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Memória Roda Viva

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Herbert de Souza (Betinho)

14/12/1987

O sociólogo fala sobre as dificuldades enfrentadas pelos portadores de HIV diante de hospitais despreparados, preconceito, falta de apoio e de compromisso do Ministério da Saúde

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[programa ao vivo, permite perguntas dos telespectadores]

Antonio Carlos Ferreira: Boa noite. Nós estamos começando o programa Roda Viva que é transmitido simultaneamente pela Rádio Cultura AM, e retransmitido pelas TVs educativas de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Bahia, Piauí e Espírito Santo. Excepcionalmente hoje o programa será coordenado por mim, o titular de Roda Viva; o jornalista Augusto Nunes está viajando e volta na próxima semana. O entrevistado desta noite é cientista político Herbert de Souza, presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar da Aids. Para entrevistar Herbert de Souza nós convidamos: Demócrito Moura, repórter da editoria de saúde do Jornal da Tarde; Humberto Pereira, editor chefe do programa Globo Rural e diretor editorial da revista Globo Rural; Maria Vitória Benevides, socióloga, escritora, professora da Universidade de São Paulo e membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo. Inês Knaut, repórter da Folha de S. Paulo; Ricardo Kotscho, escritor e repórter da sucursal paulista do Jornal do Brasil; Vitalina Dias da Silva, presidente do Centro dos Hemofílicos de São Paulo; Maria Carneiro de Cunha, escritora e jornalista; Caio Rosenthal, médico especializado em doenças infecciosas - o doutor Rosenthal atua no hospital Emílio Ribas e no Hospital do Servidor Público de São Paulo. Nós vamos contar também com a presença do cartunista Negreiros que vai fazer alguns desenhos que serão mostrados ao longo do programa. A nossa platéia é composta de membros do Gapa [Grupo de Apoio e Prevenção da Aids] e membros do Centro de Hemofílicos de São Paulo, além de outros convidados da produção. Lembro que os telespectadores poderão fazer perguntas ao entrevistado através da Lúcia, da Maída e da Geane. Mineiro, 52 anos, Herbert de Souza, o Betinho é um homem de muitas lutas. Suas primeiras batalhas foram políticas: militante da organização de esquerda Ação Popular durante o regime militar, foi obrigado a se e exilar. Hoje é membro da coordenação da Campanha Nacional pela Reforma Agrária e secretário executivo do Ibase, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas. Não abandonou a política, portanto, mas foi obrigado a abrir uma nova frente de luta, contra a Aids [Síndrome da imunodeficiência adquirida]. Hemofílico, uma doença genética que dificulta a coagulação do sangue, Herbert de Souza é portador do vírus da Aids, que pegou ao receber fatores coagulantes fabricados com sangue de doadores contaminados pela Aids. A doença não se manifestou nele. Em pior situação estão seus dois irmãos, também hemofílicos e com a doença já manifestada, o músico Chico de Souza; e o conhecido humorista e escritor Henfil. Betinho, eu sei que as estatísticas da contaminação de hemofílicos pela Aids são terríveis, você poderia nos dar um balanço desse quadro?

Herbert de Souza: Eu posso lhe falar do quadro mais especificamente do Rio de Janeiro. Temo que o quadro não seja tão diferente no resto do Brasil. No Rio de Janeiro, existem 1150 hemofílicos cadastrados; desses, 70% estão contaminados pela Aids.

Antonio Carlos Ferreira: E como foi que aconteceu esse desastre?

Herbert de Souza: Esse desastre tem muitas origens, tem muitas causas. A primeira causa é a ausência quase que poderíamos dizer absoluta de controle da qualidade de sangue na história nossa, do Brasil. O sangue que é uma coisa tão vital, tão importante... e é comercializado, é tratado como mercadoria de uma forma absolutamente criminosa. E hoje a Aids veio só dramatizar isso porque, na verdade, através do sangue você pode ser contaminado por várias coisas graves. Às vezes até tão graves quanto a Aids, como a hepatite B, a doença de Chagas, não é? E várias outras doenças. Mas a Aids veio tornar essa coisa absolutamente dramática porque é através do sangue que a Aids se transmite, não é? É basicamente através do sêmen contaminado, que também tem que entrar na corrente sangüínea, e do sangue contaminado ou dos fatores derivados do sangue. Bom, apesar do discurso oficial de falar que hoje existe controle do sangue no Brasil, não menos de 70% dos bancos de sangue do Brasil não fazem controle e testes para essas enfermidades. Além do mais, mesmo alguns que fazem estão fazendo - e a gente tem notícia disso - através de um sistema de pull. Isto é, pega-se dez transfusões e testa-se uma. Quer dizer, é uma coisa absolutamente sem rigor, sem precisão. Resultado: no Rio de Janeiro, 70% dos hemofílicos estão contaminados, mais de quarenta já morreram. Só no último mês morreram três hemofílicos em situações dramáticas por asfixia, sem assistência hospitalar. Porque lhes foi negada a assistência hospitalar num hospital dirigido por uma freira da ordem de São Vicente, a ordem se chama Filhas da Caridade de São Vicente de Paula. Esses três - um menino de dez anos, um jovem de 16 anos e um adulto com 35 anos - morreram com insuficiência respiratória aguda.

Ricardo Kotscho: Betinho, pelo que você nos contou até agora é um caso típico de crime e de omissão, um crime de responsabilidade. Eu queria que você dissesse - sempre que existe um crime tem um autor, um responsável - quem são os criminosos nessa história?

Herbert de Souza: Olha, eu acho que vai ser uma longa e tenebrosa busca, não é? No caso específico dessas três mortes nós entramos na décima oitava delegacia com um pedido de inquérito policial por omissão de socorro; e estamos acusando a direção do hospital São Vicente de Paula por omissão de socorro, tendo como conseqüência a morte.

Ricardo Kotscho: Isso já no final da linha?

Herbert de Souza: É, no final da linha.

Ricardo Kotscho: E no começo da linha?

Herbert de Souza: No começo da linha... eu acho que no caso do sangue existe toda uma questão relacionada à saúde pública neste país, não é? A minha visão é a seguinte: nos últimos vinte e tantos anos - ao longo da nossa história, mas particularmente nos últimos vinte e tantos anos - houve um processo de deterioro quase que total do sistema de saúde pública. Os hospitais públicos, que no passado eram símbolo de excelência, hoje se transformaram em símbolo de decadência, com honrosas exceções. Por exemplo, eu, quando criança, era tratado no Hospital dos Servidores Públicos do Rio. E lá nós tínhamos os melhores hematólogos [que tratam de pessoas com doença no sangue - hemofílicos], o melhor sangue, o melhor tratamento. Mesmo quando nos internávamos em enfermarias com dez, quinze pacientes, o tratamento médico era o melhor. Eu quando estava clandestino aqui em São Paulo, eu fui salvo aqui, em 1967, com uma cirurgia, uma hemorragia de estômago no Hospital das Clínicas. E recebi no Hospital das Clínicas de São Paulo o melhor tratamento possível; sendo indigente, porque eu estava clandestino, me internaram como indigente, e assim eu me salvei. Mas ao longo desse tempo a medicina não só foi privatizada, como comercializada, como deteriorada. As universidades perderam a qualidade, o ensino... e aquilo que deveria ser um patrimônio de todos acabou se transformando num privilégio de uns poucos. Quer dizer, hoje, se você tem que internar um filho seu, que você quer o melhor, o que você faz? Você busca a melhor clínica particular e interna o seu filho. Antigamente, você podia pegar o seu filho e ir para um hospital público. O mais incrível é que essas clínicas particulares, esses hospitais particulares, inclusive o São Vicente, são mantidos em grande medida com dinheiro público. Essa é que é a grande questão. Por exemplo, essa clínica São Vicente foi construída com dinheiro da Caixa Econômica Federal, do Fundo Social da Caixa Econômica Federal, que é dinheiro nosso.

