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Memória Roda Viva

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Roger Chartier

3/9/2001

O historiador cultural fala das transformações dos livros ao longo dos séculos e ainda discute a técnica eletrônica - como internet, e-books - nas novas formas de se praticar a leitura e a escrita

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 [Programa gravado não permitindo, portanto, a participação de telespectadores]

Paulo Markun: Boa noite. O livro, que já enfrenta grandes mudanças, vai existir um dia somente na tela do computador? Isso vai significar acesso ao conhecimento universal ou a uma sociedade mais justa? Quem busca resposta para estas perguntas é o diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Há décadas ele pesquisa a história do livro e da leitura, e agora se debruça sobre o impacto das novas tecnologias no universo da escrita. O Roda Viva entrevista, esta noite, o historiador francês, Roger Chartier.

[Comentarista]: Roger Chartier em sua [obra] A aventura do livro [- do leitor ao navegador; conversações com Jean Lebrun] (1999) faz mais do que um histórico da cultura, da escrita e da leitura. Começa em reflexões sobre a tensão que atravessa o mundo contemporâneo, dividido entre afirmações de particularidades e o desejo do universal. A internet faz renascer um sonho de universalidade - no qual toda a humanidade participa de idéias -, mas suscita também a angústia de ver desaparecer a cultura do livro: qual é o futuro do livro? O que nos ensina o seu passado? Analisando a revolução das revoluções, Roger Chartier diz que: "de fato, a primeira tentação é comparar a revolução eletrônica com a imprensa revolucionária de [Johann Gensfleish] Gutenberg [(1397 (?)- 1468) inventor alemão do processo de impressão tipográfico com caracteres móveis], discutir o que já mudou e imaginar o que ainda pode ser mudado". Dos manuscritos aos livros feitos com antigos móveis, passando pelo livro moderno, até a tela dos computadores, Roger Chartier registra as mudanças que a sucessão de técnicas novas promoveu na escrita e na leitura ao longo dos séculos. Como era escrever e ler nos antigos livros escritos em rolos? As relações entre o autor e o poder religioso ou político, o surgimento da figura do editor, do livreiro e de outros profissionais envolvidos na atividade editorial? Ao longo dos séculos, a cultura da escrita viveu dilemas, ameaças e temores. O temor de perda, por exemplo, que levou em busca de textos ameaçados, a cópia de livros sacros, a cópia de livros preciosos e a criação de grandes bibliotecas, símbolos da acumulação do saber. Mas na análise de Roger Chartier, a preservação do patrimônio escrito criou uma nova preocupação: a do excesso. A proliferação de textos pode ser um obstáculo ao conhecimento e o controle do excesso aponta para uma situação irônica - as idéias para atrair, classificar e hierarquizar a escrita, acabam - elas próprias - reunidas em novos livros, que vão se juntando ao gigantesco universo de textos já acumulados pela humanidade ao longo da aventura do livro.

Paulo Markun: Para entrevistar o historiador Roger Chartier nós convidamos: a jornalista Sylvia Colombo, repórter do jornal Folha de S. Paulo, da sessão Ilustrada; o empresário Pedro Herz, diretor da Livraria Cultura; a historiadora Andrea Daher, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Alcir Pécora, ensaísta e professor de literatura da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Convidamos também o editor Quartim de Moraes, da editora Senac São Paulo; e João Adolfo Hansen, professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo (USP); está conosco ainda a professora Maria Theresa Fraga Rocco, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estado brasileiros e também para Brasília [...] Boa noite, professor Roger.

Roger Chartier: Boa noite.

Paulo Markun: A essa hora, provavelmente meu filho que tem 15 anos de idade vai estar lendo. Tenho a mais absoluta certeza disso, porque ele passa quase 12 horas por dia diante da tela de um computador, lendo e escrevendo. Mais do que isso, entrando em contato com amigos e colegas de várias partes do país e até do exterior. O problema, para mim, é que metade do que ele escreve, ou do que ele lê, eu não compreendo. É escrito em uma língua diferente, que não é exatamente o português, as regras gramaticais [são] diferentes. E, ao mesmo tempo, isso é feito numa sucessão de telas que trocam tão rapidamente, que eu jamais consigo perceber com quem que ele está conversando, o que ele está escrevendo, ou lendo. [Mas] não há a menor dúvida de que ele está lendo, porque são caracteres que têm um sentido e que ele digita e compreende e com isso se comunica. Tenho certeza que ele não é o único. Há milhões de garotos da mesma idade, no mundo inteiro, que fazem isso. Queria saber o que [esse movimento] vai fazer com esse objeto aqui, que é o livro, e eu sei que você - em um certo sentido - também gostaria de saber. Mas, em linhas gerais, é possível imaginar o que essa geração, que escreve e lê dessa maneira, vai fazer com o livro no futuro?

Roger Chartier: Em primeiro lugar, quero dizer que infelizmente não falo português e por isso pensei em usar o espanhol para este diálogo com você e com os amigos. Acho que este livro que temos, agora, vai sobreviver num futuro que não podemos medir com exatidão, mas é o futuro das próximas décadas. Alguns textos são compatíveis com a forma eletrônica, como os textos enciclopédicos, por exemplo. Ninguém lê uma enciclopédia da primeira à última página. A busca de um artigo significa a busca a partir de um tema, de uma rubrica, de um campo de interesse. A partir desse momento, vemos que o que você descreveu: essa série de telas que se sucedem é adequada a uma leitura de tipo enciclopédico. Esta é a razão pela qual as primeiras obras que têm apenas edição eletrônica são as enciclopédias. A enciclopédia Britânica, a Universalis. Já para um ensaio, um romance, um livro de história acho que o tipo de leitura exigido é uma leitura contínua, que estabelece familiaridade com o texto e, sobretudo, que envolve percepção da obra como obra em sua integridade, sua essência, sua coerência. Até agora, acho que o livro, tal como o conhecemos, corresponde a essa exigência. Um romance, mesmo que não sejam lidas todas as páginas, impõe sua existência, sua coerência, sua identidade, através da forma livresca. Já na tela, o risco é que a fragmentação da leitura desconsidere totalmente a obra como obra. E se existe o risco que você mencionou, com relação aos hábitos dos jovens diante da tela, devemos sempre insistir na dimensão da obra como obra, o que se perde no texto eletrônico. Por um lado, acho que esse tipo de livro vai sobreviver, no que se refere a certos gêneros de texto. Por outro lado, acho que cada um deve, diante do uso que os jovens fazem do computador, ensinar que os textos não são apenas fragmentos, que não há apenas a língua inventada da comunicação eletrônica. O que você mencionou com respeito ao português vale também para o francês ou o inglês. O inglês da internet não é o inglês culto ou correto. Além disso, o predomínio do inglês na rede eletrônica impõe suas próprias formas a outras línguas. Por exemplo, a desaparição dos acentos ou da pontuação invertida do espanhol. Eles desapareceram da comunicação eletrônica. É uma forma muito sutil do triunfo do inglês na comunicação eletrônica. Impor formas não acentuadas às línguas que usam acentos é uma forma de simplificação, que você está sentindo e com toda razão. O risco não é apenas a hegemonia de uma só língua, mas também a destruição das outras línguas, sobrevivendo dentro desse mundo eletrônico.

