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Memória Roda Viva

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Zuenir Ventura

14/11/1988

Nesta entrevista, o escritor fala das motivações e dos acontecimentos que o levaram a escrever um livro que descreve "a aventura de uma geração"

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[Programa ao vivo, com participação dos telespectadores]

Augusto Nunes: Boa noite. Começa aqui mais um Roda Viva pela TV Cultura de São Paulo. Os telespectadores que desejarem poderão encaminhar perguntas ao nosso entrevistado. As perguntas serão anotadas pela Iara, pela Bernadete e pela Marta e, em seguida, encaminhadas ao nosso entrevistado desta noite, que é o jornalista e escritor Zuenir Ventura. Zuenir Ventura é seguramente um dos mais talentosos jornalistas brasileiros, ocupou praticamente todos os cargos importantes na direção de grandes jornais e é hoje o editor do caderno B Especial do Jornal do Brasil. Mas é também mais recentemente o autor de um do grande best-seller do ano, que é o livro 1968, o ano que não terminou. Para falar de sua carreira, do que é o jornalismo, sobre jornais, jornalistas e, sobretudo, para falar do seu livro sobre 1968, Zuenir Ventura estará sentado ao centro de uma roda viva formada pelos seguintes entrevistadores: Ana Maria Tahan, repórter da sucursal paulista do Jornal do Brasil; Terezinha Lopes, repórter da sucursal de São Paulo do jornal O Globo; Ricardo Soares, apresentador do Metrópolis, da TV Cultura, e repórter do jornal O Estado de S. Paulo; Ivan Ângelo, editor-chefe do Jornal da Tarde; Maria Cristina Duarte, jornalista responsável por novos projetos de revistas femininas da Editora Abril; Fernando Morais, jornalista e escritor; André Gustavo Stumpf, jornalista e professor da Universidade de Brasília, a UnB; Maurício Stycer, editor-assistente da Folha Ilustrada do jornal Folha de S.Paulo. Também estará conosco registrando algumas cenas do programa, alguns momentos do programa o cartunista Paulo Caruso. Também registramos e agradecemos a presença na platéia de convidados da editora Nova Fronteira. Zuenir Ventura, a primeira pergunta é um tanto óbvia, mas é inevitável. Por que 1968 não terminou?

Zuenir Ventura: Olha, Augusto, é realmente inevitável ou seria inevitável se o livro, mais do que o livro, o tema não tivesse produzido tanta reação e tanto interesse, inclusive da garotada, da geração mais nova. Tenho impressão de que esse interesse prova que alguma coisa daquele ano ficou como um marco, ficou como marca na história, ficou como herança. Acho que um pouco, num momento com tanto desencanto, as pessoas estão procurando nesse livro e nesse ano alguma coisa para alguma motivação, enfim, tenho impressão de que é por isso. E, na verdade, 68...

Augusto Nunes [interrompendo]: Falta ser explicado ainda 68, também.

Zuenir Ventura: Acho que falta. Acho que 1968 é realmente um livro, uma obra aberta no sentido em que há “n” explicações. Acho que cada um de nós... quer dizer, quem viveu tem um 68 na memória e quem não viveu tem na imaginação. Então, acho que as pessoas estão buscando muito isso, se encontrando ou procurando a revelação daquele ano sobre o qual se falou muito, mas na verdade tinha ficado um pouco como um mito, como uma coisa mística.

Augusto Nunes: Que idade têm os seus filhos Zuenir?

Zuenir Ventura: Meus filhos têm 24 e 23 anos.

Augusto Nunes: Que idéia eles faziam de 68? Quando você conversava com eles ao longo desses anos todos antes de escrever sobre, eles entendiam o que havia sido 1968, isso aí também justificou, te levou a escrever esse livro?

Zuenir Ventura: Muito, muito. A geração, os colegas, os amigos dos meus filhos iam muito lá em casa e havia sempre uma idéia romantizada do ano. Era até uma coisa perigosa, porque, quando se falava do ano, eles contavam a parte dura do ano, as prisões e tal, mas ficava sempre uma mística romântica e um interesse muito grande e a geração... quer dizer, no caso os meus filhos, eles tinham de certa maneira acompanhado um pouco isso. Mas eu pensava muito em alunos meus, por exemplo, com 20, 22, 23 anos que não tinham a menor idéia de quem era Vladimir Palmeira [ativista de esquerda e líder estudantil na época da ditadura militar brasileira, um dos fundadores do PT, hoje é um reconhecido político carioca], não tinham a menor idéia do que era passeata, do que foi Ibiúna [cidade do interior paulista que sediou, em 1968, o 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE). O encontro, clandestino, foi descoberto pela polícia que reprimiu e prendeu 920 estudantes], então isso realmente me motivou muito para escrever esse livro. Acho que a grande alegria que estou tendo é que a resposta dessa meninada está sendo realmente muito boa.

André Gustavo Stumpf: Você, que conhece tão bem 68, podia fazer algum tipo de comparação entre 68 e 88? Eu me refiro especificamente a esse caso havido lá em Volta Redonda [refere-se ao assassinato de três metalúrgicos – Carlos Augusto Barroso, 19 anos; William Fernandes Leite, 23 anos, e Valmir Freitas Monteiro, de 22 anos – no dia 9 de novembro, quando o Exército invadiu a Companhia Siderúrgica Nacional para reprimir uma greve. O ato deixou ainda 31 feridos e foi classificado como massacre]: muitos tiros, mortos, conflito, exército, trabalhadores. Isso faz lembrar 68 ou tem alguma coisa diferente?

Augusto Nunes: Aliás, Zuenir, o Antônio Fernando, de Campinas, faz uma pergunta parecida: se você vê correlação dos acontecimentos 68 e os de agora. Então, essa preocupação está presente.

André Gustavo Stumpf: Enfim, 68 terminou em 88 ou recomeçou?

Zuenir Ventura: Na verdade, é uma pergunta que se faz e lá no jornal eles brincavam muito comigo: “Olha 88 recomeçando, continuando 68”. Acho que, na verdade, há um cheiro de pólvora no ar, todo mundo sente enfim. As analogias que se pode fazer sempre são muito perigosas. Acho que as condições são diferentes, acho que o Brasil hoje, infelizmente, não tem uma organização, nenhuma organização da sociedade, um canal como tinha em 68. Por que aqueles meninos se transformaram, de repente, em porta-vozes de toda aquela inquietação, de toda aquela angústia, de toda aquela insatisfação da classe média? Porque foi, num determinado momento, o único setor, o único segmento organizado. Hoje, acho que o grande perigo é isto: que você não tem nenhum partido, nem mesmo liderança a não ser lideranças mais messiânicas, mais carismáticas, e aí um negócio muito perigoso, mas você não tem um canal para ser expressão dessa inquietação. E tem um negócio hoje que não tem o fenômeno que tinha 68: é que 68 foi um ano de crença, foi um ano de fé, um ano em que as pessoas acreditavam. Acreditavam em história, acreditavam na política, acreditavam no amor, acreditavam... E hoje, acho que o grande problema é que há uma descrença generalizada, quer dizer, uma descrença com o presente...

André Gustavo Stumpf: É uma situação potencialmente pior?

Zuenir Ventura: Eu acho. Quer dizer, o que se teme? Qual é o grande temor hoje no mundo? É uma explosão, é uma comoção social sem objeto e sem canalização. Em 68, você tinha uma ditadura, o que era realmente muito ruim, você tinha um objetivo, tinha uma coisa muito definida que não tem hoje. Hoje é um pântano, quer dizer, você não sabe nem contra o quê.

Maurício Stycer: Devia ser a última pergunta, mas a proposta da pergunta do André. Você tem saudades de 1968?

Zuenir Ventura: Meus sentimentos em relação a 68 são muito confusos. Tive momentos de grandes alegrias e momentos de grande desgaste emocional, fiquei exaurido emocionalmente. Primeiro, porque esses encontros produzem sempre um pouco essa mescla de sentimentos. Tenho saudades de muita coisa de 68, realmente tenho. Procurei me controlar muito para não fazer um livro nostálgico, para não fazer um livro de “retro”, de ficar [dizendo] que aquele tempo é que era bom e tal. Claro que havia coisas muito boas e coisas muito ruins, mas que há um negócio muito bonito no ano, que é isso de que falo com uma certa obsessão, que é aquela paixão daquele ano, realmente teve, foi um ano que empolgava e empolgava não só os estudantes.

Maria Cristina Duarte: Zuenir, li o seu livro como uma meia-oitista. Acho que, de uma certa maneira, a gente se sente como eu, um pouco meia oitista, mas tive uma certa dificuldade. Vim lendo no vôo, fiquei muito comovida e, num certo momento, senti uma certa dificuldade. Fui testemunha ocular da história e senti que você descreve a Candelária [Igreja de Nossa Senhora da Candelária que fica no centro histórico da cidade do Rio de Janeiro], você descreve a Cinelândia [praça Marechal Floriano Peixoto localizada no final da avenida Rio Branco. Ganhou esse nome na década de 20 quando abrigava à sua volta as melhores salas de cinema do Rio de Janeiro] para quem nunca viu, parece um filme do [cineasta italiano Bernardo] Bertolucci. Quando cheguei em São Paulo, os personagens são um pouco de chanchada. Sinto um Zé Dirceu, em comparação ao Vladimir Palmeira... parece que é um filme do Oscarito e Grande Otelo [a dupla cômica mais famosa das chanchadas nacionais] e que parece uma Ibiúna um pouquinho chanchada e a Candelária uma coisa grandiosa. Então, não tem nada com Rio, São Paulo, Deus me livre e guarde...

Zuenir Ventura: Deus me livre!

Maria Cristina Duarte: ...Deus me livre e guarde.

Augusto Nunes: Só que Zuenir é mineiro...

Maria Cristina Duarte: Pois é, eu sei. Mas senti... talvez São Paulo tenha que fazer parte desse livro, mas senti essa dificuldade, quer dizer, senti que faltou o Zé Arthur Gianotti [professor da Faculdade de Filosofia da USP aposentado compulsoriamente durante o regime militar por ser conhecedor respeitado do marxismo], faltou a descrição do Crusp [Conjunto Residencial da Universidade  de São Paulo – moradia gratuita a estudante de baixa renda], faltou a descrição da Maria Antônia, faltou a queima dos livros da USP. Então, senti essa dificuldade. Você foi muito criticado por isso? Como é que está essa situação, de que eu, como meia-oitista, senti um pouquinho falta.

Ana Maria Tahan: Só queria completar, Zuenir, exatamente em cima da pergunta dela: porque o seu livro tem uma visão tão carioca do processo?

Zuenir Ventura: Primeiro, porque eu vivia lá em 68.

Ana Maria Tahan: Mas foi proposital, foi proposital isso, não foi, como é que é?