Caio Rosenthal: Deixa só eu aproveitar, só para pegar essa carona e fazer uma denúncia - que eu acho que é bastante pertinente aqui, né? [É] Que você denunciou os hospitais públicos e, dê certa forma, também a comercialização da medicina. Eu acho que é importante deixar claro para todos também que as medicinas de grupo, os convênios de saúde e essas medicinas que vendem a saúde para os seus associados, elas se negam sistematicamente a entrar em contato e a tratar, quer seja ambulatorialmente ou em termos de internação, qualquer tipo de doença contagiosa. Então, se o indivíduo tem aids, ou se tem hepatite, ou se tem malária, ele não é internado. E o indivíduo pode estar quite com seu carnê, ele pode pagar as Golden Cross, a Interclínicas e os Seguros Bradesco 9planos de saúde], qualquer que seja ele, e não tem direito. Então, no caso da aids especificamente, aqui no estado de São Paulo, que é onde eu conheço melhor, quem se responsabiliza pelo tratamento de aids - cerca de 95% dos casos - é o Estado. Muito mal, sem dúvida nenhuma, mas isso porque existe uma grande mercantilização da medicina; e eles não devolvem o direito do cidadão. Acho que é importante essa denúncia.

Herbert de Souza: Agora, você veja isso... quer dizer, um hospital não é uma butique, né? Um hospital não é hotel de quatro estrelas, de cinco estrelas. Um hospital foi feito para atender doente e tratar com doença. A minha tese é o seguinte: um hospital que não recebe um doente deve ser fechado.

Caio Rosenthal: Claro. Claro.

Herbert de Souza: Entendeu? Ele deve ser fechado. Agora, minha pergunta sempre foi essa, agora que eu estou vivendo esta situação, é o seguinte: quem fecha? Entendeu?

Caio Rosenthal: Hum, hum [concorda]. E quem fecha os bancos de sangue clandestinos?

Herbert de Souza: Exatamente.

Vitalina Dias da Silva: Mas, eu só queria dizer uma coisa. Essa medicina de grupo, realmente, elas só tratam doente bom, porque qualquer doente crônico não é aceito. Porque qualquer doente crônico não é aceito, hemofílico, outra, outra patologia...

Herbert de Souza: Exatamente.

Caio Rosenthal: Isso! Quimioterapia não se faz.

Vitalina Dias da Silva: Não, exatamente. Então, é na realidade uma terapia, é um tratamento para o doente são.

Herbert de Souza: É... quando você não precisa, você passa no seguro, né?

Caio Rosenthal: Perfumaria. É uma perfumaria.

Herbert de Souza: Exatamente.

Vitalina Dias da Silva: Então é fácil né? Porque o doente, o hemofílico, por exemplo, não é aceito em convênio algum.

Caio Rosenthal: Porque é caro. É caro e não dá lucro, essa é a verdade.

Vitalina Dias da Silva: Herbert, eu queria dizer uma coisa para você. A gente realmente está passando por uma fase muito triste, muito difícil, a gente tem buscado dar esperança numa situação desesperada para essas mães, para essas crianças... e eu tenho me debatido aqui em São Paulo... às vezes a gente conversa né... e, na realidade, eu tenho pedido, inclusive, para que o governo abra um lugar para que o pessoal do grupo de risco faça exame. Porque, na realidade, o que está acontecendo com o banco de sangue é o seguinte: muita gente do grupo de risco é pobre, não tem dinheiro para custear um exame que custa cinco, dez mil. E fica mais fácil ir para um banco de sangue e doar o sangue, e nisso ele tem o resultado. Agora, se ele doar num lugar que faça o teste, tudo bem, nós estamos salvos. Se for doado o sangue num lugar...

Herbert de Souza: Que não faça o teste...

Vitalina Dias da Silva: Que não faça o teste, realmente, vai acontecer, exatamente...

Herbert de Souza: E está acontecendo no Rio também.

Vitalina Dias da Silva: ...acho que no Brasil inteiro, porque um terço do sangue que é colhido no Brasil é examinado. Inclusive, vamos supor assim, isso fica até como uma denúncia, o governo não importa nem kit suficiente para fazer todos os testes das doações e nem existe ledorf para esses testes. Na grande maioria do interior de São Paulo, muita gente no interior de São Paulo, muitos bancos de sangue não conhecem nem o ledor, você imaginou em outros lugares, em outros estados mais pobres.

Herbert de Souza: Aí não é de se estranhar, não, é que a cada dez meses o número de casos dobra.

Vitalina Dias da Silva: Eu queria fazer uma pergunta dentro disso. O que você acha... como faríamos para que esse grupo de risco..., qual sua sugestão para que esse grupo de risco não doasse sangue ou doasse num lugar [próprio, que faça o teste]? O que você sugere, no que você ajuda a gente?

Herbert de Souza: Olha, eu acho que nós estamos pegando a coisa pela rama, que é o cara que está achando que tem [aids] e que quer fazer o teste. Eu não consigo admitir que a opinião pública brasileira, que os partidos políticos, a mídia... eu não consigo admitir que a sociedade aceite uma situação dessas.

Maria Victória Benevides: Está aceitando.

Herbert de Souza: Hoje, estou travando uma luta, né? Aí dizem assim: “A sua luta”. Falei assim: "como minha? Eu sou é vítima".

Maria Victoria Benevides: Betinho, você tem que deixar claro que é luta política. O apresentador [Antonio Carlos Ferreira] falou que você teve uma militância política importante, e que agora está em outra frente. Eu acho importante você deixar claro que é outro tema da frente, mas é uma frente política tão importante quando tudo o que você fez até hoje.  Quer dizer, por que os políticos estão tão indiferentes? Porque acham que é problema dos outros?

Herbert de Souza: O presidente da República [José Sarney, presidente de 1985 a 1990] é o primeiro responsável. O vice-presidente - que a gente não tem, né? [Sarney era o vice-presidente de Tancredo Neves, que morreu antes de assumir. O vice assumiu a presidência e o Brasil ficou sem vice-presidente durante esse período. Em caso de ausência de Sarney, o presidente da Câmara assumia] - seria o segundo. Os presidentes dos partidos são responsáveis.

Caio Rosenthal: O ministro da Saúde [Luiz Carlos Borges da Silveira, que assumiu em 23 de novembro de 1987 e ficou até 15 de janeiro de 1989]?

Herbert de Souza: O ministro da Saúde é arqui-responsável, os governadores são responsáveis, os prefeitos... e nós vamos chegando até o cidadão. Eu diria: você é responsável, eu sou responsável. Então nós estamos vivendo um problema de luta pela cidadania, e uma das dimensões dramáticas de luta pela cidadania no país é a saúde. Porque é quando você vê teu filho morrer ou tua esposa morrer, ou teu parente morrer...

Maria Carneiro da Cunha: Escute, houve toda uma tentativa de fazer com que a aids se tornasse um estigma. Então, de culpabilizar as pessoas que estavam doentes, né? Se falava em "câncer gay", quer dizer, grupos que já são discriminados habitualmente e... Eu gostaria de saber a que você atribuiu isso, e eu gostaria que você dissesse se há discriminação contra o aidético e por quê?

Antonio Carlos Ferreira: Antes disso, tem algumas perguntas de telespectadores que vão ajudar um pouco a esclarecer... Porque eu já disse no começo como que você contraiu a aids, mas alguns telespectadores não pegaram isso. Então, eu vou ler algumas perguntas aqui e depois você responde a pergunta da Carneiro de Cunha, por favor. O José Paulo Ferreira, de Sumarezinho: primeiro ele faz uma pergunta de identificação mesmo, ele pergunta se você é realmente o irmão do Henfil da música da Elis, O bêbado e a equilibrista [música de João Bosco e Aldir Blanc, eternizada na voz de Elis Regina, onde no final da segunda parte ouvimos: “...meu Brasil. Que sonha com a volta do irmão do Henfil. Com tanta gente que partiu, num rabo de foguete”].

Herbert de Souza: Sou.

