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Memória Roda Viva

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Democracia na América Latina

5/9/2005

Cientistas políticos latino-americanos discutem a fragilidade da democracia no continente, fazendo análises políticas e históricas

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Paulo Markun: Boa noite, o Roda Viva deixa de apresentar esta noite o programa que anunciamos com o publicitário Marcos Valério [acusado de ser um dos coordenadores do mensalão, suas empresas seriam as responsáveis pela distribuição do dinheiro a parlamentares]. A intimação para o que empresário fosse depor na Polícia Federal, na tarde desta segunda feira, inviabilizou a participação do convidado ao nosso programa. O Roda Viva lamenta a coincidência de datas que aconteceu quando a Polícia Federal marcou o depoimento para a mesma segunda-feira que havíamos anunciado a participação de Marcos Valério em nosso programa. Compreende que ele tenha se recusado a gravar o programa depois de ter sido convocado a depor novamente na Polícia Federal, reitera o convite para que ele esteja aqui em nova oportunidade. E, finalmente, pede desculpas aos telespectadores que estavam aguardando por essa entrevista. O programa que você vai ver em seguida trata da crise da democracia na América Latina. Não falamos de Brasil, neste Roda Viva, pois nossa atual crise política tem sido tema de diversos programas aqui. Falamos agora de países vizinhos, marcados por crises políticas e incertezas na economia, países que têm um histórico de golpes militares, revoltas populares, onde a democracia, de alguma forma, entrou em descrédito por causa da decepção causada por seus governantes. Neste programa, reunimos uma bancada especial de cientistas políticos latino-americanos que têm estudado e analisado os riscos e a fragilidade da democracia em nosso continente.

[Comentarista]: Pobreza, herança colonial e autoritarismo. A América Latina ainda carrega na memória os tempos dos generais, ora esquecendo, ora se lembrando. Na Argentina, o presidente Néstor Kirchner [presidente da Argentina (2003-2007)], [assim] como o presidente Lula no Brasil, é da geração vítima do regime militar. E pensa [em] se reeleger, fortalecido pelos resultados econômicos de seu governo e por revirar o passado em busca de mais envolvidos nos crimes cometidos pela ditadura. No Uruguai, Tabaré Vázquez [presidente do Uruguai desde 2005] é o primeiro presidente de esquerda eleito em 170 anos de domínio dos partidos Colorado e Blanco. Pequeno e discreto, o Uruguai é o país que menos sofreu golpes militares na América Latina no século XX. O oposto da Bolívia, que, em 180 anos de independência, registrou mais de 200 golpes militares. Nos últimos dois anos, movimentos indígenas derrubaram dois presidentes. O atual, Eduardo Rodrigues, tenta reconciliar o país que beirou a guerra civil nos conflitos promovidos pelos movimentos sociais insatisfeitos com os governantes. No Equador, Alfredo Palácio, que era vice, assumiu este ano, depois de uma revolta popular que resultou na queda do presidente Lúcio Gutierrez, a terceira destituição presidencial em menos de oito anos. O Chile se refaz depois de 17 anos da ditadura violenta de Pinochet [regime Pinochet], vive uma estabilidade econômica e política, mantida desde 1990 por uma coalizão de partidos de centro-esquerda. O presidente Ricardo Lagos [presidente do Chile entre 2000 a 2006] é o terceiro presidente eleito pelo voto direto nesse período. Na Colômbia, Álvaro Uribe [presidente eleito em 2002 e reeleito em 2006, estabeleceu uma política de segurança agressiva contra as Farcs] quer se reeleger no ano que vem; é o candidato com mais chances, reativou a economia do país e aplicou linha dura no combate à guerrilha, que, associada à traficantes, afundou a Colômbia em uma guerra civil que já dura quarenta anos e que ainda é um desafio. Na Venezuela, Hugo Chávez governa absoluto, especialmente depois de vencer a oposição em um plebiscito, em 2004, que o fortaleceu no poder. Também quer ser reeleito e, apesar das acusações de autoritarismo, tem grande apoio popular e pensa levar adiante o seu controvertido projeto de construir um modelo próprio de socialismo na Venezuela.

Paulo Markun: Para o debate especial desta noite no Roda Viva nós convidamos: o cientista político Alfredo Ezequiel Ramos Jiménez, equatoriano, radicado na Venezuela, autor de vários estudos sobre sistemas políticos, Estado, partidos e democratização na América Latina; convidamos também Pablo da Silveira, uruguaio, professor de filosofia política da Universidade Católica del Uruguai, pesquisador na área de economia humana, participou da delegação uruguaia nas negociações do Mercosul  [Mercado Comum do Sul. É o livre comércio e política comercial comum de cinco países da América do Sul: Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela, que aderiu ao grupo em 2006] e trabalhou para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Está conosco também Vivian Urquidi, boliviana radicada no Brasil, professora de sociologia da Universidade de São Paulo, especialista em políticas públicas, defendeu tese de doutorado sobre o movimento dos cocaleiros na Bolívia [movimento dos produtores da planta coca na região central do Chaparre, Bolívia, cujo líder era Evo Morales, atual presidente do país]; conosco ainda Atílio Borón, argentino, professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, publicou vários livros sobre temas como capitalismo e democracia na América Latina, relações entre intelectuais e poder, além de um estudo comparativo sobre partidos políticos nas democracias latino-americanas. Conosco ainda, Enrique Dussel, argentino, radicado no México, onde é professor da Universidade Nacional, doutor em filosofia e autor de mais de cinquenta livros, é um estudioso da ética comunitária, teologia da libertação, globalização e exclusão. Conosco ainda, Guillermo Hoyos, também doutor em filosofia, professor da Universidade Nacional da Colômbia; os estudos e trabalhos de Guillermo abordam direitos humanos, moral, cidadania e convergência entre ética e política. Está no programa também Edgardo Lander, professor de sociologia da Universidade de Caracas, ele é autor de pesquisas e análises sobre a Alca [Área de Livre Comércio das Américas. Acordo comercial idealizado pelos Estados Unidos em 1994, que propunha para todos os países da América, exceto Cuba, o livre comércio, com o fim das barreiras  alfandegárias entre os Estados-membros e  isenção de tarifas], projetos neoliberais e movimentos de resistência popular na Venezuela. Completando essa bancada, o cartunista Paulo Caruso, registrando com seus desenhos os momentos e os flagrantes do programa. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros, e também para Brasília. O programa de hoje, por estar sendo gravado, não permite a participação dos telespectadores. Bom, eu queria começar propondo um desafio aqui para os integrantes dessa bancada, que é tentar resumir, em alguns minutos, as principais características da situação política do país em que vivem, ou que estudam. Porque eu estava conversando aqui, um pouco antes do programa, sobre a frase o "Brasil vive de costas para a América Latina", essa não é uma frase original, mas infelizmente, continua sendo verdadeira. Nós temos um enorme interesse no que se passa nos Estados Unidos, discutimos com muito entusiasmo as perspectivas da economia na China, examinamos com a maior atenção o que se passa na Europa, mas o que acontece nos países vizinhos e que formam conosco a América, da qual nós não podemos nos separar, muito embora o desenho aqui no centro do Roda Viva dê essa impressão, a de um arquipélago, cada um vivendo a sua realidade, nós temos é que compartilhar dessa realidade. Então, eu queria, começando pela Vivian, ter um panorama sintético e qual é a situação no caso da Bolívia, talvez até pelo fato de ser o país que freqüentou as manchetes mais recentemente?

