun: Para entrevistar o professor Alfredo Bosi, nós convidamos: Augusto Massi, poeta e professor de literatura brasileira da USP, a Universidade de São Paulo; Ivan Ângelo, escritor e colunista do Jornal da Tarde; Maria Victoria Benevides, professora da Faculdade de Educação e diretora da Escola de Governo da USP; Rinaldo Gama, editor executivo do Caderno de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles; Reinaldo Azevedo, diretor de redação do site da revista Primeira Leitura, e Ivan Marques, jornalista, editor-chefe do programa Metrópolis, aqui da TV Cultura, e doutorando em literatura brasileira pela USP. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Hoje o programa não permite a participação do telespectador porque está sendo gravado. Boa noite professor Bosi.
Alfredo Bosi: Boa noite.
Paulo Markun: Dizem que no princípio era o verbo e, no começo, a principal missão que Deus concedeu ao homem, segundo a Bíblia e segundo o texto que está no escrito do senhor, foi de dar nome às coisas. Eu queria que o senhor começasse dando o nome às coisas que nós estamos vivendo hoje no Brasil. Que situação é essa em que nós estamos, em que a própria faculdade onde o senhor se formou, está em greve, porque não tem professor e, no momento em que nós estamos gravando o programa, que será exibido posteriormente, a Universidade Federal do Rio de Janeiro não tem energia elétrica, porque foi cortada pela Light [distribuidora de energia elétrica da cidade do Rio de Janeiro] por falta de pagamento.
Alfredo Bosi: Boa noite a todos. Essa situação específica da universidade tem raízes em um certo abandono que a universidade sofreu, sobretudo as universidades federais durante largos anos. Não se trata, vamos dizer, de uma política deliberada de amesquinhar as universidades. Trata-se de uma visão, um conjunto de formas de pensamento pelas quais o Estado deveria exonerar-se de uma série de responsabilidades que lhe são atribuídas pela Constituição e que vêm, vamos dizer, pelo menos desde os anos 30, sendo o foco da responsabilidade pública. No entanto, por uma série de circunstâncias, algumas econômicas, outras especificamente ideológicas, vem sendo criado um pensamento, ao qual nós resistimos de uma maneira bem veemente, segundo o qual a universidade teria que procurar os seus próprios recursos fora do Estado e essa universidade é cara, elitista, ineficiente, enfim, uma série de mitos que foram desmentidos pelos estudiosos. A Universidade de São Paulo publicou um trabalho – que espero que esteja ao alcance de todos– que se chama A presença da universidade pública brasileira, em que se mostra a extrema importância da pesquisa, da pós-graduação, das universidades públicas e também dos próprios provões.Todos esses instrumentos de avaliação que o governo federal implantou nos últimos cinco, seis anos acabaram dizendo aquilo que todos nós já sabíamos ou suspeitávamos: as melhores universidades brasileiras, as universidades que mais produzem são as universidades públicas. Para dar apenas um dado e não me alongar muito nesse particular, quando foi feito o levantamento das 12 melhores universidades brasileiras, dez são universidades públicas e duas universidades particulares, quer dizer, a gente não vê com demérito as universidades particulares muito boas. Mas, no conjunto, evidentemente, a universidade pública é aquela que está produzindo, de modo que é preciso mudar um pouco a cabeça daqueles que gerem os recursos das universidades públicas e mostrar o quanto elas têm uma função dentro da pesquisa, da vida nacional, da formação de profissionais e o quanto realmente têm respondido àquilo que se lhes dá através das alocações de recursos. Então, quando acredito que seja muito uma questão de cultura profunda, portanto, de valores, quando realmente se aceitar que a universidade brasileira é a grande matriz da pesquisa, a matriz da tecnologia e que, portanto, matriz do ensino e, portanto, ela deve ser inteiramente sustentada e não pró-avaliada. As avaliações têm que vir depois de um projeto longo, faça o projeto e depois se avalia. O governo, infelizmente... como aqui não analiso a boa vontade das pessoas, aqui não está em jogo a competência ou a boa vontade das pessoas que estão ligadas aos ministérios, mas pense o contrário. Pense que é preciso primeiro avaliar e, evidentemente, castigar e punir quem não está bem e depois investir. É exatamente o contrário que se deve fazer. Deve-se dar todos os elementos possíveis e, depois de algum tempo, verificar se as universidades estão correspondendo ou não àquilo que lhes foi dado.
Alfredo Bosi: Sim. Praticamente o que houve foi uma substituição muito irregular das aposentadorias. Quando se criou, vamos dizer, aquele clima de terrorismo, segundo o qual a pessoa deveria aposentar-se senão perderia uma série de direitos, houve um número muito alto de aposentadorias, particularmente na minha faculdade, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Então o que acontece? Muitos cursos ficaram assim: desertados, desamparados. Não houve uma substituição sistemática, porque quando há uma aposentadoria o recurso reverte para a universidade, não fica alocado naquele mesmo curso onde...
Alfredo Bosi: Não diria isso, acho que há muitos formandos, muitos mestrandos e doutorandos que teriam preparo e teriam interesse em assumir. Só que, não havendo concursos, não havendo as possibilidades, eles foram e vão alimentar cursos das faculdades particulares. O que não é um mal, quer dizer, na medida em que a Faculdade de Filosofia – falo da minha faculdade– está produzindo mestres e doutores competentes, é muito bom que eles sejam os professores. Aliás, numa estatística feita aí parece que 80% dos professores das faculdades particulares são formados pela Universidade de São Paulo.