Antonio Carlos Ferreira: Realmente é o irmão do Henfil que está na música. A segunda pergunta do Fábio Conceição Araújo, da Ponte Rasa, na capital: ele pergunta de que forma você contraiu a aids. Portanto, não ficou claro ainda essa questão de como se contrai a aids no caso de um hemofílico. E depois a pergunta do Marcelo Gomes, de Tremembé, que quer saber qual foi o sintoma que te levou a desconfiar que estava com aids. Em seguida a gente entra no tema da discriminação.

Vitalina Dias da Silva: Acho que também tem que dizer que ele é portador do vírus, ele não está com aids.

Herbert de Souza: É eu, eu sou irmão do Henfil por parte de pai e mãe. [Risos] É...

Vitalina Dias da Silva: E de um monte de irmãos, né?

Herbert de Souza: E mais sete irmãos. Eu fui contaminado, eu fui infectado pelo vírus. Eu sempre tomei transfusões de sangue desde pequeno. E tomei depois, mais recentemente, nos últimos anos, o que a gente chama de fator oitavo, que é um derivado do sangue, uma proteína derivada do sangue para coagulação. Ao longo desse período, não sei bem exatamente quando...

Antonio Carlos Ferreira: Mas todos os hemofílicos são obrigados a esse tipo de tratamento?

Herbert de Souza: São e devem tomar sempre que tem uma crise, uma hemorragia, qualquer acidente... São praticamente obrigados a tomar isso, é quase inviável um hemofílico que não toma transfusão, principalmente hemofílicos graves como eu. Bom, então, ao longo desses anos, creio que aí por volta de 1982 mais ou menos - é a hipótese que eu levanto, eu devo ter sido contaminado em 1982. Existe uma teoria, o doutor poderia dizer melhor que eu, de que quando a pessoa é infectada ela tem algum tipo de manifestação. Pode ser uma gripe que demora dez dias, ou uma reação tipo mononucleose [é uma doença caracterizada por febre, dor de garganta e tumefacção dos gânglios linfáticos, causada pelo vírus de Epstein-Barr, conhecida popularmente como “doença do beijo” ou “doença dos namorados” pois seu contágio se dá pela saliva, mas também pode ser adquirida por uma transfusão de sangue contaminado], e não sei o que e tal. Eu me lembro que em 1982 eu tive uma gripe que durou dez dias, e que foi embora... Então, eu localizo mais ou menos o tempo em 1982. Mas eu não tenho manifestações da aids. Quem teve manifestações da aids foram os meus outros dois irmãos. Se eu vou ter ou não esse é um problema que hoje depende de loteria, quer dizer, dependo de sorte. Se eu continuar com sorte eu tenho uma porcentagem, que varia de acordo com alguns autores ou pesquisadores, que eu possa não vir a ter. Eu estou correndo contra o tempo, né? Por isso que eu acredito que tem que haver cura, porque quando chegar a cura talvez meu tempo esteja vencendo.

Antonio Carlos Ferreira: E você é otimista com relação a cura?

Herbert de Souza: Ah eu tenho que ser... Eu sou. Eu acho que a concentração de pesquisa, a concentração de esforços, a concentração de atenção que está sendo dada à aids, em termos de doença jamais foi dada na história da humanidade. E tem mais: se nos próximos sete anos a humanidade não conseguir a cura ou vacina da aids nós vamos estar diante de uma catástrofe absolutamente indescritível.  Agora eu queria responder a pergunta...

Ricardo Kotscho: É que a gente falou no Henfil agora, para a gente não perder o rumo... Muita gente, eu tenho a impressão, gostaria de saber como ele está, né? Porque se fala muito, ele é uma pessoa muito famosa, e você como irmão poderia esclarecer melhor. Como o Henfil está hoje? Está fazendo os cartoons dele ainda? Como é que está o Henfil?

Herbert de Souza: Nós tivemos, no início..., eu particularmente tive muito cuidado em dar notícias sobre ele. Porque cada pessoa, diante da questão da aids, reage de forma diferente, né? Eu infectado, quando descobri que esta é uma luta social, uma luta política... e que eu não tinha o direito de morrer clandestino, quando eu vi muitos amigos meus morrerem clandestinos, não é? Então, eu resolvi dizer que eu estava infectado e assumir isso publicamente. O meu outro irmão, Francisco, também assumiu. Ele é músico, ele é hemofílico, ele foi infectado e ele tem manifestação; e ele assumiu. O Henfil sempre lutou imensamente contra a doença. O Henfil nunca assumiu que era hemofílico. Então, quando ele se viu diante da questão da aids, ele também não quis assumir. Mas a aids chegou, ele foi contaminado e a aids se manifestou nele de forma dramática, porque ele tem uma infecção pelo vírus no sistema nervoso central. Ele está há quatro meses em processo de paralisação, ele hoje está praticamente totalmente paralisado. Ele não fala, nós não sabemos se ele tem consciência ou não - ou o nível de consciência que ele tem, porque ele não tem a fala para expressar, ele não tem os movimentos do corpo para expressar. Quer dizer, é esta a situação que ele está vivendo. O que eu digo para mim mesmo quando eu estou numa situação como essa: “Bom, isso tem que ter um preço, as pessoas não podem morrer assim”. E ele foi contaminado por sangue. E esse sangue está contaminando pessoas hoje, aqui, agora. Não só hemofílicos, está contaminando crianças, está contaminando mulheres, homens, jovens, velhos. E quando você vê, quer dizer... o Brasil não pode ver a morte dele, que ele está tendo uma morte num hospital. E nós não vamos abrir o hospital para que o Brasil veja a morte dele, mas eu quero dizer que ele está morrendo assim. Agora, outras pessoas já morreram, Leon Hirszman morreu assim, outras pessoas morreram, estão morrendo de forma dramática. E enquanto isso nós temos uma espécie de irresponsabilidade pública, entende? E aí vem, ainda existem pessoas que ainda se dão ao luxo de fazer discriminação contra aidético, quer dizer, quem tem culpa é o aidético. Então dizem: “A aids é uma doença do homossexual”. Não, homossexual não tem culpa da aids, ele é uma vítima da aids, hemofílico é uma vítima da aids. E as pessoas que usam essa discriminação contra o doente estão revelando uma insensibilidade humana. Uma falta de ética humana, perderam o sentido do que é o ser humano.

Maria Carneiro da Cunha: Tem uma personalidade aqui de São Paulo que diz que eles deveriam ficar concentrados em campos de concentração. Eu acho que é uma manipulação violentíssima da paranóia pública.

Herbert de Souza: Pois é, porque dá margem a manifestação de tipo fascista de todo tipo.

Inês Knaut: Betinho, dentro dessa leitura política do atendimento a aids eu queria que você explicasse o que está ocorrendo hoje no Rio e São Paulo. E acho que você deve acompanhar isso, que está acontecendo no eixo Rio-São Paulo, de disputa política no atendimento ao aidético, atendimento nos serviços públicos. Me parece que está havendo uma polarização entre setores de direita e de esquerda para ocupar os postos-chaves no atendimento.

Herbert de Souza: Bom, se tiver havendo isso é uma coisa terrível, porque é mais um vírus que nós vamos ter que enfrentar. E eu quero te dizer o seguinte, eu acho que nós já estamos vivendo uma situação dramática. Eu imaginava que nós íamos enfrentar a questão, o drama, nos próximos três anos. Eu pensei: bom, nós estamos com, digamos, três mil casos no Brasil, esses três mil casos são totalmente subestimados - digamos que seja seis mil, não é? A maioria deles, 80%, está concentrado em São Paulo e Rio. Então eu disse: muito bem, digamos que sejam dois mil casos ou três mil casos, então a rede pública e privada dividida entre si ainda teria condições de fazer algum tipo de atendimento. Bom, se começar dobrar a cada dez meses, com mais dois ou três anos nós vamos ter pessoas morrendo de aids nas porta dos hospitais, nas igrejas, nas casas. Bom... Eu estou chegando a uma percepção, eu quero que seja errada, que nós já estamos vivendo esse problema. Porque tem mais de quinze dias que eu só escuto de médicos da área e de hospitais que não têm mais leitos para internar pacientes.

Inês Knaut: Isso é falta de vontade política?