Vivian Urquidi: Paulo, embora você ache que o Brasil esteja de costas para a América Latina, eu não concordo muito, principalmente agora. Eu tenho visto que a presença da América Latina está muito mais forte nas políticas do Brasil em relação à América Latina, especialmente no caso da Bolívia em função da Petrobras e do problema do gás. A Bolívia está passando, realmente, por uma forte crise em [sua] política econômica... Eu não consigo ser totalmente negativa a respeito dessa crise, que vem crescendo desde 2002. Mas que, no fundo, eu acho que apresenta a necessidade, ou a vontade popular das massas, nesse momento de poder oferecer uma alternativa distinta daquela que se construiu desde a década de 1980, que a gente vê desde a década de 1980, que é um modelo neoliberal [neoliberalismo], sustentado [por] uma forma de fazer política para que ele dê um pacto que seja um pacto da democracia que acontece diretamente no Congresso, uma vez que o presidente não conseguiu maioria absoluta nas eleições, a democracia se dá pela via do pacto no Congresso. E esse pacto tem feito com que, cada vez mais, a população esteja desligada da política e que o problema se resolva dentro do Congresso. Então, o que eu acho que estamos vendo neste momento é o fim desse pacto, de democracia pactual dentro do Congresso, e o nascimento de uma forma de fazer democracia, onde há muito mais participação popular, e onde os partidos tradicionais estão começando a ser desestruturados, começando a ser desmontados. Os partidos tradicionais, evidentemente, estão relacionados a grupos de interesses. E os grupos de interesses são oligarquias tradicionais, ou novas oligarquias econômicas que apareceram e que, pouco a pouco, estão sendo desmontadas por uma  mobilização de massas que vem do povo. Quando eu falo povo, eu falo da população camponesa, também da população urbana, mas a mais pobre, a mais carente. Então, para mim é uma crise forte, mas uma crise que deve se encaminhar para uma solução nos próximos anos.

Paulo Markun: Pablo, e no Uruguai, como é que estão as coisas?

Pablo da Silveira: O Uruguai tem uma democracia estável, partidos políticos bem antigos. Os partidos tradicionais têm mais de 170 anos. A esquerda, partido considerado novo, tem quase 35 anos. Tem instituições políticas fortes, alta legitimidade. Não há nada parecido a "vão todos embora". Sofre de debilidade econômica. A crise de 2001, 2002 golpeou-o com muita força. Só agora está conseguindo se recuperar. A grande novidade é a mudança de governo, há três meses. Pela primeira vez, a esquerda chegou ao governo após um processo bem similar ao do PT [Partido dos Trabalhadores], aqui no Brasil. A esquerda foi perdendo eleições, mas acumulando porcentagens cada vez maiores de votação, até que, por fim, subiu ao governo. E a pergunta que está na mesa é com o que vai se parecer esse governo de esquerda do Uruguai? Simplificando muito as coisas, a pergunta é: o presidente Tabaré Vázquez vai se parecer com Lula ou vai se parecer com Chávez? Tudo indica que vá se parecer mais com Lula, pelo menos ao Lula anterior à crise que está vivendo nesses dias. Este é um resumo da situação.

Paulo Markun: Ok. Alfredo.

Alfredo Ezequiel: No caso da Venezuela, também era considerada um modelo de democracia estável de partidos durante muito tempo. Contrasta com a instabilidade política que vivemos agora. Há quase sete anos da eleição do presidente Chávez, a Venezuela não resolveu o problema da polarização social e política. Isto é causa, certamente, de uma grande instabilidade. Também poderíamos dizer que, após os resultados do referendo do ano passado, o presidente, segundo alguns resultados que foram discutíveis, muito controversos... A oposição, realmente, ainda não aceita esses resultados. O presidente contaria com 60% do eleitorado, ficando os 40% restantes para a oposição. Houve uma abstenção alta, sem dúvida. São seis milhões. Mais 3,5 milhões, chegaria a 9,5 milhões de 14,6 milhões, que é o total de eleitores registrados. Segundo a proposta do presidente Chávez, se ele se propunha a fazer uma revolução e uma revolução em democracia, a raiz do problema está em como fazer uma revolução se metade da população é contra? Como fazer, sem recorrer a medidas de tom autoritário? Nesse sentido, também, poderíamos ver que as principais ações do governo do presidente Chávez tiveram uma nítida tendência de concentração de poder, com o fim preciso de garantir um mínimo de estabilidade. De fato, na academia, estivemos discutindo a questão de como sobreviver no poder, com tanta oposição. Alguns defenderam a tese de que se trata de um desgoverno. Não é um governo bom nem mau, é um desgoverno. Porque o presidente realizou a maioria dos atos em tarefas tendentes a mantê-lo no poder. Sem dúvida, isso causou muita tensão política. Se, hoje em dia, o presidente conta com um apoio certamente apreciável dos cidadãos, do eleitorado, digamos, também deveríamos dizer que a oposição está quase desmantelada, com os partidos enfraquecidos, com uma liderança política de oposição sem capacidade de disputar eleições presidenciais com Chávez. Esses sete anos foram uma campanha eleitoral permanente. Haverá, em agosto, eleições regionais, em dezembro eleições para a Assembléia Nacional  e no ano que vem, eleição presidencial. Três eventos eleitorais planejados para a Venezuela. Como alcançar a estabilidade com um governo que diz querer fazer a revolução na Venezuela e, além disso, assume-se como modelo de revolução para a América Latina? Isso, sem dúvida, não favorece a estabilidade política que todos procuram. Nesse clima de incertezas, é muito difícil levar em frente um processo revolucionário como o proposto pelo presidente no seu discurso. 

Paulo Markun: Ok, para a gente ficar ainda na Venezuela, Edgardo...

Edgardo Lander: A razão pela qual boa parte do esforço do governo Chávez para se manter, uma boa parte da energia do governo durante os primeiros anos, foi manter-se no governo, exatamente porque uma oposição pouco democrática ,de liderança pouco democrática, não aceitou o fato de Chávez ter ganhado uma série sucessiva de eleições. Na primeira eleição de Chávez, na convocatória da Constituinte, na eleição dos constituintes, no referendo para a aprovação da Constituinte, nas novas eleições posteriores à Constituinte. E, com o apoio direto dos EUA, fez tentativas sistemáticas para derrubar o governo Chávez. Um golpe, uma tentativa de golpe, que foi contido, em 2002, com o apoio dos EUA. Houve uma greve empresarial de petroleiros que estrangulou a economia venezuelana durante dezembro de 2002, janeiro e fevereiro de 2003. E, com o apoio também maciço dos EUA, a oposição... os dirigentes da oposição asseguraram às suas bases que tinham uma amplíssima maioria no país. Portanto, foi uma grande surpresa quando, de forma consistente, com todas as principais pesquisas de opinião, Chávez ganhou com 60%. Então, creio que o governo de Chávez, quanto à execução de políticas públicas, começa efetivamente a governar quando, graças aos erros políticos de uma oposição imediatista, que todo dia avisava que em uma segunda semana derrotaria Chávez. Esses erros políticos são pagos. Em conseqüência, a oposição ficou dividida, desmoralizada. Então, aí, temos uma capacidade de governo que não existiu nos primeiros anos. Creio que quando se fala de revolução na Venezuela, na realidade, é um processo que não está claro do que se trata. No sentido de que há objetivos de inclusão social, de integração, de reverter o modelo neoliberal hoje hegemônico na América Latina. Nos países onde há governo de esquerda, há tentativas de recuperar a indústria petrolífera como indústria soberana do país. Aí, há um processo, no qual creio que é onde estaria a Venezuela, onde houve uma mudança cultural extraordinariamente importante, em que os setores pobres, excluídos, a maioria da população está se sentido parte de um processo de mudança, estão se organizando como nunca na história da Venezuela. E  há um sentimento de pertencer, que faz parte de uma mudança cultural, uma mudança de cultura política, que é extraordinariamente importante.