Paulo Markun: Agora, o senhor é otimista em relação a essa sobrevivência? Quer dizer, o senhor acha que será uma sobrevivência saudável, essa do livro, ou apenas - vamos dizer assim - a duração de um produto e de uma forma de comunicação que já está caducando?

Roger Chartier: Acho que não. Acho que existe uma primeira realidade, diferente das telas de antigamente. As telas de computador transmitem textos, trazem cultura escrita, e não apenas imagens. É claro que transmitem imagens também, e sabemos que muitos passam muito tempo diante delas, mas também existem textos, há bancos de dados com textos, o acesso a jornais e livros, a comunicação eletrônica, que é escrita. Então, não podemos supor que o triunfo da forma eletrônica signifique a morte da cultura escrita. De forma alguma. Dentro dessa sobrevivência - da cultura escrita - acho que existe a sobrevivência de outras formas além da eletrônica. Ou seja, o texto manuscrito ou impresso deve sobreviver, porque corresponde a usos, necessidades e hábitos tão profundamente incorporados que não vão desaparecer. Se há o risco da desaparição, entre os grupos mais jovens, acho que podemos insistir, mostrar a riqueza, a importância da forma impressa, que mantém a relação entre o objeto escrito e a obra como obra. Aí vejo uma possibilidade de sobrevivência e otimismo.

Quartim de Moraes: A sua referência, feita há pouco, sobre a predominância do inglês na rede, fez lembrar a sua intervenção na palestra na Bienal do Livro [de São Paulo. Evento em que editoras de todo o mundo expõem suas obras e lançamentos. Momento em que o público pode, além de comprar livros, encontrar com os escritores, assistir palestras, debater idéias, pedir autógrafos, etc], a qual eu tive o privilégio de assistir. E temos também os dados que você mencionou: 49% da rede hoje fala inglês, uma quantidade impressionante. A constatação dessa realidade, dessa tendência - a hegemonia - que você qualifica como uma ameaça e eu concordo, em sua opinião, pode favorecer o fato de que algum idioma - o inglês, o chinês -, por exemplo, um dia se torne hegemônico, não só na rede, mas no mundo. Ou, por outro lado, o desenvolvimento, a proliferação da rede pode facilitar, estimular mesmo a pluralidade cultural, que é inerente à natureza humana. Qual a sua opinião?

Roger Chartier: Acho que é um desafio. Porque os dois elementos que você mencionou existem. Por um lado, a tendência à hegemonia, começando com a hegemonia de uma língua; 48% dos sites ou endereços eletrônicos estão localizados em países de língua inglesa, o que significa a onipresença do inglês, que é também o domínio das empresas de multimídia mais poderosas, além do domínio do modelo cultural relacionado à língua. Esse é o risco, daí vem um certo temor frente a uma unificação lingüística, que seria também uma unificação cultural. Foi por isso que, nessa conferência, mencionei um texto de [Jorge Luís] Borges [(1899-1986) escritor e poeta argentino. Autor de Ficções (1944), livro de contos; A cifra (1981), livro de poesias e outros], “Utopia de um homem que está cansado” [conto do Livro de areia, 1975], no qual a humanidade volta a ter uma só língua. Mas, ao mesmo tempo, nesse mundo unificado, não há passado, não há livros, não há memória, nem identidade ou nome. A fábula de Borges significava o temor, o risco dessa dependência. No outro extremo das possibilidades de nossa imaginação, ou de nossa intervenção, existe a idéia de que, pela comunicação eletrônica - em primeiro lugar - seria mantida a diversidade lingüística e cultural. Acho que é uma promessa para a humanidade. No entanto, é preciso respeitar certas condições. Por um lado, o ensino, a capacidade de entender idiomas - sem necessariamente falar, mas para manter um diálogo entre duas línguas. Por outro lado, uma reação diante da tendência hegemônica de uma só língua das empresas que controlam o mercado da informação, a composição dos bancos de dados e uma intervenção não apenas na comunicação eletrônica, mas também no universo dos textos. Seria possível respeitar a diversidade cultural e também dar um conteúdo técnico particular ao sonho da ilustração. Construir um espaço público com a participação de cada um como leitor e como escritor. Ou seja, num mundo de intercâmbios, críticas, opiniões, idéias, reações. Não acho que esse futuro já esteja determinado. É uma aposta, um desafio, e cada um tem seu próprio poder. Os poderes são desiguais, claro. Cada um pode interferir para que o futuro não seja o pior possível, mas o melhor.

Sylvia Colombo: Você costuma chamar atenção para o caos textual que vivemos na internet, a possibilidade de muitas informações falsas que estão sendo veiculadas. Qual seria a solução para evitar isso? Criar um conselho que legitimasse alguma informações e não outras?

Roger Chartier: É um tema importante, porque acho que essa desaparição da relação entre um objeto particular, quer seja um livro, uma carta, uma revista ou um jornal, e certos tipos de textos causa confusão quanto à autoridade dos textos. Vemos isso entre os jovens, sobretudo nos EUA, que buscam informações na rede, mas são informações não controladas. Todas as informações disponíveis parecem iguais. Podem ser utilizadas numa tarefa de escola ou num trabalho dentro da universidade. Não tenho... Não existe uma solução simples, mas o desafio essencial do texto eletrônico é que, eliminando essa vinculação tão forte para nós entre certos tipos de objetos e uma autoridade diferenciada dos textos, cria-se essa confusão. Isso pôde ser visto quando um jornalista francês pesquisou na rede todas as referências a respeito do Holocausto. O que assusta é que a maioria das "informações" que chegam vêm dos sites negacionistas [teoria negacionista], que dizem que não existiram câmaras de gás e que o Holocausto não aconteceu. Diante dessa proposta, há uma diferença total com relação ao livro impresso. Se a mesma pesquisa for feita em textos impressos, será baseada em artigos, em enciclopédias, em livros de historiadores reconhecidos e com um estatuto de validação científica. Isso é um grande problema, pois tudo o que vem pela rede eletrônica parece igual. É possível localizar um fragmento de informação dentro do web site, do banco de dados, do texto ao qual pertence esse fragmento. É um grande problema. Não sei se pode resolver, mas devemos pensar nessa questão. A questão da autoridade diferencial dos textos. Na cultura impressa, era mantida a percepção dessa diferença graças aos diferentes registros de textos. Uma enciclopédia não é uma revista, que não é um jornal, que se compra diariamente, e uma carta não tem a mesma natureza ou autoridade de um livro científico. Cada um tinha um sistema mais ou menos espontâneo de organização, de hierarquia, de autoridade dos textos, e tudo isso acaba no texto eletrônico como o conhecemos. Por isso, acho que um futuro possível seria a diferença entre a comunicação eletrônica, que corresponde ao que você descreveu - cada um propondo suas idéias, abrindo um site - e a edição eletrônica, que seria a reconstituição no mundo do texto eletrônico, dos controles, da autoridade dos textos, de um processo de verificação e autenticação dos textos. Até agora, há confusão entre comunicação e edição eletrônica. Tudo aparece da mesma forma na tela, como se ela transmitisse um mundo textual unificado, mas acho que já existe uma diferenciação entre a edição e comunicação eletrônica que vai se aprofundar nos próximos anos ou décadas. Não seria uma resposta, mas um caminho a direção da sua pergunta, que me parece mais uma inquietude.

