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Memória Roda Viva

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José Mojica Marins (Zé do Caixão)

6/7/1998

O ator e diretor de cinema, que ficou conhecido por seu personagem Zé do Caixão, conta dos obstáculos que enfrentou para levar adiante seu grande projeto: fazer um cimena de terror genuinamente brasileiro

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[Programa gravado, não permitindo a participação de telespectadores]

Cunha Júnior: Boa noite. Hoje nós vamos ter aqui o homem e seu personagem, o criador e a criatura. Para muitos ele é um gênio, para outros é apenas um louco, a ponto de um censor na época da ditadura sugerir sua prisão, tamanhas as insanidades que fazia, segundo o censor, não é? No centro do nossa Roda Viva de hoje nós temos o cineasta José Mojica Marins que também é conhecido pelo codinome e alter ego, Zé do Caixão.

[Comentarista]: Ele não sabe ao certo a data em que nasceu, mas desde garoto tinha certeza que seria cineasta. Nos anos 1940 já ensaiava as primeiras cenas com filmes em super 8 [ou super 8mm é um aperfeiçoamento do antigo formato oito mm profissional, desenvolvido nos anos 1960 pela Kodak para uso amador. Por possuir um baixo custo em relação e boa qualidade em relação ao oito mm tradicional, o formato super 8 passou a ser usado nos anos 1970 e 1980 para filmes amadores, experimentais e outros]. Em pouco tempo e com o apoio da família, começava a filmar longas metragens. Filho de uma bailarina e de um toureiro, que mais tarde [se transformou em] gerente de cinema, José Mojica Marins cresceu rodeado de imagens. Nos anos 1960, o já famoso e polêmico Glauber Rocha embrenhava-se pelas salas de cinemas do centro de São Paulo para ver as exibições dos filmes de Mojica. Aos berros de "gênio, gênio!", Glauber decretava que o criador do personagem Zé do Caixão era o maior cineasta brasileiro.

Depoimento Carlos Reichenbach: [um dos principais diretores do cinema paulistano, participou do cinema marginal da Boca do Lixo, que propunha trocar a transgressão pela subversão, mostrando filmes sujos e niilistas. O lugar controverso, localizado no bairro de Santa Efigênia, abrigava prostitutas, mendigos e malandros famosos e também era sede de produtoras famosas e ponto de encontro de diversos cineastas. Dessa época ficou conhecido pela produção do longa metragem Demência. Dirigiu ainda Amor, palavra prostituta, Falsa loura, entre outros] No Brasil existem dois grandes - existiam... um deles [faleceu] - criadores. Os mais obsessivos, mais criativos e originais da cinematografia latino-americana. Eles foram: Glauber Rocha e, ainda bem, o José Mojica Marins, que está vivo. 

[Comentarista]: Cineasta, mas também ator, diretor de programas de TV, personagem e criador de histórias em quadrinhos, dono de uma linha de cosméticos, de uma boate, de um consórcio de caixões, poeta, marqueteiro, ex-candidato a deputado estadual pelo Partido Popular [na verdade Mojica se candidatou pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)]. Chegou a gravar um disco de marchinhas de carnaval. Mojica adiou por alguns anos sua participação em festivais internacionais de cinema. A razão? O mestre do terror brasileiro tem pavor de avião. Depois que foi convencido a entrar em um, Mojica descobriu que seu cinema, que teve vários problemas com a censura brasileira, era admirado no mundo todo. Hipnotizava platéias e arrematava prêmios. Foi assim em Paris, em 1974 e na Espanha, em 1972 e 1973. Com 62 anos, Mojica já dirigiu 31 longas, mas calcula ter feito cento e cinqüenta filmes [de] terror, sua especialidade, e demais gêneros, como aventura, suspense erótico, pornochanchada e até um drama. Cotado como cineasta marginal, nunca estudou cinema. Tudo o que fez aprendeu no impulso e no esforço.

Depoimento André Barcinski: [jornalista e cineasta. Autor de Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão juntamente com Ivan Finotti. Produziram também um documentário sobre o personagem intitulado Maldito - o estranho mundo de José Mojica Marins] Foram dezenas de pessoas formadas pelo Mojica, que aprenderam tudo. Foram cenógrafos, cinegrafistas, fotógrafos, figurinistas que aprenderam a fazer cinema com o Mojica.

Mário Lima: Na época eu não pensava em ser ator.

André Barcinski: Pessoas que eram ascensoristas, ou trabalhavam dirigindo caminhão ou táxi, que, de repente, saíram para uma carreira de cinema e que, se não fosse o Mojica, possivelmente seriam duzentas, trezentas pessoas no Brasil, que não teriam entrado pro cinema.

Mário Lima: Você vive emoções, você vive um outro mundo, você sonha, você tem uma perspectiva de um mundo maior.

[Comentarista]: Diz que dinheiro foi o que menos ganhou na vida. Disse que mais uma vez teve que vender todos os direitos sobre um filme, às vésperas de sua estréia. Bizarro, maldito, cult, José Mojica Marins ainda consegue arrancar exclamações de gênio. Nos Estados Unidos e Europa é adorado como Coffin Joe [equivalente a Zé do Caixão em inglês], uma espécie de ídolo de jovens cineastas e músicos em geral. Numa cerimônia, rodeado pelos integrantes da banda Sepultura [considerada a banda brasileira de thrash metal com maior repercussão no mundo. Foi criada em 1983 pelos irmãos Max Cavalera e Igor Cavalera], cortou as longas unhas da mão esquerda, cultivadas por quase duas décadas. Acaba de ter sua primeira biografia lançada e começa a rodar seu filme mais caro, o média Rock no terceiro milênio, ao custo de duzentos mil reais. Tem planos para teatro, TV, CD e internet. Mas seu principal projeto é um museu onde a história do mito possa permanecer viva através dos tempos.

Cunha Júnior: E para entrevistar o cineasta José Mojica Marins, nós temos hoje como convidados: o jornalista Rogério Brandão, criador do programa Cine Trash da TV Bandeirantes, diretor de programação da TV Cultura de São Paulo; o escritor Mário Prata, colunista do jornal O Estado de S. Paulo e da revista Isto é - ele está lançando o livro Minhas vidas passadas (a limpo); a atriz e diretora Ítala Nandi, que é professora e coordenadora do curso de formação de atores da Faculdade da Cidade do Rio de Janeiro e que também está lançando seu livro Teatro oficina; o diretor de cinema Carlos Reichenbach, que vai lançar um filme no fim do ano [intitulado] Dois Corpos, numa co-produção com a TV Cultura. O jornalista André Barcinski, autor, junto com Ivan Finotti, do livro Maldito [Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão] que retrata a vida no cinema do nosso entrevistado de hoje; e o diretor de cinema, nosso mestre do terrível, Ivan Cardoso, autor do documentário Universo Mojica Marins e também diretor dos filmes O segredo da múmia e As sete vampiras. E, terminando, o nosso crítico de cinema Leon Cakoff, que é diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros, incluindo Brasília. E hoje, infelizmente, vocês não vão poder nem ligar, nem mandar fax e nem internet porque o nosso programa está gravado. Vamos começar Mojica, mostrando o livro do Barcinski. Foi lançado agora? No início do mês de maio?

André Barcinski: Há três semanas atrás.

Cunha Júnior: Está aqui o livro que se chama Maldito e conta toda a história, vida e obra, de José Mojica Marins e também do [personagem] Zé do Caixão. Falando nisso, vamos começar. Muita gente não sabe. Tem novas gerações que estão conhecendo você aí, principalmente depois do Coffin Joe, e não sabem qual a origem do personagem. Como nasceu o Zé do Caixão?

José Mojica: Claro que a pessoa, lendo o livro vai ter a coisa assim mais detalhada. Mas pra não levar muito tempo...

Cunha Júnior: Só pra se ter uma idéia, rapidamente.

José Mojica: Ele nasceu de um pesadelo. Um pesadelo dado às crises que eu estava atravessando no passado, porque eu tinha feito muito filme com as mãos, por causa dos padres que disseram que iam me dar uma mão danada e tal. E aí o cinema não queria minha fita, porque disseram que era água com açúcar. Eu tinha que partir para alguma coisa. Já tinha feito muito 16mm no gênero terror, 8,5mm, que era na época dos anos 1940... Revoltado com tudo isso. Tinha feito a fita A sina do aventureiro [1958] - uma fita em cinemascope - e, de repente, os padres disseram que não podia passar porque tinha duas mulheres nuas a quinhentos metros tomando banho numa cachoeira. Faço uma fita para criança e eles me dizem que não posso fazer porque o meu destino não é fazer cinema. Revoltado com a situação do passado - acho que numa premonição -, quando estava jantando, adormeci e lá senti um personagem de preto que me levava pra uma gruta onde me mostrava a idade... O meu nascimento e a minha morte. A minha morte eu não queria ver. Acordei com um pai de santo batendo lá [e] dizendo tal, tal... "já tirei o Exu [orixá africano] dele". E eu disse: "não tirou exu nenhum". E veio uma premonição: eu ia fazer uma fita sobre a mudança da juventude, que seria Geração maldita [filme de José Mojica de 1963] e aí eu já tomei meu banho, me arrumei e vim para o escritório juntar os acionistas. Ele mudou tudo. Não vamos fazer mais.

Cunha Júnior: E aí foi que surgiu, inclusive, o personagem do seu primeiro filme como Zé do Caixão, que é o personagem do primeiro filme...

José Mojica: É À meia noite levarei sua alma [1963]. Agora, o personagem foi o seguinte, nasceu porque eu só queria... Eu criei a história e queria dirigir. Meu negócio era dirigir, não era trabalhar. Mas ninguém quis fazer. Tinha o Milton Ribeiro [(1921-1972) ator conhecido por suas interpretações de homem mau do cinema brasileiro dos anos 1950. Estreou, em 1951, no filme Ângela, uma produção da Companhia Vera Cruz. Em 1953, com filme O Cangaceiro de Lima Barreto, foi premiado no festival de Cannes]. Eu era fã dele. Ele achava que era "cair no ridículo". Procurei um outro também, que trabalhava em televisão, e ele achava que "ia cair no ridículo fazendo terror no Brasil". Então, o que eu fazia... A equipe não confiava em mim. Queria receber diariamente, eu não tive outro jeito. Tinha lá uma capa de Exu no estúdio, uns caras fazendo uns negócios lá que não dava para entender, acho que era umbanda [religião brasileira formada a partir de tradições católicas, como por exemplo a crença em santos, e outras culturas afro-brasileiras, como a crença nos orixás] ou quimbanda [cerimônia religiosa presente na umbanda, onde atuam os Exús e Pombas-giras. Para obter proteção religiosa desse espítitos, os devotos fazem oferendas, como pratos de farofas, carnes e até mesmo bebidas], né? Esqueceram essa capa, peguei essa capa, que tinha um maço de cigarros - Clássico [marca de cigarro] - com aquela cartola, e falei: "nasceu o personagem". É lindo, era o que eu tinha mesmo e aí entrei com o personagem.

Cunha Jr: Agora, uma outra pergunta que eu gostaria de fazer para você é [sobre] a questão da confusão que se faz entre a história, o criador e a criatura. Que é o que aconteceu com o Frankenstein [personagem do romance escrito por Mary Shelley entre 1816 e 1817, que relata a história de Victor Frankenstein, um estudante de ciências naturais que constrói um monstro em seu laboratório]. As pessoas chamam o monstro de Frankenstein, e, na verdade, o criador, o doutor Frankenstein, é o Frankenstein. E com você também surge muito isso. Já fiz entrevistas com você onde eu chamava você de Zé, mas não era do Zé Mojica, era o Zé do Caixão. A gente faz esse tipo de confusão. Eu acho que você alimenta, ou alimentou durante muito tempo, também um pouco isso, saindo pelas ruas vestido como Zé do Caixão. Como você administra essa coisa na sua cabeça e em relação às pessoas? Ou isso não incomoda você?

José Mojica: Não. Eu hoje acho que a coisa está diferente, né. Não só pelo problema do último dia 13 de março desse ano [1998], eu cortei as unhas, né? Como tinha que deixar as unhas [crescerem], era praticamente a teoria do personagem, para mostrar que a natureza estava errada. E, de repente, eu era cobaia. Era o criador e a cobaia. Tinha que deixar as unhas e daí nascia a confusão para o povo ver. Mas, espera aí, se você não é o Zé do Caixão, como você tem as unhas? Mas o problema é que começou realmente atrofiar e o Zé do Caixão estava certo: se um homem não usar a tesoura, um dia... Fiquei 35 anos com a mão esquerda [de unhas grandes], porque a direita eu já tinha cortado em 1984, e senti um alívio, mas eu ainda era um homem de uma mão só, muito dependente. Com a mão atrofiando não teve outro jeito, tive que cortar as unhas e acho que isso valeu pra ter uma distinção direta entre criador e criação.

Ítala Nandi: Você se sente como maldito?