Paulo Markun: Ok. Atílio, da Argentina...

Atílio Borón: Pode-se explicar a situação argentina, sinteticamente, assim: o governo de Kirchner dá a largada com grandes expectativas, com a esperança de que a Argentina deixasse para trás o pesadelo neoliberal [neoliberalismo] que havia provocado a crise econômica mais feroz da sua história, a mais extensa, mais prolongada, mais profunda [crise Argentina]. Ao fim de dois anos e um pouquinho, é onde estamos neste momento. Na realidade, há uma sensação ambígua com relação ao governo de Kirchner. Fez algumas coisas importantes no sentido de, democraticamente, modificar a Corte Suprema, o grande amparo para todos os delitos da corrupção seguindo procedimentos altamente institucionais, públicos, transparentes. Houve uma reafirmação muito importante da política de direitos humanos, como acabar com o passado argentino ainda pendente. Obteve  a subordinação total das Forças Armadas ao poder civil, um feito muito importante no nosso país. Houve uma mudança importante na retórica, no discurso oficial. A Argentina passou a ter um discurso totalmente genuflexo em relação ao sistema imperial, honra ao neoliberalismo, à política dos EUA, planejando uma política exterior mais independente. Houve uma denúncia muito forte do governo de Kirchner, dos grandes grupos econômicos, dos grandes organismos financeiros internacionais, os responsáveis intelectuais pela política realizada na Argentina, o Fundo Monetário Internacional, a comunidade financeira internacional que aplaudia a política de Menem [presidente da Argentina de 1989 a 1999]. Quando explodiu a crise, disseram que não era com eles. Kirchner denunciou isso. Mas, lamentavelmente, nos temas fundamentais da política econômica, a Argentina continua submetida às determinações do Consenso de Washington, ou seja, uma política que premia fortemente a especulação financeira. Política que favorece o setor bancário, financeiro, em oposição ao setor produtivo. Política que ainda não avança em uma reforma tributária para pôr fim ao atraso escandaloso do sistema tributário argentino. Política que se desentende no mercado interno, política que, salvo no caso da quitação dos bônus da dívida externa, a grande heterodoxia do governo Kirchner e que lhe valeu críticas enormes da comunidade financeira internacional, fora isso, o governo de Kirchner seguiu transitando pelas normas do Consenso de Washington. Isso criou uma sensação muito grande de ambigüidade. Há uma dissonância entre o discurso oficial do governo e as práticas do governo. Isso criou uma situação de inquietude e de frustração crescente na sociedade argentina, que está refletindo uma retração quanto à participação política. Há uma espécie de animosidade, de cansaço, frente a uma democracia que não atende à expectativa popular e onde a prioridade do governo é atender às queixas dos mercados. Por "mercados" queremos dizer grandes monopólios, grandes empresas transnacionais, que controlam a economia mundial e a dos nossos países. A longo prazo, isso produz esse esvaziamento, a deterioração da credibilidade da democracia.

Paulo Markun: Ok. Enrique.

Enrique Dussel: Sim. Falar do México seria falar do extremo norte, como diz o ditado: "tão longe de Deus e tão perto dos EUA",  é dar uma visão geral do continente. Porque essas reações tão claras, não obstante, ao modelo neoliberal que produziu em toda a América Latina uma pobreza crescente, se somarmos aos casos de Kirchner, na Argentina, Tabaré, no Uruguai, Lula, no Brasil, Hugo Chávez, na Venezuela, Evo Morales, na Bolívia, mais os movimentos equatorianos, os cem milhões de mexicanos fariam a América Latina superar 80% em certos governos surgidos de democracias não só formais, mas com grande apoio popular. No México está se vivendo, neste ano e no próximo eu diria, grande expectativa política. O Partido Revolucionário Institucional [PRI], que criou o México moderno no século XX, na primeira parte aos anos 1970, caiu em uma grande crise, depois do governo de Echeverria [presidente do México entre 1970 a 1976]. De todo modo, estamos falando de  setenta anos de governo de um partido estável, praticamente o mais estavél do mundo. Não houve outro que durasse tanto tempo. Mas, no ano 2000, exatamente por contradições internas e por efeito do neoliberalismo uma mudança. Sobe um partido mais tradicional e de oposição, que leva Fox à presidência [Vicent Fox foi presidente do México entre 2000 e 2006]. Após cinco anos de governo está havendo uma espécie de esvaziamento. Viu-se que não havia projeto, e há um enorme descontentamento. Porém, e sobretudo, o governo de Fox cometeu um erro tático querendo eliminar o governador, direi assim para que se entenda, do Distrito Federal, ou seja, muitos milhões de eleitores. E Lopez Obrador [foi governador do Distrito Federal entre 2000 e 2005, quando abdicou do cargo para concorrer as eleições presidenciais em 2006 no México], que é o governador do Distrito Federal, ganha uma enorme popularidade por um governo sumamente eficaz e consegue também mais de 45% da opinião pública nacional para as eleições do ano que vem, em julho. Fox tomou a desacertada decisão de procurar uma farsa legal, pela qual foi empurrando o poder legislativo até chegar a cassar a imunidade, para poder ser julgado. Mas isso mobilizou enormemente a consciência democrática. Não tanto para apoiar a pessoa, mas sim, realmente, o sistema que começava a formar. Isso produziu uma manifestação nunca vista no México, de mais de um milhão de pessoas contra a cassação. O impacto foi tal que o governo de Fox teve que retroceder e, por último, deixar de acusá-lo. Ainda que tenha ficado sem a imunidade, já faz três dias que renunciou ao governo do DF para se apresentar como candidato possível de um partido para as próximas eleições. Assim, o México está vivendo a mesma situação de toda a América Latina. E parece que o governo no poder está profundamente desacreditado e que é o grande partido tradicional, não se dividiu, resiste, e acaba de ganhar as eleições do Estado do México, que tem  vinte milhões de pessoas e grande parte dos eleitores. Isso pressagia um ano extremamente ativo, de um ponto de vista político. Eu penso, dou a minha opinião pessoal, é muito possível que o PRI, Lopez Obrador seja presidente. Se for assim, estaria mudada a situação do continente inteiro. Exceto em alguns países centro-americanos para onde se provêem eleições... O sandinismo, na Nicarágua, no ano que vem. De tal modo que veríamos uma situação muito interessante no continente todo, com relação ao que houve nos últimos anos.

Paulo Markun: Guillermo.