Herbert de Souza: Falta, e nos hospitais públicos falta de leito. Por exemplo, no Hospital Universitário do Rio de Janeiro foi feita uma unidade para atendimento com 12 leitos, tem 19 pessoas internadas. E o doutor Walbert que, aliás, é meu médico também, disse que não tem um dia que ele não receba três pedidos de pessoas ricas pedindo lugar para ser internado. E que ele não atenda no consultório dele mais três casos de aids.

Caio Rosenthal: Mas isso é fruto daquilo que a gente estava falando... Porque as medicinas privadas não atendem aids.

Herbert de Souza: E não atendem.

Caio Rosenthal: Então drena tudo. No caso de São Paulo para o Emílio Ribas. O Emílio Ribas tem constantemente, diariamente, cerca de dez, doze pacientes embaixo no pronto socorro, em cima de uma maca, onde ficam três ou quatro dias esperando uma internação lá em cima. Quer dizer, o que significa isso? Esperando uma morte lá em cima para ele poder subir numa enfermaria. Agora, os hospitais particulares não internam, é raríssimo. Em São Paulo, ao que me consta, tem um hospital particular só que interna, caríssimo. Totalmente inacessível.

Herbert de Souza: A rede particular é majoritária.

Caio Rosenthal: A rede particular é majoritária, os convênios de saúde não internam, então, drena tudo para o Estado, e o Estado não tem condições de arcar sozinho com tudo, realmente é um problema seriíssimo mesmo. Agora, eu só queria fazer uma pergunta..., tenho uma enorme curiosidade, eu sinto muito lhe usar nesse sentido, porque eu tenho muito contato com pacientes, e muito contato com indivíduos que são portadores do vírus, e agora eu queria aproveitar esta oportunidade, não como médico, mas como um cidadão, eu queria saber o que você espera do médico? Você que não está doente, você que é portador de vírus, o que você espera do seu médico?

Herbert de Souza: Quando eu me vi diante desse problema, eu criei uma santíssima trindade para mim. Eu peguei o ginecólogo da minha companheira, da minha mulher, e o nomeei meu clínico. Porque ele é um grande praça, um grande amigo etc. E também porque eu acho que eu preciso é de um amigo. E uma pessoa que saiba até quando é válido viver. Porque eu acho que a aids recoloca mil problemas, um delas é esse. Acho que a vida a qualquer custo não tem sentido. Eu não troco a vida por um sofrimento ilimitado. É... Então, eu peguei esse amigo e disse: "você vai ser o regente da orquestra aqui". [Orquestra com] Um infectologista, que é doutor Walbert, e um psiquiatra. Um cuida do vírus, um cuida de mim, outro cuida da alma, né? E acho que é assim que eu, por exemplo, tenho enfrentado isso. Quer dizer, o que eu espero dessa "santíssima trindade" é que cada um cumpra seu dever e que eu consiga me safar.

Antonio Carlos Ferreira: Betinho, vamos conversar um pouquinho agora sobre medicamentos. Tem três perguntas de telespectadores neste sentido, o Antônio da Silva Xavier aqui do Pari, ele diz: “Até que ponto o governo do Brasil está providenciando um remédio contra a aids?” Lúcia Ferreira, do Butantã, quer saber o que você acha da droga AZT [a Zidovudina é usada como um antiviral e age diretamente em uma substância existente em nosso organismo, chamada de protease, responsável pela sobrevivência do vírus quando deixa a célula na qual foi criado e impede a infecção de células sadias. Na época, era praticamente o único medicamento utilizado no combate ao vírus]; e Antônia Ribeiro de Ermelino Matarazzo, quer saber onde você compra os seus remédios.

Herbert de Souza: Eu, felizmente, não estou comprando remédio nenhum, né? Atualmente eu estou tomando um remédio todo dia que chama cerveja, que eu aconselho a todo mundo. Aliás, está provado que é uma grande medicação. [risos]

Antonio Carlos Ferreira: Mas... quando você compra os remédios para seus irmãos, por exemplo?

Herbert de Souza: Mas aqui tem um problema sério. O governo brasileiro, no caso o ministro da Saúde, aquele que saiu [refere-se ao médico baiano Roberto Figueira Santos, que foi ministro da Saúde entre 14 de fevereiro de 1986 e 22 de outubro de 1987], disse que tinha resolvido o problema da AZT. Não resolveu. A única coisa que fizeram foi dizer: não é mais ilegal comprar AZT. Foi só isso. Porque o governo brasileiro não pôs o AZT no Brasil, que é única forma de você ter o AZT. De que me adianta dizer que eu tenho AZT nos Estados Unidos? Primeiro que Estados Unidos é outro país, é bom que o ministro saiba disso; segundo que você nos Estados Unidos para comprar AZT tem que ter um médico americano, que faça a receita, uma pessoa para comprar, para pôr no avião e para mandar para você. Além do mais você precisa ter nove mil dólares para comprar, por um ano.

Antonio Carlos Ferreira: AZT ajuda de alguma forma?

Herbert de Souza: O AZT, pelo que dizem nos congressos internacionais, na literatura médica - está aqui um médico que trata da questão pode dizer isso melhor que eu -, mas, pelo que eu sei, AZT ainda é uma das drogas testadas que não curam a aids, mas que dão ao aidético uma perspectiva de prolongamento da sua vida sem que ele seja infectado permanentemente pelas infecções oportunistas. Portanto, é um tempo, é uma espécie de dez meses, um ano que a pessoa ganha a futuro, que é este tempo precioso para ele jogar com a esperança da cura. Portanto, eu considero que é um dever da sociedade brasileira dar ao aidético brasileiro essa chance. Agora, não adianta dizer que está dando a chance simplesmente porque liberou e disse: "Não é mais contrabando”. Eu estava fazendo contrabando. Agora, imagina que coisa fantástica, quer dizer, para comprar para o meu irmão o Francisco eu tive que arranjar um amigo nos Estados Unidos que deu uma receita. Foi todo um esquema, parecia um esquema internacional para trazer AZT para cá, quer dizer, para trazer remédio para uma pessoa. Agora, o nível de cinismo que as vezes eu vejo..., entende? Em certos discursos oficiais [o cinismo] é fantástico, porque eles vão para a televisão, dizem que resolveu, todo mundo acha que resolveu. Não resolveu. Eu estava conversando aqui, antes, com o doutor Rosenthal e ele disse que não consegue AZT. No entanto, está resolvido.

Caio Rosenthal: Você está tomando AZT, não?

Herbert de Souza: Eu não.

Caio Rosenthal: Eu acho que é importante também colocar isso, né?, que o AZT não é a droga milagrosa que está aí. O AZT tem suas indicações e são muito limitadas as indicações. Então, eu também tenho medo de quando for acessível o AZT aqui no Brasil, que o uso seja indiscriminado. Quer dizer, qualquer pessoa vai consultar o médico, o médico chega, faz uma receita irresponsavelmente e dá uma falsa esperança para o paciente.

Herbert de Souza: Agora, eu acredito..., não que exista esse perigo, porque primeiro vai ser difícil ter AZT aqui...

Caio Rosenthal: Quando, quando ele for legalizado aqui.

Herbert de Souza: Segundo que vai ser muito caro, muito caro. A não ser, o que é a minha tese, é que o Inamps [Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social, era o antigo sistema de medicina pública brasileiro] compre AZT, coloque AZT nos hospitais de referência , sob controle dos médicos...

Caio Rosenthal: Isso nos hospitais de referência, exato.

Herbert de Souza: E aí tratar os pacientes.

Caio Rosenthal: Mas está havendo uma discussão muito grande a nível ministerial para quem vai manipular o AZT. Quer dizer, provavelmente, ao que tudo indica, vai ser de domínio público isso.

Vitalina Dias da Silva: O ministério se posicionou bem claro que não vai comprar AZT, né Betinho?

Herbert de Souza: Hein?

Vitalina Dias da Silva: O Ministério, se posicionou bem claro, ele não vai comprar...