José Mojica: Maldito... Eu chamaria [de] perseguido, excomungado. Acho que desgraçado, vem tudo em cima, né? Porque da maneira que - eu diria - o mundo me tratou - o mundo, porque eu sou brasileiro e meu mundo era aqui no Brasil - tive que fazer o meu próprio mundo estranho: Zé do Caixão. Quer dizer, eu fazia uma fita para crianças e ela ia para 14 anos. Não tinha nada, punham 14 anos. Fiz uma fita em cinemascope - um bang bang normal - [que] ficou praticamente interditada, só poderia passar no centro de São Paulo, no interior não poderia passar. Fiz aqui uma revista - que é uma porcaria - A voz do cinema, de fotonovela com imagens paradas na época, que chegou a vender praticamente dez mil exemplares. Enquanto O Cruzeiro custava um cruzeiro [revista criada em 1928 por Assis Chateaubriand (1892-1968)], essa revista - que não valia nada - custava dois cruzeiros e eu vendia dez mil exemplares. Comecei minha carreira, já mostrando que eu sabia fotografar e escrevia. O fato é que ela vendia. Mas aí também cismaram com o raio da revista, que eu não sei o que ela tinha. Aqui, só falo em Deus, só falo em tudo. Começaram a condenar a revista que eu fazia, com as melhores intenções, sendo o primeiro homem a fazer fotonovelas brasileiras, quando aqui só vinha coisa do exterior, da Itália principalmente. Ninguém se jogava para fazer. Então, eu tinha que ser maldito. Era um programa de rádio, me cortavam. Era a revista, que vendeu duzentos mil exemplares de história em quadrinhos, chegaram a tirar da banca de jornal. O terror de fora podia vir... Exportarmos nosso terror, não podia. Você entende? Na televisão, estava no ar o programa e, de repente, "tum", desaparecia, não davam satisfação para ninguém. [A] censura dizia: "não, não pode fazer". Eu fui fazer uma disputa: havia um diretor que fazia cenas de bang bang e eu de terror. No dia, no teatro João Caetano [um dos teatros mais antigos do Rio de Janeiro situado no centro da cidade], na hora de apresentar a obra, a censura me proibiu de apresentar os esqueletos [de terror] que eu tinha. Aí tive que pegar a obra e fazer o bang-bang do cara, porque não sabia o que fazer de última hora. Falei: "acho que eu era um maldito, era perseguido demais". Qualquer coisa era mentira. Mentira no país da mentira que nós vivemos, tudo era mentira. Então...
    
Leon Cakoff: Mojica, de fato você é o artista, diretor de cinema, personagem, seja o que for, mais censurado da história brasileira. Você já pensou em pedir indenização ao Estado pelos lucros cessantes e por todos os prejuízos que você já sofreu em sua vida?

José Mojica: Olha Leon, eu acho isso uma boa idéia.

Leon Cakoff: Porque é verdade, quantos filmes seus foram interrompidos, quantos filmes seus foram mutilados, é de perder a conta. Eu perdi a conta. Eu acompanhei muito a sua carreira. Eu era repórter também.

José Mojica: Olha, há no livro [trechos] disso. O censor escrevendo à mão o que eu tenho que mudar. O personagem é um ateu. Ele morre não acreditando. E ele escreveu à mão as palavras. Então, o Zé do Caixão está afundando - o que ninguém entendeu - ele está afundando: "eu não creio, eu não creio". Daqui a pouco ele: "eu creio padre! A cruz, a cruz!" - o cara escreveu à mão. Tá no livro retratado da censura: "a cruz padre, a cruz". Eu tinha que afundar. Então, o pessoal que ria - caia no riso - não entendia a minha situação. Fiz O estranho mundo de Zé do Caixão (1967) e, de repente, eu termino a fita. É a única fita que tem dois fins. Ela terminava e eu tive que fazer um fim. Entrou até uma fita do Egito lá, peguei o final com Omar Shariff [ator egípcio. Atuou em vários filmes produzidos em Hollywood, entre eles Doutor Jivago (Doctor Zhivago, 1965)] e tive que fazer uma explosão. Porque eu terminava a fita num banquete canibal né, e, de repente, vinha a palavra "FIM". Mas aí já tinha tirado mais de vinte minutos, e dizia: "você tem que mudar o fim"; "o mal tem que acabar". Aí eu peguei uma explosão lá, "bum", explodi tudo aquilo. Já tinha passado o "FIM", veio a explosão, e vieram umas palavras bíblicas e o segundo "FIM". É a única fita no mundo que tem dois fins. Termina "FIM", prossegue um pedacinho e vem "FIM" outra vez. Quer dizer, o público não entendia. A crítica, às vezes, não entendia, ou fazia que não entendia ou que tinha medo realmente da ditadura. Mas a coisa foi fundamental em 1969, quando eu fiz O despertar da besta - essa fita nunca foi exibida comercialmente e é a única fita [com] que eu ganhei prêmio e foi considerada pela crítica a maior obra minha - se eu passasse essa fita em 1969, eu realmente seria o Sílvio Santos do cinema nacional, porque a fita ia explodir. Todo mundo esperando a fita, todo mundo aguardando e a fita ficou presa. Depois de todos esses anos, quando a censura libera, porque o próprio "despertar" [refere-se ao período da redemocratização do Brasil] invoca uma loucura danada, a Embrafilme [empresa estatal de filmes cinematográficos criada em 1969 com o objetivo de fomentar a produção e distribuição de filmes brasileiros. Foi extinta em março de 1990, pelo Programa Nacional de Desestatização (PND) do governo de Fernando Collor de Mello] pegou para distribuir a fita [e eu pensei]: "não, eu vou distribuir. Eu sou maldito mesmo, não tem saída. Eu vou distribuir a fita!" Estava todo feliz [por]que a fita seria distribuída e eles perdem o negativo. Procurei o negativo: "cadê o negativo?". Ninguém acha o negativo. Fui num depósito de lixo e, de repente, eu vejo lá, na rua do Triunfo: "meu Deus, olha lá o meu negativo". E, ao invés de filmar primeiro e pegar o Alfredo - que tava comigo - não, eu fui dar o alô. Falei: "o meu negativo tá lá no depósito. Vão fazer vassoura com ele". Claro que eles correram e tiraram. Abri um processo contra a Embrafilme e aí entrou o homem que ia colorir o Brasil né, fazer bonito [referindo-se ao presidente Fernando Collor de Melo que assumiu em março de 1990 e renunciou ao cargo em dezembro de 1992, devido a um processo de investigação de corrupção]. E, em 1990, fecha a Embrafilme. Aí nem abri o processo para retirar o negativo de lá.
 
Rogério Brandão: Zé, você citou anteriormente que se sentia ridículo fazendo terror. Você acha que é ridículo fazer terror no Brasil, depois de tudo isso que você passou?

José Mojica: Como é ridículo? Nós somos do país da superstição. Tenho viajado pela Europa toda, estive nos Estados Unidos. Eles gostam do trabalho. Eu não faço um trabalho Frankenstein, eu não ponho o negócio de um drácula raquítico, tomando sangue dos outros, cadavérico, não. O Zé do Caixão come carne, carne sangrando. É um personagem folclórico, nosso, é um funerário. É Zé, e Zé é o nome do povo, o caixão é o seu melhor companheiro. O que nós temos de lenda, o nosso folclore que nós vemos por aí... É boitatá [ou "fogo que corre", é caracterizado pelas lendas como uma grande cobra de fogo ou ainda de um boi gigante e brilhante. Foi citado pela primeira vez em 1560, num texto do padre jesuíta José de Anchieta. Na língua indígena tupi, "mboi" significa cobra e "tata" fogo], o homem da capa preta, nós temos um folclore muito rico. Eu não sei por que, com tantos [programas] que fazem, não têm o terror. E nós sabemos que aqui [há] adeptos desse gênero. É o gênero que eles gostam, tem que engolir as fitas que vêm de lá de fora, que chegam para cá e ninguém "se joga" para fazer isso aqui. E eu, quando me pus a fazer aqui, realmente, fui considerado maldito, excomungado, então, eu não sei o que fazer. Nos anos 1990, quando [já] havia acabado a censura, eu entrei num Cine Trash e, graças ao Rogério Brandão [criador do programa Cine Trash], fui chamado para apresentar esse programa [nos anos 1980 na TV Bandeirantes]. De repente, surge lá um terceiro intelectual que quer ter a ficha técnica das fitas. Eu teria que pegar e falar aquilo que eu menos sei falar. Mal e mal eu falo a língua, o português. Aprendi a falar na luta da coisa e querem que eu chegue e faça a fita, citando em inglês o nome das fitas, citando o título em inglês, citando os atores em inglês, citando a sinopse. Como eu posso fazer um negócio desse? Aí, o Rogério desceu lá e disse: "não, Mojica. Você faz lá do seu jeitinho". Aí fiz a coisa bonita: a sinopse, eu fiz uma pequena historinha. Eu mesmo fazia a historinha da sinopse, né? Rogava uma praga. Eu me identifiquei com a liberdade... Ele me deu uma liberdade que eu não tinha há muito tempo. E pude fazer realmente um programa que parecia que tudo ia dar certo, mas aí, a inveja aqui é muito grande. O Ibope chegou  a 12, entende? Na época, uma coisa fantástica. A coisa ia "e vento em popa". Disse: "não tem mais censura". [Mas] tem censura. Primeiramente, tem uma censura interna que, "bum", bloqueia justamente o Rogério Brandão. Parece que os caras não querem Ibope [o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística é uma empresa que desenvolve pesquisas de opinião, mídia e mercado]. A coisa estava dando Ibope. Não era um negócio para as oito ou dez [horas da noite], no horário nobre, não. Era às três e quinze minutos da tarde! Até que a Globo começou a pôr fitas de terror, mexeu com eles, o SBT... Todo mundo começou a jogar fita de terror. Mas ninguém foi contra eles. Aí, o Juizado de Menores sabota. Não trazem fitas novas. Passavam as fitas cinco, seis, sete vezes. Reprisavam. Primeiro houve uma sabotagem contra o Rogério, depois tinha uma sabotagem contra mim. Aí, começou o Juizado a cortar a fita em Brasília. Olha só, não tem censura, mas o Juizado cortou, não podia passar Cine Trash, aí cortou no Rio. Aí veio cortar em São Paulo. Quer dizer, é uma censura disfarçada, em 1996, mas era censura. Agora, as fitas dos outros canais, porque não tinham Ibope, podiam passar. Agora, a minha não podia passar. Aí me jogaram para a noite de segunda-feira, onde não tinha horário. Às vezes entrava às sete da noite, às vezes entrava meia-noite. Como eu ia concorrer com uma Globo, com o Tela Quente [programa de filmes], com fitas reprisadas mais de dez vezes, entende? E jogaram para dizer: "ah. Não está dando Ibope". É claro que não está dando Ibope, é claro que não está dando Ibope.

Cunha Júnior: Você selecionava os filmes junto com o Rogério, via os filmes, como é que era?

José Mojica: A gente trocava muita idéia das fitas e recebíamos muita carta. Por lá passou... Nós chegamos lá, foi o halloween [dia das bruxas] e um grupo de rock, a gente ficava muito... Chegamos a fazer a guitarra do... Como ele chama?

Rogério Brandão: Bruce Dickinson [foi vocalista da banda Samson. Em 1982 juntou-se à banda Iron Maiden no álbum "The number of the beast"].

José Mojica: A guitarra do Bruce Dickinson, fazia aquele som feio e a garotada ficava fanática, fizemos aquele sorteio... Cartas, três, quatro mil cartas de crianças pedindo... A mensagem era positiva: o mal sempre perdia do bem. O bem está sempre lá em cima e o Zé está sempre defendendo as crianças, mandando que as crianças respeitassem os professores, respeitassem os mais velhos, respeitassem os pais. Eu estava trazendo uma coisa bonita. Recebia carta dos pais dizendo: "que coisa maravilhosa! meu filho, agora, fica quietinho porque dizia - se você não obedecer a besta vem puxar as suas pernas". Então, a coisa era bonita, era diferente.

Ivan Cardoso: Você não acha que estava dando a mensagem errada no programa, afinal de contas seu livro se chama Maldito e você mandando as crianças obedecerem aos pais?

José Mojica: Olha, Maldito, que eu saiba, é o José Mojica Marins, né? Mojica é maldito. Porque Mojica é cheio de inveja. Mojica foi perseguido pelos pseudo-intelectuais. Ou seja, críticos frustrados de não terem conseguido. O Zé do Caixão não é maldito. O Zé do Caixão sempre protegeu a pureza, protegeu a criança. Quem sabe porque eu tinha visto e guardo aqui o anel de Boris Karloff [(1887-1969) ator britânico conhecido mundialmente por filmes de terror, em especial, depois que interpretou o monstro Frankenstein em 1930], de Londres. Uma cena em que Boris Karloff pisava numa criança e ela chorava. Mas não quer dizer que ele era do terror. Era um personagem que ele fazia. Porque ele escrevia histórias infantis, entende? Então, quando o livro fala maldito, maldito é José Mojica Marins, porque nunca me deixaram fazer o que eu realmente queria. Quando passaram e, de repente, a coisa passou a ser assim. Entrava o produtor: "você tem que ser maldito". Isso é uma coisa triste para um diretor de cinema como Carlos Reichenbach, ter um cara que chega e diz: "não, não faça essa cena porque ela pode ser censurada, pode acontecer isso aqui". "Olha, não faça essa cena lá, porque você pode gastar mais não sei o que lá". "Você é um cara econômico e não pode fazer". Porque, no livro, quando diz que eu realmente realizava façanhas fantásticas em determinada cenas, eu interpretava e dirigia. Esquecem somente de falar uma coisa: eu estava trabalhando e tinha uma equipe dizendo "quando é que a gente vai receber o nosso?". Pô, eu era um cara maldito, porque isso não acontece com ninguém, só comigo. Eu tinha que fazer a cena: "deixa eu terminar a cena". "Não, assim não dá, vamos parar a filmagem agora". Estoura aquela lâmpada do cara... E, "bum", estourava uma lâmpada. E eu: "[Giorgio] Attili [produtor e fotógrafo, trabalhou no filme O ritual dos sádicos (1970), entre outros], pelo amor de Deus, vamos fazer a cena, vamos reduzir a cena". Chegou uma hora que o Attili falou: "não vai dar pra fazer". Então, você faz o primeiro plano correndo no mesmo lugar, usa só dois refletores, porque foram terminando com os outros refletores, usa como dá... Isso é maldito. Todo mundo tentando me sabotar, aí chega o técnico e diz: "Pô, eu tenho três filhos pra sustentar", mas não me perguntou quantos filhos eu tinha para sustentar. Não me perguntou o que eu fiz pra fazer aquela fita. Por que sabotar a mim? Por que acabar com aquilo que eu não tinha? Tinha quinze latas de negativos, me roubam duas e eu fico com treze latas. Todo mundo fazendo gozação em uma época que eu inventava coisas que jamais alguém tinha inventado. Vinha o pessoal da Vera Cruz ficava todo mundo assistindo: "como vai sair essa fita feita aqui, que tem 10x10? Como é que você vai fazer um cemitério aí dentro? Como é que você vai fazer?". Era difícil você trabalhar com isso. Entende? Não havia condições. Todo dia que tinha problema de greve dos técnicos. Então, o maldito eu considero o criador.