Maria Theresa Fraga: Eu queria voltar um pouquinho àquela primeira questão que o Markun começou falando sobre o filho dele, sobre que tipo de texto esse menino de 15 anos faz. Pensando nos textos dos jovens, e mesmo nos textos das pessoas mais velhas, e numa comunicação menos formal, mais informal, eu poderia dizer, num primeiro momento, que uma nova forma de escrita tem surgido, uma escrita híbrida, que tenta passar pelo canal eletrônico uma forma oralizada. Ela é cuidadosamente produzida com ícones, com abreviaturas, com sinais para poder parecer oral. Então, haveria uma escrita híbrida, que seria um meio caminho entre a oralidade e a escrita, ela seria uma escrita diferente. Uma primeira coisa que eu teria a perguntar é: seria isso uma escrita diferente, quando a gente tem essa comunicação menos formal? Porque eu acho que na comunicação formal, escrita, a gente continua obedecendo as mesmas regras. Agora, se isso acontece, se a comunicação passa a ser híbrida - uma mistura de oral e de escrito - eu posso pensar, por exemplo, que essa comunicação eletrônica, de certo modo, está substituindo a função de um suporte, que é o telefone. O telefone passa a servir, por exemplo, para o fax, para a própria rede, mas não mais... É, fundamentalmente, aquele suporte através do qual os jovens conversam tanto entre si, através do qual nós fazemos convites para as pessoas, ou contando coisas. Isso vai para o veículo eletrônico. Então, eu acho que há uma mudança de função de suporte do telefone, ao mesmo tempo em que, a meu ver, surge o texto escrito híbrido, que é uma mistura de oral e de escrito. O que o senhor pensa a respeito?

Roger Chartier: Acho que você tem razão em destacar a ambigüidade do texto do computador. É um texto que mistura, ao mesmo tempo, uma língua mais ou menos deteriorada ou simplificada, o inglês, o português, o francês, que introduz nessa expressão lingüística uma linguagem pictográfica, como se vê, sobretudo, nos EUA, aquelas carinhas que se chamam emoticons. [Elas] indicam se a frase deve ser lida como irônica ou triste, ou se quem escreve tem uma reação de ira, de cólera. É uma língua pictográfica e uma transposição da oralidade. As abreviaturas podem desempenhar esse papel de introduzir formas orais no texto escrito. Aí há uma ambigüidade dentro do texto, que reflete a complexidade desse meio, que transmite textos, imagens e sons ao mesmo tempo, música, palavras vivas. Isso ajudaria numa comunicação mais espontânea, mais livre e, a partir desse momento, mais imediata e universal. O grande risco seria considerar que, qualquer que seja a forma do texto, sua função, seu gênero, deve duplicar essa forma de texto espontâneo. Seria responsabilidade da escola permitir, dentro da hierarquia e da autoridade dos textos, um mundo textual diferenciado. Não havendo razões de oposição contra esse uso livre e inventivo do texto eletrônico dentro da comunicação eletrônica. Acho que devemos mesmo insistir na diferença do que é escrever um texto, porque os textos não são sempre iguais. Se você escreve um ensaio ou um texto personalizado não se deve respeitar as convenções. Elas podem mudar, claro, mas não existe a obrigação de unificar qualquer texto a partir do modelo que você descreve. Mas é uma contribuição interessante na longa história da expressão escrita.

Pedro Herz: [A] comunicação eletrônica, [a] que você se refere, é informalidade e até uma mudança de comportamento, estimula a produção intelectual no seu modo de ver?

Roger Chartier: Seguindo esse caminho aberto pela ilustração, e estou pensando num texto de Immanuel Kant [(1724-1804) filósofo alemão. Autor de Fundamentação da metafísica dos costumes, A crítica da razão prática, entre outros], de 1784: O que é a ilustração?. Kant definia a ilustração como o processo por meio do qual cada um pode, potencialmente, intervir como sábio. Segundo o texto, propondo suas idéias, suas críticas das instituições, podemos acrescentar até criações estéticas diante do público que lê. Trata-se de intervir como leitor desses textos propostos para definir um espaço comum, uma esfera pública. Pensando nas técnicas que correspondem a esse sonho, vemos que, na época de Kant ou no mundo da cultura impressa, havia limites muito marcados para essa construção de uma esfera pública a partir de uma prática em que cada um podia intervir como escritor e leitor. A técnica eletrônica propõe uma forma de intervenção em relação a essas duas posições, escritor-leitor, sábio-leitor. Isso, até agora, não existia. Por isso acho que há uma realidade técnica que permite cumprir o programa previsto por Kant. Se entendi bem a pergunta, devemos acrescentar que isso que eu descrevi é uma realidade virtual, como o texto eletrônico. Não é a realidade do mundo contemporâneo. Ainda citando Kant, ele dizia que seu tempo não era um tempo ilustrado, mas um tempo em que se iniciava um processo de ilustração. Poderíamos dizer o mesmo do nosso tempo contemporâneo. Há desigualdades no acesso a essas técnicas, desigualdades econômicas, sociais, culturais, que existem em todos os países e também em âmbito mundial. Por exemplo, dos 48% de endereços eletrônicos em países de língua inglesa, podemos opor os 4% de endereços eletrônicos em países de língua espanhola. Isso mostra que existem desigualdades socioeconômicas no acesso à possibilidade de manejar a técnica eletrônica. Esse é um limite bem visível que pode ser superado, mas que existe hoje. Em segundo lugar, e até já discutimos essa questão, a relação com essa forma de comunicação escrita na realidade eletrônica não corresponde exatamente ao sonho de Kant, e alguns usos não fazem parte desse projeto de um intercâmbio crítico que define um espaço público. Essa ambigüidade me parece o fio condutor da discussão. É uma idéia clássica, as técnicas não têm sentido em si mesmas. Existem possibilidades de uso que dependem dos usuários, e não há um destino inscrito dentro de uma técnica. A técnica é o que os povos, os cidadãos, os poderes econômicos ou geopolíticos fazem com ela. Aí existe a possibilidade de uma intervenção. É uma outra razão para o otimismo. Não é um destino inscrito dentro da técnica. Se entendi bem a pergunta, há dois elementos: há o risco de um uso muito distante do que poderia ser, ou seja, uma técnica que oferece uma possibilidade de construir esse espaço público na escala de cada país e do mundo inteiro.

Paulo Markun: Professor, nós vamos fazer um rápido intervalo e voltamos daqui a instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva. [Que] esta noite entrevista o historiador francês Roger Chartier. O senhor, nesse livro, A aventura do livro - do leitor ao navegador, da editora Unesp - aliás, muito bem editado, com imagens muito bonitas - menciona as mudanças que aconteceram também na questão da leitura, e se refere especificamente à perda do espaço para a leitura em voz alta, que, durante muito tempo, foi dominante na nossa sociedade. E eu, lendo esse texto, me perguntei se, eventualmente, a televisão não se transformou nesse espaço, já que eu, nos últimos vinte anos, como jornalista de televisão, nada mais fiz do que ler em voz alta textos que foram escritos por mim, por outras pessoas, por uma equipe, que são os telejornais e as reportagens de televisão. Quer dizer, uma boa parte do que se faz - não é o caso desse programa - [mas] boa parte do que o público vê em casa - imaginando que são idéias originais daquele cidadão que fala com ele todas as noites - na verdade são textos elaborados por outras pessoas, num trabalho bastante complexo de produção, e que dão a plena sensação ao telespectador de que aquilo é uma conversa. Mas, na verdade, aquilo é uma leitura em voz alta. E queria entender o que o senhor imagina que vai acontecer com a leitura daqui para frente? Se essa transformação toda da comunicação eletrônica afetará também a leitura?