Zuenir Ventura: Vou tentar responder. Primeiro eu queria desfazer uma intriga que procura me colocar contra São Paulo, dizer que o livro trata muito bem o Rio e São Paulo, não, e tal. Acho que há várias razões, não quero ficar defendendo o livro.  Acho que o livro está aí para ser realmente criticado e sempre antipatizei muito com aqueles diretores, autores de alguma coisa que correm para fazer defesas: acho que está aí para ser discutido mesmo. Em primeiro lugar, é o seguinte: 68 – isso eu procurei enfatizar no livro– é a minha história, é uma das histórias possíveis de 68. A primeira pessoa a me advertir sobre isso, talvez nem se lembre, foi Fernando Morais... um dia que ele ligou e disse assim: “Rapaz, olha onde você está entrando. Olha, invejo sua coragem!”. É um tema que você viveu, você tem esse filme na cabeça. Então, o que penso é o seguinte: é que é realmente um filme que eu fiz, em primeiro lugar.

Maria Cristina Duarte: Por sinal, um filme muito agradável, muito bonito e muito emocionante.

Zuenir Ventura: No caso, acho que a sua crítica procede. Eu só queria reivindicar o seguinte: 68 foi, na verdade, um ano carioca. Os grandes acontecimentos de 68 realmente se desenrolaram no Rio de Janeiro. Eu poderia dar alguns exemplos. Vou dar um, que é aquele da reunião, da comissão que foi recebida pelo [Artur da] Costa e Silva [(1902-1969) segundo presidente do regime militar brasileiro. Sob seu governo foi instituído o AI-5], era uma comissão nacional, uma comissão que procurava representar a todos, tinha intelectual, padre, estudantes e todos os membros da comissão foram do Rio de Janeiro.

Maria Cristina Duarte: Só que acho é que, naquela hora, a passeata não foi vendida, não foi em nenhum momento, se deixou bem claro no seu livro que aquela passeata tinha um respaldo do governador e tal, e até aí tudo bem. Quando chegou Ibiúna, e quando dizem que houve respaldo do governador, tem uma coisa assim, tem um peso.

Zuenir Ventura: Não, querida, que é o seguinte: é que na verdade aquele momento, não era problema de São Paulo, é que o movimento estava realmente nos seu descenso. Acho que Ibiúna é um momento escolhido,  é um momento, inclusive, triste, Ibiúna me fez sofrer muito, até porque fui lá e encontrei pessoas. Foi realmente uma coisa muito dolorosa para mim, porque achei que naquele momento o sonho tinha acabado, quer dizer, tinha acabado, não, tinha sido esmagado. Então, nesses dois momentos, quer dizer, Maria Antônia também foi um pouco isso. O Zé Dirceu acha isso, ele acha que não foi Ibiúna, foi na Maria Antônia. Então, lamento que isso tivesse coincidido com São Paulo, mas foi um momento, não era tragédia, não foi um momento de alegria. Se a passeata dos 100 mil foi a apoteose, foi o momento de grande encontro, foi uma coisa realmente alegre, Ibiúna foi tristeza, inclusive Maria Antônia também. Até porque você vê o seguinte: falou-se até, num determinado momento, que o rapaz que morreu em Maria Antônia, era o Edson Luís [de Lima Souto (1950-1968) foi o primeiro estudante assassinado pela ditadura militar durante um confronto entre policiais e estudantes no restaurante Calabouço,  no centro do Rio de Janeiro, no dia 28 de março]. Você vê como o movimento já tinha se estreitado, já tinha perdido a base social, quer dizer, o apoio da classe média. É que no enterro do Edson Luís foram 50 mil pessoas.

Ricardo Soares: Zuenir, queria saber uma curiosidade falando do tema de 68. Queria saber que livros sobre 68 você leu para escrever a sua versão de 68.

Zuenir Ventura: Olha, procurei ler vários livros – não li todos: o livro de Daniel [1968 - a paixão de uma utopia, escrito por Daniel Aarão Reis Filho e Pedro Moraes] é muito bom, mas meu livro já estava pronto quando foi lançado, o livro da Ana Maria Machado [Tropical sol da liberdade - romance sobre os anos de repressão e a juventude brasileira pós-64, na visão de uma mulher], de ficção, um livro interessantíssimo, só que é todo ficcionado, quer dizer, é um romance. Você reconhece os personagens, mas é um livro de ficção. E na verdade me baseei muito sobre material de época, quer dizer, sobre jornais e revistas da época e os depoimentos. Fiz uma primeira leitura, que no caso era uma releitura, quer dizer, dos jornais, em especial do Jornal do Brasil, e depois vinha checando isso com os depoimentos, quer dizer, não quis fazer – isso de propósito– um livro autobiográfico. Por várias razões, não é que eu achava que realmente 68 não pode ser aprendido, hoje estou convencido disso, numa visão. Quer dizer, repara só, fiz um livro que procurei abrir, contemplar várias visões, vários personagens. Mesmo assim, ele recebe hoje essa crítica de que deveria ser um livro mais...

Augusto Nunes: Zuenir, a propósito, a Terezinha Frank Valverde, que está aqui na platéia, diz que 1968, ela observa primeiro que o seu livro foi elaborado com farta pesquisa, pergunta o seguinte: “Na época da abertura, surgiram muitas outras obras que documentam esse período, como é o caso de O que é isso, companheiro?, do Fernando Gabeira, Os carbonáriosmemórias da guerrilha perdida, do Alfredo Sirkis, entre outros. Agora, segundo a sua visão, qual é a obra desse período que melhor conjuga qualidade literária e documentação histórica?” Depois, a pergunta daTerezinha [Lopes].

Zuenir Ventura: Gosto muito do livro do Gabeira, acho que é um clássico dessa literatura de inventário que pintou aí, logo depois da abertura, mas não é um livro documental nem ele se propõe a isso: é um livro de memória, de impressão. Agora, acho que um livro de memória... o livro de Sirkis não é um livro de memória, é um livro impressionista, quer dizer, não é um livro que se propôs... Acho que um pouco, sei lá... O meu livro procura, tem a pretensão de trazer um pouco de documentação. Também por isso, acho que o Gabeira é insuperável do ponto de vista da escritura literária, da graça, um livro realmente muito gostoso de ler. Agora, meu livro não se pretende ser um documento da época, é uma impressão da época, quer dizer, tentei equilibrar um pouco isso, quer dizer, ter também a impressão, mas, assim, a impressão controlada pela reportagem. Meu livro é uma reportagem, dizia há pouco ao Fernando, é um livro de reportagem.

Teresinha Lopes: Complementando essas perguntas: nos últimos 10 anos, muitas publicações sobre esse mesmo tema chegaram às livrarias. Queria saber o seguinte: essas publicações se completam, existem muitas coisas ainda que não foram ditas sobre esse período?

Zuenir Ventura: Tem.

Teresinha Lopes: Você acha que há ainda muita coisa por descobrir sobre esse período?

Zuenir Ventura: Acho, acho sim. Brinco até que não foi o ano que não terminou, meu livro é que não terminou. Acho que tem muita coisa a ser feita. Eu gostaria até, quer dizer, lamento, digo brincando quando me cobram isso, “mas por que você não adotou tal personagem?”, falo “faça o seu livro, faz você também um livro”. Porque tenho impressão de que esse e os períodos seguintes... num país que realmente com essa carência de memória, de memória recente, quer dizer, acho que é uma dívida que nós, jornalistas, temos.

Teresinha Lopes: Qual é a maior dificuldade de se chegar, de abrir e mostrar esse período?

Zuenir Ventura: Acho que para nós, jornalistas, uma primeira dificuldade, que é a dificuldade de tempo, de condições para fazer isso... Você tem que parar.

Teresinha Lopes: Não estariam nos órgãos de informações, nos órgãos oficiais de informações?

Zuenir Ventura: Também, também. Acho que o grande documento do livro não tenho nenhum mérito em ter conseguido. E acho que esse documento devia estar exposto, devia ser um documento público.

Teresinha Lopes: Então, nesse caso, nunca vai se chegar... é só para completar, para concluir, que nesse caso nunca se vai  chegar à verdade dos fatos de 68?

Zuenir Ventura: Primeiro, o que é a verdade? Acho que esse livro tem uma verdade, enfim, minha e dos personagens, dos documentos; mas prefiro falar em visões, acho que é uma visão de 68. É uma visão, que eu digo, não pessoal, mas de qualquer maneira evidente, que encerra, acaba encerrando uma visão pessoal, embora não quisesse, não tivesse querido optar por essa coisa pessoal, ele é autoral na medida em que costura desses fatos todos tem sempre uma tomada de partido minha.

Ivan Ângelo: Dentro dessa... Falando ainda do seu livro, queria saber duas coisas dele: você falou que você não terminou o livro, mas eu queria saber antes disso: como foi o projeto? Foi um livro encomendado? Foi um livro que alguém te pediu? Ou você estava com esse tema atravessado e queria contar esses fatos? E, depois, você começou falando de um livro, propondo um livro sobre comportamento de uma geração, a proposta quase surge assim. E depois você envereda por temas históricos e a história do país toma conta do livro e você esquece um pouco o comportamento da geração. Queria que você falasse do projeto e depois dessa geração, essa geração hoje. O projeto dessa geração de 68 valeu, vale a importância, continua a proposta? No que resultou essa geração?

Zuenir Ventura: Primeira pergunta: o livro é realmente esse ano, essa época. Eu tinha feito em 1969 uma série de fascículos para a Editora Abril, acabou sendo publicada na revista Veja com que era a história da década. A diferença daquele livro  – acabou virando um livro – para esse é que aquilo era realmente uma visão mais panorâmica, digamos assim. Para não usar a linguagem jornalística, era mais distante. Tentava dar uma geral na década, até porque não dava para você fazer detalhamento. Esse, ao contrário, era um livro em que eu mergulhei com a câmera em close dentro do movimento. Então, 68 para mim é uma coisa meio obsessiva, como você pode ver. Fazendo piada, digo que levei 20 anos fazendo esse livro, porque esse tema me perseguiu esse tempo todo. Com um negócio da efeméride de 20 anos, a minha mulher, que sabia de tudo isso, acabou que fez a transação com o editor e tal e me obrigou a fazer esse livro. Por um lado, foi isso, é um projeto, é uma coisa antiga, é uma obsessão se você quiser. E aí foi um pouco por estratégia que uma das originalidades daquele ano, daquela geração é aquela coisa integrada, quer dizer, você não tinha naquele momento essa esquizofrenia que você tem hoje, política é isso, comportamento é isso, você sabe que passava tudo pela política, o sexo, o amor era um gesto político. Então, não dava para separar, era uma coisa que acho que o melhor que tinha naquele ano era exatamente isso, essa mistura de tudo, quer dizer, a passeata era uma coisa leve, uma festa, um show e tal e o amor também era um ato político. Era primeiro uma necessidade de você chegar perto desse tempo sabendo que ele tinha essa complexidade. E, por outro lado, é que acho que é difícil você reconstituir uma história, eu tinha vontade de fazer uma reconstituição, sem considerar o comportamento. Acho que, hoje, enfim, há uma sociologia, Michael Maffesoli [sociólogo considerado um dos fundadores da sociologia do quotidiano], que é um francês, está até no Rio agora, faz isso. Ele diz uma coisa que me marcou muito, no livro dele traduzido aqui, que é o seguinte: “o que revela mais um tempo, uma cidade, uma época, mais do que os números, mais do que os dados, é o cheiro de rua, é o ruído e a sensação”. O meu livro,  pretendo que seja um livro de sensações, um livro muito sensorial, no sentido que acho que se apreende, eu queria um clima, eu queria devolver esse clima de época, queria dar um pouco essa atmosfera. E aí, para você dar isso, tem que trabalhar realmente em vários registros, não apenas no registro factual, frio... tenho impressão de que se ele tem alguma coisa de bom é isso, ele tem emoção, em nenhum momento quis escamotear isso, é um livro apaixonado mesmo, ele é um livro cheio de emoções, é um livro que fiz em alguns momentos, em alguns capítulos eu terminava chorando. Entendi uma frase, uma entrevista do Fernando, quando ele dizia que, quando acabou, ele estava apaixonado pela Olga [Benário, mulher de Luis Carlos Prestes, líder comunista brasileiro, presa e deportada para a Alemanha, onde morreu - sobre quem Fernando Morais escreveu um livro]. E é uma coisa, você como escritor deve saber que realmente os personagens ganham uma vida própria. E, de repente, tenho hoje até dificuldade quando me perguntam assim: “E o personagem tal e a situação tal?”, porque vejo os personagens com uma autonomia, que às vezes até independem do autor. Então essa coisa do comportamento, eu achava que era para responder, era uma coisa fundamental do ponto de vista de estrutura do livro e do ponto de vista também do meu olhar, da minha aproximação daquele ano.