Ivan Cardoso: Eu estava te perguntando outra coisa. Hoje em dia, o maldito é um rótulo que dá muito dinheiro. Os conjuntos de rock que são censurados, o Marcelo D2 [pseudônimo de Marcelo Maldonado Gomes Peixoto. Rapper, ex-vocalista da banda Planet Hemp], que é mais censurado que você hoje em dia, ele ganha muito mais dinheiro com a censura. Por que você não ganha dinheiro sendo censurado?

Ítala Nandi: Mas tem uma coisa Ivan. Desculpe fazer um aparte antes de você responder. Glauber também é maldito, Zé Celso [José Celso Martinez Corrêa, ator e dramaturgo, criador do Teatro Oficina de São Paulo - ver entrevista com Zé Celso no Roda Viva] é maldito...
 
Ivan Cardoso: Todos os maiores do mundo são malditos, "é bem visto ser maldito."

Ítala Nandi: Eu acho que é uma coisa... Não é bem assim. Eu acho que é uma coisa mais ligada à inteligência e à autenticidade do criador. Quando o criador é muito autêntico no Brasil, onde tudo é uma cópia, quando ele é uma cultura de exportação, que é o caso do Mojica, então, quando ele passa a ser cultura de exportação... Oswald de Andrade [(1890-1954) escritor e dramaturgo brasileiro. Foi um dos promotores da Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo], maldito. Quando ele passa a ser cultura de exportação, ele é... A obra do Mojica é individual, única... Então passa a... Você entendeu o que eu falei?

Ivan Cardoso: Mojica é cultura aqui também, meu amor. Duas obras dele eram sucesso aqui. Tinha programa na Bandeirantes, entendeu. Cada história dele vendeu duzentos, trezentos mil.

José Mojica: Veja a Ítala falando. Vocês me dão licença de fazer duas coisas? Eu conheci a Ítala em 1967 no Rio de Janeiro - para você ver como eu sou um maldito para coisa e até inocente. Fui chamado pra um programa, né? Em 1967 estava a maior explosão a fita, os caras querendo acabar comigo e foi aí que eu conheci a Ítala num programa. [E] as meninas lindas de odalisca. Fui convidado para um jantar, pensei até que era um "Almoço com as estrelas", do Aerton [Perlingeiro. Fazia esse programa de auditório, também conhecido como AP Show, na Rede Tupi de televisão, apresentado no Rio de Janeiro nas tardes de sábado entre 1956 e 1980. Sua marca eram os almoços com os artistas da televisão. O programa foi apresentado também por Airton e Lolita Rodrigues ], né? E lá fui eu para o jantar. Aí chegou o cara, me passou: "você vai ter aí um jantar... Do que você gosta?". Falei das comidas que gostava. Aí chegou a Ítala pra mim: "não entra nessa, que eles estão te aprontando", não precisa falar mais nada. Eu sabia que ali ia ter nhoque, o diabo a quatro, então, na hora de servir o prato que puseram para mim eu, muito educado, disse: "primeiro as damas". Serviram as damas, e aí eles já não tinham como fazer. Aí já [não] tinham me ridicularizado e tiveram que reconhecer uma coisa: eu era malicioso, era consciente do que fazia, era esperto. Não tenho uma cultura, que todo mundo lê, ou faz, mas eu tinha uma vivência de vida muito forte.

Cunha Júnior: Espera aí, Mojica, não ficou muito claro. Eu já passo pra você. Da questão de ser maldito ou de ganhar dinheiro, eu queria esclarecer um pouco mais. Mas você, Mojica, foi sempre um artista, pelo menos nos anos 1960, 1970, multimídia. Até isso está muito claro no livro. Porque você fez cinema, rádio, TV, livro, disco, revista em quadrinho, teatro, literatura de cordel, fotonovelas, como é...

José Mojica: Comerciais...

Cunha Júnior: Comerciais... Tinha até consórcio de caixão, bebida, não sei o quê. Como é... Você transcendeu Xuxa [apresentadora de programas infantis e para jovens na Rede Globo] e Gugu [apresentador de programas de auditório na SBT], nessa coisa de ser multi, multi e vender tudo. Como você não ficou rico?

José Mojica: Eu não fiquei rico porque fui um elemento mal assessorado. Se me permite, só dar uma... Eu sempre procurei um empresário, procurava alguém que realmente tinha consciência, que tinha humanismo, que chegasse e falasse: "olha, eu levo 10% e acabou". Esses produtos que eu estava lançando - para as unhas - funcionavam demais! Sabonete para rejuvenescer, que vinha das lamas, funcionava. Estava dando uma fortuna. Aí o dono da Leblon me chamou. Eu falei: "vai aumentar o salário", eu tinha 10%. "Olha, você está ganhando muito dinheiro, agora, vamos baixar pra 5%". Aí tive que parar o produto. Eu nunca voltei, ele morreu, perdeu a fórmula e não deu para fazer. [Então] continuando [a falar] dos problemas de não ficar rico, tem que aparecer um empresário. Tem que aparecer. Estou na Bandeirantes e, de repente, 1967, entra um outro grupo que quer elitizar a Bandeirantes e me deixa encostado e recebendo como um marajá: "estou recebendo sem trabalhar". Sílvio Santos [apresentador de televisão e empresário, dono do grupo Silvio Santos e da rede Sistema Brasileiro de Televisão], que era muito fã do meu programa, me levou na Organização Victor Costa [formada por Victor Petraglia Geraldini (1907-1959)], que era o Pacote, que tomava conta, me levou lá para ser contratado. Eu ganhava o que seria mil e quinhentos reais na Bandeirantes, a organização me ofereceu três mil reais... Nossa para mim aquilo foi... Vou trabalhar com o Sílvio e ele está me dando aquela força, né? Mas eu chego em casa, no estúdio, e tem um telefonema do Cassiano Gabus Mendes [(1929- 1993) radialista e pioneiro da televisão no Brasil. Um dos primeiros diretores de televisão no comando da TV Tupi na década de 1950] me telefonando da Tupi, que tem uma proposta assim, irrecusável, não sei o quê. Eu não dou a mínima, porque eu já tinha dado a minha palavra antes, mas eu queria um empresário. Aí o Marcos Lázaro [(1925-2003) empresário de artistas. Ficou conhecido nos anos 1960 e 1970 por gerenciar as carreiras de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e outros artistas da Jovem Guarda, entre outros]. Alguém já ouviu falar em Marcos Lázaro? É um dos maiores empresários do país. Marcos Lázaro telefonando pra mim? Como o Cassiano era vivo, ele jogou o Marcos Lázaro, porque eu não dei a mínima para ele. Quando liguei para o Marcos Lázaro falei: "você vai me empresariar?". [Ele disse]: "vou!. Vou mandar um carro te pegar". [E] lá fui eu diretamente com o Marcos Lázaro naquele escritório fantástico. "Puxa, você é o...". [E] ele jogou o Roberto Carlos, Erasmo Carlos [e disse]: "olha, eu quero que você trabalhe na coisa...". Eu tinha três mil reais na Globo e ele me oferece mil e quinhentos reais. E eu falei: "peraí, estou vindo da Globo por três mil, você me oferece mil?". "Não, não é os mil, você tem os mil, mas eu quero mais 20% sobre os seus mil". Eu falei: "você vai me levar para onde? Na Tupi eles já me chamaram". Aí, o Cassiano telefonou, não me deixaram sair. Eu falei: "Marcos, nós vamos conversar essa história depois". Aí eu cheguei lá e quando cheguei eu falei: "Cassiano: não vai dar nada aí, porque está sendo um jogo baixo". Ele falou: "não Mojica. O problema é o seguinte, estou te dando seis mil". O dobro da Globo. "E os meus assistentes que estão aqui?". "Quanto você quer para os seus assistentes?". "Eu quero quinhentos reais para cada assistente". "Então, eu pago à parte os quinhentos reais. Eu ponho o dinheiro na sua mão. Só que você só sai daqui com contrato assinado". E eu falei: "o Marcos vai retornar". E ele disse: "o Marcos Lázaro não tem nada a ver, porque eu já paguei o Marcos Lázaro". Meu Deus, o cara queria receber dos meus mil e quinhentos. Ele já sabia que eu ia receber seis paus. Então, ele estava com mil e quinhentos e me tirando mais coisa. Aí eu falei: "eu não vou ter empresário". Eu sou maldito mesmo.

Ítala Nandi: Você é a própria imagem do Brasil.

Cunha Júnior: É que o Mário estava na frente. A não ser que...

Mário Prata:
As damas primeiro, nós somos compadres, não tem o menor problema. 

Ítala Nandi:
Só o seguinte, porque você vai mudar de papo, eu acho que aqui a gente encerra um papo. O brasileiro tem vergonha da própria imagem.

José Mojica:
Demais.

Ítala Nandi:
Demais. E você é Zé. Você é a cara do Brasil. E a mídia não suporta isso. Não suporta.

José Mojica:
Não, porque eu assumo. E vou lá e provo...

Ítala Nandi:
Exatamente. E pra mim isso encera um papo importante. Obrigada.

Mário Prata:
Posso falar agora?

Mário Prata:
José Mojica. Seu trabalho, você já falou, inclusive, da sua autenticidade, todo mundo fala isso de você. Sucesso de seu personagem é a autenticidade. Último filme que eu vi seu, você vai me desculpar porque eu não sei o nome, estava viajando na televisão e caiu em você. Eu assisti... É um filme que tem uma cena, uma seqüência longa com uns hippies. Passou...

José Mojica: Finis hominis [O fim do homem, em latim (1971)]...

Mário Prata: Esse filme aí. Deixa eu te fazer uma pergunta: a seqüência toda, que é longa, dos hippies, vista hoje, de que ano é o filme?
 
José Mojica: 1970, onde eu tive a honra...O Leon Cakoff praticamente fez uma crítica no Diário da Noite que a fita estava adiantada trinta anos no tempo.

Mário Prata: Então, está valendo ainda. Mas deixa eu fazer a minha pergunta. Nesse filme, a visão que você tem do movimento hippie, que era uma coisa da época, que é até uma coisa um pouco passada, visto hoje, ele é muito caricatural. É quase a caricatura da caricatura. A minha pergunta é a seguinte: quando você fez o filme, você já estava fazendo a caricatura do movimento hippie ou aquela era a visão que você tinha daquele momento do jovem no Brasil? Ou seja, era uma crítica ou você achava e tinha certeza que era daquele jeito que está no filme? Eu acho o filme genial, falo sem riso, eu assisti até o final.

José Mojica: Eu era muito cultuado pelos hippies. Inclusive um líder deles que foi para França, o Valdomiro de Deus [pintor baiano. Possui aproximadamente duas mil obras sobre folclore e situações do cotidiano. Nos anos 1960 passou a expor seus quadros no viaduto do Chá, participou do movimento Tropicália. Ficou conhecido por pintar a Nossa Senhora com uma minissaia], era um líder do grupo. Mas eu era um elemento muito curioso, gostava de estar com o público, agradar a gregos e troianos, todas as camadas. Achei as roupas realmente muito coloridas, bonitas, a maneira de dizer "paz e amor", aquilo tinha algo. Mas tinha um algo que eu achava que teria que trazer ao público, que o público não sabia, que seria a higiene. O elemento pode ser um proletário, pode ser tudo. Eu pus esse pessoal no meu estúdio, dormindo no meu estúdio, para poder filmar. Praticamente depois de uma semana, não havia uma pessoa, mas nem com máscara, para poder entrar no estúdio de tão fedido, porque eles não tomavam banho e eu vi isso com meus olhos. Então, eu tinha que mostrar uma pequena mensagem. Ali, eu acabo mostrando uma mensagem. Eu acho que "paz e amor" era uma proposta muito boa, entende, mas eu combati muito o problema de higiene e procuro mostrar naquela cena, quando ele diz "paz e amor", eu jogo uma sacola de dinheiro...

Mário Prata: Isso.

José Mojica: E um massacra o outro pra correr atrás da grana... Então, já que nós estávamos lá e não havia paz e amor não. Se fosse isso, eles dividiriam o dinheiro entre eles. Não, eles saíram no tapa. E acabei dando uma lição de moral neles, do problema do banho, que eles não tomavam.

Mário Prata: Mas você tem certeza de que eles não tomavam banho?

José Mojica: Eles ficaram no estúdio uma semana.  