Roger Chartier: É uma observação interessante, porque a tendência geral foi a redução da importância da leitura em voz alta nas sociedades contemporâneas; limitada à relação entre adultos, pais e crianças, ou em ambientes institucionais, como tribunais, igrejas ou aulas acadêmicas. Eu nunca havia pensado na televisão como a forma mais abrangente da leitura em voz alta, mantendo algo do que caracterizava essa leitura nos séculos XVI, XVII, XVIII. Ou seja, uma socialização ao redor do texto lido por um leitor para outros, que são ouvintes. Daí essa forma de socialização permitida no meio familiar ou entre amigos pela TV. Podemos pensar no passado para entender melhor o futuro. Os historiadores gostam de dizer isso, porque justifica seu papel social. Não sei se funciona bem, mas podemos aceitar a idéia. [risos] Na Idade Moderna, séculos XVI a XVIII, a importância da leitura em voz alta - que você citou - relacionava-se à transmissão da cultura escrita aos analfabetos, ou aos que podiam apenas escutar o texto, sem poder ler diretamente. E se relacionava também, entre pessoas alfabetizadas, à idéia de compartilhar o texto. Ler um texto é criar uma forma de socialização, de amizade, de convivência. No mundo fragmentado da sociedade contemporânea, a leitura em voz alta, por parte dos jornalistas, ou dos que lêem na televisão, permite manter um pouco dessa socialização. Diante da técnica eletrônica, a tendência também é ambígua. Porque por um lado, existe a relação com o mundo inteiro, é um diálogo sem limites. O limite é o acesso à rede, em que há desigualdade, mas dentro desse universo não há limites. A realidade, ou a ilusão - não sei - é que existe uma comunicação universal, mas há também uma solidão radical do indivíduo frente à tela. A tela abre o mundo para ele, mas é um mundo por trás de uma superfície de vidro, que mantém o indivíduo em solidão, numa forma de relação consigo mesmo. O risco é que a idéia de comunicação com o mundo acabe sendo uma relação com você mesmo. Nesse momento, a tela poderia ser considerada um espelho, no qual cada um veria a si mesmo. Aqui há, sem dúvida, uma forma de radicalização, da perda do vínculo social nas sociedades contemporâneas e uma tendência a aumentar a divisão entre os indivíduos a partir da técnica, do objeto que permite o acesso ao universo, mas de uma maneira absolutamente individualizada.

Andrea Dahaer: Você fala de uma permanência da cultura escrita com a contextualidade eletrônica, por um lado. [E] fala, por outro lado, das possibilidades de usos inventivos e distintivos, tudo isso eletrônico. Mas acusa, ao mesmo tempo, a emergência de um novo iletrismo, com essa impossibilidade de acesso a essas formas eletrônicas de transmissão. Então, seria o caso talvez de inserir esse novo iletrismo numa longa duração. A pergunta seria: quais seriam, então, nessa longa duração, as figuras mais evidentes históricas do iletrismo, chegando até hoje a essa nova forma de iletrismo?

Roger Chartier: É uma pergunta interessante, porque utilizamos palavras como iletrismo, mas por trás delas, em cada situação histórica, há realidades diversas. Por exemplo, o iletrismo na idade média, ou nos séculos XVI, XVII e XVIII, correspondia à impossibilidade de ler e escrever. Então, era necessária uma mediação na leitura, a leitura em voz alta, ou uma mediação para escrever - os escribas públicos nas cidades. Percebe-se que há uma definição de iletrismo que vem desde o século XVIII até a sociedade contemporânea - anterior ao texto eletrônico - que é a incapacidade de ler ou escrever segundo critérios definidos, por exemplo, pela escola. Necessitamos de ler em voz alta para entender o texto, que se considera tradicionalmente nas pesquisas sociológicas como um sinal, uma indicação de analfabetismo, iletrismo, ou a possibilidade de escrever apenas de maneira fonética, num mundo em que a maioria escreve de outra forma. E agora, uma nova definição poderia ser a exclusão do acesso ao mundo eletrônico, que seria uma divisão profunda dentro das sociedades, numa escala mundial. Seria a tradução da desigualdade no desenvolvimento socioeconômico. Daí a idéia de um novo analfabetismo, que definiria pessoas capazes de escrever e de ler, mas sem acesso a tudo que existe por meio dessa nova forma tecnológica. Existe uma série de definições. Se pensarmos no presente, na necessidade de atuar, de agir para que o futuro não seja o mais provável e, se pensarmos de maneira teórica, quando utilizamos uma palavra como iletrismo, livro, leitura, devemos pensar naquilo que, para nós, é a realidade dessas palavras. Não devemos projetá-las como se fizessem referência às práticas do passado. Esse esforço talvez defina mais que o prognóstico, o papel do historiador, que é indicar descontinuidade em palavras, que não mudam. Estamos vendo isso hoje com o tema do livro. O livro não é necessariamente o objeto que você apresentou. Os gregos e romanos liam livros que não tinham nada a ver com esses. Eram rolos manipulados com as duas mãos para segurar seus suportes laterais. Talvez venha a existir um livro eletrônico, mas com critérios, formas e definições diferentes das definições de livro como objeto impresso, ou seja, a vinculação entre um objeto material e uma obra intelectual ou estética.

João Adolfo Hansen: Bom, Roger, você sabe que eu o admiro muito, esse seu pensamento material que eu acompanho com muita atenção. Em função do que você dizia agora, me parece que quando a gente vê a sua obra percebemos um processo histórico de desmaterialização crescente - quando a gente pensa no suporte. E você acabou de falar do volume, pode pensar o códice, até chegar à tela do computador. Como você pensa a função da memória hoje, na medida em que, aparentemente, o computador permite a gente ser só inteligente. Ou seja, a memória pode ser guardada fora de nós e ao mesmo tempo é uma memória, teoricamente, simultânea e descontínua, que permite, inclusive, a produção social de uma desmemória.