Fernando Morais: Zuenir, um dos grandes momentos de dramaticidade do seu livro é a famosa reunião do Conselho de Segurança Nacional, em que o presidente da República Marechal Costa e Silva anuncia o ato 5 [AI-5], coloca em discussão uma democracia muito peculiar do governo. Acho que vai ficar muito bonito no cinema quando filmarem, que é aquele negócio de ele mandar o sargento voltar a fita atrás e repassar a declaração de voto contra o ato 5 do vice-presidente da República, doutor Pedro Aleixo. Imagino o que tenha sido aquela cena, aqueles senhores ali querendo degolar a nação e ouvindo o que tinham acabado de ouvir, ouvindo a gravação do que tinham acabado de ouvir, a voz do doutor Pedro Aleixo dizendo que não, que não tinha que baixar ato 5 e tal. Salta desse episódio, no seu livro, meio como besta fera, um coronel Jarbas Passarinho [hoje general da reserva, foi governador do Acre, senador por três mandatos e ministro do Trabalho (1967-1969), Educação e Saúde (1969-1974), Previdência (1979-1985) e Justiça (1990-1992)] com uma frase que agora ficou famosa, que você revelou: ele manda às favas a consciência, manda às favas a democracia e vota com o presidente da República e manda arrochar. Eu te pergunto o seguinte: como havia dezenas de membros do Conselho de Segurança Nacional, parece que eram 18, 17, dezenas, não, mais de uma dezena...

Zuenir Ventura: Ao todo 23.

Fernando Morais: 23 ao todo e muitos deles estão vivos e são pessoas importantes ainda no Brasil. Que critério você adotou para resumir esse material, essa maçaroca que você deve ter recebido? Porque acabou saltando como sendo o coronel Jarbas Passarinho praticamente o único, ao lado de uma ou outra intervenção do marechal...

Augusto Nunes: Mas ele se queixou disso no artigo publicado na Folha de S. Paulo.

Fernando Morais: Então eu queria saber que critério você adotou na seleção do material. Certamente você deve ter tido na mão uma cordilheira de papel sobre a edição do ato 5. A minha curiosidade, sobretudo depois que o coronel Passarinho publicou o artigo na Folha, foi a seguinte: o que terá dito doutor [Antonio] Delfim Netto [político e economista, era ministro da Fazenda nessa época], que era membro do Conselho de Segurança Nacional? Então queria saber como é que você chegou a essa versão final.

Zuenir Ventura: O [Orlando] Vilas-Boas [ver entrevista com Orlando Villas-Boas no Roda Viva] até reclama disso, ele deu uma entrevista hoje, lá na televisão, e disse que achava que eu devia dar todo o material nesse capítulo.

Augusto Nunes: Você teve acesso, você tem o material?

Zuenir Ventura: Eu poderia exatamente ter dado todo o material. Agora a opção que eu tinha feito no livro, em relação aos documentos e em relação aos depoimentos, era não devolver em bruto esse material. Eu achava que isso facilitaria a minha vida e ia complicar a vida do leitor. [Quando] recebi esse material, o livro já estava praticamente pronto. Faltava esse capítulo, eu estava desesperado desde o começo procurando um pouco aquilo: qual era o documento que poderia dar como revelação. Então, teve a estrutura do livro, eu achava que isso não permitia... isso por um lado. Por outro lado, achava que tinha que dar um pouco daquele clima também, sabe, era fundamental.

Fernando Morais: Essa lei foi uma coisa simbólica ali, exemplar?

 Zuenir Ventura: É mais ou menos. Se você olhar o Hélio Beltrão [economista (1916-1997) foi ex-ministro de dois governos do período militar e ainda ministro da Desburocratização (1979-1983) e da Previdência (1982-1983). Presidiu a Petrobras (1985-1986) no governo José Sarney], a participação do Hélio Beltrão, é porque outros, outros de esperteza, não sei por que falavam "sou a favor" e tal. E o Passarinho, que é uma pessoa corajosa, disse com todas as palavras. Hélio Beltrão fez um longo – e está isso no livro, mas resumi um pouco – arrazoado para dizer que a família dele toda tinha lutado contra a ditadura, enfim, um belíssimo discurso para dizer que ia votar a favor. Então tem... Acho que a coisa mais ridícula, mais tragicômica é o "livro azul". Então não houve essa coisa contra... até porque o Passarinho naquele ano, não era besta fera, o Passarinho estava do lado, procurando...

Fernando Morais: Exatamente por isso é que me chamou atenção que ele virasse o vilão daquela reunião.

Zuenir Ventura: Isso é uma leitura, coisa que vai ver que não... Acho que ali tem uma coisa que é curiosa, que é uma certa perfídia e um certo maquiavelismo do Costa e Silva de dizer aquele negócio de voltar a fita, dizer: "olha, você não divide isso comigo, está aí, quem quiser...", não custava nada ser contra, não custava nada. Você podia dizer não, aquilo já estava no momento decidido. Então, o negócio do Passarinho, só para terminar, ele ficou realmente muito irritado, ele imediatamente assumiu, “não, eu disse mesmo”, não tergiversou, não se fingiu de morto. Agora, na verdade, o que ele reclama mais é porque as outras fitas  – e há outras... Por que essas fitas não vazaram? Digo o seguinte, estou doido para que vazem e, se alguém tiver, gostaria de que desse para mim, porque é evidente, acho que é um direito, inclusive, de cidadania a gente ter acesso a esses documentos. Então concordo com ele, quero que as outras fitas também venham à luz.

Maurício Stycer: A esquerda também... Vários personagens saíram não tão limpos desse livro, quer dizer, a imagem que se tinha de alguns personagens...

Augusto Nunes: Por exemplo, Maurício?

Maurício Stycer: Pelo seu trabalho de pesquisa muito grande, personagens como Márcio Moreira Alves [político, escritor e jornalista aposentado é lembrado aqui como um dos provocadores do AI-5] tiveram o seu papel bastante diminuído dentro da história.

Zuenir Ventura: Marcito [Márcio Moreira Alves] escreveu um artigo sobre o livro. Foi o único personagem da obra que escreveu um artigo evidentemente contra.

Maurício Stycer: Estaria contra também, quer dizer, o José Dirceu, que vai para casa na hora em que vai acontecer a confusão. Acho engraçado o episódio do José Dirceu, ele está lá na Maria Antônia e, na hora em que ele vai embora, vai almoçar, aí acontece a confusão toda e ele volta quando já acabou a confusão, fazendo uma ironia ali na história. Eu queria saber como que foi a reação dentro desse personagens.

Zuenir Ventura: Não estive com José Dirceu, mas é um personagem muito simpático, acho até... Não sou uma pessoa para falar sobre isso agora, mas acho um personagem simpático, um personagem com mil dificuldades, enfim. Agora o caso Marcito, o Marcito escreveu um artigo muito irritado em que ele diz que...

Fernando Morais: Vocês são amigos, não é?

Zuenir Ventura: Ou, pelo menos, éramos até... [risos] Ele até comete uma injustiça. Disse que o livro, o título [do artigo] é: Ação entre amigos. Agora se fosse isso, ele estaria muito bem, porque somos desde 1960.

Fernando Morais: Artigo publicado onde?

Zuenir Ventura: Foi um recorte não sei onde, não tinha lido. Eu recebi um recorte, ele me mandou agora recentemente. Então tem isso, Ação entre amigos... Outra [coisa], que me deixou muito irritado: chamou de absurdo que o livro seja considerado um marco na historiografia brasileira. Depois fui ver, ninguém tinha considerado, ninguém considerou até hoje esse livro como marco de coisa alguma, a não ser na cabeça dele. E faz algumas críticas, acho que procedentes até. Mas a irritação, acho que ela tem razão, quer dizer, o Marcito sempre se viu como um herói daquele ano, de repente ele se leu como pretexto. Acho até hoje que foi, olha nenhuma má vontade, mas eu acho que ele realmente foi mais do que um herói, foi um pretexto.

Augusto Nunes: Vicente Bianchi, de Campo Limpo, pergunta: “O que você pensa sobre a possibilidade de ocorrer um golpe militar? Hoje qual seria a reação do povo?” E o Marcelo Vertayner, da Vila Olympia, diz o seguinte: “Em 68, lutava-se contra a ditadura. Qual seria o grande inimigo do povo hoje?”. E acrescento uma pergunta minha: 68, convém não esquecer que terminou - ou não terminou, como diz o seu livro -, mas não terminou com o AI-5. Você vê alguma possibilidade na evolução da crise...

Ricardo Soares [interrompendo]: Em 13 de dezembro.

Augusto Nunes: 13 de dezembro. Mas uma crise desencadeada por acontecimentos como de Volta Redonda. O senhor vê alguma possibilidade de se reeditar de alguma forma 68 ou não?

Zuenir Ventura: Não sei, realmente é muito difícil isto: você trabalhar e trabalhar, inclusive, com a possibilidade de repetição. Já se sabe que não há essa possibilidade de repetição, a história é bem pior. Quando ela se repete, a farsa aí é muito pior. Acho que as condições são realmente distintas, quer dizer, acho que você tinha em 68 – eu sei falar mais de 68 do que de 88, porque em 88 eu estava vendo 68 –, então é meio complicado. No Rio, pelo menos senti muito isso, a discussão é se era 64 ou se era 68 que estava voltando. Não sei, acho que o que angustia a todos nós, hoje, de 88, é que o quadro é mais complicado, é mais confuso do que o de 68, não sei que forças você tem hoje nesse país.

Augusto Nunes: Qual é o grande inimigo do povo hoje? Como pergunta o nosso telespectador.