Mário Prata:
É isso que eu queria saber os atores que fizeram a cena...

José Mojica:
Eles eram hippies mesmo.

Mário Prata:
Não eram atores, eram hippies?

José Mojica:
Eram hippies, e não tomavam banho e não havia Cristo que fizesse eles tomarem banho lá.

Ivan Cardoso:
Era a visão dos hippies que você tinha na época, então? Você está tendo uma visão reacionária em relação aos hippies. Você está dizendo que eles não tomam banho.

José Mojica:
Não, eu queria saber porque é tão bonito, se eles conviviam para dormir, para....

Ivan Cardoso:
Eu era hippie na época e tomava banho. O Mário também era e tomava banho.

[sobreposição de vozes]


Cunha Júnior:
Um de cada vez

Ítala Nandi:
Ele estava falando de quem estava no estúdio dele.

Mário Prata:
A minha pergunta é exatamente isso. Quer dizer, você fez o seu hippie não tomar banho?

José Mojica:
Não, não. Eu cheguei e fui um elemento que "metia a boca no trombone". Eu falei: "vocês são falsos hippies". Porque a partir do momento que eles estavam no estúdio, que eles eram amantes da natureza, eu tentei fazer uma cena numa cachoeira com eles e não houve Cristo que colocasse eles dentro d'água. Então os chamei de "falsos hippies". Ficavam pegando grana na Praça da República por aqueles cantos, entende... Se ela foi? Ela foi autêntica, ser autêntica é uma coisa.

Mário Prata:
Não era caricata?

José Mojica: Não. Não.

Mário Prata:
Embora tenha ficado caricata hoje, trinta anos depois.

José Mojica:
Não era caricata.

Mário Prata:
A minha pergunta você respondeu: era a sua visão do movimento hippie naquela época, honesta e dentro...

José Mojica:
Eu gostava do ponto de vista deles falarem, gostava dessa parte, mas, eu cheguei à conclusão de que um queria imitar o outro e havia muita gente entrando naquela luta, que não tinha nada a ver.

Ivan Cardoso:
Como você toma banho com essas unhas?

José Mojica:
Olha, eu acho o banho uma coisa fundamental. Você entra numa banheira. Eu tenho uma banheira normal, se você entra numa banheira, você tem uma escova, você se escova... É a coisa mais fácil do mundo...

Ivan Cardoso:
Como você faz com as unhas?

José Mojica:
Hoje eu tenho mais liberdade, eu posso até esfregar as coisas. Mas eu sempre tive uma escovinha para escovar. E não se usa as unhas, nem para limpar aquele negócio, quando a gente vai ao banheiro...

Ivan Cardoso:
Muita gente diz que você não toma banho por causa das unhas também, fazendo o papel do advogado do diabo. 

José Mojica:
Não, eu acredito que sou uma das pessoas que mais gosta de tomar banho. Tomo três, quatro vezes por dia, se eu tiver condições, né, de estar na coisa. Porque sou uma pessoa que suo demais, sou calorento demais, entende e não admito isso. Se você pode ter uma higiene, você mostrar o papel ao elemento, pode entrar até no barro, mas saindo daquilo você tem que partir para o seu banho.

Ítala Nandi: Você tem medo das almas, Mojica? O que você entende por almas, como é a coisa das almas pra você?

José Mojica: Depende o lado que se vê almas, né? Existem almas feita por lendas, ou seja, criadas para um clima numa casa mal assombrada... E existe aquilo que eu chamo da essência. A essência de cada um é a própria alma que nós temos. Queira ou não, se você morrer amanhã, a sua essência, ela vai sair, entende, para algum canto. Se você tem algo de positivo para cumprir aqui na Terra, com certeza, essa essência não vai se juntar a um imã onde vão as essências inúteis. Porque nós temos aqui, pessoas úteis e inúteis. E nós estamos em um satélite experimental sendo testados. Quem é útil, vai ser salva a sua essência, que você chama de alma. Com certeza, eu acredito que você vai ser salva, porque você tem uma cabeça bacana, você não é invejosa, isso é muito importante, você é batalhadora e você tem uma coisa acima dos demais, é audaciosa. Não tem medo do ridículo. Você sabe que se acredita em algo, você faz aquilo que acredita. E assim deviam ser as pessoas.

Ítala Nandi: Foi por isso que você me convidou pra fazer seu filme?

José Mojica: Convidei. E depois nós vamos falar dessa cena.

Cunha júnior: Mojica, só uma questão de ordem, o Reichenbach quer falar. Eu gostaria que, antes de você fazer a sua pergunta, contasse como você conheceu o Mojica. Porque eu li, não sei se no livro, ou nas pesquisas aqui, parece que você estava meio fugindo da polícia e entrou no cinema, como foi a história?

Carlos Reichenbach: Realmente, a gente no meio da [avenida] São João [centro de São Paulo], sob efeito de bomba de gás lacrimogêneo, dentro da galeria do Olido... E se correu até o Palácio e entrou na sala de projeção e viu o filme, pagou a entrada, entrou correndo e houve esse grande papo. Mas, sobretudo, quem antenou, a primeira pessoa a antenar a importância do Mojica, indiscutivelmente, era um dos maiores cineastas da história do cinema brasileiro, que se chama Luís Sérgio Person [(1936-1976) ator, diretor e roteirista. Produziu São Paulo S/A (1965) e O caso dos irmãos Naves (1967) entre outros] Luís Sérgio Person parece que colaborou... Eu estava até vendo no filme...

José Mojica: Ele colaborou numa fita em que até Júlio Bressane [grande representante do cinema marginal da Boca do Lixo. Estreou como diretor em 1967 com Cara a cara. Também produziu, Matou a família e foi ao cinema (1969), A família do barulho (1970), entre outros] escreveu uma crítica muito bonita, assim, em cima... E ele fez para mim, realmente, o roteiro. Ele [Sérgio Person] e o Júlio [Bressane], né, fizeram o roteiro. Porque o grupo que ia trabalhar comigo - eu não estou acostumado a trabalhar com o roteiro, faço uma espécie de sinopse para trabalhar - disse que era da Vera Cruz, aquela coisa toda, eles queriam um roteiro. Eu, então, chamei o Person e ele escreveu o roteiro para trabalhar. Mas, no fundo, a fita acabou saindo por outro caminho, vamos aí.

Carlos Reichenbach: Mas a pergunta não é essa. A pergunta é: você cria muito a imagem do Mojica instintivo, passional, semi-analfabeto. Eu queria saber, na verdade: você escreve os seus roteiros? Porque uma pergunta que se faz entre seus fãs, como eu, por exemplo, se você leu Edgar Alan Poe [(1809-1849) escritor e poeta., autor de contos sobre a morte, o horror, o sobrenatural, entre esses "Tales of the grotesque and arabesque" ("Contos do grotesco e arabesco", 1839), "The fall of the house of Usher" ("A queda da casa de Usher") e outros] ou não leu quando jovem? Se você leu Assim falava Zaratustra [publicado em 1885 por Friedrich Nietzsche] ou não leu, quando jovem?

José Mojica:
Olha, eu estou atrás do livro Zaratustra, que eles me compraram fazem vinte e sei lá. Eu não sei falar as palavras realmente, como seria? Nietzsche [(1844-1900) filósofo alemão, autor de Assim falava Zaratrusta]... Eu preciso ler esse livro, porque me comparam tanto, que eu queria ter assim uma idéia da pessoa. Edgar Alan Poe, eu realmente cheguei a ler em história em quadrinho. Eu cheguei, mas isso bem depois, e fiz agora em cd-rom uma poesia que o Abujamra [ator e diretor de teatro e televisão] no passado queria - na Tupi - que eu fizesse. Uma poesia meio bichona, né? E eu não podia fazer com o personagem do Zé do Caixão e hoje eu fiz uma poesia para o cd-rom, entende, para a revista Zé, é de Edgar Alan Poe. Eu achei a coisa fantástica e fiz a poesia.
 
Carlos Reichenbach: Deixa eu te fazer outra pergunta: de onde surgiu o discurso do Zé do Caixão em À meia noite levarei tua alma e aquela távola, aquela taverna que lembra, realmente, "O barril de amontillado" [conto de Edgar Alan Poe publicado em 1846 sobre a história de um homem que deseja se vingar de um desafeto].

José Mojica: Olha, o primeiro roteiro de À meia noite eu escrevi. O segundo, eu também fiz o roteiro, como o terceiro, que não chegou a ser rodado: A encarnação do demônio [é o terceiro de uma trilogia: À meia-noite levarei sua alma e Essa noite encarnarei no seu cadáver. O filme foi lançado em 2008] que hoje chama-se Olho do portal do inferno [1990]. Então, esses três eu fiz e, no passado, eu fazia do meu jeito. Mas é um roteirinho segundo Person, ele admirava demais o A encarnação da múmia. Ele queria ser o Cristo que tinha lá dentro, eu até prometi a Ítala, que ela ser uma das personagens da fita. E o Person queria ser o Cristo, que depois não é nem Cristo nem o diabo. No momento que a cena se passa num purgatório, o elemento puxa a descarga e vai sair na bexiga e, da bexiga, ele começa a andar por dento do ser humano, os espermatozóides discutem e toda aquela coisa. Eu mostro lá o nascer da vida como alegoria e o Person achava aquilo fantástico, ser Cristo lá. Ele achava que era o ponto alto da fita, mas até hoje são tantas...

Ivan Cardoso: Quando é que o [Rubens Francisco] Luchetti começou a trabalhar com você?
 
José Mojica: O Lucchetti começou a trabalhar comigo em 1967.

Cunha Júnior: Barcinski, a próxima pergunta.

André Barcinski: Estava esperando uma carona.

José Mojica: Aí já estava com os três roteiros prontos... Aí ele começou a fazer...

Ivan Cardoso:
Quantos roteiros ele já escreveu?

José Mojica:
O Luchetti já está aproximadamente com dois roteiros, de cinema.

André Barcinski:
O Carlão [Carlos Reichenbach] perguntou se você leu os livros e tal. Todo mundo sabe que você não leu muito na infância, que você lia mais história em quadrinhos. Eu queria perguntar para você sobre seu conhecimento de cinema, que é uma coisa que muito pouca gente sabe. Você tem um conhecimento muito grande de cinema, porque você morou durante 15 ou 16 anos dentro de um cinema. Você assistiu a milhares de filmes. Então, apesar de você não ter um conhecimento...

José Mojica: É, eu acho que morando no cinema você tem uma vantagem sobre os demais, né. Porque eu estava vendo imagens, sempre em movimento, gostando da história em quadrinho, que a imagem é parada, e vendo a imagem em movimento. Claro que aquilo foi me absorvendo enquanto eu via. Se tivesse que ser feito, tinha que ser feito de alguma forma, eu nunca tinha visto realmente uma filmagem, mas imaginava que com uma câmera, deveria sair alguma coisa. Então, eu fui justamente com a câmara de 8,5 mm, comecei a fazer as minhas primeiras provas e provando muita coisa que dava certo. Eu passei pra 16mm e assim por diante. Então, eu fui um autodidata no cinema. Eu me senti realmente esquisito, quando eu vi o Capovilla [Maurice Capovilla ator, roteirista, produtor e cineasta brasileiro. Participou na produção e direção de Noites de Iemanjá (1971); O profeta da fome (1970). E, como ator, participou dos filmes Audácia (1970); O ritual dos sádicos (1970), entre outros] dirigindo, e aí vi que estava tudo errado, que eu fazia tudo errado. Mas aí, novamente, ele me ajudou... Duas vezes ele me ajudou na vida. Uma vez quando eu ganhei um livro em 1967, eu ganhei um livro sobre cinema de terror e não sei o quê. Ele pegou esse livro e falou: "Mojica: você não tem que ler. Você tem que escrever para o pessoal fazer". E ele rasgou esse livro. Rasgou e falou: "se um dia você encontrar com ele, pode dizer que eu rasguei esse livro. Porque você é um autodidata" e eu não sabia o que era autodidata, não sabia exatamente o que era isso, e ele disse: "prossegue nesse caminho".

André Barcinski: Ele queria que você não tivesse nenhuma influência externa?

José Mojica:
Não, que eu não tivesse nenhuma influência... O próprio Glauber fala isso, e depois eu fui falar com o Glauber, quando ele me fez uma dedicatória, que tenho até hoje a data que ele fez. O Di Cavalcanti [(1897-1976) pintor e ilustrador] também me incentivou a não ler e a ir na Embrafilme, meter o pé na Embrafilme e pedir o dinheiro, porque tinha dinheiro que estava lá, segundo o Glauber, era nosso. O dinheiro era nosso, era do Carlão, do Sérgio, era de todo mundo.

Mário Prata:
Mojica, você falou aí que quando iam cobrar de você, "que eu tenho três filhos", e não perguntavam quantos filhos você tinha. Eu queria te perguntar, quantos filhos você tem? E se seus filhos são autodidatas também, eles estudaram, são engenheiros, fazem cinema? Como é que é isso? Se você não quiser entrar na sua vida pessoal...
 