Roger Chartier: Essa memória é teoricamente infinita e simultânea, coisa que não existia na memória humana, na memória mental, que tem limites e é sucessiva. No sentido de fazer aparecer na mente elementos dessa memória, que é como uma prótese da memória que transforma a própria memória. Se voltarmos a Borges, “Funes el memorioso” [conto do livro Prosa completa (1979)], é totalmente paralisado por sua memória infinita. Ele memorizou cada momento, cada instante, cada segundo de sua existência, e essa memória precisa do tempo, do momento memorizado. Então, é uma memória que o paralisa, que não permite a criação. Não é uma memória que ajuda a criatividade, mas é um obstáculo absoluto ao pensamento. Esse risco, transferido da memória de Funes para o computador, parece-me ser o mesmo risco. É a questão do excesso de textos, da confusão textual, que agora está vinculada à técnica eletrônica. E não é a primeira vez. Mesmo antes da invenção da imprensa, alguns escritores diziam que havia um excesso de textos, que o leitor não podia ler, não podia domar esse acúmulo de textos. Era um obstáculo ao saber, e não uma ajuda. Depois da invenção da imprensa multiplicaram-se esses discursos, que destacavam a impossibilidade do leitor penetrar, controlar e domesticar essa proliferação textual. A realidade eletrônica multiplica esse excesso. A questão que considero mais importante é como reconstruir, dentro desse mundo textual, uma ordem dos discursos, uma possibilidade de acesso, de hierarquização, de organização, como suporte para a criação, a invenção, o pensamento. O tema da desmaterialização relacionado a este, é um tema complicado. Por um lado, no mundo eletrônico, os textos perderam sua materialidade própria. O texto da Antigüidade era identificado a partir de um objeto, um rolo que era lido ou colocado sobre uma mesa. O texto do mundo da cultura impressa também se vinculava a um objeto próprio. Um livro é ao mesmo tempo um objeto e uma obra. Ao falar de um livro, falamos do objeto material e da obra, que não podem ser desvinculados desse livro. O texto eletrônico existe de maneira desmaterializada, porque é um texto móvel, aberto, flexível, onipresente, mas isso não significa uma desaparição da materialidade, porque a materialidade do computador é muito forte e impõe a esses textos flexíveis e móveis suas próprias regras, seu próprio espaço, suas próprias estruturas. Então, a desmaterialização dos textos remete diretamente a uma onipresença material do computador. Resulta disso uma tensão entre a necessidade de pensar o texto nessa nova forma: muito mais difícil de escrever e compreender que as formas clássicas. E, ao mesmo tempo, a necessidade de refletir sobre o que impõe aos textos e à leitura a forma eletrônica.

Alcir Pecora: Eu gostaria de conversar um pouco sobre alguns pressupostos, talvez do seu método historiográfico, digamos assim. Uma, certamente, das linhas de força do seu trabalho é o estudo dos hábitos de leitura antiga - que o senhor chama "maneira de ler antiga" - que são sempre relativos às práticas datadas ou, algumas vezes, você fala em "pragmáticas dissolvidas", já no presente. [Como] esse esforço de recomposição dessas maneiras, dessas práticas, desses hábitos de leitura é compreendido pelo senhor? São compreendidos como um esforço do historiador contemporâneo de construir - através dos seus recursos, mesmo da imaginação - esses processos, então, como verossímeis, ou o senhor acredita na possibilidade, de fato, de uma recomposição de vestígios empíricos de uma realidade, mais ou menos de um nível que pudesse ser recomposta? Isso em primeiro lugar. Em segundo, em um caso ou no outro, acreditando na realidade empírica ou, digamos, nesse constructo, digamos, verossímil do passado, o que exatamente o senhor imagina que essa recomposição, ou esse objeto reconstituído, essa prática, digamos, restaurada, pode significar? Ela é só uma interferência do presente no passado, ou essa reconstituição também significa uma alternativa para o próprio presente? Nesse caso, é também uma intervenção no presente, na própria prática contemporânea?

Roger Chartier: Vou começar pela última observação, porque se há utilidade nesse tipo de reconstrução histórica de práticas desaparecidas, ou que mudaram, é para permitir localizar mais corretamente dentro da história de longa duração o presente, e evitar comparações mal fundamentadas. Por exemplo, é comum dizer que a invenção do texto eletrônico corresponde à invenção de Gutenberg. É um tema comum, mas não é verdade. Gutenberg não inventou uma nova forma de livro, não criou uma nova estrutura material para os textos. Um livro, antes da imprensa, antes de Gutenberg, tinha a mesma estrutura de um livro pós-Gutenberg. Para pensar a novidade radical do presente, devemos pensar em outras comparações. O mesmo ocorre com as práticas de leitura. Alguns dizem, como eu disse, no início deste programa, que a leitura diante da tela é uma leitura fragmentada, é uma leitura segmentada. Não é a primeira vez que há leituras fragmentadas e segmentadas. A leitura dos humanistas [humanismo] era particularmente fragmentada, porque o problema era extrair de todos os livros lidos as sentenças, os exemplos, as citações úteis para produzir novos discursos. Isso também é uma fragmentação. Há também um tema que se discute muito no Brasil - a fotocópia dos textos - que também é uma fragmentação. O importante é que, exceto no caso das fotocópias, a leitura fragmentada frente ao texto eletrônico é uma leitura na qual o fragmento é totalmente desvinculado da unidade textual - do livro, obra a qual pertence. O leitor pode utilizar o livro como um banco de dados, extrair elementos singulares sem os referir, sem perceber que os fragmentos pertencem a uma unidade textual com coerência, identidade. O humanista extraía fragmentos de um livro lido, porque o problema era extrair de todos os livros lidos a realidade da obra inteira, mesmo que o livro não fosse lido em sua totalidade. São exemplos para mostrar que o trabalho com o passado permite, algumas vezes, um diagnóstico mais adequado frente ao presente. Quanto à primeira parte de sua pergunta, acho que há algo impossível. Uma história da leitura, ou das leituras, seria uma história impossível. Como reconstruir todos os atos de leitura, de todos os leitores, através de todos os tempos? É um projeto utópico. O que podemos fazer é identificar modelos compartilhados de leitura, seja numa sociedade inteira, ou em comunidades de leitores que compartilham as mesmas competências, normas, os mesmos hábitos ou práticas de leitura, e confrontar esses modelos compartilhados com as experiências individuais. Quando o leitor se torna escritor, quando deixa marcas de suas leituras. É o caso dos que escrevem sobre suas leituras dentro de uma correspondência, ou dos que escrevem nos livros mesmo. Para o historiador - o que era o pesadelo dos bibliotecários -, ou seja, o livro, com textos dentro dele mesmo, constitui uma fonte fundamental. Aceito a idéia de que haja um saber controlado, porque se fundamenta sobre documentos, marcas deixadas pelos leitores do passado, e há também algo de imaginação, no sentido de fazer uma reconstrução nos casos em que não há nenhum documento capaz de indicar práticas reais. Por exemplo, os leitores dos séculos XVI, XVII frente aos livros impressos mais populares. Os pliegos sueltos, na Espanha [espécie de folhtos de cordel], os livros vendidos na França [manuscritos denominados littèratue de colportage] e na Inglaterra  [manuscritos denominados chapbook] não deixaram nenhuma marca de sua leitura. O historiador deve imaginar, a partir do conteúdo dos textos difundidos, ou a partir do que se sabe das competências de leitura, o tema da leitura em voz alta e reconstruir um modelo, um paradigma de leitura. É um pouco o que tentamos fazer. Gostaria de encerrar dizendo o que é fundamental nessa reconstrução não é unicamente reconstruir as práticas dos homens e mulheres do passado. Mas também compreender melhor a literatura. Todos os textos, inclusive os literários, foram interpretados, foram compreendidos, apropriados por leitores que não liam como nós. Por exemplo, voltando ao tema da leitura em voz alta, no Dom Quixote [El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha (1605), do escritor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616)] há muitos títulos de capítulos ou frases finais de outros capítulos que evocam as duas leituras do livro. Os que vão ler, como nós, e os que vão ouvir o texto lido em voz alta. E não o fazemos de maneira espontânea. Devemos reconstituir em nossa percepção do texto, o mundo da leitura, que era o mundo contemporâneo. Porque Cervantes sabia disso e escrevia também para essa forma de leitura, o que conduz à fragmentação do texto em capítulos curtos, que se transformam em unidades de leitura. É possível fazer uma leitura em voz alta com a dimensão dos capítulos de Dom Quixote, e também, no texto, o uso de palavras comuns, das formas da conversação, da tertúlia, do diálogo. Se há uma oralidade dentro de Dom Quixote, não é apenas porque Cervantes queria escrever seu romance com uma linguagem nova, diferente da linguagem da corte e da que havia na literatura humanista. Mas também porque pensava na transmissão oral dessa obra de ficção dentro do texto escrito do romance. É uma justificativa.