Zuenir Ventura: Sei que o grande perigo é essa desorganização, essa falta... Acho que a melhor teoria política hoje no Brasil é de um psicanalista Jurandir [Freire] Costa, que diz o seguinte: o que você tem hoje, uma crise que ele chama da razão cínica, quer dizer, o país não tem mais leis, o país não tem mais referência. Então, num momento em que você atravessa todas as leis, transgride todos os sinais, todas as leis, aí na verdade você está diante do caos.

Maria Cristina Duarte: Zuenir, você acha que o país não tem hoje nenhum Nelson Rodrigues, que pontua o seu livro de uma maneira muito rica... Acho que, até ao contrário do Marcito, ele tem uma grandeza maior, porque acho o personagem pessoalmente mais bem composto, porque ele é rico, ele pontua, ele tem lances de direita e de esquerda, ele é engraçado, ele é trágico, ele recupera o [cantor e compositor] Caetano [Veloso]. Você acha que nós não temos nenhum Nelson Rodrigues hoje?

Zuenir Ventura: Não sei, fui muito criticado por ter valorizado tanto o Nelson Rodrigues, que se achava...

Augusto Nunes [interrompendo]: Foi muito criticado por quem, Zuenir?

Zuenir Ventura: Por uma esquerda, não crítica escrita, mas, enfim, por uma esquerda que ainda acho que guarda um pouco daquele maniqueísmo da época. Porque o Nelson Rodrigues era muito reacionário – aliás, ele se dizia reacionário – e era um grande provocador, é o que ele realmente fazia. E era meio consciência crítica daquele momento, era o cara que estava contra a correnteza, no momento em que estava todo mundo naquele embalo e tal. E ele tinha um humor que a gente não via na época.

Fernando Morais: Ele se autodenominava "o torpe", se referia a si próprio como "o torpe".

Zuenir Ventura: Então faltou, exatamente naquele momento, um pouco de humor de todo mundo, de todos nós, para incorporar o Nelson Rodrigues, a crítica, o humor do Nelson Rodrigues, aquilo. E, relendo o Nelson Rodrigues, falei: mas esse é um dos maiores humoristas!

Ivan Ângelo: Acho grave é faltar humor hoje, porque, naquela época, [a gente] estava no calor da luta, tem que ser... mas hoje!

Ana Maria Tahan: Em cima dessas perguntas todas, de paralelo entre 68 e 88, queria saber o seguinte: se o réveillon fosse hoje,  quem seria a Helô Buarque de Hollanda? E quem você acha que estaria nesse réveillon?

Augusto Nunes: Aliás, conta rapidamente, Zuenir, para quem não leu o livro, como é que foi esse réveillon épico que abre 1968, o  ano que não terminou. Rapidamente para o telespectador entender do que estamos falando.

Zuenir Ventura: Aquelas coisas que ocorrem a gente de repente não sabe como, esse réveillon, houve outros antes, outros depois. De repente ele sintetizou, ganhou aquela coisa mágica de ser símbolo e eram mil pessoas, porque naquele momento houve outros réveillons importantes no Rio e que foram para aquela casa, a casa da Helô, que já é um personagem.

Augusto Nunes: Heloísa Buarque de Hollanda.

Zuenir Ventura: Professora [da Universidade Federal do Rio de Janeiro e também escritora e crítica literária] Heloísa Buarque de Hollanda, mas, enfim... Aí, de repente, aquela expressão [pode ser] um pouco exagerada, mas você tinha a sensação de que estava todo mundo ali. Porque ali estava Geraldo Vandré, estava Glauber Rocha...

Augusto Nunes: E aconteceram coisas incríveis?

Zuenir Ventura: Acho que aquela coisa do personagem do Ruy Souza quando pede “me dá dois uísques em duas garrafas” em vez de duas doses e que foi o primeiro a dizer “isso não vai dar certo”... [risos] Então teve essa coisa muito inexplicável, porque bateu naquele momento tudo.

Augusto Nunes: Quantos casamentos acabaram em conseqüência desse réveillon?

Zuenir Ventura: Em conseqüência foram 17 casamentos.

Augusto Nunes: Réveillon animado!

Zuenir Ventura: E aconteceu de tudo.

Ricardo Soares: Foi uma noite de São Bartolomeu! [episódio sangrento da história, quando protestantes franceses  começaram a ser massacrados pela realeza católica, na noite de 24 de agosto de 1572]

[risos]

Augusto Nunes: Ana Maria, refaça a pergunta, por favor.

Ana Maria Tahan: Vamos para 88. Quem é a Helô Buarque de Hollanda esse ano? E quem estaria? E quem que deveria estar nessa festa?

Zuenir Ventura: Todos nós aqui, certamente estaríamos lá. [risos]

Ana Maria Tahan: Mas quem seria o novo personagem a Helô?

Zuenir Ventura: O novo personagem... realmente ela é inimitável, acho que a Helô seria a Helô hoje ainda. Ela é uma pessoa incrível, ela tem a capacidade... Passou muito tempo, depois descobriu jovens poetas e tal, tem isso... Então, não sei o que seria hoje. Até porque a coisa importante é isto: é que não foi uma coisa programada. Não foi: “vamos fazer agora um réveillon marcante”. Tinha havido antes, quer dizer, a festa do filme, no cinema, do Terra em transe, a festa do Glauber, que é um pouco essa festa. É curioso, o filme é de 1967, quando de repente é como se a gente tivesse [combinando] "vamos encenar essa festa do Terra em transe" e que tem toda aquela coisa, que diria meio agônica também. Não é a euforia, só alegria, ela é perpassada por isso, de repente aquela menina, aquela moça no chão gritando, fazendo aquela oferta, era verdadeiro. Tem gente que fala que não era, ao contrário, quem viu, quem viveu aquele réveillon... Outro dia alguém disse assim: “mas tinha muito mais coisa”, sei que tinha, eu tinha um espaço, meu livro não era sobre o réveillon.

Teresinha Lopes: Completando, esse período de 1968 foi tão rico, teve tantos heróis, anti-heróis, que muitos ainda não foram nem citados. Agora, se você tivesse que escrever um livro sobre os anos 80, quais seriam os heróis que o senhor destacaria?

Zuenir Ventura: Vamos fazer um concurso aqui!

Ricardo Soares: Tem muita gente reivindicando para si, vocês citaram o Márcio Moreira Alves... Eles reivindicam o papel de estandarte de 68, de personagem símbolo de 68. O teu personagem símbolo de 68 é Heloísa Buarque de Hollanda?

Zuenir Ventura: Mesmo porque o filme foi muito variado, o livro também, quer dizer, é um capítulo...

Ricardo Soares: Uma figura símbolo, muita gente reivindica para si esse direito de certa forma.

Zuenir Ventura: Acho que os meninos aí, sei lá, o personagem do movimento estudantil, para mim, é o Vladimir.

Ricardo Soares: Vladimir Palmeira?

Zuenir Ventura: Embora eu tenha um grande carinho pelo Travassos.

Ricardo Soares: Mas um símbolo, na sua opinião, um símbolo de 68?

Augusto Nunes: É mais dona Heloísa ou é mais para Hélio Pelegrino?

Zuenir Ventura: Acho que eu elegeria o Hélio Pelegrino. Porque, repara só, um pouco aquele negócio que disse, uma geração que não é de idade e tal. Hélio Pellegrino é um psicanalista famoso, tinha 44 anos, quer dizer, uma pessoa...

Fernando Morais: Uma criança, não é? [risos]

Zuenir Ventura: Uma criança, um menino. Mas, enfim, Hélio Pellegrino fazia... e era um interlocutor daqueles meninos que, naquela época, não queriam conversar com ninguém, aquela coisa "não confio em ninguém com mais de 30 anos" . O Hélio tinha, porque o Hélio tinha aquela coisa, acho que uma lição, ele era radical, o Hélio sempre foi. Ele chamava o cara lá de doce radical, mas o doce radical também era ele. O Hélio, de repente, largava tudo e se metia no meio dos meninos, ia lá brigar com locutor, ia brigar com a polícia, ele conseguia ser o interlocutor dos meninos e o interlocutor do Costa e Silva. Na reunião lá da comissão é aquela coisa que o Costa e Silva fica realmente empolgado com aquele poder, o que o Nelson Rodrigues exagerava, naquela coisa da hipérbole do Nelson de produzir humor. Mas ele tinha esse poder, o Dante brasileiro, o nosso Hélio, Dante brasileiro. A prisão do Hélio foi muito em função da descrição que o Nelson fazia dele nas crônicas...

Ivan Ângelo: Você citou um personagem aí, que é o [Antonio] Callado [(1917-1997) escritor e jornalista carioca tem como principal obra o livro Quarup, depois transformado em filme]. O Callado tem um livro, Bar do Juan, que pega essa mesma geração. Eu me lembro de que, quando ele foi lançado, parece que em 72, foi uma consternação das pessoas dessa geração, porque ele via todos os defeitos da situação, quase a culpa da situação brasileira nessa geração. Ele é um ponto de vista completamente contrário ao seu. Encontrei com Fernando Gabeira na época, em 72, no lançamento desse livro. Ele só falava assim: “Mas e o Callado, como ele faz isso?” Eu queria que você tentasse fazer um paralelo entre o seu livro, a sua visão dessa geração e a dele.

Zuenir Ventura: Essa do Gabeira é muito da época, quer dizer, os meninos liberavam gente, enfim, não imaginava mque pudesse ter comportamento como do Hélio Pellegrino, que era absolutamente independente, não fazia parte de partido nenhum e tal. Então, por outro lado, a história do Callado, se me lembro bem, é já no refluxo, muito mais as rebarbas dessa geração, já é o ano de sufoco, já é a geração 60, 70, já é o desbunde. Acho que é muito mais por aí que eu pego, realmente. Repara só, a história vai, quer dizer, a maior parte do livro do ano vai... é antes do AI-5, que é 13 de dezembro. Costumo dizer o seguinte: se eu tivesse que terminar o ano e tal, que é uma pergunta meio insólita, mas de repente me bateu, terminaria na passeata de 100 mil, o ano para mim acabaria ali.

Ivan Ângelo: Para vocês são os heróis, para o Callado são os bandidos da história?

Zuenir Ventura: Não acho que ele tenha essa visão.

Ivan Ângelo: Quase levaram o país ao regime militar, quer dizer, engrossaram, fizeram o regime engrossar...

Zuenir Ventura: Acho até que você pode fazer essa leitura. Acho que a leitura inadmissível hoje é achar que aquela geração, aquele movimento, toda aquela agitação é que produziu o fechamento do regime, isso aí é aquilo que você ouvia, à esquerda e à direita, à direita e à esquerda.

Ivan Ângelo: As duas.

Zuenir Ventura: A visão de Callado é uma visão crítica, amarga, todo mundo passou por aquilo, todos nós tivemos depois do anos 70, esse impulso de dizer: “a porralouquice daqueles meninos é que fez isso”.