José Mojica: Tenho, na realidade, sete filhos. Eu me orgulho demais dos meus filhos. Tenho um filho que tem três faculdades, está fazendo mais uma, e é professor de várias faculdades. Foi assistente de várias fitas minhas, quando atingiu a idade de 14 anos, já começou a trabalhar comigo. Tenho outra, Mariliz Marins [também conhecida por Liz Marins ou Liz Vamp], que até fez direção na Itália, dirigiu um curta, entende? Fez aqui vários trabalhos. Era apresentadora na Manchete. É modelo, está agora preparando a mãe nesse negócio de audiovisual. Tenho um filho nos Estados Unidos, que fala várias línguas, ao menos cinco, e eu acho que já fala mais do que eu, porque eu só sei falar a minha língua. Não tenho problema com os filhos. Os filhos se dão muito bem um com o outro, eles conversam numa boa. São quatro mulheres, entende? Eu tenho a minha caçula Rose que se dá [bem] também. Olha, todos os filhos se juntam, quando um tem um problema, [eles] socorrem e nunca tive problemas com as mães, você me entende? Eu perdi elas e tive no passado... É que, entramos assim, em um problema sério. Eu tive muita ajuda, praticamente, das minhas mulheres no passado. Pela compreensão delas...

Mário Prata: Você ficou viúvo?

José Mojica: Eu perdi duas esposas. Mas eu cheguei a me separar, porque não dava certo. Mas a gente tinha amizade e nenhuma proibia que um filho fosse ver o filho da outra. E cada uma lutou pelo seu lado. Eu tive a mãe do Prônio, que lutou demais dentro do teatro, fez teatro. Eu só tenho, hoje, remorso, porque ela morreu e uma única coisa que ela me pediu na vida: [para que] eu, um dia, aparecesse no teatro para dar uma força. E eu não dei essa força. E ela foi sozinha e criou meus filhos sozinha e eu achei isso uma coisa fantástica.

Cunha Júnior: Mojica. Peço licença a vocês e a vocês aí de casa. A gente vai fazer um breve intervalo e voltamos daqui a pouquinho, então, entrevistando o cineasta José Mojica Marins.

[intervalo]

Cunha Júnior:
Voltamos, então, com o Roda Viva desta noite, que entrevista o cineasta José Mojica Marins. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos estados brasileiros, inclusive Brasília. E, hoje, infelizmente você não pode fazer perguntas seja pelo telefone, fax e Internet, porque o programa é gravado. Mojica, no fim [do filme] Esta noite encarnarei no teu cadáver, que é de 1966, tem um determinado momento que o Zé do Caixão está torturando o coitado lá, sadicamente, e ele fala assim: "até onde vão minhas unhas se eu não cortá-las. Até prender meus movimentos". Você fala isso no filme. E, agora, recentemente, no dia 13 de março, dia do seu aniversário, numa sexta feira, lua cheia, você resolveu fazer um evento, um happening, cortando as suas unhas, com direito até a show do Sepultura, etc. E você distribuiu suas unhas. E você declarou nessa época: "eu era uma pessoa dependente há 35 anos e minha vida era um desespero". Gostaria que você falasse dessa sua relação com suas unhas. O que você está podendo fazer hoje? Parece que você tinha sonhos, bater computador, teclar computador, essas coisas assim.

José Mojica: Na realidade, na própria cena em que você vê o Zé do Caixão fazer aquele desafio, porque ele acha que a natureza está errada - eu já declarei que eu tinha sido uma cobaia. A prova disso foi que, realmente, os meus dedos realmente começaram a atrofiar e eu iria perder toda a circulação da mão se não cortasse as unhas. Havia sido premeditada a data do lançamento no livro, mas, como houve um atraso, eu, para não perder o movimento das mãos - não via a hora de recuperar o movimento das mãos, a liberdade - cortei. Vejo, hoje, quando vou lá na internet, que tenho umas coisinhas, e não conseguia mexer em computador, entendeu? Eu tenho [até] site. Qual é o nome do site?

André Barcinski: é <www.zedocaixao.com>.

Cunha Júnior: Você tem "coffinjoe.com" também, não?

José Mojica: Esse é oficial. De repente, eu mesmo não posso entrar no meu site, não posso mexer em nada. Então, agora vou ter mais liberdade. Não posso guiar carro, não posso fazer nada. Vou entrar, agora, aprender a guiar, para não ter dependência de um chofer sempre. Poder usar um carro e, praticamente, poder mexer com a internet, que eu acho que você pode entrar em comunicação com tanta gente no mundo, entende. Só vejo isso através dos meus amigos. Um e-mail que mandou, tem esse, entra no site tal.

Leon Cakoff: Então, suas unhas estão curtas agora, é isso? 

José Mojica: É. Elas estão curtas. Elas foram cortadas, e agora você diz: por que é que elas estão desse tamanho? Porque eu não consegui ainda, fixar a mão. E se eu cortar ela mais um pouco, ela começa a doer, pelo tempo que ela ficou. Daí eu tenho que aguardar um pouquinho mais, fazendo fisioterapia, aí eu já vou deixar ela praticamente cortada no nível que tem que ser. E quando eu tiver que fazer um filme relacionado a Zé do Caixão, eu tenho lá pra mais de metro de unha, do passado, que eu fui aparando... Então eu tenho uma dedeira que eu uso, aí eu vou usar as dedeiras para fazer o Zé do Caixão.

Cunha Júnior: Espera um pouquinho, parece que o Rogério tem uma declaração...

Rogério Brandão: Não chega a ser uma declaração. É que o Mojica, como cineasta, é um grande criador de personagem, está aí o Zé do Caixão que é imortal, talvez o único personagem da América Latina voltado para essa ficção de terror e quando foi extinto o Cine Trash, nós, para não perdermos a onda e toda a audiência que havia sido alavancada, nós criamos um projeto que era "Os contos da boca do lixo", onde o Zé do Caixão teria a participação como a caveirinha do "Contos da Cripta" [(1989) Produzida por Richard Donner e outros, a série de curtas histórias de terror, apresentado por uma caveira chamada o guardião da Cripta foi feita originalmente para a televisão americana e exibido no Brasil entre 1989 e 1996 pela TV Bandeirantes]. Seria um mestre de cerimônias onde apresentaria o filme e isso seria feito com o pessoal da boca do lixo. E nós chegamos a conclusão que não daria para usar o Zé. E ele tirou da cartola um personagem, que é a antítese do Zé do Caixão, que é o Oaxiac Odéz [do filme Estranho mundo de Zé do Caixão (1968). Filme composto por três histórias, entre elas a de Oaxiac Odéz, um professor excêntrico que mantém em sua casa um local de torturas]. Não sei [se] todo mundo aqui tem conhecimento desse personagem e queria que você falasse desse personagem.

José Mojica: Não, o Oaxiac Odéz, ele está no outro extremo do Zé do Caixão. Porque houve, na época, um negócio até estranho, né. Eu tinha um contrato com um produtor - que hoje esteja em um bom lugar, né, uma série de pessoas boas que morreram... Ele teve seus problemas, uma das coisas foi me prender em um contrato e ele não me deixou terminar justamente a trilogia que seria seria A encarnação do demônio... Não podia usar o personagem Zé do Caixão. Tive que, estranhamente, fazer o Zé do Caixão sem usar o personagem, então, eu coloquei o Oaxiac Odéz, de trás para diante... Mas, na própria fita, você vê que na hora o menino diz: "parece que eu conheço esse nome, o professor que vai entrar". É praticamente o Zé do Caixão...

Rogério Brandão: Mas a essência do Oaxiac Odéz dentro do "Contos da boca do lixo", tinha a história do Oaxiac Odéz... Então eu queria que você falasse, a roupa que seria totalmente branca, ao contrário...

José Mojica:
Não, a roupa podia ser branca ou podia ser um azul celeste, bonita, essa coisa em cores, né? Poderia ser representado por uma roupa em cores, porque o Oaxiac Odéz é um elemento assim, eu diria, é como o padre do Zé do Caixão. Ele seria de uma outra dimensão, mas, dando apoio ao personagem, que o personagem não tem início e também não vai ter fim. O Oaxiac Odéz é um personagem que eu posso usar normalmente, é um novo personagem, mas não deixa de ter as idéias e até um pouco mais que o Zé do Caixão, porque ele luta muito entre a razão e o instinto. Ele luta muito para provar que o instinto tem uma força. E, realmente, o instinto tem uma força, que me perguntavam: "como eu fazia com as unhas?". Nós somos animais, somos racionais, mas somos animais. Se você colocar uma unha postiça e você for dormir, você amanhece com elas quebradas. Se elas vão crescendo devagar, a gente vai se habituando e é mais fácil o subconsciente nos proteger das unhas. Você, dormindo, vai [se] proteger automaticamente. Isso mostra que o instinto é muito grande. É superior à razão. É aquele caso, por exemplo, que você viu - morro se ficar sem comer. Se você ficar sem comer e ele tiver com uma garota do lado, meu Deus... Eu já não digo, comer pelo outro lado, eu digo comer mesmo de fome... Não importa a beleza da mulher não, se a fome atacar, sete, oito dias sem comer, sai de perto porque o cara vai atacar.

Ivan Cardoso: Esse personagem foi você que inventou? 

José Mojica: Nós trocamos idéias. Acho que foi uma troca de idéias, justamente pelo problema que nós tínhamos com o Augusto de Cervantes [Manuel Augusto Pereira, também conhecido como Manuel de Cervantes. Produziu filmes para José Mojica Marins, como Meu destino em tuas mãos (1961-62) e Esta noite encarnarei no teu cadáver (1965-66), entre outros] de não querer que eu usasse o nome Zé do Caixão. E eu não queria fugir do personagem, então, nasceu a idéia do Oaxiac Odéz.

Cunha Júnior: O Mário queria fazer uma pergunta? Mário, Barcinski e Ítala. 

Mário Prata:
A minha pergunta se perdeu, eu vou ter voltar [ao tema] cortar as unhas aí, né? Estava folheando seu livro aqui e você teve uma infância complicada e tal. Eu queria saber se você, na infância, roía unha?

José Mojica:
Não, eu não roía unha. Eu tinha por hábito deixar...

Mário Prata:
Desde a infância?

José Mojica:
Desde a infância eu deixava a do polegar, todas elas, com uma barra de cinco centímetros, as duas. Há pessoas que tem o hábito de deixar as unhas do mindinho, é muito normal, eu já vi.

Mário Prata:
Mas você deixava, quando você deixava a unha do dedão grande, você não imaginava que um dia você poderia viver disso?

José Mojica:
Não, não. Eu só vim a ser Zé do Caixão pelo próprio maquiador... 

Mário Prata:
Mas por que você deixava a unha [crescer] quando era garoto?

José Mojica:
Era uma questão de hobby. Porque meu pai tocava muito violão e eu gostava de pegar...

Mário Prata:
Eles não achavam que você era doido, não? A unha grande, garoto?

José Mojica:
Não, eles não achavam não. Nasceu esse negócio de eu ser doido porque eu freqüentava a Igreja Católica, né? E quando eu ganhei a máquina de 8mm, o padre falava muito em juízo final, juízo final, juízo final. Vai acabar o mundo.

Mário Prata:
Aquela culpa, né?

José Mojica:
E eu lia muitas revistas... Buck Rogers [história em quadrinhos criada por Philiph Nowlan na revista Amazing histories e, posteriormente, em jornais, sobre as aventuras de um piloto (Buck Rogers) que, depois de ficar preso em uma mina, acorda quinhentos anos depois], da década de 1930, Flash Gordon [história em quadrinhos sobre um herói do espaço, criado por Alex Raymond em 1934], aquela coisa toda, disco voador... Aí comecei imaginar, um caixão. O que seria um caixão... Porque não um caixão, no lugar de um disco voador? Essa foi a idéia que me veio. Como eu morava no cinema, todo mundo era puxa saco para poder entrar de graça no cinema. Eu então falei: "vou fazer uma fita sobre o juízo final". Tinha a máquina... E já [tinha] os artistas...

Mário Prata: Quantos anos você tinha, só um parênteses?

José Mojica:
Nove para dez anos. Então, eu vou fazer. O padre falava tanto que eu falei: "o padre vai me adorar, eu vou ser badalado na Igreja, vai ser uma coisa fantástica". O meu pai, como era o único que me dava toda a liberdade e aquela coisa toda. Meu pai me ajudava demais, entende? Aí eu peguei a criançada e falei: "olha, cada quilo que vocês me trouxerem de verme de goiaba, vocês têm uma entrada no cinema". Aí foram sacas e sacas de bicho de goiaba para fazer o juízo final. Eu fiz um juízo final que é o seguinte: as pessoas eram boas e tal, dançavam samba canção, bolero, tal. De repente, "tchum", uma pessoa desaparecia e ficava o outro. A pessoa que desaparecia era a pessoa que os caixões - que vinham de outra galáxia, seres mais evoluídos do que nós - estavam pegando. Por isso [penso] isso aqui como um satélite experimental. E o padre não gostou muito, né? Então, levava aquela pessoa e a outra ia se dissolvendo e ficando tudo bichinho de goiaba, né? E assim, estava num jantar o pai e a mãe e tal, dois ou três desapareciam e outros ficavam. É sinal que eles eram maus e tinham que desaparecer e virava tudo bichinho de goiaba.

Mário Prata: O Zé está contando essa história aí, e tinha nove anos quando fez isso. Você já era doido, você já era gênio, porque por mais...

José Mojica:
Não, eu não era doido. Fiquei doido aí porque o padre disse que eu era doido.

Mário Prata:
Pois é, com nove anos, só a formação salesiana poderia formar uma mente como essa. Me lembrou muito...

José Mojica:
Aí, quando eu fiz a fita, né?

Mário Prata:
Desculpa. [Ela] me lembrou muito Dante Alighieri [(1265-1321) autor de A divina comédia, que narra a odisséia de Dante por Inferno, Purgatório e Paraíso].
 