Caio Rosenthal: Não, ele vai tirar o ICM [Imposto sobre Circulação de Mercadorias], os impostos da importação.

Vitalina Dias da Silva: O Betinho se posicionou bem, ele mostrou como é tratada a saúde pública no Brasil: cada um que se vire, se você tem dinheiro para comprar, você pode comprar a esperança do AZT. Se não, você pode morrer, o governo não está ligando.

Herbert de Souza: Sabe como é que eu estou comprando AZT? Como nós estamos conseguindo dinheiro para comprar AZT para o Chico? Através da solidariedade dos amigos! Agora, você viver a custa da solidariedade... Entende? Quando [isso] é um direito do cidadão, um direito da pessoa ter o tratamento.

Vitalina Dias da Silva: Isso mostra bem como é tratada a saúde pública, o conceito saúde pública do Brasil. Cada um que se vire!

Antonio Carlos Ferreira: Agora Betinho, acabou de chegar uma pergunta aqui, do Ivan Moura Garcia do Horto Florestal, perguntando se vocês não pensaram em fazer algum tipo de mandato de segurança contra o governo para conseguir o AZT, se existe alguma forma jurídica.

Herbert de Souza: Olha, eu uma vez eu até disse no Jornal do Brasil que eu até processaria o governo. Mas depois eu achei que o governo estava tão desmoralizado, sabe?, que não valia a pena. Eu tinha coisas mais importantes a fazer que processar o governo, porque até para fazer alguma coisa dessas você tem que ter alguém contendor de peso, né? Quer dizer, na verdade a gente está metido com uma série de lutas simultâneas, como essa dos medicamentos, dos leitos, contra a discriminação, pela educação - que é uma coisa que a gente se bate. A sociedade brasileira não está informada, as campanhas que foram feitas a respeito da aids são campanhas pífias, são campanhas que desinformam muitas vezes, que criam medo e até estimulam o preconceito. Nós tínhamos que fazer uma campanha..., a minha idéia de uma campanha era a seguinte: um dia, começaria às oito horas da manhã até a meia-noite, em cadeia nacional, [e] se daria uma aula de aids para a sociedade brasileira. Um audiovisual sobre isso vale muito mais do que você ficar aí, fazendo esses meio minuto de não sei o quê, “aids mata”, ou “cuide disso, cuide daquilo”.

Maria Victória Benevides: Betinho, como você explica esse descaso dos políticos, das autoridades em geral, se afinal de contas a aids não é uma doença que está pegando só os pobres. Porque nós sabemos que em relação aos pobres é aquela desgraça mesmo, pobre não tem educação, pobre não tem acesso à Justiça, pobre não tem moradia, pobre não tem transporte decente, salário e emprego justo e decente, isso já é uma utopia. Mas a aids nós sabemos que está atingindo pessoas de classe média e de classe alta, quer dizer, está atingindo até mesmo pessoas que podem ser parentes dessas autoridades, desses políticos. Por que esse descaso, essa negligência, essa omissão criminosa do poder? Eu acho que ficou claro aqui como essa é uma questão política. Se nos outros países não é o que está acontecendo - e se você mesmo falou que está havendo um progresso da ciência nesse sentido - quer dizer, esse atraso do Brasil em encarar esse problema como um problema político das autoridades, dos políticos em geral, de todas as pessoas responsáveis, entidades, associações e tudo... E você citou até mesmo uma parcela da Igreja, que em princípio deveria ser o primeiro samaritano. Como é que você explica isso? Porque, por exemplo, em relação ao césio de Goiânia foi essa grande movimentação nacional? [Caso césio] Afinal de contas foi para um grupo razoavelmente restrito.

Herbert de Souza: O césio, além de radioativo é colorido, ele tem luz. Eu acho que foi uma espécie de audiovisual aí, as pessoas viram, as pessoas não estão percebendo que, em cada transfusão, tem uma bomba de césio.

Maria Victória Benevides: Uma bomba de césio, exatamente.

Herbert de Souza: Que a transfusão é uma bomba de césio. Aliás, pior, porque tem certas pessoas que foram contaminadas [pelo césio] que vão ficar boas, agora com a aids até que haja cura vai ser um problema. Às vezes me pergunto, por exemplo, quando um ministro da Saúde, aquele anterior - que este não sei o que ele está fazendo [refere-se a Luiz Carlos Borges da Silveira] - falava a respeito de aids, ou mesmo pessoal do ministério falava, dizia assim: “Mas eles estão falando de quê?” Será que esse pessoal sabe distinguir uma endemia de uma epidemia? Será que esse pessoal sabe o que é uma epidemia? Porque eles falam assim "Não, o número de casos é muito pequeno!" Mas, vem cá, o problema da epidemia é exatamente esse, começa com número pequeno que vai dobrando a cada dez meses, e vira uma coisa absolutamente insustentável. Então, será que não percebem que é exatamente agora que se tem que conter, porque é exatamente uma epidemia? Eu acho que o governo brasileiro nunca soube o que é uma epidemia nesse sentido. Segundo, estou convencido de que existe uma irresponsabilidade política manifesta no caso da saúde. Assim como existe em vários outros campos. Por exemplo, não fazem a reforma agrária, não fazem isso, não fazem aquilo; na saúde, exatamente. É um problema e essa é minha tese: no Brasil, nós ainda não conseguimos ter um governo nacional. Isto é, um governo que cuide da nação, sabe?, que tenha a nação como sujeito dela, para falar assim: “Eu vou cuidar de quê? Da dívida? Não, mas vem cá, não tem aqui uma população, essa população não precisa comer, vestir, cuidar da saúde, alimentação etc?” Esse não é o compromisso político básico, fundamental de um governo? Depois que ele resolve essas questões ele pode até, não é?, fazer outras coisas. Agora, essas coisas que são as coisas fundamentais, eu acho que elas não fazem parte do programa político do governo nacional. E isso por quê? Porque nós não temos um governo nacional, o nosso governo ainda tem que ser nacionalizado.

Caio Rosenthal: Inclusive existe, na Constituinte, o lobby da medicina de grupo. Existem deputados interessados em manter a situação, o status quo.

Herbert de Souza: Está havendo agora.

Caio Rosenthal: Para manter a mercantilização como está não interessa a eles abrir o atendimento ao público, é caro.

Maria Carneiro da Cunha: Sobre essa questão ai do césio que vocês fizeram em paralelo... Eu li numa entrevista daquele médico americano, que esteve aqui tratando das vítimas do césio, e ele declarou que ele usou para proteger o sistema imunológico de uma das pacientes uma droga que foi um subproduto da pesquisa da aids. Então, eu gostaria de fazer a seguinte pergunta: se coloca a aids assim, num quadro muito catastrófico, mas será que as pesquisas de aids também não podem ajudar a cura de outras doenças?

Herbert de Souza: Claro, claro.

Maria Carneiro da Cunha: As pesquisas que estão se fazendo, não pode ajudar a cura do câncer, todas essas outras?

Herbert de Souza: Eu acho que a aids é uma doença... eu desenvolvi um pouco essa idéia antes que era a seguinte... Os médicos, os cientistas vão me perdoar porque eu sou cientista político, não entendo disso. Mas um pouco a minha visão da coisa era o seguinte: até a aids a doença nos atacava de fora, e você podia se defender dela. Os vírus, nós estarmos cercados de vírus por todos os lados, bactérias por todos os lados; agora, o nosso sistema imunitário, ele se defende, ele luta e você acaba vencendo ou não. Mas, de todo jeito, a humanidade tem essa arma. E isso é que explica porque que pobre sobrevive. Porque se pobre tivesse que tomar remédio para poder sobreviver nós não teríamos um pobre mais no Brasil. Quer dizer, ele vive através do sistema imunitário. Mas esse vírus - que eu chamo de um vírus covarde, sem caráter, vagabundo etc. etc. - esse vírus, fraco né?, esse vírus entrou no sistema imunitário e desarmou o sistema imunitário. Então, ele está exigindo que a ciência médica moderna tome o sistema humanitário como o centro da pesquisa científica. E, no momento que a gente resolver isso, vai estar resolvido a aids. E eu acho que dezenas, centenas de outras enfermidades.