Rinaldo Gama: A propósito, professor, só completando o raciocínio do Reinaldo, a Folha [jornal Folha de S. Paulo] veio a publicar um balanço das propostas dos principais candidatos à Presidência da República para a área da cultura. Como o senhor, que estudou a presença da cultura nas instituições brasileiras, vê a inclinação que esses candidatos apresentam, que é de haver uma presença maior do Estado diretamente na cultura, inclusive com essa aproximação maior, esse entendimento da cultura como educação?
Reinaldo Azevedo: Queria fazer um parênteses sem que o senhor perca de vista a pergunta do Rinaldo, aí há uma polêmica... E não vou fazer a defesa de um ponto de vista, só queria ouvi-lo a respeito dos 40 mil alunos da USP, é isso? Não sei quantos, mas uma boa parcela – e sem que se mexa na lei que está aí– das fontes de recursos, uma parcela poderia pagar a universidade, segundo os critérios de renda. E, talvez, se estivesse fazendo justiça social à medida que não há uma obrigatoriedade posterior do aluno formado na USP, por exemplo... Então o sujeito vai lá e se forma em odontologia. Com alguma freqüência, o pai dele já é dentista, já tem consultório; o pai é dentista, o filho se forma dentista com recursos públicos e vai atender a classe média e à classe média alta. Não há nem mesmo a obrigatoriedade de ele devolver para a sociedade, durante um ou dois anos, não sei, uma espécie de serviço civil obrigatório, para compensar a formação que teve. Não há uma obrigação de ele prestar nenhuma forma de assistência social. Chamo a atenção para uma outra perversidade dentro do modelo. Uma boa parcela dos alunos de letras – fui estudante de letras da USP – tem pais pobres ou analfabetos, quando não as duas coisas. Uma boa parcela dos alunos de engenharia, odontologia, medicina tem pais universitários, no mais das vezes formados também no curso que o filho está fazendo. Pergunto: não há aí um mecanismo de apropriação de renda, na medida em que se garante a gratuidade total a esses cursos, sem que se verifique, que se faça um estudo, que se crie um critério, uma peneira, para que aqueles que podem pagar possam pagar e aumentar volume de recursos para a universidade? Independentemente de se manter a universidade pública como está, com as fontes de recursos que tem hoje, se possível ampliá-los, mas se tentar de alguma forma que a sociedade receba de volta aquilo que ela investe também, na forma de serviços ou na forma de pagamento?
Alfredo Bosi: Bom, você coloca um problema grande, mas há um raciocínio paralelo a esse que você está fazendo. Acho que a gente deveria aproveitar o nosso tempo aqui para reconstrui-lo. Nesse trabalho, que tive a oportunidade de coordenar, sobre a presença da universidade pública no Brasil – trabalho que nos foi, aliás, encomendado pelo reitor [Jacques] Marcovitch [formado em administração, já foi pró-reitor de Cultura, diretor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, diretor do Instituto de Estudos Avançados e, de 1997 até 2001, reitor da Universidade de São Paulo], anterior ao atual, e fizemos em torno do ano 2000– houve também o cuidado de fazer uma análise da procedência dos alunos que nos chegam. Então, verificou-se que, de fato, nós não temos alunos dos dois extremos, né? Não temos alunos extremamente ricos, que estudaram nas escolas particulares; esses são só uma parcela da USP, pelo menos não um número significativo. E também não temos os alunos chamados de pobres, que nunca entrariam na USP, mesmo porque o nosso sistema secundário – que é um ponto ao qual gostaria de voltar mais tarde – está sendo tão inoperante, que os alunos que saem do sistema secundário oficial praticamente não têm chances de entrar na universidade. Bom, mas então o que fica entre os dois extremos? É uma vasta classe média com todo o gradiente que existe na classe média. Acho que nós estamos atendendo a essa classe média com os vários gradientes. Também sei que há diferenças setoriais, as faculdades que exigem um alto nível de preparo e um cursinho também, vamos dizer de reforço, essas faculdades com fortes notas de corte têm alunos que acho que são de classe média e média-alta sem dúvida nenhuma. E as faculdades de letras e as humanísticas tem os alunos, em geral, de classe média baixa. Mas, de toda maneira, a idéia de que os ricos, os milionários estão se beneficiando da USP, acho que pode levar a uma certa distorção, porque é a classe média que está usando a USP.
Reinaldo Azevedo: Os milionários estudam fora do país...
Rinaldo Gama: O senhor é mais ou menos favorável a esse modelo de hoje, que é uma intervenção, quer dizer, é uma participação mais indireta...
Paulo Markun: Professor, vamos fazer um rápido intervalo e a gente volta logo depois do intervalo com a entrevista do professor Alfredo Bosi.