José Mojica: Quando eu fiz essa fita, né, o meu pai olhou aquilo, não entendeu muito bem, mas achou bonito. [Assim] como os primos dele, a família, todo mundo admirou aquilo e mais do que depressa fomos chamar o padre. Eu queria que o padre assistisse, eu achei que seria uma coisa fantástica, né. O padre veio assistir com o sacristão... Com o grupo dele de congregados, na própria sala projetada para 8mm, e pondo um fundo musical. Lembro que pus aquela música "Aleluia", que eu uso muito, aí desgraçou mais a coisa. Pus na vitrola e mandei por o "Aleluia" como fundo musical. O pessoal se transformando em vermes e, de repente, nascendo uma nova: flores, matas, né? Então achei aquilo bonito. Aí o padre falou: seu filho é louco, tem que ser internado. Daí em diante todo o bairro começou a me achar louco.
 
Leon Cakoff: Existe cópia disso?

José Mojica: Olha, o André está atrás, eu também estou atrás. Há alguma coisa que eu recuperei, que está na cinemateca. E estou atrás de umas pessoas que devem ter aqui, porque muitos morreram, deixaram para a viúva...

Leon Cakoff:
Porque grande parte do seu acervo está perdido, não é isso?

José Mojica:
Muita coisa está perdida, mas [vamos] achar muita coisa. [Estou] começando a procurar agora...

Ivan Cardoso: Eu queria que você contasse a história do batateiro, completando a pergunta do...

José Mojica:
O batateiro que deu origem ao Pesadelo macabro [do filme Trilogia do terror (1968). Longa metragem com três episódios; O acordo, de Ozualdo Candeias; A Procissão dos mortos, de Luis Sérgio Person e Pesadelo macabro, de José Mojica Marins], que tanto se fala e, quem sabe, me levou para o lado terror. Eu tinha cinco anos, mas por quê? Porque tudo tem uma razão de ser. Então, a razão de ser que eu levei para esse lado. Era um batateiro, tipo um quitandeiro, que vende em quitanda, né? Ele tinha uma carroça de batata. Vendia e todo mundo gostava das batatas do homem. O homem era muito bom, conversava com as crianças, contava as histórias de quando a gente morria, ia para um lugar e falava com o animais, com os bichos e com essas coisas todas. Todo mundo gostava do batateiro. Um dia o batateiro morreu. Morreu...

Ivan Cardoso: Mojica, que bairro era esse?

José Mojica: Vila Anastácio. Isso aí foi pesquisado também, se é verdade ou não. E eles descobriram que era verdade, por isso eu me baseei nesse conto para escrever o Pesadelo macabro. Essa mesma história que eu levei para a TV e para o cinema.

Mário Prata: Mas volta para o batateiro...

José Mojica: Aí o batateiro morreu. Eu e mais três garotos, que eram muito amigos do batateiro, vimos o funeral, vimos todo mundo levando coroas e [resolvemos] levar uma coroa. Eu tinha cinco anos, mais ou menos por aí. "Vamos levar a coroa". E ali estava a mãe: "os bons vão embora e os maus ficam" não sei o quê. A esposa se agarrava e dizia: "porque não fui eu em seu lugar". E eu olhava aquilo: "porque não fui eu?". Aí os filhos se juntaram: "vamos rezar para o papai voltar, vamos rezar". Eu também me ajoelhei, todo mundo começou o padre nosso, e aí o homem começou a levantar. A mão levanta, e levanta a outra mão. Estava o delegado, o padre, o médico. Foi um feriado local, o comércio fechou porque o cara era muito querido. Mas quando fomos nos dar conta, todo mundo estava do outro lado da rua. Só estava eu e mais três garotos [olhando] o batateiro - com aquele algodãozinho no nariz e no ouvido - e perguntou: "mas o que aconteceu?". Nós, na nossa inocência, falamos: "não, é que você devia estar naquele mundo que você falou, e a gente rezou para você voltar, e você voltou". Mas não. Ele tinha catalepsia. Dali em diante, o que aconteceu? Aí eu comecei a acompanhar aquilo. A esposa pediu o desquite. A mãe dizia que era o diabo encarnado na coisa. Ninguém comprou mais batata do homem. O homem foi para outro bairro, se eu não me engano, foi para Remédios. E o boca a boca era fantástico, então, não conseguia emprego, não conseguia nada. Foi acabar no manicômio e lá morreu. Dali em diante, nascia o meu interesse pela morte.

Cunha Júnior: Barcinski.

André Barcinski: Voltando a falar da tua infância em Vila Anastácio, você fez dezenas de filmes amadores em 8, 8,5 e 16mm, né? E você só foi assistir uma filmagem que não fosse sua em 1969, ou seja, quase trinta anos depois de ter começado a filmar. E você disse que estranhou muito algumas coisas que se faziam no set de filmagem. Mas, o que você estranhou quando viu uma filmagem de um outro diretor? O que ele fazia diferente de você?

José Mojica: Eles gritam muito: "a câmera vai aqui e a câmera vai ali". [risos] Eu não uso aquele negócio de visor, olham num negócio, olham na câmera. Eu não consigo, porque para mim é o seguinte: a câmera, o que ela tem? Qual é a lente? É 75, é 35, é 25, é 18, 9.8? Eu procuro saber a lente e mal olho no visor de uma câmera para fazer. Se eu puder fazer a fotografia, eu peço isso, pego aquilo, peço que faça. Então, a briga era muita: "direita, esquerda. Aqui vai quebrar o quadro, então, põe a câmera mais para cá". Para rodar uma cena, eles põem em cinco, seis lugares. Eu já chego aqui, vamos fazer uma cena aqui, vou por a câmera aqui e daqui eu vou girar ela e pegar todo mundo. Não preciso brigar por tantas coisas. Então, é isso que eu fiquei... Aí eu viro, era uma noite de frio fantástica, o Capovilla chegou, fizemos uma cena, todo mundo de capote e eu de ceroula, porque [estava] no crucifixo de braços abertos pregado na cruz, né? Eu tô na cruz, um frio danado. Já é mal para ator, porque ele tem que estar lá morrendo de frio, eu falava e aquela fumaça saía da boca, né. Aí fiz toda a cena de perto. Aí, a quinhentos metros, o Capovilla - ele que me perdoa, mas eu tive que me intrometer - falou: "não, Mojica, você fica lá". E eu falei: "peraí, onde você vai pôr a máquina?". "Não, nós vamos pôr ali". E eu disse: "mas que lente você vai por lá". "Nós vamos usar uma 25". Pô, a quinhentos metros, vai me deixar naquele frio, e eu falei: "mas não se vê nada lá"... [risos] Gritei: "quem quer ser o Cristo aqui?". E apareceu um atrás do outro. Aí falei: "vamos escolher um dublê". Aí foi a primeira vez que eu peguei um dublê, porque realmente você vai ver a cena a quinhentos metros com uma lente 25, você não vê nada. Só vê que tem lá uma cruz e um amontoado de gente, tanto faz se é uma mulher que está dependurada lá... 

André Barcinski: Não tinha uma história que você tinha que mentir para os técnicos, dizendo que outros cineastas imaginassem, como é isso? 

José Mojica: O problema começou com o [Giorgio] Attili e com todo profissional...

André Barcinski:
O fotógrafo? 

José Mojica: Eu cansei, canso de dizer: nós estamos no país da mentira. A mentira não tem jeito. O presidente tem que mentir, o cineasta tem que mentir... 

Ivan Cardoso: Você mente muito, Mojica? 

José Mojica: Eu minto, mas as minhas mentiras elas são sempre para um lado positivo. Veja só.

[risos]


Ivan Cardoso:
Conta outra, Mojica. 

José Mojica: Aí vai de quem quer acreditar nas coisas. A minha escolinha está ficando famosa, e quem acompanhou ela desde o início dos anos 1950 - o Reichenbach [cineasta] podia até explicar de outra maneira essas loucuras que eu faço. Ele, como acompanhou, pode até falar sobre isso. Então, é uma das coisas que uso muito. Pego determinadas meninas, tem as bonitas e tem as feias. Pego as bonitas e começo [a] pôr na cabeça que elas são feias, certo? Vou pondo que aquela é feia, resultado: elas se tornam lindas. E a feia, eu começo a dizer que é bonita. Resultado, ela começa, então, a chegar em casa e se tratar, porque ela se acha bonita. Então, com o tempo - foi o que aconteceu com a Magda Mei [atriz e roteirista do filme A meia noite levarei sua alma] - ela vai se tornando bonita. E as bonitas não vão ficar feias, mas vão ficar humildes, e não se pisoteiam. E o cara que é burro, que é ignorante, vamos supor... Vou citar até um cara que vocês conhecem, o Reichenbach vai conhecer, o Jean Garett [(1947-1996) ator, diretor de cinema português. Como ator trabalhou em alguns filmes do José Mojica tais como Trilogia do terror (1968), O estranho mundo de Zé do Caixão (1968), entre outros. Como diretor produziu A ilha do desejo (1975), Possuída pelo pecado (1976), entre outros]. O Jean Garret, quando entrou no meu estúdio para filmar, ele dizia que em Portugal a fita tinha um metro de largura. O diretor ligava a câmera, punha os atores e descia para tomar um café. Quando voltava, a cena estava pronta. Aí eu falei: "esse cara não é burro. Esse cara é curioso. Ele quer saber a coisa". Então, passei a pedir conselhos para ele, certo? Quando sentia que a pessoa era curiosa, eu começava a pedir conselho. Isso obrigava o elemento a saber coisas de cinema. E obriga a mexer com o seu QI. "Pô, mas esse homem vem pedir conselho para mim, quem sou eu?". Isso faz parte da escola. Estou sentindo que o cara é inteligente. Então, eu pedia: "o que você acha de fazer isso?". "Eu não entendo nada, fotógrafo, novela". E eu [dizia]: "você nasceu para isso". Comecei fazendo fotonovela, fazia slide quando era criança, punha os negativos para ver, "por que você não tira uma foto?". Ele tirou umas fotos e seguiu meu caminho. Passei a ensiná-lo a fotografar e a primeira coisa que ele fez foi fazer fotonovela e, não deu outra, ele saiu diretor. Acho que o método é incentivar reações positivas. Vou pondo na cabeça da pessoa que ela sabe, se eu noto que ela é inteligente, ela chega lá. E, se eu noto que a moça, se ela se tratar, ela vai ficar bonita, ela começa a se tratar. 

Cunha Júnior: Vamos por uma ordem aqui. É que a Ítala estava na frente, mas antes, o Barcinski entrega você também numa história de mentira. Em 1994, você foi para os Estados Unidos para aquelas convenções. Você levou mais dois convidados e teria mentido para esses convidados dizendo que o Spielberg [cineasta americano famoso por filmes como E.T. o extraterrestre (1982), Tubarão (Jaws, 1975) entre outros] estaria esperando você no aeroporto com uma limusine e você ficaria hospedado no Waldorf Astoria [hotel famoso situado em Nova Iorque]. É coisa do Barcinski ou aconteceu mesmo? 

José Mojica: O Barcinski, eu estava falando com ele, existem nomes que eu só [fui] conhecer em 1996, como por exemplo, o Mel Gibson. O Spielberg, eu sabia que existia, porque ele declarou em 1970... Ele viu À meia noite, não sei onde, se foi pirataria nos Estados Unidos e ele declarou na revista Time - em duas linhas - que se eu tivesse nascido do outro lado do oceano, minha história seria diferente. Então, eu conhecia o Spielberg por isso. Como os Barretos, a família Barreto [produtores e diretores de inúmeros filmes] falava muito do Bruno Barreto [cineasta, dirigiu Dona Flor e seus dois maridos (1978), Gabriela, cravo e canela (1982), O que é isso companheiro (1997), entre outros] casado com a ex-esposa do Spielberg, que eu cheguei, na segunda vez que fui para os Estados Unidos, o meu filho pegou um cartão. Até perguntei: "olha" - porque eu tinha um caso com uma menina; já estou até explicando aqui para saber o que é mentira ou não - então perguntei ao Barreto: "será que o seu filho poderia me conseguir o Tom Cruise [ator hollywoodiano] para ser padrinho de casamento?". E o Barretão, que gosta de uma fita chamada Os sapos [1971] - ele sempre quis fazer Os sapos - disse: "olha, tá aqui o cartão, eu tenho a minha distribuidora lá"... Mas o meu filho não quis papo. Na realidade, eu queria falar com o Tom Cruise. Isso aí eu quis mesmo. Quer dizer, ao invés do cartão, meu filho falou: "mas pai, nós estamos aqui nos Estados Unidos"... Eu tinha ido para fazer o programa...

André Barcinski: Fox na TV. 

José Mojica: Eu fiz um programa de televisão, é um tipo de Sílvio Santos, que o cara fica pendurado também, só que o cara, ele foi tradutor meu e que quis dar uma de Sílvio Santos, mas não deu certo. Então, ele me mandou jogar terra [sobre ele] e mandou pegar uma cobra, [mas] eu não [poderia] deixar a cobra chegar no rosto dele... E falei: "não, fica tranqüilo que eu não deixo". "Então, me joga a terra". Comecei a jogar a terra e chegou uma hora que ele começou a falar em inglês lá, "manda o homem parar", porque eu não tô acostumado a fazer isso, né? Ele mandou parar. É um programa bem visto, cheio de gente aplaudindo. Chegou a hora da cobra. Quando eu pus a cobra, não deu outra. A cobra foi diretamente na cara do homem. [risos] O homem então ficou mais branco, com toda a maquiagem que ele tinha, ficou branco, branco. Tive que pegar a cobra na mão. Então, essas coisas folclóricas aconteciam muito. Mas eu tive lá com a filha do Boris Karloff, para mim, isso é muito importante. O neto de Lon Chaney [(1883-1930) ator americano da época do cinema mudo. Foi um dos primeiros atores a trabalhar um personagem com efeitos de maquiagem], alguns personagens da família Adams [foi criada pelo cartunista Charles Addams para a revista The New Yorker na década de 1930. Em 1960, estreou na televisão em forma de série], nossa, isso eu gostei demais. Mas teve alguns cretinos aqui que disseram um "não sei o quê" do Batman... É mentira, eu não gosto do Batman, pô. [risos] É mentira. O Batman tem aquele garoto só para segurar o time, se o garoto tivesse mais, ele largava.... Enfim, detesto o Batman, jamais faria o Batman, entende? Então, muita gente passou para o André, mentiras, pessoas aqui fazendo gozação comigo. Mas em nomes que eu sei que tive no livro e eu comprei um livro, e até perguntei: "quem é esse?".   