Pedro Herz: Na sua opinião, no curto, médio e longo prazo, qual é o futuro da indústria editorial, seja de livros, revistas ou jornais?

Roger Chartier: A questão hoje é difícil. Por um lado o texto eletrônico não suprime o papel do editor, ou seja, de alguém que seleciona textos, que trabalha sobre eles com o autor, que define uma forma de apresentação do texto. Tudo que pertence ao trabalho editorial pode e deve ser mantido no texto eletrônico. Não é necessariamente o papel do editor como o conhecemos, porque cada um poderia... É possível para cada um desempenhar esse papel no texto eletrônico. Pelo menos é o que pensam os que editam os seus textos. Aí existe uma dificuldade, porque a divisão das tarefas, que era bem clara no mundo do livro impresso, perde-se no texto eletrônico. Se há edição, não há necessariamente uma figura bem identificada do editor. A médio prazo há uma tendência para a reconstrução desse papel particular e específico que pressupõe competências específicas e singulares. Se pensarmos na divisão entre comunicação eletrônica e edição eletrônica, há uma profissionalização dessa edição. Se precisamos de uma ordem dos discursos eletrônicos, se precisamos de autoridade e validação dos textos, supõe-se que haja instâncias que permitam isso. A instância editorial é uma delas. A reconstrução dessa função profissionalizada da edição está, por um lado, nas edições eletrônicas que publicam unicamente textos nessa forma, ou com a importância cada dia mais visível, dentro de empresas tradicionais, de um setor de edição eletrônica. É uma reconquista, por parte dos editores, no sentido clássico da palavra, de um certo controle sobre o texto eletrônico. Começamos dizendo, e talvez eu esteja errado, mas não seria o primeiro historiador a errar, que o livro como o conhecemos vai sobreviver paralelamente ao texto eletrônico. Podemos dizer que, dentro do mundo eletrônico, a edição eletrônica vai ocupar um lugar, uma função específica, que não pode ocupar a comunicação espontânea do texto numérico. Talvez no futuro vejamos uma distinção entre tipo de texto e tipo de objeto, voltando a materialidade do computador. O discurso sobre o e-book, o livro eletrônico...

João Adolfo Hansen: Você leu algum livro eletrônico?

Roger Chartier: E-book? Para mim não é um livro. Não é. Pode ser uma biblioteca, uma agenda... É um suporte que transmite todo tipo de texto. Nesse sentido, não é um livro como o definimos, ou seja, a vinculação entre um objeto e uma obra. O e-book permite ler muitas obras, e são obras sucessivamente carregadas na máquina. Assim, não é um livro enquanto obra. É o veículo de textos, que podemos definir como livros se houver coerência, unidade e identidade específica. A discussão me parece interessante, porque o e-book não permite copiar, transportar, imprimir, e não permite que o leitor se introduza no texto. A partir daí, vemos que esse objeto, que pertence ao mundo dos objetos eletrônicos, permite uma presença editorial mais forte que o computador tradicional, porque o texto deve ser comprado e não é totalmente acessível. Há mecanismos de segurança, que não permitem a comunicação livre e gratuita. Por outro lado, com relação ao autor, isso permite uma certa estabilidade do texto e de uma obra reconhecível como tal, ou ao menos não sujeita a ser escrita permanentemente.

Pedro Herz: E os direitos autorais?

Roger Chartier: Ficam mais protegidos assim do que no caso do computador. Porque os exemplos de pirataria eletrônica estão vinculados aos computadores clássicos. É quase impossível estabelecer controle sobre o texto que é recebido no computador clássico. Temos o famoso exemplo de Stephen King [escritor reconhecido mundialmente pelo gênero horror e ficção, muitos de seus livros foram adaptados para o cinema. Entre esses Carrie, a estranha (1974); O iluminado (The shining - 1977) e outros], cujo livro sofreu muita pirataria, porque era vinculado por meio dos computadores, os PCs . Os textos vendidos, acessíveis através dos e-books, não permitem isso e garantem uma proteção maior dos direitos autorais, dos ganhos legítimos do editor e de uma consciência de obra mais respeitada porque a obra tem uma identidade fixa. Talvez isso indique uma divisão dos textos, ou melhor, uma divisão dos equipamentos em relação à divisão entre comunicação e edição.

Paulo Markun: Doutor Roger vamos fazer mais um rápido intervalo e nós voltamos já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o historiador francês Roger Chartier. Outro tema que o senhor aborda sempre em seus escritos é a questão - se eu não estou interpretando erroneamente - do papel do historiador e da história, enfim, para quê serve a história? E eu queria agregar a essa pergunta ao fato de que, quem verifica a lista de livros mais vendidos no Brasil, no campo da não-ficção, se deixarmos de lado os livros chamados de auto-ajuda, boa parte dos livros mais vendidos são livros que refletem momentos da história e do passado. Há um enorme interesse dos leitores contemporâneos [pela] história, por uma certa história, que é uma história nova, uma história que transforma certos momentos do passado em uma narrativa muito interessante. Minha pergunta é: para quê serve, se é que serve para alguma coisa, esse estudo da história?

Roger Chartier: Acho que esse interesse pela história pode ser analisado de dois modos diferentes. Um deles seria encontrar um refúgio no passado em relação às dificuldades do presente. Uma leitura, um gosto pela história, que transforma o passado numa forma de exotismo protegido, numa forma de utopia do passado, mesmo que seja um passado terrível e violento, mas separado radicalmente do presente. Ler um texto de história sob essa perspectiva é afastar-se de um presente difícil, complicado e ambíguo. Há uma outra possibilidade, como tentamos fazer esta noite, seria a leitura do passado, a compreensão dos objetos, das práticas, das sociedades do passado para podermos nos localizar de maneira mais adequada em nosso presente. Devemos partir, não das lições da história - pois não há lições de história - mas sim o conhecimento das formas sucessivas daquilo que nos parece estável, o que nos parece invariável, como uma realidade permanente, e essa deve ser a utilidade mais profunda da história. Cada leitor de história deve procurar instrumentos para entender o próprio presente. Não necessariamente deduzindo o que aconteceu para repetir ou não esses atos, mas como instrumentos intelectuais para compreender situações do presente, e que o historiador utiliza para entender situações do passado. Talvez cada leitor passe de uma posição a outra: o prazer do exotismo e a aquisição de instrumentos de compreensão.

Sylvia Colombo: Você tem um trabalho - que eu acho que ainda está em progresso - sobre a circulação de textos impressos de teatro do século XVI e XVIII na Europa, textos que eram encenados. Existe alguma comparação possível entre aquela realidade e a que a gente vive hoje com o texto eletrônico?