[intervalo]
Alfredo Bosi: O posfácio, escrito agora, em 2000, nessa última edição, visa principalmente a dar uma síntese, talvez mais específica, do texto todo do livro, né? O livro trata de assuntos muito diferenciados, desde [José de] Anchieta [padre jesuíta (1534-1597) que chegou ao Brasil em 1553, participou da fundação do Colégio da Vila de São Paulo de Piratininga, onde também foi professor. Escreveu cartas, sermões, poesias, a gramática da língua tupi e peças de teatro] e Vieira até a cultura contemporânea, de modo que ele pode desnortear um pouquinho o leitor. Então senti a necessidade de fazer uma síntese dos pontos fundamentais do livro. Nesse sentido, o posfácio tem uma função esclarecedora. Mas há algo, vamos dizer, diferente, que é o problema das relações entre as culturas. Um dos capítulos finais levanta as três grandes formas de cultura do Brasil. A minha idéia é a de que não existe uma cultura brasileira, com esse nome "cultura brasileira", é muito homogêneo, então já vem de longe que é preciso diferenciar a cultura popular, a cultura de massas e a cultura erudita, pelo menos por aí. O que é pouco, ainda, porque quando se fala até em indústria cultural, há vários níveis, né, questão, afinal, aqui está o Canal 2 [número do canal da TV Cultura em São Paulo] para mostrar. E quando se fala em cultura popular também nós temos extremos que vão desde a cultura indígena, a cultura afro a outras formas muito próximas da cultura de massa. E também a cultura, chamada a cultura universitária, ou cultura erudita, ela está cada vez mais, vamos dizer, embebida da indústria cultural e procura entender a cultura popular. Então, achei que o quadro aqui escrito precisava ser, assim, mais matizado, e que havia, vamos dizer, movimentos diferentes dentro da cultura brasileira, que mostram interações muito íntimas entre as várias culturas que inicialmente, didaticamente pareciam três campos assim diferenciais. Então, nesse último livro escrito, embora haja uma série de outras coisas a dizer, uma delas, que acho muito impressionante, é que quando eu separava a cultura popular... A cultura popular tem um fundo religioso, evidente, em toda cultura popular tem elementos emocionais fortíssimos, isso no Brasil, na América Latina, é alguma coisa que salta à vista. Então poderia ficar parecendo que essa cultura popular que tem manifestações religiosas, não teria nada a ver, por exemplo, com a indústria cultural. Isso não é verdade. Quer dizer, se eu continuasse a pensar assim, estaria tendo uma visão distorcida, porque percebi, nos últimos dez anos, por exemplo, no fenômeno das seitas um fenômeno absolutamente extraordinário, que ainda está exigindo uma sociologia dos valores para serem entendidos, porque está em um crescimento notável em toda a América Latina. Não só na América Latina, mas aqui a nossa periferia deveria ser um campo de observação extraordinário. Esse fenômeno das seitas será popular apenas, no sentido, vamos dizer, quase folclórico da palavra? Ou ele tem uma relação muito profunda com a indústria cultural, com uma cultura de massas? Então a gente vê, às vezes, uma exploração que essas seitas fazem através de canais de televisão, que são indústria cultural. Então, eis um exemplo assim, entre outros, de que hoje em dia essas culturas não existem em estado puro; elas podem ter valores populares arcaicos, mas usam instrumentos extremamente modernos, o que é uma coisa muito característica dos nossos tempos pós-modernos. Essa fusão de elementos até instintivos, elementos arcaicos e formas de instrumentos que são extremamente requintados, porque usam a televisão, usam os meios eletrônicos. Então, aí há uma diferença. E uma outra diferença também é que a cultura erudita também se vale bastante, cada vez mais, da indústria cultural. Nós sabemos o quanto alguns autores de talento médio, para usar uma palavra amena, autores que não estariam nunca classificados na literatura como tal, mas em outros campos, graças a uma propaganda maciça, né – e realmente há estímulos que eles lançam em toda parte –, passam a ser considerados autores da cultura erudita.
Alfredo Bosi: Também.
Alfredo Bosi: Bom, a idéia que o homem do interior, o homem rural seja mais violento...