Maria Carneiro da Cunha: Pelo menos um aspecto positivo, né?

Herbert de Souza: Então eu acho que a aids, nesse aspecto, é a doença que desafia e que diz para a ciência o seguinte: ou você me decifra ou eu te engulo.

Maria Carneiro da Cunha: A sociedade com medo, ela investe em tudo, né?

Herbert de Souza: Exatamente.

Humberto Pereira: Eu queria fazer uma pergunta aqui, que dá uma girada aí.

Herbert de Souza: Eu dou uma girada também...  [girando a cadeira para ficar de frente para Humberto] [Risos]

Humberto Pereira: Eu te conheço desde o tempo que você teve tuberculose, que foi uma outra doença que você teve que vencer na adolescência, na juventude - aliás, quando ainda não tinha a cura e você lutou contra o tempo, até que apareceu a hidrazida [antibiótico]. E eu acho que a sua lucidez política é tão extraordinária quanto a sua capacidade de sentir o ser humano que você mesmo é, que seus irmãos são, e que todo mundo que está a sua volta é. Esse ser humano Betinho, ele está numa situação de família, que é a célula da nossa sociedade mais próxima, mais íntima, que pode ocorrer com qualquer um de nós. Você teve além da família, você acompanhou os últimos momentos do Leon Hirszman - que é da sua geração, com quem você fez cinema. Você foi cineasta também. Essa coisa para você como ser humano: é amargo demais, dá para agüentar? Como é que é essa luta sua, a luta pessoal, não a política. Uma entra, uma compensa a outra? Como é que é isso?

Herbert de Souza: Olha, eu acho que a aids me pegou de jeito. É o chamado golpe baixo, né? Porque eu dizia: bom, hemofilia já era suficiente, basta. Hemofilia já é demais, a hemofilia é uma doença que castiga muito a infância, né? Quando você escapa da infância, você ainda sofre um pouco na adolescência, mas quando você atinge a idade madura, você começa a dar adeusinho para ela. Quando você consegue ter a sorte de chegar, como eu, 52 anos, vivo, então..., quando chega junto disso a aids. E nos pegou os três juntos, simultaneamente, quer dizer...

Humberto Pereira: É possível que seja um caso único no mundo até, o de vocês...

Herbert de Souza: Quer dizer, uma coisa realmente... Eu não quero em nenhum momento passar idéia de herói, tá? Não sou, tenho medo, tenho todas as coisas que as pessoas comuns e correntes sofrem. Agora, existe uma coisa aí muito dura. O Henfil e o Chico a meu ver começaram a manifestar a doença simultaneamente. Eu diria que foi no mesmo dia. Porque um adoeceu, outro adoeceu, a ponto de um não poder ir visitar o outro. Então, eu dizia: “pô, mas é demais!” É uma espécie de golpe forte, que dói. Agora, o fato de eu estar lutando alivia, entende? Por exemplo, quando eu estava naquela luta com o ministro da Justiça, cada besteira. ...da Saúde, esse também. [Risos] Mas o da Justiça... Quando cada besteira que ele falava me dava um ânimo, sabe? Eu agradecia a ele, porque eu falava assim: "pô, agora você me deu mais uma razão para seguir”. Porque se você se concentra só na dimensão da tragédia, você afunda com ela. Então, por isso é que, inclusive, o fato da gente transformar isso, como disse a Benevides, numa luta política, dá uma outra dimensão. Mas você está sempre vivendo o problema do limite. A aids obriga não só a ciência a se repensar, e a ciência médica se repensar, como acho que obriga a cada um de nós se repensar também. A dizer assim: bom, nós todos somos mortais, não é?, então vamos enfrentar a morte, vamos viver sabendo que somos mortais. Porque o doutor Rosenthal, com toda a saúde que ele tem, ele é mortal, ele vai morrer tanto quanto eu vou morrer. Então a morte é um problema para ele como é para mim. Portanto a nossa questão não é a morte, é a vida.

Ricardo Kotscho: Betinho, por favor, Betinho, tem uma pergunta que é exatamente em cima do que você está falando, de um grande amigo nosso, o frei Beto, que está na Inglaterra, em Cambridge. Eu falei hoje à tarde com ele por telefone, e ele mandou uma pergunta para você que é exatamente sobre esse assunto que o Humberto levantou agora. A pergunta é essa [lendo]: “Betinho, por que você tem tanto amor à vida, e tão pouco medo da morte? De onde vem essa força”?

Herbert de Souza: Bom, eu acho que se eu for olhar na minha biografia, a convivência com a morte foi muito grande. Eu às vezes até fico pensando que a maioria das pessoas chega à sua primeira doença sem nunca ter pensado nesse assunto. Tem gente que adoece aos trinta anos, aí é [que] vai dizer assim: “Poxa, tem morte!” Só vivem a saúde. Eu vivi doença desde que nasci. Portanto, doença e morte. Bom, além do mais eu tive um pai que era... a minha história é fantástica, porque meu pai trabalhou numa penitenciária. Daí que eu comecei minha carreira política na Penitenciária de Neves [fica na regição metropolitana de Belo Horizonte], né? Eu vivi minha infância numa penitenciária, ele era funcionário.

Humberto Pereira: O Henfil nasceu lá, né?

Herbert de Souza: O Henfil nasceu dentro da penitenciária. Bom, depois ele saiu de uma penitenciária e foi ser diretor de uma funerária. Então, eu passei parte da minha infância e a minha adolescência numa funerária, o Henfil também. A gente brincava com caixão, essas coisas todas, entendeu? Então, a questão da morte, doença, morte etc., ela está aí inclusive na biografia, está no contexto. Bom, essa é uma dimensão. Digamos assim que eu quando vejo um caixão não me assusto, eu sei fazer caixão. Se você quiser que eu faça uma urna para você eu sou capaz de fazer, sou capaz de montar uma funerária. Bom, com todo o respeito, né?, mas sou. [Risos]. É... entendo desse negócio. Agora, a hemofilia também deu essa gana de viver. Olha para o Henfil... o Henfil é um cara que tem gana de viver. Ponto dele, sabe? Ele não se dobrou a nada. Ele está se dobrando ao vírus do século, mas olha, tem quatro meses que ele resiste de uma forma incrível, absolutamente incrível. Então, eu acho que essa vontade de viver nasce exatamente dessa dialética, quer dizer, dessa relação no limite entre morte e vida. E de você saber que você está no... você está na...

Ricardo Kotscho: No fio da navalha.

Herbert de Souza: ...no fio permanentemente, mas isso é verdade para mim e é verdade para você. Quando a gente fundou a Abia [Associação Brasileira Interdisciplinar da Aids], uma das fundadoras, a doutora Marguerite, a doutora Peggy - grande figura, foi a quem trouxe o teste da aids para o Brasil, também de contrabando, debaixo do braço [Marguerite (Peggy) Pereira (1921-1987), virologista inglesa comtrabalhos na Fundação Osvaldo Cruz] - ela estava lá no numa reunião, e na reunião que me elegeram presidente eu falei assim: “eu aceito ser o presidente e a primeira vítima dessa sociedade”. E ela riu etc. Mas eu vi que ela estava muito emocionada com a situação, porque ela que fez meu teste, ela sabia que eu estava positivo. Pois bem, a doutora Marguerite, a doutora Peggy, morreu num desastre de automóvel há três meses atrás. Estupidamente. E aí, era absolutamente impensável para nós que fosse ela a ser a primeira e não eu.

Antonio Carlos Ferreira: Agora, Betinho, enquanto você estava fazendo essa sua intervenção nós recebemos algumas mensagens, eu vou ler algumas delas. Maria Bela, de Pirituba, diz o seguinte: “Na qualidade de ser humano, quero agradecer a sua garra, responsabilidade e amor. Com certeza você vai se salvar, você merece. Eu sou espírita e sei disso”. Maria Auxiliadora Arantes do Jardins, em São Paulo, manda uma mensagem para você, que a sua presença na televisão é muito corajosa, te manda um abraço. "Sou tua amiga de Belo Horizonte". E Regina Maria Tavares, de Santo Amaro, pergunta: “O que mudou na sua vida depois que você soube que estava contaminado?”