Guillermo Hoyos: Da Colômbia, tradicionalmente, [é] dito pela classe dirigente ser uma das democracias mais estáveis da região. Todos acreditariam, pelo slogan do presidente atual Uribe: segurança democrática. Foi o que o levou ao governo,  já vai fazer três anos, em um momento, digamos, da crise de um governo conservador, que havia aberto uma zona do Amazonas bastante considerável para conversar com a guerrilha pró-comunista das Farcs. Houve também conversações com a guerrilha pró-cristã, ELN. Não houve conversações em momento algum, com os paramilitares. Uribe chega com a promessa de segurança democrática e outras duas promessas que não cumpriu: contra a corrupção e contra a politicagem. Isso o ajudou a nos propor, neste momento, uma reeleição que terá lugar, é bem provável, em maio do ano que vem. Ou seja, por mais quatro anos, teremos uma democracia segura. A Colômbia passa, neste momento, pelo país mais amigo, mais aliado dos EUA. As manchetes da imprensa colombiana, há três dias davam que Bush [presidente do Estados Unidos entre 2001-2009, cujo governo  é marcado por uma campanha de guerra contra o terror (ou contra os terroristas) invadindo países como o Iraque e outros]  convidou Uribe para ir ao  seu rancho, detalhe muito forte. Nesse momento, 60%, 70% dos colombianos concordam com a reeleição de Uribe. Teríamos de nos perguntar:  [nós] os intelectuais e os professores, o quê fizemos nos últimos anos para formar a cidadania? Nessa relação com os EUA que, pode-se dizer, determina tudo, não é só esse assunto de ser muito amigos, efetivamente, como também possuir a mesma gramática. O embaixador da Colômbia no Brasil não pode dizer... Eu posso, espero... Na Colômbia, existe conflito armado. Há um indicativo da chancelaria para o corpo diplomático em todo mundo e para os funcionários públicos que  proíbe usar a expressão "conflito armado". Só podemos usar o termo "terrorismo". Ou seja, inclusive a mesma gramática do império [estadunidense]. É bem provável que estejamos ameaçados por uma reeleição. Os partidos políticos... Uribe, que é muito hábil, encarregou-se de desbaratá-los. Considera-se liberal. Elegeu-se por um movimento independente por segurança democrática. Neste momento, há uma facção considerável do Partido Liberal, chamada uribistas, e o Partido Conservador todo está com ele. Há um pólo democrático que está surgindo, o prefeito de Bogotá [Luis Eduardo Garzón] é muito amigo do presidente Lula. Vieram aqui para o último encontro do pólo democrático. Mas é muito débil. Não creio que consiga.

Paulo Markun: Muito bem, nós vamos fazer um rápido intervalo [...]

[intervalo]

[Comentarista Paulo Markun]: Desde 1989, dez presidentes de países latino-americanos caíram ou foram derrubados. Começou com Raul Alfonsín na Argentina, em 1989, que abandonou o poder em meio a uma hiperinflação, greves e ameaças de levantes militares. Em 1992, o Brasil viu Fernando Collor de Mello renunciar, pressionado por um processo de impeachment aberto por denúncias de corrupção. Em 1993, na Venezuela, Carlos André Perez também foi destituído por denúncias de corrupção. De 1997 a 2000, uma onda de turbulências sociais derrubou dois presidentes no Equador, Abdala Bucaram e, depois, Jamil Mahuad. Conflitos políticos de toda espécie também destituíram os presidentes Alberto Fujimori, do Peru, Raúl Cubas, do Paraguai, e Sanchez de Lozada, na Bolívia, entre 1999 e 2003. No mesmo período, a Argentina viu outra queda de presidente: Fernando De La Rua renunciou após uma onda de saques e conflitos em Buenos Aires. Este ano foi a vez de Lucio Gutiérrez, no Equador. Eleito pela oposição indígena e nacionalista, Gutiérrez traiu as promessas de campanha ficando desacreditado pelo movimento popular e também caiu.

Paulo Markun: Bem, nós estamos de volta com o Roda Viva especial desta noite que discute a democracia na América Latina e, além dessa informação que a gente tem aí, de que nos últimos anos pelo menos dez presidentes deixaram o poder [antes] do final do mandato em toda América Latina desde 1989, é esse o número de presidentes que foram derrubados, por uma razão ou por outra. Tem um outro fato, que eu queria colocar em discussão que é o seguinte: salvo a Vivian, todos nós aqui temos cabelos brancos, e eu me espanto pelo fato de que, com muita freqüência, eu encontro estudantes universitários de faculdades brasileiras e uma questão recorrente que esses estudantes colocam é o total descrédito em relação à democracia. Eles acham, por exemplo, que não existe diferença entre a situação que a gente vive no Brasil hoje e a situação da ditadura que eu vivi quando era jovem. Por mais que eu insista em dizer que é diferente, eles têm lá suas dúvidas. E eu costumo perguntar para esses estudantes quem eles imaginam que governará o Brasil daqui há vinte ou daqui trinta anos? Se vai descer um disco voador com marcianos e esses marcianos vão governar o Brasil. Então, eu queria colocar esse tema em jogo, que é a juventude e a descrença cada vez maior que existe entre a juventude diante da perspectiva da democracia. No primeiro round aqui, a Vivian foi quem mais claramente colocou essa expectativa, de que lá na Bolívia a democracia já não é o caminho.

Vivian Urquidi: Paulo, eu acho que a gente também não pode falar que democracia não é o caminho. Antes temos que falar de que tipo de democracia não é o caminho. O tipo de democracia que a gente viu na Bolívia até agora, aquela democracia representativa se dava do seguinte modo: a população votava nas eleições, historicamente nenhum candidato teve mais 25% dos votos, e ao invés de haver segundo turno, como aqui no Brasil, a decisão da eleição era levada ao Congresso, os grupos se reuniam, faziam uma coligação, uma aliança partidária, e nessa aliança partidária os terceiros se uniam com os primeiros, às vezes o segundo com o primeiro, e mudava o tipo de aliança, mas o presidente saía escolhido dessa aliança. Esse tipo de democracia que entrou, enfim, em falência, principalmente na Bolívia. Então, eu quero marcar muito isso. O que acontece na década de 1990, quando mais se começou a investir, digamos, nos projetos neoliberais na América Latina, a Bolívia já começava antes, na década de 1990 que começam as "privatizações", que na Bolívia se chamam de "capitalização". A gente vê lá que, para garantir essa descentralização do governo, se criaram instâncias e organizações através do que se chamou a "participação popular". A participação popular, que era a descentralização do poder, permitiu que as instâncias, principalmente municipais e regionais, os grupos sociais se reorganizassem. Eles começaram a se reorganizar a partir da participação. Um pouco no Brasil está sendo vivenciado assim desde o final da década de 1880, com a nova Constituinte. Mas, de que forma funciona a participação popular? A pretensão do governo, inicialmente, era poder chegar àqueles cantos onde originalmente o Estado não estava presente, que seriam o campo, as populações rurais, as comunidades mais longínquas. Mas com a participação popular, o que acabou acontecendo foi que essas comunidades foram se empoderando. Quer dizer, assumindo maior poder e participando de uma forma diferenciada. Eu acho que este é o momento que a gente está agora, um momento de transição do tipo de participação que era basicamente representativa, onde você delegava o voto, para uma participação popular, através de uma participação diferenciada. E eu acho que essa é a democracia que a gente deve começar a falar.

Paulo Markun: Enrique.