Alfredo Bosi: Sim. Mas, de qualquer maneira, nós não estamos hoje em um grau de violência urbana maior do que no mundo rural, então eu acho que deveríamos começar analisando as causas dessa violência, por que há essa violência no mundo hoje e por que esse homem que chegou, vamos dizer, desamparado do interior continuou desamparado na cidade. Desamparado de maneira diferente, porque lá, de alguma maneira, ele estava ou ligado ao coronelismo ou então pertencia a uma facção que o defendia ou o atacava. Passando para a cidade, ele entra no caos, não há realmente... ele realmente não tem nenhum amparo, certamente a polícia não tem dado aquele amparo que nós desejaríamos, os aparelhos do Estado são frágeis nesse sentido, então a violência acaba sendo até internalizada, ele mesmo se defende. Precisaria identificar, realmente, qual é o grau dessa violência e se ela tem relação com o fato de ele vir do mundo rural, que seria, vamos dizer, quase genética – ele veio daquele mundo onde se resolviam as coisas, vamos dizer, pela vendetta [vingança em italiano], né?– ou se a violência urbana que existe nas periferias não é um fenômeno específico, realmente de absoluto abandono, é uma vida miserável, então o que ocorre é que há essas reações individuais por falta até de uma comunidade. Agora, a idéia de comunidade é que me parece que pode servir de gancho à sua segunda pergunta: esse homem totalmente isolado, às vezes desempregado, onde ele vai encontrar, então, um grupo que o ampare? Nessas seitas, ficando membro de religiões, né? Quando uso palavra "seitas" é por causa da sedimentação que apresentam, não há nenhum sentido pejorativo. Chamemos religiões, então, se for o caso. Mas, enfim, esses grupos todos o amparam – e o amparam de fato–. Eu pergunto... Sou um frequentador das periferias, sempre, desde o final dos anos 60, começo dos anos 70, estive muito ligado às comunidades de base, tenho uma admiração enorme por um padre operário chamado Domingos Barbé [formador da Pastoral Operária de São Paulo e um dos primeiros assessores de Comunidades Eclesiais de Base. No livro Graça e poder, elabora as razões da necessidade de a luta social brasileira seguir os princípios da não-violência ativa], que foi realmente um dos gurus da minha vida extra-universitária, em Osasco. Ele mostrou claramente o quanto se pode fazer nas comunidades da periferia e vi realmente que a presença da Igreja Católica naquela época foi definitiva, foi marcante, porque unia as pessoas. Aquilo que estava desamparado, estava desgarrado passava a ter nas igrejas, nos grupos de família, nos grupos de mães, enfim, existem várias possibilidades de socialização e passavam a ter uma humanização que foi a base, depois, da defesa dos direitos humanos, né, que hoje está fora das igrejas, nos vários partidos políticos, que, de alguma maneira, passaram a ter vigência nesses últimos... Não importa, houve um fermento na massa. Era uma ação civilizadora no melhor sentido da palavra. E não era uma ação regressiva, no sentido de atribuir a forças demoníacas o mal que estava lá; muito pelo contrário, procurava-se mostrar o quanto as forças sociais e econômicas do capitalismo... Então pude atravessar anos a fio alguma coisa que me fez crescer muito, que a universidade não deu nesse ponto. Foi realmente na militância junto a esses grupos que pude perceber o quanto é possível fazer crescer uma comunidade, vamos dizer, através das lutas locais. Pode ser luta pela água, luta pelo esgoto, luta pela urbanização, luta pela escola, essas lutas é que em pouco tempo fazem crescer extremamente o grupo. E se transformam em massa, massa em grupo humano, em sociedade, em povo no melhor sentido da palavra. Nisso eu acredito ainda. Quanto ao fenômeno da demonização, eu chamaria de regressivo, né? Não quero dizer que o demônio não exista, mas, enfim... Mas digamos que não seja por aí, "no creo en brujas, pero que las hay, hay" [não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem]. O problema da demonização, a idéia de que os males que uma sociedade está vivendo são demoníacos eu vejo, infelizmente, muito espalhada nessas seitas fundamentalistas. É muito curioso, porque isso a gente teve no catolicismo medieval, no catolicismo até pelo menos do século XVII. Na Inquisição, o demônio estava presente, a gente vê as obras do [padre Antonio] Vieira, do [Manuel] Bernardes [padre português (1644-1710) que passou a maior parte da sua vida entre a meditação e a redação de seus livros na cela da Congregação do Oratório até perder a vista e a lucidez dois anos antes de morrer], dos escritores do século XVII: qualquer luzinha que aparece à noite é o demônio. É muito interessante, grandes clássicos nossos têm uma presença muito viva do demônio. Não sei o que aconteceu, que o demônio foi perdendo um pouco a ocupação dentro da Igreja Católica e essas igrejas fundamentalistas populares voltaram fortemente a uma separação entre o que é demoníaco e o que não é. Acho isso de um ponto de vista – não preciso nem dizer– racionalista. Mas, do ponto de vista da humanização, acho uma regressão muito forte. E aí tenho que lamentar que as periferias tenham sido tomadas, a maioria delas, por esse tipo de religiosidade que é o oposto daquilo que a Igreja Católica progressista preconizava, isto é, como faz ainda no mundo rural, como faz na causa dos índios, isto é, que o povo assuma o seu futuro, que entre pela cidadania, diretamente na política, quer dizer, essa função modernizadora no melhor sentido. Hoje a gente está tendo medo de usar a palavra moderno, mas essa função civilizadora no melhor sentido estava sendo apanágio de uma facção importante da Igreja Católica. Realmente, na situação atual, pelo menos nas periferias das grandes cidades, essa força ficou... se não regrediu, ficou assim, estacionária.
Alfredo Bosi: Acho que não sou uma pessoa capaz de responder a isso... Se soubesse responder isso, eu responderia até as outras perguntas, não é verdade... Mas, como professor de literatura, o demônio, acho que o Guimarães Rosa procurou colocá-lo e depois o tirou da obra dele na literatura [em Grande sertão: veredas, Riobaldo, o protagonista, depois de fazer um pacto com o diabo busca mostrar que ele não existe: "Deus é definitivo, o demo é o contrário Dele..."]... O demônio é muito interessante, de qualquer maneira. Mesmo que não exista, acho que na literatura ele tem uma função muito importante, veja Guimarães Rosa. Mas vamos deixar o demônio em paz. Volto um pouquinho para completar a pergunta do Ivan Ângelo, acho que essas são tendências que a gente vê, assim, estarrecido: como é que os chamados fundamentalismos – falo desses no Brasil, não quero falar de outros que estão espalhados pelo mundo todo–... como é que eles tomaram conta de um vazio que vem basicamente dessa anomia [situação onde faltam coesão e ordem] da sociedade de massas, que a igreja e alguns partidos, não é só a Igreja Católica, evidentemente, existem outras, cito porque foi levantado por você. Mas outros grupos cumprem de alguma maneira humanizar ou civilizar. Mas vejo que essa... como é que podemos dizer? Esse desequilíbrio profundo da civilização brasileira, em que há grandes bolsões de miséria, migrações intensas, favorece a procura de um apoio nessas seitas que, sem dúvida nenhuma, também dão apoio material. Perguntei a algumas pessoas por que saíram da Igreja Católica e entraram na Universal [Igreja Universal do Reino de Deus, fundada no Brasil em 1977 por Edir Macedo] e outras, elas disseram: "porque nós fomos amparados, porque as pessoas nos deram condições e ajudaram a gente a fazer a nossa casa". Quer dizer, há alguma troca nisso. De alguma maneira, eles recebem algum apoio e é aquilo que acaba explicando o crescimento preocupante dessas seitas.