Ivan Cardoso: Você é contra o terceiro sexo?

José Mojica: Não, eu não sou contra o terceiro sexo. Só que Batman não faz o meu gênero e o Boris [Karloff] faz... Acho que se o cara quer ser bicha, ele é; se ela quer ser sapatão, ela é, eu não tenho nada com isso.

Cunha Júnior: no seu A quinta dimensão do sexo [1984] tem...

José Mojica: A quinta dimensão do sexo, ganhei um livro, fizeram até uma poesia. Ganhei dois prêmios gays. Fui um homem público, entende? Não tenho que ter um lado político. Eu tenho que estar, praticamente, ao lado do povo, entende? Como um artista, como consciente que sou, não posso demonstrar um tipo de religião, que sou a favor daquela ou daquela. Eu sou a favor dele, Deus existe.

Leon Cakoff : Você é um líder messiânico frustrado?

José Mojica: Não, eu acho que nunca me senti frustrado. Acho que essa fase nunca...

Leon Cakoff: Essa fase que a censura te comeu...

José Mojica: Injustiçado... Eu me senti injustiçado. Senti que houve covardia de muitos amigos, comecei a ver o mundo de uma outra maneira. Sempre as pessoas que me abraçavam, eram as mesmas pessoas que me apunhalavam por trás. Isso começou a me trazer muita tristeza demais...

Leon Cakoff: O discurso dos seus filmes é moralista, sempre foi.

José Mojica: É moralista, eu tô falando. Disseram que eu ajudei muitas pessoas erradas. Agora, como eu podia... Não sou vidente, como é... Pegava uma pessoa que demonstrava interesse pela coisa, eu ajudava. Quando essa pessoa crescia me dava um ponta pé. Peguei um anúncio de [Augusto de] Cervantes, que eu tirei de uma fábrica. Da fábrica ele se tornou meu guarda-costas; de guarda-costas ele se tornou gerente, de gerente ele se tornou meu sócio. De sócio ele se tornou meu patrão. Eu vou fazer o quê? O cara era mais vivo comercialmente e, assim,ele foi indo. Agora, as frustrações minhas estavam em poder da censura, que, se você analisar, parar uma fita como [Ritual dos sádicos]: o despertar da besta [1970], fazer a fita, mutilar a fita, assustava os produtores. Muita gente não tinha realmente coragem de jogar dinheiro em mim. Quer dizer, realmente, isso aí que você falou: "tenho que abrir um processo". Tem razão. Vou ter que cobrar de alguém, quero cobrar de alguém, quem é? É a censura, o Juizado? Porque, de repente, só eu era perseguido nessa parte, de coisas até [na área] infantil. Chegaram a me prender nos anos 1970 com coisas que jamais existiram. Puseram uma menina de 14 anos, que eu nunca tinha visto na vida na minha frente, e a menina me abraça - "meu amor, me abraça" - tive um momento, [falei]: "bom, eu nunca te vi, menina". Daqui a pouco tem vinte carros, e apareceu em tudo quanto jornal, deu primeira página: "Zé do Caixão era um salafrário, é isso, é aquilo". Não era coisa da censura? Claro que era coisa da censura. Eu vou lá para cadeia, me levam pra lá. Eu fui numa boa. Chego lá e dizem que tinha lá um zelador, coitado, que eu acho que até mataram. E o zelador, falou: "eu nunca vi. Eu vi esse homem na televisão, sou fã desse homem, esse homem nunca entrou no hotel". Aí começaram a espancar o homem na minha frente: "seu mentiroso, seu não sei o quê". E a menina foi contratada por alguém. Eu sei que apareceram de herói os cinco policiais que levaram vinte camburões para me prender, como se eu fosse um dos maiores facínoras, o Al Capone daqui [(1899-1947) um dos maiores gângsters norte-americanos dos anos 1920 e 1930. Era líder de um grupo criminoso dedicado ao contrabando e venda de bebidas, entre outras atividades ilegais, durante a Lei Seca nos Estados Unidos. Tinha o apelido de Scarface ("cara de cicatriz"), devido a uma cicatriz no rosto. Sua vida inspirou vários filmes, como Al Capone (1959), O massacre do dia de São Valentino (1967) e Os intocáveis (1987)]. Eu me senti honrado com aquela coisa para me prender sozinho. Eu me sentia agora um super-homem com tanta gente para me prender.

André Barcinski: Rapidinho, só pra complementar o que o Leon falou. É uma coisa que pouca gente fala, foi que a imprensa não noticiou muito pouco a censura aos filmes do Mojica. O Mojica ele...

Leon Cakoff: Mas a censura, censurava.

Barcinski: Não. Você pega os arquivos, os jornais da época tinham matéria sobre a censura de outras pessoas. Mas o Mojica em 1970 teve quatro filmes... Dos quatro filmes que ele fez com o Zé do Caixão, na década de 1960, dois foram interditados e os outros dois foram cortados em vinte minutos. Uma pessoa escreveu sobre isso: foi o Salviano Cavalcanti de Paiva no Correio da Manhã e o Carlão, também falando que o "Ritual deveria ser liberado", mas ninguém abriu a boca pra falar... Teve protestos, os jornais cobriam... Mas ninguém falava de Mojica.

[sobreposição de vozes]

Leon Cakoff: Saiu na época no Diários Associados [conglomerado de mídia fundado por Assis Chateaubriand]. Os meus textos eram censurados.

Cunha Júnior: Vocês estão falando ao mesmo tempo...

Ítala Nandi: Justamente, queria falar da minha experiência, que tive a sorte de fazer O ritual com o Mojica. Foi uma participação pequena, mas pude sentir o gosto de ser dirigida por ele. E aconteceu uma coisa linda e bastante curiosa, porque quem queria fazer a cena comigo: o Jô Soares e o Jô, não foi...
 
José Mojica: Ele tinha que viajar.
 
Ítala Nandi: Ele não pôde participar e o Mojica tinha que filmar naquele dia, não podia passar daquele dia a filmagem, [pois] estava com uma locação alugada. E me recordo que ele disse: "vamos filmar assim mesmo". Disse, "senta aqui, assim, em cima da mesa, faz de conta que ele está sentado na sua frente", e colocou a câmera na minha frente e eu falando direto pra câmera. Eu me lembro que achei aquilo tudo extremamente arrojado e disse: "meu Deus que coisa brilhante". E a cena aconteceu, chegamos ao final da coisa, fizemos a cena toda sem o Jô. Aliás, um filme que não vi até hoje.
 
Barcinski: Porque o filme ficou 16 anos preso...

José Mojica: [Sobre] o ator que fez o papel do Jô, havia, na época, o que se chamava Esquadrão da Morte. Tinha Fleury. E prendeu o finado Nelson Gonçalves com o negócio de drogas e tal [(1919-1998) grande cantor romântico brasileiro. Vendeu aproximadamente 65 milhões de discos. Fez sucesso com músicas como "Caminhemos" (Herivelto Martins), "Renúncia" (Roberto Martins/ Mário Rossi) e outros. Foi preso nos anos 1960 por porte de drogas]. Eu estava fazendo uma cena de drogas e não sabia nem como pôr o negócio de maconha, não sabia nada disso, mas a vizinhança começou a dizer que estavam queimando drogas e telefonou para a polícia. Então, chegou o Esquadrão com aqueles negócios na mão: "mão na parede". Encostei a mão na parede. Aí o cara: "baixe a arma", mas eram minhas unhas, não podia baixar e eu falei: "não dá para baixar". "Abaixa a arma, senão eu disparo". E eu com a mão aqui, olhei pra assim para trás e falei: "Você é primo do Jô?".
 
[risos]

José Mojica: O cara é a cara do Jô. Ele olhou assim e falou: "você é o Zé do Caixão?". E eu falei: "sou". "Tá brincando comigo, eu sou seu fã". Eu falei: "puxa cara, você veio em boa hora, porque o Jô foi viajar... Você vai fazer a cena com uma mulher aqui fantástica, que é a Ítala Nandi". O cara... Ele conhecia tudo sobre drogas, passou a ser meu assessor, para me indicar como era cocaína, como era a coisa e fez um papel fantástico...

Ítala Nandi: Você filmou separado. Porque eu não vi ele, não filmei com ele.

José Mojica: Eu filmei separado, e foi uma coisa fantástica. Se você olhar, você tem a impressão de que é o Jô. Se o Jô for ver, hoje, esse papel, ele vai falar: "mas sou eu que estou lá". Então, eu sei que a cena ficou realmente fantástica.

Mário Prata: Mojica, só para ver se eu entendi: o cara foi te prender lá e você colocou ele de ator no filme, no mesmo momento?

José Mojica: No mesmo momento eu contratei ele pra coisa. A Ítala entrava como uma menina, ela fazia uma virgenzinha, aquela coisa toda, ela estava filmando do centro da cidade, que, aliás, filmei uma parte da peça dela com Othon Bastos [ator, participou de filmes importantes como O pagador de promessas, de Anselmo Duarte, Tocaia no asfalto, de Roberto Pires, entre outros. Também foi dirigido por Glauber Rocha em Deus e o diabo na terra do sol], o outro...

Ítala Nandi: ... Com Renato Borghi [ator e diretor teatral. Fundou o Teatro Oficina juntamente com Zé Celso].

José Mojica: Tem essa parte filmada, tem até o Zé Celso na platéia assistindo... Eu sei que a cena ficou fantástica, todo mundo realmente adorou e foi de uma coisa, assim, de uma casualidade, que, aliás, foi uma fita cheia de problemas. Na realidade, eu fui o ajudado. Era uma fita que, eu estava aqui pensando, quando ela falou da locação, eu tinha que pegar um local, tinha que sair, era aquele problema de dirigir e ter que pensar como pagar, entende? Negativos... Fui até uma certa parte. O Carlão me arrumou umas latas de negativo. O Capovilla latas de negativo, entende? Foi a fita que eu me senti mais perfeita assim, porque eu trabalhei com diretores de cinema... Então, achei uma fita fantástica, infelizmente a obra ficou lá...

Mário Prata: O problema de roteiro... Você falou que depois que entrou o pessoal de cinema, que você começava a fazer roteiro. Antes você não tinha o roteiro. Chegava lá e tinha uma idéia e filmava. Um dos maiores cineastas do mundo não escrevia o roteiro, nunca fez roteiro. Inclusive o Spielberg, o Hitchcock [(1899-1980) cineasta, pioneiro e mestre de filmes de suspense. Dirigiu Rebecca (1940), Rear window (Janela indiscreta, 1954), Psycho (1960), entre outros], o [Luis] Buñuel [cineasta espanhol [(1900- 1983). Dirigiu Viridiana (1961), Os esquecidos (1950), O cão Andaluz (1929), entre outros], sempre tinham alguém para fazer roteiro. Como você, que tinha essas "idéias na cabeça e uma câmera na mão", citando o Glauber, como você, quando entrou esse pessoal, como foi esse casamento aí? Porque, mesmo assim, pisaram em cima dele. Você fazia o que você queria.

José Mojica: Depois de várias fitas, eu conheci o Luchetti e ele fez vários roteiros, né? Mas a maioria dos meus roteiros, se você olhar, você vai bater palmas e vai considerar muito superior ao roteirista, porque eu faço diferente. Eu primeiro filmo. Eu pego só início, meio e fim.

Mário Prata: Não, eu queria saber o seguinte: antes, você começou a fazer os seus primeiros filmes sem o roteirista oficial. Você chegava lá e punha a câmera aqui e gira e pega todo mundo. Quando começou a entrar roteiro escrito, você seguia aquilo?

José Mojica: Não. Eu só olho o roteiro uma vez. E nunca mais eu olho. Quando termina a fita, aí sim, aí eu faço o maior roteiro do mundo, quando eu mando, de acordo com a fita pronta, eu mando baterem a máquina direitinho.

Ivan Cardoso: Por que você fala tão pouco do Luchetti, Mojica?

José Mojica: Eu não tô falando pouco do Luchetti...

Ivan Cardoso: Ele é um grande artista, você deveria falar mais então...

José Mojica: O Luchetti, você que perguntou, fez doze roteiros.

Ivan Cardoso: Por que você fala tão pouco do Luchetti, ele é um grande artista, você devia divulgar mais ele...

José Mojica: Não, eu não falo tão pouco do Luchetti, a prova tá que eu não falo, porque ontem passei o tempo todo falando do Luchetti. É que eu quero estar em uma situação que preciso trazer ele com dinheiro no bolso. Eu tenho que ter dinheiro pra trazer ele, porque ele tá lá, pra lá de...

Ivan Cardoso: Mas na própria maneira de você responder ao Mário, que você respondeu...