Roger Chartier: Há uma comparação dupla. Estou trabalhando com as muitas formas desses textos que adquirem sentidos diferentes quando representados num cenário... Madri, Londres, ou quando lidos por um leitor que nunca viu a representação da obra teatral. Hoje, esta realidade para as obras teatrais já está existindo. Está relacionada à questão da oralidade e do texto: como criar palavras escritas a partir de palavras ditas. Quais são as formas de transcrição da oralidade dentro de um texto escrito, ou como um texto escrito se transforma em algo que se articula por meio da palavra viva. É o exemplo da televisão que você mencionou. Essa é uma primeira relação entre um trabalho histórico, sobre Shakespeare [(1564-1616) dramaturgo e poeta inglês. Autor de Romeu e Julieta, Sonhos de uma noite de verão, entre outros], Molière, [Félix] Lope de Vega [(1562-1635) dramaturgo espanhol. Escreveu cerca de quatrocentas comédias e mais de trinta autos, além de poesias líricas e poemas épicos e burlescos, entre esses La Dorotea (1632), Rimas humanas y divinas del licenciado Tomé de Burguillos (1634) e outros], e o presente. A relação entre oralidade e texto escrito é um tema que vem de longe, inclusive com mudanças nas formas dessa relação. Quanto ao texto eletrônico, acho que também é uma realidade profunda. O que está por trás dessa pesquisa histórica é a idéia de que num texto nada muda, nem uma palavra ou uma vírgula sequer. Mas isso muda quando se altera a forma de transmissão. Ouvir um texto ou ler esse texto na edição impressa não é apropriar-se do mesmo texto. Esse é o problema de todos os textos que tiveram uma existência prévia, em forma manuscrita ou impressa e que num certo momento são transformados em texto eletrônico. É uma questão fundamental, pois as bibliotecas decidiram, por exemplo, nos EUA nos anos 1960, 1970 e 1980, digitalizar, como se diz, transformar em texto eletrônico os jornais e alguns livros impressos. Assim, houve a conservação dos textos em outro suporte e a destruição dos objetos que eram publicados nos séculos XIX e XX. O exemplo mais recente foi a Biblioteca Britânica, de Londres, que em 1999 decidiu transformar suas coleções de jornais americanos posteriores a 1850 em textos microfilmados, para vender ou destruir as coleções originais. A tentação é ainda mais forte com o texto digitalizado. Por que conservar quantidades enormes de textos impressos se podemos transformá-los num texto imaterial, digital, o texto eletrônico? A tentação é forte, mas devemos recusá-la, porque é outra forma de tornar útil a história. Ler o mesmo artigo num jornal impresso e num banco de dados - que é a forma digitalizada - não é ler o mesmo texto, não é a mesma prática de leitura. No jornal - como o conhecemos - cada leitor tem suas trajetórias. Ele entende um artigo em relação a todos os outros, inclusive, os de outras rubricas ou os artigos que são de publicidade. O leitor sabe o que significa a publicação de um artigo particular dentro de um jornal que tem um projeto editorial, ideológico, cultural, político. Os critérios de compreensão de um texto singular estão vinculados à compreensão da totalidade. Totalidade da edição do jornal e da coleção dessas edições. Num banco de dados, a partir de uma hierarquia de rubricas, temas e tópicos é possível ler um artigo sem saber nada dos outros artigos que foram publicados no mesmo dia, ou na mesma semana no jornal e sem saber nada da identidade cultural do jornal. É o mesmo artigo, mas não é a mesma leitura, não é o mesmo sentido dado ao jornal. É mais um exemplo no qual a reflexão de tipo histórico pode ajudar a política das bibliotecas. Ao mesmo tempo, desenvolver programas de reprodução, como microfilmagem e digitalização, mas sempre mantendo o acesso, para compreensão, aos objetos impressos ou manuscritos tal como foram publicados e lidos pelos leitores do passado.

Maria Theresa Fraga: Eu queria voltar um pouquinho sobre as práticas de leitura. Nós poderíamos dizer, hoje, que existe uma coexistência no mesmo indivíduo de uma prática de leitura mais, vamos dizer, mais superficial, menos reflexiva diante do texto eletrônico. Porque aquele texto informa. É aquele texto que dá notícia, pelo menos para mim. O senhor fala de um leitor futuro, que já faria essas reflexões diante do texto eletrônico. Não existe hoje mais uma convivência no mesmo leitor, no mesmo produtor, de uma pessoa que tem uma prática de leitura puramente superficial, mas que quando vai para o livro - e nunca se produziram tantos livros como hoje - o processo de reflexão aí sim se aprofunda. Eu não sei se um dia eu vou conseguir ser uma leitora que consiga fazer uma reflexão de um texto eletrônico sem colocar no papel. Não sei. Acho que eu não tenho essa capacidade. Agora, acho que coexistem, no mesmo indivíduo, essas duas práticas, que mostram, inclusive, uma introdução quando se pensa na escrita, na escritura. Porque, para escrever, sou capaz de escrever e fazer minhas reflexões no texto, fazendo eletronicamente. Mas para ler não. Como o senhor vê isso? É uma coisa comum, um dia chegarei lá, todos chegaremos ou talvez não? Eu não consigo, realmente, é uma limitação pessoal: ao ler o texto eletrônico fico nas coisas superficiais com as informações que me foram dadas, para escrever não, eu faço reflexões. Agora, para refletir, é o livro de papel mesmo, onde eu escrevo, anoto, e as livrarias estão cada vez mais cheias.

Roger Chartier: É uma observação importante para evitar a idéia de que a técnica impõe as práticas de forma direta, sem mediação, e de que há apenas uma prática possível de uma determinada técnica. Talvez uma debilidade da história da leitura tenha sido... com a dificuldade de encontrar fontes, ter simplificado e dado um modelo global para uma comunidade de leitores, sejam eles intensivos, extensivos, sábios, etc. Mas você tem razão. Cada leitor, sobretudo os que adquiriram uma competência mais forte e diversificada, lê de maneira diferente segundo o momento, os desejos, as necessidades. O leitor do texto eletrônico não está totalmente moldado pela forma eletrônica. Há diversas formas de se apoderar do texto eletrônico, e sua leitura é apenas uma, mas há outras paralelas, inclusive para os mais jovens, que são obrigados a ler certos textos na escola. Mas também lêem revistas e o que se pode encontrar nas livrarias, nas bancas. Não devemos pensar que a técnica impõe uma forma única de prática. Devemos pensar na pluralidade de práticas e talvez ajudar essa diversidade. Se colocarmos sua observação dentro de um marco pedagógico, o que fica muito claro é que essa diferença - e acaba sendo basicamente a mesma conclusão - é a ordem do discurso, com a distinção entre textos que têm uma autoridade diferenciada, a idéia de uma diversificação do mundo eletrônico, da sobrevivência de uma existência paralela - talvez conflituosa - mas paralela entre o manuscrito, o impresso, o texto eletrônico. Daí, a idéia de mostrar que há uma pluralidade possível de leitura, superficial ou profunda, de diversão ou de saber, de prazer ou de conhecimento. E não há normas determinadas pela forma do texto. Claramente, as técnicas permitem mais ou menos certo tipo de leitura, mas sempre existe a possibilidade de o leitor usar uma maneira original, diversificada daquilo que a técnica propõe.