Alfredo Bosi: Agradeço essas palavras generosas, Maria Victoria, você que é reconhecida nossa companheira de tantos anos pelas mesmas lutas... Em primeiro lugar, concordo e lastimo – mas realmente não basta você lastimar, é preciso lutar–... concordo com essa idéia de que a expressão direitos humanos foi extraordinariamente distorcida junto até a cultura popular. Fico muito preocupado com isso, com essa história de como reverter isso. Porque muitas vezes a gente está no táxi, conversando com o motorista, e alguma coisa acontece, ele fala: "o culpado são os direitos humanos". Ele diz essa expressão e a gente fica estarrecido, porque evidentemente ela é tão contraditória, né? "O culpado são os direitos humanos". E, com isso, ele quer dizer que a culpabilidade vem de uma benevolência extrema para com os bandidos, os assassinos, e que essa benevolência, então, é que estaria produzindo a impunidade. Quer dizer, o sentimento que a pessoa simples tem é puro, quer dizer, a expressão é errônea. Mas vem de dentro, de uma indignação. Quer dizer, nós estamos assim, como ele diz, "nós estamos dentro das nossas casas presos", como eles dizem, "e os bandidos estão fora, e ainda por cima os direitos humanos os protegem". A gente entende bem, precisamos entender bem quais são as motivações para poder, vamos dizer, ir ao fundo do problema. Então, em primeiro lugar houve essa distorção e essa distorção, como você sabe, foi feita através dos programas de rádio. Existiam dois ou três políticos radiofônicos, que usavam constantemente essa expressão contra o trabalho da comissão dos direitos humanos e contra todo o trabalho, pelo menos, desde o começo dos anos 70. Você acompanhou tudo isso muito de perto, a Comissão dos Direitos Humanos, instalada por Dom Paulo Evaristo [Arns], e que realmente tinha...
Alfredo Bosi: Comissão de Justiça e Paz, a que nós pertencemos... Então essa relação direta com a repressão... quer dizer, se quisermos fazer a história do termo "direitos humanos", da expressão direitos humanos, pelo menos a partir de uma certa data, como é que eles generalizaram? Vem da ação da arquidiocese, sem dúvida nenhuma, das visitas aos presos políticos e toda uma movimentação jurídica para dar um apoio a essas ações e, de alguma maneira, minimizar o que estava acontecendo nas cadeias políticas, digamos assim, a memória deve ser reavivada do que aconteceu no final dos anos 60 e ao longo dos anos 70. Então a expressão dos direitos humanos está muito próxima disso. É claro, como você diz muito bem, que ela deveria ser generalizada. Vejo o trabalho da Comissão Justiça e Paz, vejo dentro do Instituto de Estudos Avançados, que eu tive a honra de dirigir durante alguns anos, a criação de uma cátedra para a educação dos direitos humanos, que está atualmente sendo regida pelo professor [Dalmo] Dallari [professor aposentado da Faculdade de Direito da USP] e tem uma finalidade a que a Faculdade de Educação responde de uma maneira muito feliz: preparar uma espécie de vasto "segundo escalão". É claro que há os grandes intelectuais que escreveram sobre isso recentemente, o professor [Fábio Konder] Comparato [também professor aposentado da Faculdade de Direito da USP] escreveu um livro extraordinário sobre a história dos direitos humanos, enfim, há os intelectuais que já se posicionaram e que tem, vamos dizer, um lastro cultural que nos ajuda a pensar o que são os direitos humanos, de todos os setores, não só setores formais, mas também setores substanciais. Mas aquilo que me engajou durante muitos anos – espero que ainda tenha força para continuar me engajando – é a preparação, junto aos jovens, de uma faculdade de direito, de uma faculdade de educação, de uma faculdade humanística e, por que não, nas faculdades técnicas também, esses jovens que vão ser os multiplicadores. Porque o que está faltando é justamente essa função intermédia para que de alguma maneira as pessoas que estão na base comecem a internalizar a idéia de que direitos humanos são fundamentais, não só, mas sobretudo que essa expressão seja uma expressão que apague esse elemento negativo. Então concordo plenamente com o que você disse e acho que uma das táticas da luta é a formação desses grupos intermediários, ou seja, que a faculdade de educação está nos ajudando para isso.
Maria Victoria Benevides: E a faculdade de direito também? Curso de direitos humanos para profissionais do direito?