Mário Prata: Agora, eu vou ter que concordar. Estava aqui folheando o livro... ele é dedicado ao Luchetti.

José Mojica: O Luchetti fez doze roteiros...

Ivan Cardoso: Então, você tinha que falar muito mais...

José Mojica: Você me fez uma pergunta... Nem que eu possa ser guru, entrar na sua cabeça, e falar exatamente aquilo que você quer... Agora, com ele eu dou explicação. Ele fez toda a coisa, sempre que posso mandar alguma coisa para o Luchetti, os produtores que seguem... Você mesmo, fui eu que indiquei para o Luchetti. Eu indiquei outros.

André Barcinski: A prova maior de que o Mojica é fã do Luchetti é que ele não fez só filmes, mas as historinhas em quadrinhos, a TV do Mojica, rádio do Mojica...

[sobreposição de vozes]

Ítala Nandi: Aquele roteiro que você fez, que li quando você entregou, daquela pessoa que tomou um ácido e desce pela...

José Mojica: Essa é A encarnação do demônio. Essa foi a fita que todo mundo sabe que é o final da trilogia, que começou no ano de 1967, que eu nunca consegui fazer. O Person queria fazer o papel de Cristo, né? É o personagem do Zé do Caixão tomando LSD [Lyserg Saure Diethylamid, também é conhecido por LSD-25 e ácido lisérgico, é uma droga sintética que provoca alucinações] fica com aquela alucinação, vai ao banheiro, puxa a descarga, vai sair praticamente dentro de uma bexiga. Dentro dessa bexiga, ele começa a ver o início da vida. Porque ali surge uma espécie de um Cristo, que tira ele quando está se afundando. Mas é justamente a bexiga, [que] leva e o Zé vai balizando: "eu já passei por aqui". E abre outro lado, aí tem aquelas pessoas: "ai, quero sair", um é aleijadinho, o outro é inteligente, né? Há uma luta e eu mostro todo o problema da cúpula feita por dentro, até que chega no final descobre que aquele ser é o Cristo, [mas] quando ele tira e puxa a cabeleira ele tem um chifrinho, então ele está entre Deus e o Diabo.

Rogério Brandão: O Zé, eu queria aproveitar essa onda do Ivan, o roteiro e tal, o pessoal do rock´n roll sempre gostou muito de você. Durante o Cine Trash, várias bandas internacionais foram ao estúdio, te cultuar, fotografar junto com você. E, agora, recentemente, você teve uma experiência inusitada, você foi dirigir um vídeo clipe. Teve roteiro, como saiu a idéia e como foi essa experiência de dirigir o vídeo clipe com a banda de Curitiba?

José Mojica: Eles me deram uma história. A história era muito fraquinha, era uma historinha lá do "siri bom amigo", até de criança, né? Para eu transformar aquilo num clipe de rock, assim, que pudesse... Porque até [na hora de] comprar material, quando eu comprei material, não abri as latas. Fui abrir, negativo da Kodak envelhecido há vinte anos e a gente não tinha onde mexer. Acabei filmando com esse material, porque estava a coisa feita e quando vim revelar, eles não queriam revelar, diziam que esse material não prestava. E os coitados tinham gastado dez mil dólares na época. E eu falei: "não, tem que servir". Aí comecei [a] procurar no vídeo cópia, procurando, achei uma ceninha, falei: "copia por minha conta todo o material desse jeito". A fita foi copiada e saiu uma série de efeitos, que vários elementos me perguntaram como eu fiz esse efeito? Nunca mais eu vou fazer, porque a fita era envelhecida vinte anos e jamais vou conseguir outro material igual a esse. Então, esse clipe ficou bacana, mas não dá pra fazer outro.

Rogério Brandão: Mas quando você elaborou a idéia, como foi para você essa experiência, chegar lá. Quer dizer, som, banda de rock, você fez plano de seqüência, fez take a take, como foi essa experiência?

José Mojica: Houve um processo diferente. Eu nunca sigo as regras normais, né. Filmei com eles todinho, sem som guia, né, só quis saber o nome da música. Fiz eles cantarem toda hora. Eles cantaram toda hora e, depois, fui pegar o som para tentar - eu sempre faço a coisa mais difícil, né? Depois, tentei pôr realmente o som, a voz no lugar certo, e eu não sei...

Rogério Brandão: Você acha que isso pode ser uma saída para você daqui pra frente? Quer dizer, é uma coisa que você gostou de fazer, gostaria de fazer novamente?

José Mojica: Eu acho que dá pra fazer muita coisa. Tenho propostas de outros clipes de rock. Acho que dá para se fazer coisas bem valiosas. Fiz um trabalho agora - [passou] na apresentação do programa Roda Viva - em 35 mm... Fui convidado pela Net Filmes [empresa de rede de televisão de canais pagos] para fazer a semana da criação, com vários países do lado. Quis fazer em 35 mm e me deram 12 latas. Eu fiz com 3 latas. Também, eu não sei porque vou gastar 12 latas. E não exigi computador. Então, eu tenho cenas, que vocês vão ver, que está lá, o Mojica, ele está falando, falando, aí de repente, ninguém entende o [motivo], ele está em outro planeta. Só se vai saber no fim do clipe, né? Então, tem legendas. E os caras: "oh!". [A câmera] pega as pessoas de costas, o Mojica fica meio doido e é a hora de entrar o Zé [do Caixão], e o Zé entra. E [pelos] olhos dele [aparece] aquela explosão, mas tudo isso eu fiz com câmera dentro da coisa, explode e aí surge o Zé do Caixão, os monstros de frente. E aí vem lá [um chamado]: "não sei o que lá e convenção futurista intergaláctica e tal". Aí vai descobrir que ninguém conhecia a firma, porque estavam em outro mundo. Toco o "Guarani" [ópera composta por Carlos Gomes em 1870 dividida em quatro atos] e vai indo aquele negócio. Fiz com uma Polaroid, bati a foto do quadro parado e pus. O quadro fica indo para o universo. Então, fizemos isso.
 
Rogério Brandão: Porque parece com o Igor, do Sepultura, que quer que você dirija o clipe do Sepultura?

José Mojica: E esse material que eu fiz - que, aliás, aceitei porque o nome do produtor é Itagiba Cobra [trabalhou muito tempo na Net Filmes e montou sua própria produtora, a Avatar, em 2006], eu agradeço muito - quando falou Itagiba Cobra eu disse: "cobra, é comigo mesmo!

Cunha Júnior: O Carlão estava na frente...

Carlos Reichenbach: ...Eu queria dar um depoimento de perplexidade mesmo. O José Mojica Marins criou, é criador, na verdade, de um dos dois personagens já surgidos dentro da história do cinema brasileiro. Os dois heróis mais trágicos, mais contraditórios, que é o Zé do Caixão e o Antônio das Mortes [personagem criado para o filme Deus e o diabo na terra do Sol (1964) de Glauber Rocha. Foi criado por Maurício do Valle. Como o personagem fez bastante sucesso, retornou em outro filme de Glauber Rocha, O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969)]. Quer dizer, o estado de perplexidade, diante do seguinte, me perdoem.... O Mojica não é um homem de televisão, não é um homem de revista em quadrinhos, é um homem essencialmente de cinema. O nosso maior artista. Quer dizer, a minha perplexidade fica: há quantos anos o Mojica não faz um filme como Zé do Caixão? Esse personagem foi aposentado do cinema brasileiro, ou não?

José Mojica: Por isso, Carlão, eu acabei de falar... Desse material, é só três minutos, mas me deram a liberdade de usar o Zé do Caixão. Então, fui fazer dois dias antes de cortar as unhas. É a única fita que eu tenho de 25, três minutos feitos como Zé do Caixão. Dali, eu senti que estou com uma força fantástica pra pegar o Zé do Caixão e fazer, agora, sem as unhas, como Sansão e Dalila, né? Sansão tinha, na cabeça... Eu não tenho nada que ver com isso, não. Ao cortar as unhas, a minha cabeça ficou mais elevada. Acho que estou mais criativo do que nunca...[refere-se a história baseada no Livro dos Juízes, do Velho Testamento, sobre Sansão, líder do povo hebraico, detentor de uma enorme força e que resistia à opressão dos filisteus. Sansão se deixa seduzir por Dalila, uma filistéia, e relata que a origem mágica de sua força está nos cabelos. Ela, então, os corta, transformando Sansão em prisioneiro. Porém, quando seus cabelos voltam a crescer, Sansão, destrói o templo de Dagon matando todos os filisteus e a si mesmo].

Leon Cakoff: Você aceitaria ser dirigido por outra pessoa pra fazer o personagem?

José Mojica: Olha, eu acho que outra pessoa [para] me dirigir, já tentaram e não deu certo. Já tentaram me dirigir... Eu fiz o Homens sem terra [Mojica atuou neste filme], [mas] não ficou nem o homem e nem a terra, e desapareceu foi tudo, sabe? Acho que o elemento que vai dirigir o Zé do Caixão, vai ser difícil, né? Porque eu sou um elemento, sei lá. Sou muito criativo, gosto de fazer as coisas. Fiz, agora, a apresentação para o Tom Cavalcanti, no teatro dele, que aparece e foi de primeira: chegamos lá, não adianta tentar fazer como faz o pessoal: "repete a terceira, repete a quarta, repete a quinta". "Não, serviu a primeira". Se serviu a primeira, para que fazer a segunda? Acho que é uma extravagância de material. Gostaria que alguém, ao menos, vendo esse programa, e sei lá, se tivesse alguém interessado, acho que estou, mais do que nunca, hoje, pronto a fazer uma fita, um longa como Zé do Caixão. E deixaria aqui meu telefone para qualquer contato comercial que a pessoa queira ter comigo, né? 011-221-8768. E, quem sabe, vai surgir um produtor aí que possa fazer uma fita comigo e [vão] surgir novos atores, que estou precisando.

Cunha Jr: Bom, nós estamos simplesmente chegando ao final do programa, os últimos minutos, gostaria de aproveitar esses últimos minutos pra que você esclarecesse, pelo menos pra nós, como está essa coisa do seu mercado, que ampliou e o que você está fazendo? Eu mesmo entrevistei alguns grupos de rock, os Ramones, por exemplo, e levei um susto. Eu não entendi quando eles falaram "Coffin Joe", e eu não sabia quem era o Coffin Joe. Há alguns anos atrás era ainda uma novidade. Sepultura agora está gravando e vai gravar com você. Eu queria saber, como está isso, o Coffin Joe, internacionalmente. Você é adorado por vários grupos de rock do mundo inteiro. Tanto que alguns, quando vêm aqui a São Paulo, querem ir na sua casa, querem conhecer seu caixão, etc e tal. Como está a sua carreira? Você pretende fazer novos filmes. Você pretende investir mais nessa carreira internacional?

José Mojica: Eu vou investir mais na carreira internacional. Fazer fitas não só pro Brasil, que não tem retorno. Lá fora senti que eles querem as fitas do Brasil. Vou fazer um centro tendo a Europa, Estados Unidos e, com certeza, fiz o prenúncio para o grupo Sepultura. É um monólogo que eu faço para o novo CD deles. Devo fazer mais trabalhos pra eles. Possivelmente vou fazer até um clipe, para o próprio Sepultura. Agora, se me desse trinta segundos...

Cunha Jr.: Pode falar suas últimas palavras.

José Mojica: Trinta segundos para uma coisa que tanto se falou aqui do [filme] À meia noite. No passado se usava muita fusão dos conhecimentos, com as tais cortinas, o moinho... e o material se acabando, [era feito] no próprio negativo uma série de coisas. Existia uma coisa que eu pedi na época... Eu precisava, na hora que o Zé entrasse - se as pessoas assistirem agora o À meia noite, agora, vão olhar com atenção -, de relâmpagos. Então, filmando, Attili me falou: "não pode ter relâmpagos porque não temos a máquina pra fazer relâmpagos". Resultado, fiquei calado e falei: "vai ter relâmpago". Vou por os relâmpagos, os raios, no próprio negativo. Fiz os raios e, depois, Attili veio assistir a fita e ver os relâmpagos. Foi pela primeira vez, dentro de um laboratório, na correção de luz, que fui devagarzinho e corrigi a luz. Falei: "aqui não. Você põe um relâmpago deixa estourar as imagens". E, de repente ficou estourado. Se tirarmos hoje uma cópia do À meia noite, vão desaparecer os relâmpagos, porque eles foram feitos na própria cópia. Acho que isso já era de uma criatividade, isso deixa todo mundo impressionado, como esse homem fez os relâmpagos que não tinha como fazer os relâmpagos.

Cunha Jr.: Tá certo, José Mojica Marins, muito obrigado pela sua participação.

José Mojica: E gostaria de avisar, com o seu perdão, que esse livro foi lançado agora. Ele está agora para sair a segunda edição. Isso significa que é bom as pessoas correrem, porque há muita coisa aqui, que foi debatida aqui, que não deu pra explicar. Prática e minuciosamente, eles vão encontrar nesse livro. 

Cunha Jr: Tem o livro da Ítala também, tem o livro do Mário. Quem mais tem livro aí, mais ninguém? O Carlão tem filme. O Leon Cakoff tem "um filho", que ele vai apresentar brevemente. Obrigado pela participação de todos, nós vivemos no estranho mundo do Zé do Caixão, no admirável mundo de José Mojica Marins. Muito obrigado pela sua participação, a todos vocês aqui no Roda Viva. Nós voltamos na próxima segunda feira às dez e meia da noite. Uma boa semana pra vocês.

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