Herbert de Souza: Bom, eu acho que existem mudanças, algumas mudanças são bastante importantes, eu diria até... As pessoas que estão refletindo sobre esse assunto, realmente têm razão de se perguntar. A prática sexual depois que você está contaminado tem que ser cercada de todos os cuidados. Portanto, há uma mudança da prática sexual. Aí eu quero relatar o seguinte, eu fiz durante muito tempo campanha pela camisinha, porque eu digo: bom, se uma pessoa está contaminada, ela não vai parar suas relações sexuais. Então, que ela use camisinha. Bom, eu fazia essa campanha, mas eu mesmo ficava meio preocupado. Por quê? Por causa da qualidade das camisinhas. Todo mundo sabe que camisinha não é das coisas mais seguras do mundo. E esses pequenos detalhes acabam se transformando em questões muito pesadas na sua cabeça. Até que eu descobri uma coisa, que vem mais da aritmética do que das coisas. Falo assim: “bom, se uma camisinha é perigosa, use duas, se você tem dúvida de duas, use três. E assim sucessivamente”... [Risos] Um guarda-roupa! Mas o que você não pode é anular, aceitar o fim da sua atividade sensual, sexual etc. Essa é uma coisa que eu acho que muda, a liberalidade, por exemplo. Se você se considera liberado e tal, "Vou ter um caso"... Bom, os casos já começam a ser muito mais problemáticos. Depois tem uma outra questão que é levar mais a sério a própria vida. Você começa a pensar o tempo todo também de uma forma diferente, porque você começa a saber que talvez você não tenha tanto tempo. Então o tempo começa a contar mais apertado. Bom, agora no meu caso específico o que aconteceu é que meu trabalho triplicou, porque além da campanha de reforma agrária, do Ibase etc. eu passei a brigar com tudo quanto é ministro, a brigar com tudo quanto é hospital que não recebe etc.

Demócrito Moura: Eu tinha uma pergunta para fazer... Embora tenha demorado tanto tempo, eu trabalho em jornal, minha área é saúde, comecei a tratar de aids desde que surgiu, ou que a gente soube do primeiro caso de aids aqui em São Paulo. Mas com esse seu depoimento eu fiquei aqui mudo, eu não conseguia falar. Agora que estou conseguindo... a pergunta que eu faço é a seguinte: assim como você sente essa mudança em sua vida, você não sente em outros hemofílicos ou outros aidéticos alguma mudança? A pergunta fundamental que eu queria fazer é o seguinte: já que se percebeu que saúde é uma luta política, a luta pelo direito à saúde é essencialmente uma luta política, os outros hemofílicos, os outros aidéticos não tomaram consciência disso ainda?

Herbert de Souza: Olha, eu quero te dar um depoimento dos hemofílicos do Rio, né? Os hemofílicos do Rio, 80% deles são de origem muito pobre. Muito pobre e a maioria são crianças, que é uma das coisas que mais me corta. Porque além de virem de origem muito humilde, boa parte deles são meninos. Mas com essa última, essa luta, principalmente agora com a questão do hospital São Vicente, que atendia estes hemofílicos há dez anos e que resolveu não atender, pela primeira vez a Associação dos Hemofílicos está lá se mobilizando. Reuniram os hemofílicos, foram na 18ª Delegacia para fazer demonstração, entende? Vão realizar na próxima semana uma reunião com todas as famílias, para mobilizá-las para que elas participe. Não só, eu estava falando com algumas dessas mães e diziam assim: “A mãe nesta luta é fundamental, lembre se da Argentina, aquelas loucas de maio, nós estamos precisando de umas loucas aqui" [a referência é às Mães da Praça de Maio] Entende? Mães de hemofílicos ou mães de aidético, mães desses brasileiros que estão aí para participar disso. E eu estou achando - quer dizer, estou vendo -, estou percebendo da parte desse pessoal uma mobilização e um crescimento. Agora, eu já vi algumas reportagens de aidéticos homossexuais que se manifestaram publicamente. Eu acho que isso é um avanço, porque até então os aidéticos homossexuais viviam na mais absoluta clandestinidade.

Maria Carneiro da Cunha: Betinho, essa questão do comportamento está muito focada exatamente no comportamento do aidético. Eu gostaria que você falasse também em que a aids provocou mudança no comportamento geral. Quer dizer, não só dos aidéticos... Mas assim, como uma ameaça, inclusive por falta de informação e muita manipulação também.

Herbert de Souza: Olha, eu descobri um vírus que não está isolado em laboratórios, que é o vírus do medo, que é o vírus do medo da aids. Esse vírus já se propagou pela humanidade inteira. Tem milhões de pessoas contaminadas por isso. E é esse vírus que está mudando o comportamento das pessoas, em alguns casos de forma absolutamente irracional.

Maria Carneiro da Cunha: Você acredita que há manipulação nesse sentido também?

Herbert de Souza: Eu não acredito muito não, entende, eu acho que pensar que a aids é produto de uma manipulação em nível internacional etc....

Maria Carneiro da Cunha: Não, não nesse sentido. Mas no sentido que se atribuiu ao comportamento individual.

Herbert de Souza: Eu acho que questão aids está sendo disputada. Por exemplo, os conservadores estão disputando aids, entende?, para dizer que aids é castigo divino e para defender todas as suas teses conservadoras.

Maria Carneiro da Cunha: É isso. É isso.

Herbert de Souza: As pessoas avançadas, esclarecidas, estão tomando a aids, disputando a aids também para pensar as grandes questões de comportamento, de sexualidade, de sentido de vida e de morte. Acho que cada um de alguma maneira está tomando a aids e reelaborando muitas coisas. Agora, o que eu acredito é que esse medo, quer dizer, essa coisa meio irracional que se espalhou, esse é onde eu vejo o maior perigo. E eu tenho visto muitas demonstrações disso na juventude. Os adolescentes, muitos adolescentes neste país estão com medo imenso da aids, sem sequer saber de que estão tendo medo.

Maria Carneiro da Cunha: Então há manipulação?

Antonio Carlos Ferreira: Só um minutinho, nós vamos ter que voltar a esse tema, vamos ter que continuar, mas no momento nós vamos ter que fazer um pequeno intervalo no nosso programa, depois eu volto com a palavra, com o Demócrito. O Roda Viva volta já.
 
[Intervalo]

Antonio Carlos Ferreira: Nós voltamos ao programa Roda Viva, hoje entrevistando o cientista político Herbert de Souza. Na primeira parte do nosso programa, nas perguntas e algumas respostas levaram muito a questão para o aspecto político e numa crítica muito severa ao governo. Eu recebi algumas, alguns telefonemas de telespectadores que não concordam, acham que a questão foi muito politizada, inclusive algumas perguntas dizendo se, então, a aids seria culpa da direita? Coisa desse tipo. Eu vou ler apenas uma dessas perguntas, que [é] a Rosa da Silva, da Vila Sônia, que começa o seu telefonema dizendo assim: “Quero me solidarizar com você”. Mas diz: “Não se pode generalizar, existem casos de pessoas com excesso de drogas, de sexo, promíscuas até, que devem ter feito alguma coisa para haver essa discriminação. Tomei conhecimento de casais no Rio Grande do Sul, viciados em tóxicos, que nas ruas estão com seringas contaminadas picando os passantes nas ruas, ou de um presidiário que conseguiu sair da cadeia por estar com aids, porque ameaçou contaminar todo o presídio. A discriminação não veio desses casos também?” É a pergunta.