André Gustavo Stumpf: Outro dia, convidei o nosso amigo comum Franklin Martins para bater um papo com os estudantes da Universidade de Brasília. Ele foi um dos líderes de 68, depois até escreveu um artigo no Jornal do Brasil dizendo que se sentia discutindo a Segunda Guerra Mundial, que hoje quem tem 20 anos ou em torno disso, 22 anos e tal, absolutamente não sabe, não se lembra disso. Queria saber o seguinte: todos nós aqui temos mais ou menos 68 na cabeça, a gente sabe. Eu queria saber: você, que é professor e tem longa experiência universitária, tem essa mesma sensação? Estou me referindo ao jovem hoje com 20 anos.

Zuenir Ventura: Tenho. Uma das coisas que me levou realmente a escrever esse livro é isso, era aquele desespero, todo ano você pegar uma turma nova e falar de 68, ninguém sabia absolutamente nada, quer dizer, os meus filhos já sabiam pelo convívio. Mas acho que é generalizado isso, quer dizer, esse desconhecimento e é fácil dizer: bom, é uma garotada que não tem o menor tesão, não se interessa por nada, é pós-moderna, apática, inapetente, abúlica e tal. Agora, a gente esquece que também ela não teve essa memória, essa memória foi... A ditadura na realidade se conseguiu alguma coisa foi apagar essa memória dessa geração e apagou mesmo. Então essa impressão é uma das razões que me levaram a escrever esse livro.

Augusto Nunes: Zuenir, teremos agora um ligeiro intervalo. Roda Viva, com o jornalista e escritor Zuenir Ventura, autor do livro 1968, o ano que não terminou, volta já, já.

[intervalo]

Augusto Nunes: Retomamos aqui a nossa entrevista com o jornalista e escritor Zuenir Ventura, autor do livro 1968, o ano que não terminou. Zuenir, eu queria lhe fazer duas perguntas, uma ligada especificamente ao teu livro, outra tratando de questões mais presentes. Quatro telespectadores perguntam sobre Geraldo Vandré. Arlete Ferreira, da Casa Verde, por exemplo, diz assim: “Por que você não menciona a prisão do Geraldo Vandré em seu livro?” E a Nilza Alcina de Lima, da Vila Mariana, Dora Santos, do Centro, e Antônio Cardoso, de Amparo, interior de São Paulo, querem saber: “Por onde anda Geraldo Vandré?” Perguntam se você sabe o paradeiro dele.

Zuenir Ventura: Olha, eu até, quando fiz o lançamento do livro aqui, depois daquele jantar na casa do Roberto, a Silvia até me cobrou isso, porque ela disse que Geraldo Vandré se escondeu na casa dela, quando começou a caça ao Geraldo Vandré, que foi aquela coisa terrível, depois do Festival do Maracanãzinho. Naquele momento em que entrava a polícia, todo mundo e tal, ele na verdade veio e se escondeu aqui. O problema é que, no dia seguinte, começaram a perguntar o que está fora do livro. Ficou muita coisa fora. Quis dar, por exemplo, uma noção do arrastão, uma idéia do que foi aquele ano, aquele clima, do que foi aquela coisa insuportável em que você tinha impressão de que todo mundo era preso. Agora acho que Geraldo Vandré foi um personagem muito dramático, trágico quase, quer dizer: Geraldo Vandré, se caísse naquele momento, morreria por causa de uma música. Acho que duas pessoas tiveram naquele momento a percepção do que era essa música: uma foi o Secretário de Segurança lá, que dizia,  quando saiu, que era uma música que tinha que ser proibida, porque aquilo era um perigo e tal, que essa música ia ser cantada – e ela virou realmente um hino de todos os movimentos cívicos até hoje –; outro foi o Millôr [Fernandes, escritor, humorista e desenhista carioca - ver entrevista com Millôr no Roda Viva] que diz até hoje que é a nossa Marselhesa [hino da Revolução Francesa que se tornou o hino nacional da França]. Foi uma idéia que nasceu de baixo e a coisa começou a ser cantada e realmente continua sendo. Com a repressão, com tudo que houve, continua sendo. Acho que o Geraldo Vandré realmente é um personagem muito importante desse ano, muito.

Augusto Nunes: Você sabe por onde anda?

Zuenir Ventura: Não sei, no momento não sei.

Augusto Nunes: Maria Borges, da Vila Mariana se queixa de que quando você diz que não existe mais mobilização como em 68, você estaria subestimando o fenômeno de um partido como o PT, Partido dos Trabalhadores por exemplo. E a Lúcia Saury Braw pergunta: “O que falta para que o estudante participe hoje da vida política brasileira como participou em 68?” Então, primeiro o PT, depois os estudantes e, em seguida, a roda fica devidamente liberada.

Zuenir Ventura: Acho que o PT... Tenho o maior respeito, maior simpatia pelo PT, mas não sei se é o partido – estou pensando nacionalmente – que mobilize, que congrace, que empolgue, por exemplo, as massas, que tenha essa capacidade. E, olha, não estou querendo fazer mimetismo de 68, não. Acho que com menos condições eram... Os estudantes naquele momento, um desses acasos da história, e eles conseguiram isso, eles conseguiram ser uma coisa nacional, aquilo foi um movimento que percorreu todas as ruas desse país, em todos os lugares, por um lado. A outra pergunta é que também aquele papel do estudante, hoje Vladimir, Zé Dirceu, todos eles acham que era uma coisa que foi muito do momento, foi porque o movimento não se preparou para isso, quer dizer, não foi um movimento que pretendeu ser um canal nacional, um canal de todas insatisfações, mas acabou sendo. Então, acho que hoje há uma tendência, conheço pouco o movimento estudantil, mas há uma tendência essa coisa de mitigar 68 e querer reproduzir 68 com as palavras de ordem. Acho que uma das coisas com que o Vladimir mais se assustou quando voltou ao Brasil, era o engajamento, os movimentos estudantis em partidos, fazendo opções para o partido. E ele achava, eu acho que ele está certo, que uma das razões do sucesso de 68 é que esse movimento estudantil não se atrelou a nenhum partido. Claro que tinha vinculações, claro que tinha divisões que refletiam uma divisão ideológica maior e outras organizações, mas o movimento queria uma autonomia e realmente acho que teve durante muito tempo essa autonomia. Hoje, falta evidentemente uma motivação maior, mas acho que falta também liderança e falta objetivo, clareza nos objetivos no movimento estudantil hoje.

Maria Cristina Duarte: Você não acha que naquele tempo...

Augusto Nunes: Cristina, antes da sua pergunta, nós temos a informação que o Geraldo Vandré é hoje advogado em São Paulo, embora exerça pouco a profissão. Compôs no ano passado uma música que também foi muito pouco divulgada. Cristina.

Maria Cristina Duarte: Nós, em 68, lutávamos contra a ditadura e uma série de costumes retrógrados. Tanto é que no seu livro você aponta o ridículo do casamento aberto...  Então o que você acha que nós revisamos e que fizemos bem: voltamos ao casamento monogâmico, você acha que a proibição em 68, quer dizer, a virgindade, uma série de tabus que nós tínhamos, contra  os quais lutávamos. Você acha que isso ajudava ou atrapalhava? Assim como os estudantes hoje, quer dizer, faltam obstáculos para saltar hoje?

Zuenir Ventura: Olha, em primeiro lugar, acho que a revolução, chamávamos de revolução sexual de 68, foi uma revolução vitoriosa. Digo e sei, aí tem um trocadilho, que ela só acabou com a revolução da aids, mas foram conquistas que os anos 80 consolidaram, que avançaram. Mas a semente foi realmente 68, quer dizer, e foram realmente conquistas da maior importância no país como o Brasil. Essa coisa da valorização da mulher, da valorização das minorias e até mesmo a preocupação incipiente ainda com a ecologia. Acho que toda a temática de 68, por exemplo, na França é reivindicado pelas pessoas que estudam 68, foram sementes de... o que veio consolidar nos anos 80 foram sementes lançadas em 68. Acho que, hoje, você tem nesse plano realmente, essa barreira, essa peste, essa coisa que não depende da gente, que é a aids, que barrou todas as conquistas, todas as possibilidades de avanço. Então, não é uma coisa, claro que o moralismo é retrógrado, uma determinada igreja aproveitou para dizer até que isso era um castigo divino, que isso era resultado da revolução sexual, da promiscuidade e tal. Foi um grande momento da direita, do pior conservadorismo de comportamento, foi um grande momento para dizer o seguinte: “viu no que ia dar, deu nisso, deu uma aids”. Então acho isso um grande problema no plano comportamento, no plano sexual.

Fernando Morais: Zuenir, queria te perguntar uma coisa. Você descreve no seu livro a repressão ao Congresso da UNE em Ibiúna, a mobilização de uma brigada de soldados para fechar um congresso de estudantes, depois ficar lá catando pílula anticoncepcional, catando camisinha para provar que aquilo ali era uma coisa promíscua. Você citou o caso da música, do festival de música. Há poucos dias, fiz uma entrevista com Walter Clark [(1936-1997) produtor executivo da TV Globo, durante muitos anos foi o homem forte da emissora. É considerado o pai do “padrão Globo de qualidade”. Criou muitos programas de grande longevidade, como o Fantástico e o Globo Repórter]. Ele disse que, naquela época do Festival da Canção, um coronel do Conselho de Segurança Nacional entrou na sala dele, Walter Clark, todo-poderoso, com uma pistola enfiada na cintura e dando de dedo na cara dele e dizendo: “Vocês não podem premiar a música do Vandré”. O que você acha que havia por trás disso? Por que é que um Estado tão poderoso, como era o estado brasileiro naquele momento, um governo tão sólido, tão forte, que não estava sendo questionado, se mobiliza dessa maneira com coisas tão banais, tão elementares? Porque não estavam caçando guerrilheiros, não havia uma luta armada, era uma coisa incipiente ainda no Brasil. Como é que você explica o fato de que o Estado tão sólido se colocasse de uma maneira tão furiosa contra uma música, contra um congresso de estudantes, contra pílulas anticoncepcionais, o que tinha por trás disso?

Zuenir Ventura: É mais curioso ainda que a própria esquerda, por exemplo, não valorizava a revolução comportamental. Havia, em primeiro lugar, uma paranóia, como há sempre em qualquer ditadura, que foi explorada e muito usada por todos aqueles setores, essa coisa sinistra chamada linha-dura, que a gente não sabe nem se desapareceu. E acho que não, temo que não, que trabalhou o ano todo, mas trabalhou dia-a-dia para criar esse clima. Para levar, primeiro, a opinião pública a ter essa sensação de que estava diante da possibilidade do caos, da subversão total, da desordem, da bagunça, eles trabalharam com essas categorias moralistas. Acho que conseguiram. Até o Costa e Silva, que é aquele personagem patético, vem para cá, vai para lá e tal, no final  se convence – estou convencido de que ele ficou convencido de que havia realmente um grande risco –, vendo que a sociedade brasileira estava ameaçada pela agitação estudantil. Quer dizer, acho que essa coisa... você pode dizer: bom, mas é uma coisa meio psicológica e tal a aproximação. Mas acho que isso realmente pesou muito, essa encenação de um país à beira... Isso em 64 também funcionou, milhões de pessoas na rua.

Ivan Ângelo: Depois, qualquer coisa que cheirasse a confronto não podia ser descartada, pequena que fosse, tinha que enfrentar, porque senão o forte não é forte.