Enrique Dussel: Creio que há uma expressão interessante, aquela "vão todos embora". Para mim, ela expressa um tema essencial. Não é tão superficial. Claro, sugere um país concreto, que tocou fundo, porque até roubaram as economias da pequena burguesia nos bancos de maior prestígio. O que é o cúmulo do roubo. Creio que isso mostra-nos um Estado que eu consideraria, com a companheira da Bolívia, que está mostrando uma coisa essencial e que está amadurecendo. Ou seja, há um teórico, chamado Carl Schmidt [(1888-1985) filósofo político alemão, autor de obras importantes sobre Estado e direito, entre elas Die diktatur (A ditadura) em 1921, Politische theologie (Teologia política) em 1922 e outras], que fala do Estado de exceção, para mostrar como há uma autoridade por trás da lei. O estado de direito não é a última instância, pode ser questionado por quem declare o estado de exceção. Foi o que houve com a Argentina de De La Rúa, para [conter] o povo, se declarou estado de exceção. O que fez o povo? Saiu às ruas e deixou sem valor o estado de exceção. Eu chamo isso de estado potencial de rebelião. Ou seja, todo o aparato político, no fundo, deve ser representativo de um povo. Mas não é. Fechou-se sobre si próprio e deu as costas para o povo. O povo diz: "vão todos embora". Essa expressão está demonstrando um amadurecimento na consciência do povo latino-americano em muitos níveis insuspeitados. De tal modo, que o indígena está tomando posição no assunto. De sujeito passivo, transformou-se em ativo. Nunca se havia visto, no México, demonstração de mais de um milhão de habitantes para não cassarem a imunidade de um possível candidato. Era um direito político mínimo. Um interessante estado de consciência. Acredito que, sim, está se vivendo um estado importante de amadurecimento lento, causado pelo sofrimento das ditaduras, pelo fracasso da abertura posterior. Agora, é o início de algo, que deve ser construído desde a base. Dizem muitos movimentos sociais, como os participantes do Fórum [Social Mundial] de Porto Alegre [organizado por diversos movimentos sociais, tendo como objetivo inicial fazer um contraponto ao Fórum Econômico de Davos, na Suíça], que também é uma expressão latino-americana, há uma construção do poder a partir da base. Essa é uma questão teórica, mas [também] uma questão histórica que vejo crescer em todos os lugares que se deve observar de modo especial, eu diria, para ver as suas indicações em todos os lugares.

Paulo Markun: Atílio.

Atílio Borón: Acredito que o desencanto, a desilusão com a democracia é uma questão muito séria, que afeta muito os jovens e também outros grandes setores das sociedades latino-americanas. No ano retrasado, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, PNUD, fez uma pesquisa em 18 países da América Latina para estudar exatamente o grau de satisfação com a democracia, considerando que temos mais de vinte anos na região - em alguns países mais, em outros menos - de desempenho democrático. O resultado da pesquisa - foram feitas, mais ou menos, 18.500 entrevistas na região - é patético. Aproximadamente a terça parte da população da América Latina manifesta estar satisfeita com a democracia. Os dois países com os maiores índices de satisfação são Venezuela e Uruguai, onde apenas chegam a 50%. Na grande maioria dos países, por média ponderada, a proporção da população que se declara satisfeita com a democracia oscila entre 20 e 25%. Então, pode-se perguntar: é gente mal agradecida, que não responde de bom coração aos governos que se preocupam com ela? Não. São atores perfeitamente racionais. Porque, ao analisar as democracias latino-americanas, vê-se uma continuidade nas políticas econômicas e sociais que começam na ditadura e persistem e aprofundam-se na democracia. O caso chileno é paradigmático. Não há nenhuma alteração, desde a passagem da mais séria ditadura que teve o Chile à democracia, nenhuma mudança na política econômica. No caso argentino, a grande orientação neoliberal instaura-se com o governo militar, em 1976. E ainda não saímos dali. Creio que se pode mencionar demais casos da América Latina. O Brasil não é a exceção. Qual é a marca do modelo econômico atual? A primazia do capital financeiro. Isso se estabelece na Argentina, Brasil, Chile, com as ditaduras, e aprofunda-se com a democracia. Quando esses governos que deveriam governar em benefício de toda a população governam para favorecer um setor minoritário, minúsculo, evidentemente, as pessoas não querem saber da democracia. Dizem: "não me representa". Deve-se passar a outro modelo de democracia, como disse Vivian. Uma democracia participativa. Uma democracia com o povo como protagonista. Mas a grande pergunta é: o tipo de estrutura social e econômica que se formou na América Latina em 25 anos de domínio neoliberal é coerente com essa forma democrática? Creio que não.

Paulo Markun: Pablo.

Pablo da Silveira: Durante os anos 1980, todas as sociedades latino-americanas reorientaram-se para a democracia. Ao menos, as que haviam tido experiências autoritárias, ou seja, a maioria. Havia duas grandes expectativas. Uma, o funcionamento das instituições democráticas; a outra, a melhora da qualidade de vida da população. O que aconteceu nesses vinte anos foi que as duas expectativas não andaram juntas. Não aconteceu que, ao mesmo tempo, a democracia funcionasse bem e melhorasse a qualidade de vida da população. Não foi como na Europa, após a Segunda Guerra Mundial, onde essas duas coisas andaram juntas. Na América Latina, não. É uma pergunta que devemos fazer: "por que não?". Atílio, não creio que a explicação seja a continuidade das políticas econômicas dos regimes autoritários, porque temos exemplos opostos. Na Argentina, isso acontece, e a qualidade de vida deteriora-se assustadoramente. E, no Chile, há continuidade e a pobreza reduz-se, aumenta o produto interno bruto. O Chile é um caso de sucesso, independente do fato de gostar-se ou não do que houve, seja em eficiência econômica, seja no combate à pobreza e à exclusão. É um caso incômodo, que não se comenta. O Chile tende a ser invisível ao se falar em América Latina, por ser exceção quanto a muito do que acreditamos. O grande perigo que corremos é j"ogar fora a água do banho como o bebê dentro". Como, efetivamente, não conseguimos melhorar as condições de vida da população, pensar que a democracia perde valor e devemos abandoná-la. Se chegássemos a isso, estaríamos repetindo o erro cometido nos anos 1960 e 1970 quando, por outras razões, mais políticas, de crítica às insuficiências da democracia formal e das liberdades formais, muitos latino-americanos deram as costas à ordem democrática, e custou muito sangue, muita dor, muitas mortes ver que, na realidade, a ordem democrática constitucional é muito importante e protege todos de alguns dos piores males que poderíamos viver nós, os cidadãos do continente. Creio que o desafio é encontrar o modo, o caminho para recuperar o crescimento, a melhora na qualidade de vida da população, sem tirar conclusões apressadas demais. E isso significa, basicamente, sem pedir à democracia mais do que ela pode dar, e sem desvirtuar o funcionamento democrático. Creio que, neste momento, vemos processos na América Latina que considero bem preocupantes. Tomo a liberdade de discordar da Vivian. O que acontece na Bolívia é preocupante em termos de continuidade da ordem democrática. Porque temos ali um dirigente político importante, o senhor Evo Morales, que se apresenta nas eleições com um plano de governo radical, que perde as eleições. E, em vez de se dedicar à oposição parlamentar, como fez Lula, por muitos anos no Brasil, Tabaré Vázquez, no Uruguai, como sucedeu em muitos países, paralisa o país, até conseguir se aproximar do governo, apoiado por movimento social importante, mas quantitativamente não equivale à quantidade de pessoas que votaram no governo em exercício. É como abrir a "caixa de Pandora" [mito grego que narra a chegada da primeira mulher à Terra, Pandora, trazendo consigo a origem das tragédias humanas. Segundo a narrativa, Pandora foi enviada a Terra com uma caixa cheia de desgraças mas também com a esperança. Ela fora advertida para não abrir o volume, porém, vencida pela curiosidade o abriu, liberando todos os males no mundo]. Se começarmos a considerar normal que, em nome dos interesses do povo, tal como são interpretados por certos dirigentes, podemos bloquear instituições, derrubar governos e estabelecer soluções complicadas, do ponto de vista institucional, para salvar algo da continuidade do estado de direito, pegamos um caminho complicado. O desafio que temos pela frente é entender o que nos aconteceu. Ver por que, nesses  vnte anos, não conseguimos crescer, não conseguimos distribuir, sem perder de vista a importância do conjunto de garantias que dá à sociedade a democracia constitucional.