Paulo Markun: Professor, nós vamos fazer mais um rápido intervalo e a gente volta já, já.
Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva essa noite entrevistando o escritor e professor titular de literatura brasileira da USP Alfredo Bosi. Infelizmente, o programa não permite a participação do telespectador, porque está sendo gravado. A pergunta é de Augusto Massi.
Augusto Massi: Bom, eu gostaria de encaminhar um pouco para a literatura, não como um pólo que seria oposto ao que tem sido até agora comentado e discutido aqui, mas exatamente tentando pensar essa relação. Como um homem, supostamente de letras, vem participar de um programa como o Roda Viva, em que boa parte das perguntas são direcionadas mais para uma dimensão intelectual, política, educacional, questões bastante amplas... A idéia que a gente tem é que a literatura cada vez mais perde espaço na sociedade e não acompanha essa indústria cultural. Vejo que, pela formação, que é exatamente o ponto que queria que o senhor comentasse, até de pensadores como [Giambattista] Vico [filósofo italiano (1668-1744) para quem a história é cíclica e a fala é mais que a representação verbal do mundo: é a expressão de um poder inventivo. Foi professor de retórica da Universidade de Nápoles, mas tinha saúde precária e viveu em condições de pobreza. Seu trabalho só ganhou maior repercussão no século XIX], [Antonio] Gramsci, que vem de uma tradição italiana... Como o senhor realizou essa passagem? Não sei se é uma passagem, inteiramente, mas como o senhor foi incorporando a literatura para poder abrir para essa questão mais ampla, que eu diria que é o debate das idéias, não ser somente um crítico literário.
Rinaldo Gama: E a passagem da literatura italiana para a brasileira que, na verdade, é um momento importante da formação também…
Ivan Marques: Professor Bosi, eu gostaria de focar em um aspecto que acho muito interessante da sua obra. Por causa do seu modo dialético de pensar e de escrever, várias pessoas, vários leitores seus, identificam uma certa tensão dramática nos seus textos. Ou seja, é como se eles conciliassem duas atitudes que se opõem: de um lado, a gente tem a atitude do intérprete que, segundo o senhor, é o mediador por excelência; de outro lado, a gente tem o pensamento crítico, que é sempre agudo, é sempre polêmico, enfim, ele re-propõe as coisas de outra maneira. A mediação parece que impõe a tarefa de compreender, de “dialetizar”, de perceber o contraditório, que é um exercício muito característico seu, e ao mesmo tempo o pensamento crítico impõe a necessidade de resistir. Então, compreensão e resistência são as duas palavras- chave, digamos assim, para compreender o seu pensamento. Isso lembra, de certa forma, o compasso do conselheiro Aires, do romance [referente ao livro Memorial de Aires] do Machado de Assis, que é tão admirado pelo senhor, que é essa capacidade de se abrir para os extremos. E, naquele ensaio de que eu gosto muito, "Os estudos literários na era de extremos", há uma afirmação do senhor de que “é preciso compreender resistindo e resistir compreendendo”. Queria saber como é que o senhor vê essa dualidade, o que é que se ganha e o que se perde, digamos assim, da passagem dessa cultura de resistência para uma escrita da compreensão?
Alfredo Bosi: Bom, o que a gente chama de compreensão, que vem de uma tradição hermenêutica [metodologia que trata da compreensão humana por meio da interpretação de textos escritos] alemã, é uma atenção muito aguda ao que o texto diz. É preciso ficar muito próximo do texto, perceber quais são as suas entrelinhas, perceber qual é o seu contexto. Então acho isso fundamental. O primeiro passo do crítico literário é compreender o que está escrito, não atribuir ao que está escrito mensagens ou valores que seriam os dele, mas que podem não ser do autor, que é uma das coisas que o [Otto Maria] Carpeaux [escritor austríaco (1900-1978) que viveu por 37 anos no Brasil; foi um dos maiores críticos literários do país] fazia admiravelmente bem. Ele sabia, por exemplo, que estava lidando com um escritor que tinha até idéias reacionárias, mas que conseguiu ter uma visão abrangente da sociedade, Dostoiévski, por exemplo, então reabilitado pelos soviéticos, antes é exorcizado, depois reabilitado, porque apesar de todas as idéias conservadoras e até um certo misticismo, ele tinha um conhecimento agudíssimo da sociedade russa e conseguiu projetá-lo muito bem. Então, a compreensão é o primeiro passo e acho que direito ele acompanha o tempo todo. Agora, a resistência é um outro momento. É o momento em que o autor, o crítico, dentro de um repertório vastíssimo que ele tem diante de si, que é toda história literária, escolhe momentos da história literária, que podem ser até muito antigos. Pode ser um Vieira, pode ser um escritor do século passado, pode ser um Machado de Assis, pode ser um Raul Pompéia [abolicionista (1863-1895), foi escritor, ilustrador e jornalista. Sua principal obra foi O Ateneu. Suicidou-se aos 32 anos], pode ser um pouquinho mais próximo, um [Afonso Henriques de] Lima Barreto [(1881–1922) escritor carioca e mulato. Pré-modernista, é