André Gustavo Stumpf: De repente não fica, na época, chamado seu Artur [referente ao presidente Artur da Costa e Silva], não fica assim muito... diria assim fica quase um personagem simpático? A sua história é muito boa; a história de um golpe ao lado de todas as revoluções comportamentais. Na verdade, o golpe viria de qualquer forma, é mais ou menos isso que o seu livro diz,  à medida que fossem fabricando [episódios e incidentes]... O episódio Marcito foi quase que fabricado, utilizado para um determinado fim. O presidente que voltou a fita, essa coisa, mas no fundo anunciava que ia rever o ato 5 e o ato 5 foi revisto tantos anos depois... Me deu a impressão, Zuenir, de que o marechal, até o presidente Costa e Silva fica como o bonzinho da história, enganado por vilões que criou a ditadura.

Zuenir Ventura: Não sei, a intenção não foi essa, a intenção foi realmente evitar uma coisa maniqueísta; de fazer personagens que tivessem apenas um perfil. Acho que o caso do Costa e Silva... Eu me lembro muito do depoimento do Vladimir. O Vladimir, agora, no depoimento do livro, uma hora diz assim: “Porque o governo Costa e Silva...” aí ele parou e disse assim: “rapaz, se eu dissesse isso em 68, estava perdido, que tinha que dizer "o ditador”.

Maria Cristina Duarte: Você, depois de ter escrito esse livro, sente que as patrulhas ideológicas estão mais fortes, mais fracas? Como é enfrentar, como autor, as patrulhas?

Zuenir Ventura: Só vou tentar [antes] responder ao André. Acho que não, acho que quis mostrar um pouco, a palavra é patética, uma coisa patética mesmo. Não é um mau político, não era um estadista, não tinha aquilo que os amigos diziam, não, mas era, [mais inteligente], tinha um QI muito mais alto do que o do Castelo [Branco]. Mas [foi] com uma grande... que ele tentou isso, tentou aquilo, quer dizer, quis mostrar essa dimensão também dele, que tinha, e era, porque se você pensar... E ele era, se é que se pode usar essa palavra na ditadura, o mais simpático de todos, ele era menos ruim do que o Figueiredo – do Médici então nem se fala. E, quando digo essa coisa patética, é porque é possível. No livro, se não registrei isso foi por incompetência, ele tinha essa tentação de manter aquela democracia, um pouco de... Quer dizer, não acho que ele, eu tenho elementos de convicção para dizer que ele estivesse determinado a dizer assim: “eu vou implantar uma ditadura absoluta nesse país”. O Paulo Francis [jornalista, crítico teatral e escritor (1930-1997) famoso também como comentarista de jornais televisivos, onde fazia caras e bocas usando uma voz arrastada e grave - ver entrevista com Francis no Roda Viva], aqui defende a tese de que não havia ditadura naquele momento, de que a ditadura começou depois, começou realmente com o Médici. Se você comparar os dois governos, vai ver que isso é verdade. Então não quis dar essa dimensão, quis evitar o maniqueísmo. E aí, em algum momento, o Costa e Silva podia parecer uma pessoa simpática e, às vezes, até como gente, não era como presidente, como ditador, enfim, comandante desse país. Não quis fazer um personagem simpático. Agora, acho que o personagem do Guilherme Silva, a esse eu quis dar com todo o contorno que tinha. Costumo dizer: olha, se tem um vilão nesse livro, acho que ele foi mais do que o Costa e Silva. Acho que foi uma conquista dos anos 80, essa invenção do [cineasta brasileiro] Cacá Diegues, uma "patrulha", isso realmente desmoralizou. Isso tinha em 68, tinha muito, tinha pelo menos um germe disso. Então, em relação ao livro tem, mas não estou realmente preocupado. Tem gente que não vai gostar do livro, não gosta do autor, tem xingamentos contra o livro e tal, mas realmente isso é inevitável.

Maurício Stycer: Você fala várias vezes no livro, já falou aqui também a coisa de que todos eram jovens, Hélio Pellegrino foi citado como o exemplo símbolo disso e você também, você já tinha mais de 30. Eu queria que você falasse, 20 anos depois, que você desse alguns exemplos de pessoas que continuam jovens e de pessoas que envelheceram, personagens desse livro.

Ricardo Soares: Deixa só acrescentar uma coisa, Maurício, em cima da pergunta do Maurício: você é tido o como uma espécie de “vampiro da juventude”; é um apelido que você ganhou na redação do Jornal do Brasil. Então, queria que, em cima da pergunta do Maurício, você também respondesse por que você ganhou o apelido de “vampiro da juventude”.

Zuenir Ventura: Não é um apelido perfeito, porque na verdade não chupo sangue: troco sangue. Gosto de trocar, não acho que... Acho que essa mistura, que chamo de salada etária, é realmente importante para todo mundo. Procuro trabalhar trocando, acho que esse mito de que os jovens detinham o saber é um negócio de 68. E todos nós, mais velhos, tínhamos um pouco essa má consciência e aí os jovens tinham medo de estar contra aquela maré. O Nelson Rodrigues tinha a coragem de enfrentar aquilo, então não tenho realmente esse mito de que tudo que vem [do jovem], que o jovem é o valor em si. Agora, acho fundamental essa troca, até porque a gente tem, no meu caso, com 57 anos de vida, de experiência, coisa a dar e tem a receber também. Então, na verdade, faço essa troca. Em relação aos personagens, vou citar... o Hélio Pellegrino é isso. Hélio Pelegrino morreu combatendo, morreu por todas as causas, o entusiasmo, aquele tesão vital do Hélio Pelegrino era realmente uma coisa fascinante, o Flávio Rangel também. Acho que, daquela geração, inclusive, alguém tinha feito uma pergunta que acabei não respondendo: o que foi feita dessa geração? Se cobram muito, os meninos hoje dizem isso: mas o que é...

Ivan Ângelo: Ela deu filhote? 68 deu filhote?

Zuenir Ventura: Mas cadê os personagens e tal?

Ivan Ângelo: Os políticos?

Zuenir Ventura: O que eles estão fazendo? Acho o seguinte: primeiro, que é uma cobrança que a gente precisa fazer com cuidado, porque nenhuma outra geração do mundo  – acho que a não ser a tcheca, que sofreu repressão – nenhuma outra sofreu a repressão que a geração de 68 sofreu aqui no Brasil. Essa geração foi exterminada, ela foi torturada, ela foi banida, ela foi exilada, ela foi morta, enfim, também passou por isso. Acho que tem alguns exemplos, esse exemplo do Zé Dirceu, do Gabeira. O Gabeira continua fazendo política, você pode até não concordar que a ecologia seja um problema prioritário no país hoje, isso é outra coisa. Agora, ele continua fazendo política à sua maneira, o Vladimir também, pode discutir a opção do PT, mas ele está fazendo política. Acho que nenhum... E coloquei essa pergunta para o Vladimir e ele deu uma resposta muito boa: “ninguém está no PDS, ninguém foi, como nos Estados Unidos, lá para a Bolsa, virar “yuppie”, quer dizer, a gente está batalhando”. Claro que você vai encontrar...

Ricardo Soares: Você diria que esse pessoal dos 30 anos da sua geração, aos 30 anos eles eram incendiários, hoje aos 30 nós somos bombeiros?

Zuenir Ventura: Não. Olha, acho que também seria ridículo, repara só, se o Gabeira hoje estivesse pegando uma metralhadora, tentando repetir o fiasco que foi a experiência de luta armada. Acho positivo se você quiser chamar de bombeiro essa tarefa dele hoje, ele está em outra, ele está certo, quer dizer, melhor isso. Então acho que o Vladimir fazendo política hoje, reconquistando voto, é melhor do que lutar por voto nulo.

Ricardo Soares: Na faixa etária dos 30 anos, hoje, se você acha que em comparação com a tua geração de 30 anos de 68...

Augusto Nunes: Os que têm 30 hoje?

Ricardo Soares: Essa geração que tem 30 anos, hoje, é bombeiro, em comparação à geração, que pelo menos, você dá a impressão de ter sido mais incendiária aos 30 anos em 68?

Zuenir Ventura: Olha, Ricardo, falei muito isso em entrevistas, dizendo que essa geração é uma geração amorfa, é uma coisa meio implacável. Sem considerar as condições, 68 não foi uma geração caída do céu... teve 64 antes. Fui ver na semana passada um show do Cazuza, que é um show primoroso; é uma das maiores manifestações de vitalidade cultural deste país. Escrevi até um negócio lá, sobre o show do Cazuza.

Ricardo Soares: Aliás, ele próprio fala que essa geração, hoje... ele deu uma entrevista na semana passada, dizendo que essa geração é uma geração amorfa, a das pessoas de 30 anos. Por isso é que queria saber...

Zuenir Ventura: Pois é, ele é o desmentido disso, quer dizer, eu acho que há outros. Agora, não há, isso na verdade não há: um sentido de geração. Você não é... não é nem cultura, movimento como um movimento tropicalista por exemplo, a coisa coletiva que acho que acabou.

Augusto Nunes: Zuenir, a Lúcia Santos de Araújo, do Ibirapuera, observa que os três principais líderes estudantis da época, Vladimir Palmeira, Zé Dirceu e o Luiz Travassos, já falecido, fizeram a opção pelo PT. Eu queria que você falasse sobre isso, o que você acha, pergunto: a opção pelo PT é uma boa opção, na sua opinião?

Zuenir Ventura: Acho.

Ana Maria Tahan: Emendando, porque a pergunta é em cima disso, nós estamos nas vésperas das eleições  e o que a gente observa é o crescimento das oposições, de forma geral, no Brasil inteiro. É isso que estou falando, esse voto na oposição... O PT sendo mais um beneficiado... É o grito de revolta hoje do povo, do jovem, da população de uma forma geral?

Augusto Nunes: Então, primeiro a sua opção e depois a resposta.

Zuenir Ventura: Acho que há vários PTs, o PT do Vladimir, por exemplo, não é o PT do Cezinha, os dois, enfim, falando também de liderança, dois jovens de 68, hoje têm [diferenças], o Vladimir está mais à esquerda, digamos, do que o Cezinha. Acho que a crítica que se pode fazer ao PT ou a um certo PT é a preferência quase que exclusiva ou excludente pelo homerismo, por uma coisa, por um engajamento meio religioso, na crença de que realmente a classe operária neste momento, neste país, tem potencial revolucionário.

Augusto Nunes: Zuenir, só explica quem é o Cezinha para quem ainda não leu o livro.

Zuenir Ventura: Cezinha é um personagem curioso desse ano, é um personagem que tinha 13 anos, fez 14 em maio e foi um menino que sofreu muito, foi preso logo em seguida, ficou cinco anos e meio preso, foi banido, é um símbolo. Ele entra no livro como emblema de parte dessa geração. E o Cezinha continua com a cabeça incrível. É um episódio no livro quando ele ficou três anos e meio praticamente em solitária...

Augusto Nunes: Menor de idade?