Paulo Markun: Edgardo.

Edgardo Lander: Eu considero fundamental pensarmos na democracia em termos mais plurais. Concordo com Vivian quanto a não pensar na democracia unitariamente. Não considero que a democracia liberal constitucional  seja "a democracia". Considero uma forma particular. Creio que, se alguém tem uma situação em que, por exemplo, há eleições, apresenta-se um programa de governo... O programa de governo, quando um certo partido ganha, faz exatamente o contrário do que apresentou como programa. O povo mobilizar-se e derrubar esse governo, parece-me mais democrático do que ser imposta contra a vontade expressa pela população, uma política, orientação, visão da sociedade da qual o povo discorda. Não creio que se possa medir se é democrático ou não, simplesmente na operação de determinados procedimentos. Porque creio que o fato de tantos governos terem sido derrubados ultimamente é uma expressão de que esses governos, na sua maioria, não expressavam a vontade da população.

Paulo Markun: Alfredo.

Alfredo: Acredito que essa distinção entre democracia representativa e participativa, ao menos no discurso do presidente Chávez, não passa de questão retórica. A carta interamericana pela defesa da democracia fala da democracia representativa, e no texto da Constituição venezuelana o termo "representativa" foi eliminado. Foi substituído por democracia "participativa" e "protagonista". Na mesma Constituição, sumiu a expressão "partido político". Tal era o clima na Assembléia Constituinte que quiseram eliminá-la, mas de forma nominal, porque, pelo que sabemos, não há democracia que funcione, ao menos a democracia política, sem partidos políticos.

Paulo Markun: Nós vamos para mais um rápido intervalo [...]

[intervalo]

[Comentarista Paulo Markun]: Um relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento mostrou que a América Latina encerrou a década de 1990 como a terceira pior renda per capita do mundo, perdeu só para a África e o bloco dos países pobres da Ásia. Se a redemocratização não caminhou bem na região, a economia também ficou estagnada, e, em vários casos, recuou. Análises estatísticas de todo tipo se igualam para contar a piora nas condições de vida e o aumento da desigualdade social. A população latino-americana passa de quatrocentos milhões de habitantes. Mais da metade, segundo o Banco Mundial, não consegue satisfazer suas necessidades básicas. São mais de duzentos milhões de pobres, entre eles, mais de cem milhões de indigentes. Um fato novo nos últimos  vinte anos, foi o surgimento dos "novos pobres", setores da classe média que empobreceram, aumentando o contingente de excluídos e desempregados, que lotam os centros urbanos e fazem crescer a tensão e a turbulência social.

Paulo Markun: Bom, nesse terceiro bloco, eu vou colocar uma pergunta simples, a resposta é complicada e, para complicar ainda mais, cada um terá dois minutos para responder. [risos] E a pergunta é a seguinte: vocês acham que a democracia é o caminho para a gente conquistar uma melhor vida para as pessoas, ou tanto faz? Ou isso se conquista independentemente de que regime político a gente tenha no nosso continente? Edgardo.

Edgardo Lander: Creio que se não existir democracia... não estou falando da democracia estritamente formal, liberal, mas como apropriação, pela pessoa, da própria vida, controle crescente sobre a área pública, caminho na direção de uma redistribuição maior de poder, acesso democrático ao debate público, uma das causas principais para a carência e debilidade da democracia hoje. Para termos a possibilidade de não ser o dinheiro a definir quem são os candidatos e quem chega ao congresso. Para termos maior autonomia, maior soberania dos Estados para definir as próprias políticas - todos são temas da democracia. Sem esses temas de democracia, dificilmente se pode melhorar as condições de vida das pessoas porque temos uma situação totalmente em formato democrático, em que ocorrem coisas extraordinariamente importantes, como haver respeito aos direitos políticos e civis e as pessoas não tenham medo de ser mortas no meio da noite. Mas chega um momento em que isso não basta. As pessoas sentem que precisam ter a capacidade de controlar a própria vida, de influenciar a sociedade ao ser chamado para eleições, que elas sejam efetivas, que tenham incidência, que as opiniões contem, que não haja uma disparidade radical entre os que têm recursos e os que não têm. Isso, de modo óbvio e muito rápido, creio que é do que falamos, de modo rápido, esvazia a democracia. Ficaremos com cascas ocas, com as quais não só será impossível melhorar a vida das pessoas, como a própria casca vai desabar.

Paulo Markun: Pablo.

Pablo da Silveira: Talvez seja possível outro caminho para melhorar as condições de vida das pessoas. Mas a democracia é o único para fazê-lo enquanto se respeita a condição de cada um como pessoas livres e iguais. Portanto, para mim, não interessa outro caminho. Não me interessa que me encham a pança se, em troca, não posso protestar. Portanto, creio  no caminho democrático para melhorar a situação de vida da população do nosso continente. Por um lado, insisto, isso requer autocrítica, descobrir no que erramos. E, por outro lado, requer levar muito a sério as regras do jogo democrático. E eu gostaria, com humor, acrescentar algo ao que Edgardo disse. Creio que a vontade da população, numa democracia que se opõe à vontade da população, deixa de ser democrática. A vontade da população abstratamente é algo rousseauniano [Jean-Jacques Rousseau, (1712-1778) autor do livro O contrato social (1762) importante obra de teoria social e política que influenciou a Revolução Francesa], não sei bem onde está. Creio que uma pessoa que leva cem mil pessoas às ruas não a expressa melhor do que um governo com milhões de votos. Creio que a vontade coletiva, em uma sociedade democrática, constrói-se com o jogo parlamentar, em especial com a oposição parlamentar, com uma imprensa livre e muito crítica, com movimentos sociais muito fortes, que cumpram uma função essencial na sociedade. Mas sem tentar substituir os partidos políticos, nem muito menos o governo. Necessitamos de muita democracia na América Latina e preocupação pelas condições de vida dos habitantes.

Paulo Markun: Alfredo.

Alfredo Ezequiel: Para os latino-americanos, o único desafio é como construir a democracia em condições de desigualdade. Ou seja, o ideal da democracia liberal, da igualdade e da liberdade, temos um grande problema em todos e cada um dos nossos países. Isso posto, a democracia política ou a democracia como tipo de regime é pré-requisito para se chegar a qualquer nível de democracia quanto à sociedade. As instituições são importantes, são decisivas, significativas para uma democracia. E a instituição que, até novo aviso, temos hoje, em todas as democracias ocidentais é a dos partidos políticos. Ou seja, o fato de os partidos políticos serem fracos, esse é, sem dúvida, um indicador importante para decidir qual é a qualidade, a limitação da democracia. Onde não há partidos políticos, onde os partidos não cumprem as suas funções é onde a democracia entra em crise. Portanto, creio que nesse desafio para nós, os latino-americanos, e para a juventude, é muito importante pensar que é necessário construir novos partidos políticos. É necessário revalorizar a participação na política. O nível de abstenção da juventude latino-americana nas eleições, o nível de abstenção da juventude latino-americana nas organizações políticas é muito alto. Eu diria alto demais. É que a velha classe política teve um discurso e não teve a capacidade para realmente convocar para participar da democracia. Se acrescentarmos processos eleitorais fraudulentos, nos quais os conselhos nacionais eleitorais defendem um lado, fazem com que a oposição não funcione. Quando uma verdadeira, genuína democracia política implica governo e oposição. Onde a oposição não existe não pode existir democracia política. A oposição é tão importante quanto o governo. Porque no dia em que nós cidadãos vamos votar, no mesmo ato eleitoral, elegemos quem vai governar e quem fará parte da oposição. Isso é muito importante. Infelizmente, nos nossos países as eleições tornaram-se um tipo de jogo 1x0, em que as apostas são altas demais. O candidato vencedor acha-se no direito de levar tudo. O perdedor fica sem os direitos. É uma democracia política que não funciona.