considerado o pioneiro do romance social, autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma e O homem que sabia javanês], evidentemente muito mais militante, pode ir chegando até nós, pode ser um [Carlos] Drummond [de Andrade], pode ser um poeta como o Murilo Mendes [poeta modernista (1901-1975), mineiro como Drummond. É dele a frase “sem esperança não surge o inesperado.” Passou os últimos anos de sua vida na Itália], o que acontece é uma escolha que ele faz. Independente da compreensão, que tem que ser global, ele pode com seu olho crítico escolher momentos em que há uma tensão contra-ideológica. Acho que isso faz um pouco parte do que a gente chamaria uma crítica da esquerda ilustrada, não uma crítica sectária, mas uma crítica que procura detectar nos autores às vezes fortes contradições, por exemplo, o trabalhinho que eu escrevi sobre [Luís Vaz de] Camões, Os Lusíadas, sobre a época da colonização. Os Lusíadas são uma exaltação absoluta das viagens de Vasco da Gama, isto é, o momento em que Portugal passa a dominar os mares. No entanto, no momento exato da partida, quando estão saindo do resteiro, quando estão saindo, o que acontece? O velho do resteiro aparece e amaldiçoa aquela viagem que vai desertar Portugal, vai transformar as mulheres em viúvas, as crianças em órfãos, enfim, vai empobrecer, como de fato empobreceu, o campo de Portugal. Era o momento de Camões colocar isso, na hora que todos estavam festejando a saída de Vasco da Gama? Ele, que é o grande poeta, mais do que um poeta que quer exaltar Portugal é o homem que tem essa sensibilidade para a contradição. Então escolhi esse texto, que está na Dialética da colonização. Poderia escolher tantos outros, para mostrar que a compreensão tem que ser global, mas os valores que nós escolhemos são valores de resistência às ideologias dominantes.
Reinaldo Azevedo: Professor, acho que poucos escritores, pensadores, críticos brasileiros conseguem fazer com tanta elegância, como o senhor consegue, a passagem, digamos, vou chamar genericamente, se estiver errado você me corrige, do marxismo e a concepção de uma visão de mundo absolutamente atenta às condições materiais de vida e da sociedade e transformar isso numa análise da cultura brasileira e da cultura contemporânea. E, ao mesmo tempo, todos sabem, o senhor é católico e profundamente católico: que eu saiba, exerce a religião...
Maria Victoria Benevides: Acima de tudo cristão.
Reinaldo Azevedo: Como é que convivem, eu queria que você falasse um pouquinho, essa visão tão aguda da realidade brasileira e essa consciência das condicionantes materiais da vida, como diria em última instância, bom, o fundo da consciência a Deus pertence e pronto. Queria que o senhor falasse um pouquinho dessa tensão, como é que administrou isso ao longo da vida, porque a muitos essa contradição custou muito caro, né, uma dualidade que nunca se resolveu, no fim das contas. Eu queria que o senhor falasse um pouquinho a respeito.
Reinaldo Azevedo: Uma passagem inexplicável.
Alfredo Bosi: ...mas que o materialismo nu e cru não permitiria, porque o materialismo nu e cru é força determinante, não há como sair de lá, todos estamos acachapados sob a determinação. Então, não posso dizer-me marxista, não posso. Não seria, vamos dizer, alguma coisa de boa fé. Eu diria que Marx fez análises admiráveis da situação econômica do mundo de meados do século [XIX] e que houve discípulos admiráveis que levaram adiante, mas que o marxismo não tem uma abrangência filosófica tal, que explique todos os problemas, desde o conhecimento até os problemas, vamos dizer, de uma transcendência. Então, essa fé que não perdi – não é verdade, num sentido da história... Há um marxista do qual me aproximo muito, que é o [Ernest] Bloch [pensador judeu-alemão (1885-1977) que seguia um linha revolucionária e utópica, influenciada por Hegel e Marx], que dizia: "eu não acredito em Deus, eu não acredito em Jesus Cristo", ele dizia, "o que faz dele extraordinário". Dizia que Jesus era um ateu, porque ele diz assim: "quem me vê, vê meu pai", que é uma coisa extraordinária, no fundo, um interpretação materialista. Ele dizia o seguinte: um homem que sabe que vai morrer, que tem todas as fragilidades do mundo e que, no entanto, se coloca como se fosse um Deus... Não é a minha posição, evidentemente, mas entendo que é essa revolução que o cristianismo trouxe e que ainda está dentro de nós, mesmo que fôssemos ateus. Existem valores que ficaram, assim, laicizados, leigos, valores de fraternidade e solidariedade, que são valores cristãos, foram assumidos pelos não-cristãos. Agora, então, não existe em mim nenhuma confusão, não sou materialista. Tenho isso muito claro, não me passo por materialista, embora essa palavra tenha um prestígio muito grande na universidade. Não sou materialista, mas aceito a teoria do marxismo, por isso é que me considero uma pessoa de esquerda, socialista. Me considero uma pessoa de esquerda, porque acho que a análise de Marx, até o momento, foi insuperável do ponto de vista das contradições econômicas do capitalismo que gerou, gera. Está aí a guerra, que é uma espécie de fruto de tudo isso.