Zuenir Ventura: Menor de idade; foi preso, foi banido, tudo isso menor de idade, provocou uma comoção no país, no tempo do governo Geisel, então o Cezinha manteve essa chama e hoje está no PT. Então acho evidentemente...

Augusto Nunes: César Queiroz Benjamin.

Zuenir Ventura: César Queiroz Benjamin. Eu sou pluralista, acho que a opção pelo PT, é evidente que é uma das mais respeitáveis. Como acho também que vocês conhecem essa situação melhor do que eu, a situação de São Paulo, por exemplo, está acontecendo essa reação, acho que ela transcende, inclusive, ao PT, uma coisa regional. Acho que é uma reação muito saudável do organismo político. Acho que no Rio, por exemplo, não teve isso, no Rio a campanha está absolutamente morta, é como se não existisse, e a gente está do Rio acompanhando um pouco esse negócio de São Paulo. Que bom que alguma coisa, que alguma surpresa, que algum imprevisto... Não estou discutindo o mérito de um dos candidatos, mas que haja alguma coisa não prevista, não previsível que é essa reação. Então, sei lá, este país...

Ana Maria Tahan: É o grito de revolta?

Zuenir Ventura: Acho que é um grito de rebeldia, de alguma coisa contra, alguma forma de manifestação, de não-conformismo, pelo menos, se não usasse, se não usar a palavra revolta divide em não conformismo, isso é muito saudável.

Terezinha Lopes: Zuenir, como estaria hoje, a chamada esquerda festiva no Brasil? Já que é difícil hoje admitir alguém de direita.

Fernando Morais: Os "padres de passeatas", "gran-finos" de Nélson Rodrigues.

Zuenir Ventura: Em primeiro lugar, eu acho que essa coisa festiva foi uma coisa saudável, porque... Eu me lembro, o Bertolucci tem uma frase muito boa: “A gente achava que o prazer era direita; era esquerda" [risos] Tinha sempre essa coisa contra o prazer, qualquer prazer, qualquer coisa mais...

Ivan Ângelo: Essa visão quem trouxe para o Brasil foi Fernando Gabeira?

Zuenir Ventura: O Gabeira. O Gabeira virou "esquerda festiva" no fim dos anos 70, anos 80. Ele era contra nesse momento,  porque pertencia um pouco à esquerda religiosa. E aí essa coisa religiosa era do PC, comunistas, era mesmo da esquerda radical, que admitia tudo, mas não admitia, por exemplo, Lamarca namorando a Iara, porque ele era casado e a mulher estava em Cuba, então tinha essas contradições da esquerda. Então acho que essa coisa, esse gênero da esquerda festiva foi uma coisa muito boa para mostrar que o prazer não era direita. Acho até que a tal esquerda radical... o caso do Gabeira é um exemplo. O Gabeira fez uma grande revolução, digamos, no conceito ou na concepção ou na política sexual da esquerda no Brasil. Gabeira foi o cara que trouxe uma coisa absolutamente nova, que produziu uma reação bem maior, "lembra aquela bicha de tanga lilás?" era bicha e tal. E, na verdade, ele introduzia na esquerda, aquela esquerda calvinista, essa esquerda recalcada, desde a esquerda stalinista, desde o "partidão" [Partido Comunista Brasileiro], que é essa coisa do "prazer, não!" O casamento era programado pelo partido, trouxe essa coisa nova. Acho que, no caso, o Bertolucci tem razão, quer dizer, o prazer não é uma coisa de direita, não.

 Fernando Morais: Você vendeu em poucos dias 30 mil livros, segundo dizem os jornais, que é saudabilíssimo. Pelas minhas contas aqui, você já incorporou ao seu patrimônio alguns milhares de salários mínimos?

Augusto Nunes: Fernando Morais entende desses números aí.

Fernando Morais: Eu queria te perguntar uma coisa. Você ficou praticamente um ano dedicado quase que exclusivamente ao livro. Você fez com bolsa? Deixou o Jornal do Brasil nesse período? Como é que foi a sua relação com a editora? Como que foi isso, alguma instituição financiou o seu trabalho?

Zuenir Ventura: Não, não, fiz o seguinte: quando houve a conversa que a Mary, a minha mulher tinha armado tudo. Aí o Sérgio [disse]: “Você não quer fazer esse livro?” Mas vou ter que parar, tenho que sair do Jornal do Brasil.

Augusto Nunes: Sérgio Lacerda?

Zuenir Ventura: Sérgio Lacerda, que é editor da Nova Fronteira. Eu preciso... Achava que fazia o livro em quatro meses, eu tinha um mês de férias, em cinco meses faço esse livro. Eu quero então que você pague o meu salário para eu então chegar no jornal e dizer: ou eu saio ou então quero uma licença não remunerada. Então fechamos assim. Só que o livro demorou um ano, mas em compensação o Marcos Sá-Corrêa chegou e disse: “Não vou te dar licença..."

Augusto Nunes: Marcos Sá Corrêa é o editor?

Zuenir Ventura:  Editor do Jornal do Brasil, não sei nem se devo dizer essa confidência, falou: “Não vou avisar à direção e vou pagar você”, então fiquei com salário dobrado, foi muito bom, só que, quer dizer, recebia da editora e recebia do Jornal do Brasil, o Marcos foi incrível...

Ivan Ângelo: O sucesso leva a convites, propostas de nova obra e tal. Apareceu alguma? Alguém pediu para você escrever um outro livro, você tem intenção ou já tem uma proposta para trabalhar?

Zuenir Ventura: Nenhuma proposta. Perguntaram muito isso.

Ivan Ângelo: Porque quando você faz um livro de sucesso as pessoas até se propõem a pagar você um ano para escrever, pagaram até dois anos para um escritor aí famoso brasileiro.

Zuenir Ventura: Tem aquela coisa que o Fernando enfrenta, aquela coisa do Chico Anysio, o outro era melhor, sempre aquele vai dizer que o outro livro que era bom. E o Fernando já enfrenta isso há vários meses. Mas então foi assim, quer dizer, fiquei depois outros cinco, seis meses. Demorei um ano, trabalhando no jornal e trabalhando no livro, claro que aí era aquela coisa de uma viagem no sentido figurado da palavra, porque eu estava tão empolgado no negócio do livro, que eu não dormia. Isso a mim não custava nada, porque não custava, digamos, não digo isso: ai, coitado! Ficava pelo prazer quase que sexual com esse objeto do meu amor, que era o livro. E essa coisa de escrever, realmente não penso em escrever outro livro, digo até que quando se acaba um caso de amor tão turbulento, tão tumultuado, tão envolvente, quanto foi esse meu, você não tem vontade de começar outro.

Ivan Ângelo: Você chama esse livro de romance e ficção. Você não faria um romance com ficção?

Zuenir Ventura: Não tenho a menor imaginação, tenho inveja de você. [risos]

Augusto Nunes: Zuenir, a Cláudia, que está aqui conosco na platéia, gostaria de que você falasse sobre seus últimos encontros com Flávio Rangel, figura muito querida que perdemos há poucas semanas. E quer saber como é que ele via 68, 20 anos depois. Ele é um dos que deram depoimentos para o seu livro.

Zuenir Ventura: O Flávio Rangel era uma figura muito comovente. Dei uma entrevista, essas coisas... quando o Flávio estava morrendo, na hora em que ele estava morrendo, essa entrevista estava passando no Rio, entrevista com Amaury Júnior, em que eu falava no programa Flash, eu falava do Flávio. Ele perguntou dos personagens e aí bateu na minha frente... O livro tem 200, 300, não sei quantos personagens, e bateu Flávio Rangel, eu dizia que a coisa bonita do Flávio Rangel é que você não conseguia arrancar do Flávio Rangel uma maledicência. Ele não falava mal de ninguém. Eu dizia: mas você sofreu, você sofreu tanto, que foi tão patrulhado, as pessoas [cobravam], porque ele não era do Partido Comunista, ele não tinha engajamento, filiação política e tal, mas era muito sensato. Você sabe que era uma moeda que realmente não valia nada, era um xingamento ser moderado e tal. Então, ele sofria muito com isso. Fiz a entrevista dando depoimento a tarde toda, a [atriz] Ariclê [Perez] participou também, porque ela participou também de 68, é talvez o personagem mais comovente, porque tem aquela cena terrível, que foi o primeiro ensaio de tortura em 68, que foi quando rasparam a cabeça dele. E tem aquela coisa de que aí ele resolveu botar ordem, "não, vamos organizar", o Flávio sempre dirigindo e ele reclamando, porque tinha que reivindicar e não sei o quê, porque estava tudo sujo. E o cara vira: “então tá, você vai limpar”, dá vassoura, tal, “não, você vai limpar com a língua”. O comentário do Flávio 20 anos depois: “Você imaginou aquela coisa ridícula, eu, careca, completamente careca, de quatro lambendo o chão e tal”, quer dizer, ele tinha...

Augusto Nunes: Conseguia ver com humor uma situação desse tipo?

Zuenir Ventura: ...sabe, essa coisa, generosa, a palavra é essa. Ele era realmente generoso em todos os sentidos. Então, uma das heranças de 68 é esse espírito do... Que é simbólico. Olha, quem encarna isso é o Flávio Rangel. Dizer isso agora pode parecer que é a emoção, que a gente perdeu uma das melhores cabeças deste país. Mas eu já dizia isso antes, Flávio Rangel simbolizou isso.

Augusto Nunes: Você acha que seu livro mostra isso que você pensa do Flávio?

Teresinha Lopes: Zuenir, você, que foi personagem desse livro, no entanto, quase não fala sobre você. O que você gostaria de que escrevessem sobre você dessa época?

Zuenir Ventura: Uma pergunta difícil. Dessa situação em que eu estou agora, a vida toda sempre entrevistando sucesso, a notícia, correndo atrás, fazendo pergunta e, de repente, tenho que responder as perguntas que eu faria...

Teresinha Lopes: Qual a sua participação nessa época?

Zuenir Ventura: A participação, realmente, claro que tem pudor nisso, enfim, tem uma série de coisas, mas também não tive participação... tinha participação importante o meu testemunho, eu realmente estava em todos os lugares, isso eu estava, estava em todas as assembléias, todas as passeatas, até a morte do Edson não vi por acaso. Washington Novaes, Ziraldo e eu, grandes queridos amigos...

Augusto Nunes: Era o final de todos os manifestos?

Fernando Morais: Washington Novaes, Ziraldo Alves Pinto e Zuenir Ventura.

Zuenir Ventura: Então, sem nenhum charme, eu não tinha... o meu papel importante era o papel de testemunho, não fazia parte de partido nenhum, era considerado realmente um quadrado, um conformista, mineiro, aquela coisa, será que isso vai dar e tal, tinha um pouco isso.

Maurício Stycer: Outro personagem que posa de quadrado é o Glauber, uma pessoa por que você tem muita admiração.

Zuenir Ventura: O Glauber não dá para classificar, o problema era a cabeça do Glauber nunca será classificada, porque ele tinha tudo isso, era um dos mais revolucionários artistas que esse país [já teve]...

Maurício Stycer: Eu queria te perguntar como é que você imagina que ele reagiria à descrição que você faz na iniciação dele na maconha. O acontecimento no livro é genial a descrição.