Paulo Markun: Ok, Atílio.

Atílio Borón: Com essa democracia não temos esperança. Além do mais, discordo de muitas observações feitas aqui. A de Pablo, há pouco. Qual democracia na América Latina? Se vamos tomar os grandes filósofos políticos da humanidade, comecemos com Aristóteles [(384 a.C.-322 a.C.), filósofo grego cujos estudos mais conhecidos foram reunidos pelo filósofo Andrônico de Rodes e por ele intitulados Metafísica, que trata do estudo da filosofia primeira, das causas e dos princípios da existência]. Esses regimes políticos, nenhum [eu] qualificaria de democracia. Chamaria de oligarquias. São governos de minorias em benefício de minorias. Demonstrem que uma dessas coisas que chamaram de democracia no Uruguai, na Argentina, na Colômbia, na Bolívia, tenha governado pelo interesse do povo. Desafio que alguém o prove. Não conseguem provar. Só, disse Lula, em véspera de eleição no Brasil: "Não se incomodem em votar. Hoje em dia, governam os mercados". O Brasil vota a cada dois anos, os mercados votam todo dia. E a política econômica que seguiu no Brasil está condicionada ao que Lula disse. Por quê? Não por fatalidade histórica, por uma debilidade desses modelos democráticos, que não são democráticos e governam em favor do mercado, não do povo. Por que não se submete à consulta popular questões como a entrada na Alca? O Brasil está negociando se entra ou não. Bom, se são democráticos, digo isso ao meu governo na Argentina, por que não submetem à consulta popular? O Uruguai, com a sua democracia tão perfeita, onde se respeitam tanto os direitos... Que direitos respeitam? 40%, 50% da população vivem abaixo da linha da pobreza. Que direitos respeita o México, que em  vinte anos de ajuste neoliberal mandou dez milhões de mexicanos para os EUA? Dez milhões. Mais de 10% da população mexicana atual. Que democracia é essa? Aqui não há democracia. Aqui, o regime é oligárquico. Com essa democracia oligárquica não vamos a lugar algum.

Paulo Markun: Vivian...

Vivian Urquidi: Na questão da democracia, não podemos duvidar da sua importância e reivindicá-la constantemente. Neste momento, a questão da América Latina principalmente em países mais debilitados como a Bolívia, e até que ponto restabelecer os canais institucionais de negociação para apresentar a pluralidade, a diversidade, ou até quando a sociedade civil continuará passando, superando o Estado. Vejo com bastante otimismo como se apresentam as alternativas democráticas, porque, até agora, nenhum país, haja vista a decepção do caso venezuelano, quando a direita tentou tomar o poder quando Chávez... Não vejo saídas diferentes, pelo contrário, vejo a defesa da democracia. Na troca de poder em curso na Bolívia, vê-se essa defesa. Creio que sim. O que está havendo é uma tomada, como bem colocaram os colegas, é a tomada de consciência da população que precisa participar, precisa de uma democracia mais aberta. E cada país achará a saída, a forma da democracia aberta. Se houver maior participação indígena, será uma democracia que considere autonomias locais, de forma diferente, escolher as autoridades de forma diferente. A saída não se coloca contra a democracia, mas sempre a reivindica e defende.

Paulo Markun: Guillermo.

Guillermo Hoyos: Estou de acordo com Atílio. Acho que não podemos, digamos, claudicar no sentido forte da democracia. Precisamos ver onde não há. Se dizem que há democracia, há segurança democrática, que nos digam, efetivamente, de que consiste. Creio que o mais valioso, muito filosófico, de John Rawls [(1921-2002) autor de obras importantes na filosofia política entre essas, Uma teoria da Justiça (1971), Liberalismo político (1993), entre outras] é dizer: "não há sociedade bem organizada se na base não houver justiça com eqüidade". Falamos de democracia, de participação, de, sei lá o quê, e seguimos sem resolver os problemas dos direitos econômicos, sociais, culturais em democracias de elite, neocoloniais, sucessão... É fabuloso. Se você tem alguém lá em cima, chega sem participação democrática. Creio que precisamos procurar saídas. O termo famoso para democracia é "assinatura pendente". Devíamos ler os intelectuais desde o início da escola, na universidade, na própria cidadania. O grande problema é que não confiamos nos cidadãos e não somos capazes de repetir "vão todos embora", aos líderes.

Paulo Markun: Enrique.

Enrique Dussel: Digo também que isso exige um debate. A democracia, eu simplificaria quase, dizendo que é um sistema de legitimação. No sentido de que é um sistema político que permite que as decisões e as instituições gozem do predicado de "algo legítimo". Acontece que há muitos níveis, um nível de sistemas empíricos chamados democráticos. Nenhum exemplar, todos singulares. É preciso estudá-los historicamente. Há níveis de instituições democráticas, como votar, maioria, minoria, etc. Há modelos. Modelo clássico, modelo deliberativo de democracia, democracia liberal, ou democracia... É preciso discutir o que significam os modelos. Depois se fala da representação, que considero inevitável, mas a questão é como articulá-la com a participação. Há problemas a discutir. Se pensarmos que a democracia é um sistema de legitimação pelo qual um povo pode expressar a sua vontade, seria um instrumento praticamente revolucionário. Significaria que as pessoas poderiam, por fim, decidir algo. Sabemos, não obstante, estou de acordo com alguns colegas, que estamos profundamente atados em um pacote, no qual sabemos que somos neocolônias econômicas, que nunca tivemos autonomia política, que estamos "sob a espada de Dâmocles" [referência à expressão que significa estar em perigo iminente] de exércitos que se, por último, quisessem tomar decisões importantes, até poderiam nos despedaçar. Então, não há garantia alguma de que um povo realmente democrático, não fosse destruído pelo império no caso de se tornar não manejável por eles. Então, aqui há um dilema muito forte. Se o nosso povo, de repente, decidisse que vamos ter autonomia territorial e vamos trabalhar as nossas gestões e nosso subsolo e vamos descobrir como as nossas dívidas foram contraídas por governos não democráticos, militares e, portanto, não vamos pagar, eles não admitiriam. Então, essa é uma questão que deve ser discutida em muitos níveis. Ao mesmo tempo, e vou concluir com isso, estamos em meio a uma situação - também por desgraça -  em que a opinião pública está nas mãos da "mediocracia". Ou seja, as grandes multinacionais dominam a opinião pública. Não existe liberdade. Falam de liberdade de imprensa, mas não do direito do cidadão a uma informação veraz, em que pudesse ter tribunais. Temos tal distorção em uma situação neocolonial que então a tarefa será grande e não tão simples. Terá de ser uma luta dos povos, que já começou, mas que não se vislumbra quando se irá conseguir alguns frutos realmente estáveis.