Quartim de Moraes: Professor Chartier, eu gostaria de propor um desafio de uma rápida incursão, um pouco fora da sua especialidade acadêmica, mas continuamos tratando de livro. Nós estamos aqui falando de livro, da importância de livro, de como ele é essencial à produção humana, para o desenvolvimento da humanidade, enfim. E, quando eu penso na realidade brasileira fico muito preocupado, até mais como cidadão do que como editor. E os dados recentes, o diagnóstico do setor editorial brasileiro do ano 2000 - que acaba de ser divulgado - revela que no passado foram produzidos no mercado editorial 303 milhões de livros para uma população de cerca de cento e setenta milhões de habitantes. O que nos dá um consumo per capta anual de menos de dois livros por habitante. Esses números consideram a publicação de livros didáticos, ou paradidáticos, que são de consumo compulsório. Se excluírmos os didáticos, que são 60% desse mercado, esse índice cai para menos disso. Então esse é desafio e eu pergunto: como se faz para aumentar esse índice? Como se faz? É lógico que é uma questão cultural, e ela é certamente um dos traços mais fortes do subdesenvolvimento do Brasil. Muito mais forte do que nossos indicadores econômicos, que não são tão maus assim. Nos povos dos países desenvolvidos a média de consumo per capta está por volta de dez, vinte livros por ano, por habitante. [Então] com a sua experiência na história do livro, [ao] fazer uma incursão fora do seu campo, o quê você recomendaria?

Roger Chartier: É uma pergunta muito difícil porque os diagnósticos são mais ou menos comparáveis para a França e a Europa, não pelas mesmas razões, porque o analfabetismo é baixo na Europa, o que é uma primeira realidade por trás dessas estatísticas. Mas também uma redução na aquisição de livros e talvez na leitura dentro dos meios que haviam constituído a partir dos anos 1930 e depois da Segunda Guerra Mundial, o núcleo, a população de leitores que desviaram seus gastos culturais para outra direção, como turismo, espetáculos, etc. Na França, isso significa uma redução radical das tiragens e das vendas de livros para esses meios cultos não profissionais ou acadêmicos, mas que estavam no núcleo de compradores e leitores. Mais graves ainda são as pesquisas com jovens. Além de o jovem de hoje ler menos que o jovem de dez ou vinte anos atrás, o jovem do sexo masculino não valoriza a leitura como uma imagem de si mesmo. Às vezes o jovem lê mais do que admite, porque apresentar-se como leitor não tem nenhuma valorização. Esse papel do leitor não lhe parece adequado a uma imagem positiva de si mesmo. Tudo isso contribui para criar uma situação preocupante. Não há remédio, mas acho que se pode afirmar, em todas as oportunidades, a importância da cultura escrita sem um aspecto pedagógico pesado. Mas mostrar que, por meio da relação com obras densas, com textos de história como mencionamos, é possível ter um conhecimento crítico de si mesmo, dos outros, da sociedade, do mundo em que vivem os leitores. E isso ajudaria no confronto com as dificuldades do presente. É responsabilidade da escola, claro, é responsabilidade dos meios de comunicação, é responsabilidade de cada um, nos diversos papéis sociais que desempenha. Essa me parece a única possibilidade. Eventos, como as feiras de livros, me parecem fundamentais sob esse ponto de vista, inclusive para aqueles que não vão comprar nenhum livro. Seria melhor para os editores, mas reafirmar a presença da cultura escrita como algo que importa, que pode transformar o indivíduo, como um instrumento de compreensão é uma tarefa de todos. Acho que a televisão também pode fazer isso. Na Europa, infelizmente, a tendência é limitar muito os programas feitos ao redor da cultura escrita. É uma pena, porque é uma responsabilidade coletiva que cada instituição deve assumir. Não é apenas pelo interesse de quem escreve, vende e publica livros, mas porque a cultura escrita pode transmitir uma relação crítica com o mundo, e isso me parece a primeira identidade do cidadão.

Andrea Dahaer: Vou fazer uma pergunta conclusiva. Falou-se muito hoje aqui de autoria, leitura, leitor, de modo geral, e se percebe, na sua reflexão, a presença de um elemento, de uma noção constante, talvez uma figura que eu não creio que seja uma figura simplesmente retórica, acho que é mais do que isso, acho que é de ordem talvez intelectual, conceitual, que é essa figura da tensão. Se a gente for prestar atenção no sumário desse livro publicado pela Unesp, nós temos aqui, [em] cada um dos capítulos: o autor entre punição e proteção; o texto entre autor e editor; o leitor em privações de liberdade, etc. Ou até nas suas reflexões de história, a história entre práticas e representações ou entre conhecimento e narrativa, portanto, a pergunta é a seguinte: qual seria, qual é a função dessa noção, dessa tensão, na sua reflexão, como historiador das práticas culturais?

Roger Chartier: Poderia ser uma fórmula retórica sem conteúdo específico, um pouco vazia, mas acho que não. Há uma complexidade nos fenômenos históricos e sociais, que talvez não se reduza a uma tensão entre dois pólos, mas tenha uma fórmula mais complicada de contradições. A idéia da tensão que aplicamos neste programa demonstra que não é possível ler um fenômeno de uma maneira unitária, uma maneira que não englobe as contradições. Os elementos que discutimos, as possibilidades abertas pelo texto eletrônico, a definição da edição eletrônica, as práticas de leitura, a tensão entre a possibilidade de um espaço público comum e uma tendência à fragmentação, ao esquecimento, à perda de memória, mesmo com uma técnica que promete uma memória infinita. Tudo isso define a complexidade das coisas. Para o historiador, o antropólogo, o sociólogo ou o crítico literário, sempre há a exigência de não apresentar uma leitura simplificada das coisas. Existe essa tendência, porque é mais simples, é mais visível e mais acessível encerrar uma realidade dentro de um diagnóstico que tem apenas um sentido. Acho que as coisas não vão nessa direção e gostaria de acrescentar que, reconhecendo essas tensões, temos, como cidadãos, um espaço de intervenção. É graças às contradições, às defasagens e às discrepâncias que cada um pode intervir. Os que têm poder podem intervir mais, mas cada um, como cidadão, pode intervir, pode agir para que o futuro não seja o pior possível, mas o melhor, com todos os limites dessa palavra. A relação entre o diagnóstico que estabelece as contradições e a idéia de que cada um de nós, como cidadãos, qualquer que seja nossa profissão, nosso papel, cada um de nós pode intervir em nosso presente e futuro define não só a responsabilidade dos historiadores, mas também de todos os outros.

Paulo Markun: Professor Roger, o nosso programa está chegando ao fim e eu confesso que é uma satisfação saber que esse programa - que tem quase 15 anos, e eu estou aqui a apenas três - significa um espaço que permite discutir questões como esta durante uma hora e meia. Isso para a televisão tradicional é uma eternidade, mas para a complexidade dos assuntos é muito pouco. A única vantagem que a gente tem é que, às vezes, de debates como esse, se promove, se divulga [em] outros veículos de comunicação como o livro. Já houve autores que estiveram aqui no centro do Roda Viva e impulsionaram muito a venda dos seus livros no Brasil em função da discussão. Eu espero que isso tenha acontecido no caso do senhor e tenho certeza que quem acompanhou esse programa até o final certamente saiu com idéias a mais sobre como aproveitar tensões e as contradições da nossa sociedade. Muito obrigado pela sua entrevista, aos nossos entrevistadores, também muito obrigado, e a você que está em casa, nós voltamos na próxima segunda feira, sempre às 10:30 da noite. Uma ótima semana e até lá.

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