Zuenir Ventura: Ele ia rir, tinha muito humor, o Glauber tinha essa coisa.

Augusto Nunes: Li, se não me engano, na revista Veja, que o livro traz algumas... se não for na Veja, você me corrija, traz alguma simpatia tua pelo Partido Comunista. Na época, você tinha alguma militância no Partido Comunista? E Cláudio da Silva, da Vila Mariana quer saber: “Em que partido você vai votar nas eleições de amanhã no Rio de Janeiro?”.

Zuenir Ventura: Fechei muito na época com o Partido Comunista. Depois, porque o Partido Comunista, como diz um personagem famoso lá da repressão cujo nome não aparece, era a única organização que tinha, digamos, organização, eles sabiam trabalhar na clandestinidade e foi o partido que botou muita gente para fora em 69 e 70. Então, nesse período trabalhei muito com o Partido Comunista, enfim, muita gente ficou lá em casa, o carro foi usado uma porção de vezes e tal. Em 68, foi como opção, porque o Partido Comunista em 68, ele teve essa visão, Augusto, ele teve essa sensatez, pode se usar a palavra hoje, de que tinha uma coisa perigosa ali. Primeiro, havia um golpe. Segundo, que havia já no Congresso de 67, o sexto Congresso, eles tinham... Não é nem premonição, tinha a visão de que aquilo... Agora, também tem o seguinte: só para não parecer que... E algumas pessoas disseram isso: “mas é porque você é ligado ao partido e tal”. No entanto que eu reclamo do partido o seguinte: você não faz política sem hegemonia. Então, o partido falhou naquilo que não podia falhar, ele não tinha a menor audiência, ninguém ouvia, um pouco aquele negócio do velho e do restelo. Olha, isso não vai dar em nada, isso e tal, e os meninos viravam as costas, morriam de rir. Então, o partido estava certo naquele momento, ele que tinha errado tantas vezes, naquele momento estava certo e ninguém acreditava.

Augusto Nunes: Sobre o teu voto.

Zuenir Ventura: Vou votar no Arthur Otávio no Rio de Janeiro.

Augusto Nunes: Candidato do PSDB.

Zuenir Ventura: Candidato do PSDB.

Maurício Stycer: O Partido Comunista, essa sensatez de que você falou, do Partido Comunista, tem algum paralelo com o Partido Comunista Francês, em maio de 68, que também recebeu acusações parecidas com o Partido Comunista Brasileiro, de que não estaria acompanhando o tempo, de que ficou para trás, quer dizer, hoje a imagem que você tem tanto do Partidão de 68, quanto do PCF é muito negativo, você vê paralelos?

Ricardo Soares: Em maio de 68, você estava em Paris por uma casualidade.

Zuenir Ventura: Absoluta casualidade, absoluta sorte. Alguém perguntou isso outro dia: “jornalista está em todo lugar”, falei "é sorte, pura sorte", não foi por... E foi importante estar lá, foi um momento importante, mas foi por acaso. Acho que tinha... Só que o Partido Comunista Francês muito mais escaldado, com uma classe operária francesa, não entrou naquela chamada aventura não, tirou vantagem, conseguiu aumento e tal. O Partido Comunista não tinha audiência em nenhuma classe operária, como não tem até hoje. Então, era um partido que não tinha menor respaldo social. Então é diferente por isso, que na França era uma potência e aqui essa coisa frágil em termos de base.

André Gustavo Stumpf: Do ponto de vista político, o que ficou, o que deu certo do movimento estudantil de 68, o que resultou? Se pudesse apontar hoje?

Zuenir Ventura: Se quisesse ser cruel eu dizia que não resultou em nada, porque essa geração queria tomar o poder, queria derrubar a ditadura, queria fazer uma revolução, não aconteceu nada disso. Agora, acho que é uma leviandade a gente olhar só para essa aparência. Então, não acabou, política é isso, política é eficácia, se você não tem eficácia, fracassou. Mas acho que o que ficou para mim, pelo menos na minha opinião, de herança, de legado dessa geração, foi uma coisa para a que, enfim, o Augusto me chamou a atenção no artigo. É que, na verdade, é uma geração vencida, digamos assim, mas que foi vencedora. Hoje, a gente está falando aqui, falará durante anos e anos sobre a geração de 68, sobre os meninos, e não sobre os militares, sobre a linha dura que venceu, sobre as trevas.

André Gustavo Stumpf: Acho curioso, porque você menciona no livro a passagem dos acordos não cruzados que eram, que foi o começo de tudo, tanto que o ministro da Educação, Jarbas Passarinho... Fico pensando aqui, só provocar um pouco, que na época se pensava em privatizar as universidades e isso não aconteceu. Ao contrário, a Constituinte consagrou os princípios do ensino superior, público. É uma vitória de 68.

Zuenir Ventura: O Franklin [Martins], que foi um personagem de 68, teve o prazer de fazer essa matéria no Jornal do Brasil 20 anos depois, ele foi personagem. Acho até – viu, André? – que a gente pode não fazer várias contabilidades, mas acho que a coisa mais importante talvez não seja visível para mim, que é essa coisa... São palavras gastas, porque hoje são palavras que não têm o menor valor: uma palavra é ética e a outra palavra é a paixão. Então essas duas categorias, que não são nem categorias políticas, digamos assim, é uma lição da geração de 68, provar o seguinte: que a política não deve ser, não pode ser incompatível, embora essa Nova República esteja diariamente tentando provar isso para a gente. Acho que é uma coisa contraditória, mas é uma vitória de 68, mas se está derrotada, é um legado, é uma coisa aí para a gente podendo ver... Quando falo dessa coisa, dessa análise, dessa teoria política, hoje, teoria de Brasil, de um psicanalista, é porque é o cara que saca isso, saca que a coisa mais grave, hoje, nesse país, é a crise cultural, é a crise moral.

Fernando Morais: Zuenir está falando de crise cultural. No começo dos anos 70, você fez uma grande reportagem, reportagem de capa, se não me engano, Quatro meses com Vlado, para a revista Visão, chamado Vazio Cultural, no auge da repressão mais brutal, no governo Médici. Que balanço você faria da cultura brasileira, produção cultural brasileira depois da abertura política, depois do fim do regime militar, como é que você veria essa incipiente democracia se refletiu na produção cultural, se refletiu na vida da cultura brasileira?

Zuenir Ventura: A gente tem uma primeira desilusão com isso. A gente estava esperando no momento da chamada abertura das gavetas, quer dizer, a abertura do país, então ia pintar uma quantidade imensa de grandes obras, na verdade pintou muito pouca coisa. Eu me lembro agora da peça do Vianinha, que é uma... agora me foge o nome, que é uma peça importante, Rasga coração, que foi uma coisa, acho que uma obra-prima desse momento. Essa foi a primeira desilusão, de que ia haver uma explosão de criatividade, uma explosão neste país, cultural e tal, tal. Então, primeiro: essa coisa não aconteceu. O segundo: houve um outro tipo de vazio, quer dizer, que é uma marca, enfim, dessas gerações ou dessa geração, geração de 80 e – não só aqui –, que é essa coisa de voltar-se comigo. Tudo bem! É bom individualismo, é bom narcisismo. Agora, isso... na verdade, ele não nasceu para isso, ele é um ser legado, ele é um ser meio coletivo, ele é uma coisa social, no momento em que essa ideologia pós-moderna do individualismo passou a prevalecer. Uma coisa realmente fundamental, acho que ocorreu uma coisa grave, grave, inclusive na criação cultural. Não sei se a gente perdeu criatividade, é muito arriscado dizer. Perdeu em talentos? Não, acho que tem talentos aí. Agora, uma coisa visível é que você não tem mais aquilo que eu estava dizendo antes, essa coisa coletiva, você não tem um movimento, você não une as pessoas, mesmo no plano da cultura, você não une mais para manifesto.

Maria Cristina Duarte: Do que você mais sente saudade? Embora a pergunta não seja individualista, mas é de você, Zuenir Ventura. Porque como eu não tive em nenhuma passeata eu não posso imaginar você gritando com essa vozinha. Mas eu queria saber do que você sente falta. Do uísque da festa? Da festa? Da liberalidade que estava começando? Então, portanto, tinha mais prazer. Do que você, pessoalmente, você sente mais saudade? De assinar um manifesto? De participar? De ter a sensação de estar participando? Do que você pessoalmente tem mais saudade?

Augusto Nunes: Zuenir, sua última resposta.

Zuenir Ventura: É isso, é a participação, é essa coisa coletiva, essa sensação de que a gente deixava um pouco de lado as coisas individuais, egoístas, a egotrip, para uma coisa, sabe, que era muito gostosa, a passeata, a assembléia... E eram festas no bom sentido, era uma coisa realmente... e eu me via, está entendendo?! É isso, sinto falta, hoje... essa falta de motivação. Nós tivemos isso e acabou numa ressaca terrível, que foram as Diretas.

Maria Cristina Duarte: Mas você devolveu isso para a gente, no livro, isso [está] aí de todo jeito. A gente lendo o seu livro tem um pouquinho essa sensação de reviver isso.

Zuenir Ventura: Disso tenho saudades, acho que isso é realmente uma coisa positiva e acho que a perda disso hoje é terrível. Acho que é um empobrecimento para todo mundo, para a geração, para o país. Porque aquela coisa coletiva de encontro, eram encontros permanentes, se varava em assembléia até de madrugada. A assembléia, brigando, discutindo, no fundo era tudo realmente um gesto de amor, uma coisa muito amorosa. E essa coisa do individualismo, do narcisismo pós-moderno realmente me irrita muito. Não tenho nada contra o individualismo; agora, quando você faz disso realmente uma ideologia, acho que está mais para tragédia do que para festa.

Augusto Nunes: Zuenir, antes de encerrar o programa, só passo mais duas informações sobre o Geraldo Vandré, que é uma figura que provocou curiosidade em vários telespectadores. Aline Tomazine, Jardim da Saúde, e a Regina Maia, da Vila Nova Conceição, informam que Geraldo Vandré, depois de ter sido aposentado pelo AI-5, voltou à ativa também como fiscal da Sunab. E Tereza Silveira, que lembra que é paraibana, diz que há cerca de seis meses alguns amigos paraibanos de Geraldo Vandré o levaram a João Pessoa numa casa de praia com um piano colocado a sua disposição, como ele próprio pedira. Mas ela informa também que Geraldo Vandré é hoje um homem com o sistema nervoso bastante frágil. Nós terminamos aqui uma entrevista com o jornalista e escritor Zuenir Ventura. Zuenir, que é editor do Caderno B, especial do Jornal do Brasil, também é o autor do livro 1968, o ano que não terminou. Nós agradecemos ao Zuenir por nos ter proporcionado esse mergulho inteligente – como é, Zuenir, o seu livro também um mergulho em 68. Nossos agradecimentos aos nossos entrevistadores, aos telespectadores que telefonaram encaminhando perguntas ao Zuenir Ventura, também aos convidados da produção. Roda Viva volta na próxima segunda-feira, às nove horas e vinte e cinco minutos. Boa noite.

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