Alfredo Bosi: Bom, são duas perguntas bem diferentes, vou procurar ser sintético. O que a gente chamaria de um pensamento católico realmente talvez seja um abuso de terminologia. É claro que o catolicismo, através dos séculos, acompanhou, foi uma das vozes fundamentais da cultura, pelo menos até a época das luzes [Iluminismo], até o século XVIII. A partir da época das luzes, não acredito que tenha havido um pensamento católico novo, porque realmente aí a modernidade exigia um outro tipo de linguagem que é a linguagem que continuou crescendo até hoje. De modo que o que houve, sobretudo nos anos 1950, 1960 – e no Brasil por uma forte influência francesa –, foi um desenvolvimento do que a gente poderia chamar de uma doutrina social católica ou cristã, que procurava, assim, aprofundar certos deveres que todo cristão deve ter para com o próximo e que, no caso da Igreja [Católica] brasileira, acabou pela opção pelos pobres, que acho que foi uma opção muito feliz. Então, sempre digo que para compensar a opção pelos ricos que a Igreja [fez por] tantos séculos, né... Mas, de qualquer maneira, não acredito que o pensamento católico – nesse ponto não sou católico ortodoxo– exista atualmente ou que ele deva impor-se, porque, efetivamente, há uma doutrina religiosa. Mas o que vejo hoje, nos seminários, nos meios cristãos é que se estuda um pouco de tudo, estuda-se Marx, estuda-se existencialismo, estuda-se [Martin] Heidegger, então, não há mais isso, as universidades católicas não produzem nenhum pensamento católico. E até é muito bom que seja assim, elas mostram que são o fermento da massa. Eu lamentaria que a doutrina social regredisse, acho que a doutrina social foi muito boa. Está aí padre Wilhelm [Emmanuel von Ketteler (1811-1877)], que veio ao Brasil, formou-se em economia e humanismo, enfim, os frutos foram excelentes da doutrina social, eu gostaria de que eles fossem aprofundados. E talvez agora, como a globalização, o neoliberalismo, esse pensamento esteja na defensiva. Mas é curioso, porque esse pensamento está na defensiva e esses pensamentos de esquerda também estão. Então eu vejo que a doutrina social católica hoje está junto com as doutrinas socialistas no momento de provação de defensivos. Bom, isso em relação ao pensamento em si que eu não vejo que ele exista, mas que ele tem um lado social importante que nós gostaríamos de alimentar. A segunda pergunta é muito próxima dos meus interesses de professor de literatura, eu fico muito contente que você tenha feito. Eu acho sim que os alunos devem ter, devem ser expostos, para usar uma palavra moderna, ao que de melhor a literatura produziu durante os séculos. Fiquei muito aborrecido de ver os parâmetros curriculares feitos pelo Ministério da Educação, por alguns assessores menos avisados, que seria interessante tirar a literatura do curso secundário e colocar só as linguagens, que é uma coisa assim, abstratamente, significa o quê? Não se sabe o que é, pode ser que seja tanto história em quadrinhos, que é uma linguagem muito respeitada, como pode ser o que há de pior da cultura de massa. Então veja, acho que ao contrário: o aluno deve ler. Eu dava para os meus alunos do colegial, nos anos 1960 e 1970, textos de Camões e os alunos ficavam muito entusiasmados, né? Alguns subiam até, com aquela paixão adolescente, subiam na cadeira e começavam a dizer: "eu sou o gigante Adamastor". E começavam a recitar e recitavam assim instâncias inteiras. Como? Será que era possível? É possível sim. É possível dar o que de melhor a cultura de todos os tempos produziu. As tragédias gregas têm uma beleza extraordinária, para falar de alguma coisa remotíssima no tempo. Então, o estranhamento, sem querer usar a categoria formal do estranhamento da teoria literária, significa dar ao jovem alguma coisa que normalmente ele não recebe através da cultura de massa. Tem que dar coisas absolutamente diferentes. Como dizia um grande amigo meu – diz ainda, o Flávio de Jorge –, contrariamente à pedagogia da preguiça, que acha que a gente deve dar o mínimo, ao contrário, a gente deve dar o máximo para que os alunos possam ir escolhendo e filtrando. Então se alguma atitude pedagógica válida é essa: é preciso dar o que há de melhor na cultura sem receio de parecer elitista – uma palavra completamente inoportuna, no caso, e improcedente – e dar tudo o que é de bom para que o aluno tenha, alguma vez na vida, pelo menos, a chance, a ocasião de ver o que a humanidade produziu de mais belo. Isso eu diria como resposta.
Ivan Ângelo: Gostaria de saber como o senhor vê como se articula a globalização com a colonização. Digamos, a colonização em um período histórico amplo e a globalização como um fenômeno premente, mais moderno, quer dizer, tornou-se muito maior. Então, como se articula na expressão da cultura hoje, nos meios de comunicação, nas artes tão prestigiadas...
Ivan Ângelo: Mais eletrônico...
Reinaldo Azevedo: Há brechas para se armar, para uma resistência, para uma afirmação de culturas nacionais? O senhor é otimista a respeito disso? É possível resistir aí também?
Maria Victoria Benevides: É uma luta e o senhor falou tanto aqui em culturas, uma pergunta curtinha. É impossível ignorar que nós estamos em um período quentíssimo de disputa eleitoral. E há algo que tem sido muito repetido é que é preciso ser doutor, ter preparo, ter estudo, ter um diploma para ser governante. O que o senhor acha disso? O senhor que fala da variedade das culturas e de ser contra um pensamento único...
Maria Victoria Benevides: Que bom.