Paulo Markun: Nós vamos fazer um rápido intervalo [...]

[intervalo]

[Comentarista Paulo Markun]: No vai e vem do autoritarismo e das tentativas de democratização, a América Latina vive entre a esperança e o descrédito da população nos políticos. A revolta das ruas, especialmente na América Andina, tem deixado clara a insatisfação com os novos governantes democráticos, que acabam se mostrando incapazes ou desinteressados em atacar os problemas econômicos e diminuir a desigualdade social. No entanto, para alguns analistas, os conflitos gerados pela indignação popular não são exatamente contra a democracia, mas contra as práticas políticas que privilegiam minorias, abusam do poder e cometem corrupção. O problema é que tanto as manifestações dos movimentos sociais, quanto a reação de governantes, podem se dar por caminhos pouco ou nada democráticos. E esses analistas lembram que se falando de América Latina, cada vez que se dá as costas para a democracia, é grande a chance de tudo acabar em sangue.

Paulo Markun: Bem, minha pergunta é uma provocação e o tempo é curto. Se essa onda “que se vayan todos” [vão todos embora] acontece, o que é que vem depois, qual é o futuro da democracia na América Latina? Vivian?

Vivian Urquidi: Eu não assino embaixo do "vão todos embora". Pelo contrário, acredito que existe um desejo de participar, de interpelar o cenário político. É o que estamos vendo no momento como crise. Se você tem uma quantidade, uma população historicamente marginalizada, que começa a participar do quadro político, não é "vão todos embora"; é "entremos todos" a participar dessa nova situação local. A minha perspectiva é sempre otimista. Não vejo que o que vem depois necessariamente seja maior marginalidade, pobreza. Pelo contrário, vejo uma saída de maior participação e maior democracia.

Paulo Markun: Ok, Atílio.

Atílio Borón: Um quarto de século de políticas neoliberais tornaram as sociedades latino-americanas muito mais injustas do que antes. Inclusive o caso do Chile, que Pablo propôs discutir. O Chile, há  trinta anos, com Costa Rica, Uruguai e Argentina, era uma das sociedades mais igualitárias da AL. Hoje, com Brasil, Honduras e Guatemala, é uma das quatro sociedades mais desiguais e injustas da América Latina. Essa é uma herança do neoliberalismo; a outra é o descrédito da democracia. O que pode vir a seguir? Nessa pesquisa do PNUD, a que me referi, 55% da população latino-americana está disposta a aceitar qualquer regime não democrático capaz de resolver os seus problemas econômicos. O fracasso da democracia sob o neoliberalismo, leva-nos a novas formas mais tremendas de autoritarismo político.

Paulo Markun: Alfredo.

Alfredo Ezequiel: A expressão "vão todos embora" é uma expressão “antipolítica”, que dominou o ambiente em muitos países latino-americanos. Ela pode conduzir e provocar no eleitorado reações irresponsáveis, reações que afetem a sensibilidade das pessoas. De modo tal que os "messias", os líderes carismáticos, candidatos a um papel aventureiro com êxito, podem-se apresentar como se fossem resolver o problema. "Vão todos embora" é uma expressão que há quem afirme que seja fascista. Que leva a justificar os regimes autoritários. Considero que, se for certo mesmo, a velha classe política fez muito mal aos nossos países, essa rejeição não deve abrir caminho para líderes improvisados. Deve ser uma solução muito mais madura, mais pensada.

Paulo Markun: Pablo.

Pablo da Silveira: Não sei qual é o futuro da democracia na América Latina. Sei que se, nos próximos anos, perdermos a democracia na América Latina, só teremos conseguido agravar a situação. Ter 50%, 60%, 70% da população abaixo da linha da pobreza é um escândalo. O grande desafio pendente que temos, sem dúvida, é a justiça social. A única coisa pior do que ter altos níveis de pobreza é ter altos níveis de pobreza e não ter liberdade política, nem garantias constitucionais. Se isso nos acontecer, teremos retrocedido mais ainda.

Paulo Markun: Edgardo.

Edgardo Londer: Às vezes, há setores de pensamento de direita, que dizem coisas com maior transparência, claridade, com relação a como funciona o mundo. Eu queria ler, rapidamente, uma opinião de José Maria Aznar, ex-presidente da Espanha, que disse o seguinte: "Há só uma política econômica no mundo, com matizes. Aplique-a, ou ficará de fora, sem competir. A política é de controle de gastos e endividamento esquentando a concorrência, mais a capacidade dos países. Não é questão de ser populares ou não, mas ser necessária ou não. Os mercados financeiros tiram uma radiografia todo dia dos países, examinando se temos algum mal. Se vêem que está política e economicamente saudável, confiam em você. Se vêem que está mal, passam faturas. Com essa radiografia diária em mãos, os investidores decidem o destino dos fundos. Se as decisões econômicas fundamentais e o destino do país estão sendo definidos desse modo, falar de democracia é ficção".

Paulo Markun: Guillermo.

Guillermo Hoyos: "Vão todos embora" sem hesitar, cidadãos. Com isso não se acaba a política porque a política e a democracia são dos cidadãos. Você começou dizendo que o Brasil precisava olhar mais para toda a América Latina. Creio que, neste momento, seria uma esperança trabalhar fortemente a cooperação regional. A Colômbia está se especializando em armar confusão em suas fronteiras. Somos puxa-brigas. Mas Equador e Colômbia vão divinamente. Venezuela e Colômbia vão divinamente. Creio que a cooperação regional, claro, precisa de diretores de orquestra. Mas deve ser a cooperação regional de cidadãos que acreditamos na democracia, que queremos a democracia, etc.

Paulo Markun: Enrique.

Enrique Dussel: O povo vai formando os intelectuais em sua luta. Os intelectuais [nós] deveríamos primeiro colaborar na formação de intelectuais, não de vanguarda, mas de retaguarda. É a nossa missão hoje. É interessante, a pergunta é meio capciosa. Se eu dissesse ao povo, se perguntasse para obter o desenvolvimento, o que você prefere: um governo democrático, ou não democrático? As pessoas diriam "democrático". Porque a pergunta malfeita traz a resposta. Creio que todos concordariam, se for possível o crescimento é melhor com a democracia. A pergunta é ambígua. Além disso, é preciso ver as situações geopolíticas mutantes, neste momento, e a crise do império. Haverá, em um futuro próximo, situações bastante diferentes, sem a bipolaridade da Guerra Fria, mas haverá outro tipo de situações não tão monológicas, como agora. Também concordo que se deve pensar seriamente nessa associação, comunidade da América do Sul, que deveria crescer com a entrada da América Central e México. Porque nessa colaboração latino-americana poderá haver uma frente comum. Creio que se deve pensar jogar o jogo da democracia, mas vindo dos movimentos populares.

Paulo Markun: Bem, nós terminamos aqui o Roda Viva especial desta noite, eu queria agradecer a participação de todos. É evidente que um tema tão complexo quanto este e a realidade de tantos países, que nós brasileiros ignoramos muito, certamente não se resolve em uma hora e meia de programa. Mas tenho esperança de que, de alguma maneira, ao abordarmos essas questões e até com pontos de vista claramente divergentes, a gente, pelo menos, estabelece um primeiro passo para que o país preste mais atenção no que está se passando com os nossos vizinhos e também se dê conta de que, muitas vezes, uma crise pode levar a um caminho que não é o melhor para o futuro do nosso país. Bom, obrigado a todos, uma ótima semana e até segunda.

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