Herbert de Souza: Não, eu acho que é inegável... ninguém pode fechar os olhos ao fato que a sociedade brasileira - e a nível internacional, não é só Brasil - discrimina as pessoas pela suas idéias e pelos seus comportamentos. Pelos seus hábitos... E essa discriminação, no caso da aids, é muito mais grave, porque ela de alguma maneira busca justificar a doença, a morte, a falta de assistência e a própria, às vezes, até a perseguição que se fazem [a] essas pessoas, por causa das suas idéias e do seu comportamento. Quer dizer, nós estamos tocando numa coisa extremamente delicada, extremamente importante. Uma pessoa doente deve receber tratamento ou não por causa das suas convicções pessoais, práticas sexuais ou hábitos? Ou será que todo ser humano tem o direito inalienável de ser atendido, independentemente daquilo que pensa e daquilo que pratica? Acho que esta é a questão que está sendo colocada. Que no caso da aids a discriminação chegou, em alguns lugares há coisas assim, absolutamente incríveis. Por exemplo, nos Estados Unidos, uma família resolveu incendiar a casa de uma família hemofílica para tirar os hemofílicos daquele bairro. Então, é a isso que leva esse tipo de discriminação. Quando começam a dizer... alguém aí no Rio de Janeiro já disse que a aids era um castigo de Deus. Eu estou convencido que a aids é um vírus. Deus não tem nada que ver com isso.

Antonio Carlos Ferreira: Por falar em Deus, Betinho, seu depoimento eu acho que emocionou muitos dos nossos telespectadores, e recebemos uma série de perguntas com relação a Deus. Estela Picasso, de Imirim, pergunta se você acredita e recorre a Deus para conseguir coragem. Você acredita na vida após a morte? Nilze Lima de Ermelino Matarazzo: “Essa força interior que você tem vem de Deus? Você acredita em Deus?” Raquel Barbosa da Lapa: “Você acredita em Deus? Como um leigo pode trabalhar voluntariamente para os aidéticos?”
 
Herbert de Souza: Nossa, Deus está aqui presente. Bom, eu quero dizer - e Humberto é testemunha de que eu fui criado numa família mineira, que é talvez o estado mais religioso do Brasil, depois do Ceará né? -, e eu fui criado na Ação Católica, fui da JEC [Juventude Escolar Católica], da JUC [Juventude Universitária Católica] oito anos, meus grandes amigos e mestres foram padres. Um frei, Matheus, dominicano, que já morreu, um outro grande amigo, padre Vaz, jesuíta, enfim, eu tenho uma larga história pela Ação Católica etc. Eu, pessoalmente hoje, refletindo sobre essa questão da vida, da morte, de Deus etc., eu estou convencido de que toda pessoa tem que acreditar em alguns valores fundamentais. E é nisso que eu acredito. Quer dizer, eu acredito que valores de justiça, valores de solidariedade, valores de fraternidade... que deveriam ser, digamos, as bases da construção de qualquer sociedade, e para mim estes valores são eternos. Enquanto existir humanidade e a humanidade for capaz de tentar realizá-las, ela vai trabalhar nesse sentido. Nesse sentido eu não sou um pragmático, eu sou um utópico, quer dizer - e sou utópico assumido - eu gostaria de viver numa sociedade onde todos tivessem as mesmas oportunidades de felicidade, de trabalho etc. etc.

Antonio Carlos Ferreira: Inês, só antes..., só por dever meu... eu gostaria o que Demócrito fizesse a pergunta que ficou pendente do primeiro, da primeira parte do programa.

Demócrito Moura: A pergunta se liga ao que você estava acabando de falar: não pode haver uma sociedade sem solidariedade entre os integrantes dela. Não pode haver uma solidariedade sem esse senso de fraternidade entre os que convivem. Por causa disso eu pergunto: você sente, por exemplo, entre os hemofílicos, se está havendo, assim, um avanço no sentido de se organizar para reivindicar - entende? - para se exigir alguma coisa, não só para cada um, mas para todos. Porque à medida em que se exige do poder público que o poder público assegure o exercício do direito à saúde, a garantia do exercício do direito à saúde, não é só para um, vai ser para todos. Então, repito a pergunta: será que você está sentindo em alguma parte, em algum lugar, em algum segmento da sociedade brasileira, algum sentido de organização para se reivindicar o direito à saúde?

Herbert de Souza: Acho que existe. O Brasil tem um grande movimento torno da saúde. E eu acho que é no Brasil inteiro. Talvez seja um dos setores que tenha se organizado mais para fazer propostas, inclusive na Constituinte, tenha sido o setor saúde. E é uma luta imensa, porque ela enfrenta interesses muito sérios, já instalados no sistema, no sistema tanto público quanto privado. Eu acho que existe isso. E me chama a atenção, agora, a partir da minha experiência, como realmente é rica a passagem da saúde para essa noção de cidadania de sociedade. E às vezes eu me pergunto por quê, e me parece que é porque a saúde te leva muito próximo da pessoa. Pense na experiência do cotidiano. Você está numa redação de um jornal, você está numa vida, numa empresa, em qualquer lugar; e você tem uma relação mais ou menos tranqüila com as pessoas. Mas ela pode ser meio superficial. Mas passe a cena para a sua família. E para seu filho de cinco anos e meio, como eu tenho, por exemplo, um. E ele tem um problema de saúde, ele começa a ficar doente. Você se transforma completamente. Agora, se falta assistência para essa criança, você fica louco. Eu acho que essa experiência do cotidiano que as pessoas sentem... Quantas vezes você tem um operário, por exemplo, que é não atendido num hospital vai e faz uma verdadeira revolução. Enquanto que, na fábrica, ele é totalmente submisso às vezes, e não reage como ele reagiu no hospital.

Antonio Carlos Ferreira: Betinho, só um minutinho, Humberto quer fazer pergunta, a Inês também, mas antes disso, para não perder a oportunidade... nós falamos muito em Deus aqui, nós temos uma pergunta gravada, pertinente ao assunto, que é do Cardeal Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. É uma pergunta que vai entrar por esse monitor, por favor.

Dom Paulo Evaristo Arns: Betinho, a Constituição vai chegar no momento de desencanto, de desânimo no nosso povo. Você acha que o povo brasileiro vai dar importância à Constituição que ela costuma ter em outros países? Você acha que vale mesmo a pena termos essa Constituição quando esperávamos bem outra coisa? O que você diz dela?

Herbert de Souza: Bom, eu ainda estou querendo ver. Porque eu não acredito ainda que ela vai sair tão ruim quanto se pensa. Quer dizer, eu quero ver a Constituição no momento final. Agora, se ela sair ruim, sair aquilo que nós não queremos, eu acho que a luta por uma nova Constituição começa aí. Quer dizer, ela recomeça exatamente no momento em que a sociedade tomar consciência disso. E, se ela sair boa, nós vamos querer que ela saia do papel para a realidade, porque essa é uma experiência também que nós temos do passado. Essa Constituição que passou tem vários artigos, vários itens, que nunca foram realizados e que são excelentes, mas que nunca foram realizados, né? Por exemplo, na Constituição, do próprio regime militar, todo operário brasileiro tinha direito a colônia de férias. E, na verdade, nunca freqüentou nenhuma. Agora eu acho, Dom Evaristo, que nós tivemos pela primeira vez na nossa história uma experiência coletiva de discussão sobre Constituição. Através, por exemplo, das emendas populares. Milhões de pessoas assinaram pelas emendas populares, milhões de pessoas participaram do debate da Constituição. Isso é um capital que ninguém tira. Essa é uma experiência acumulada que ninguém tira. É uma consciência nossa, é uma consciência da sociedade civil. Agora, eu creio que nossa história é um pouco ingrata conosco, mesmo nesse sentido. Nós, a sociedade, sempre fazemos a coisa boa, ou pelo menos fazemos muito melhor, não é? Agora, quando chega um determinado nível, a classe dominante, ou pelo menos o setores dominantes da classe dominante, sempre fazem uma resposta bastante pífia. Eu creio que mesmo que a Constituição seja ruim... aí eu diria como os portugueses: a luta continua, nós vamos seguir essa luta mesmo que leve duzentos anos.

Antonio Carlos Ferreira: Por favor, a Inês, que foi quem pediu primeiro a pergunta.
 
Inês Knaut: Betinho, você falou já na criminosa omissão nos bancos de sangue, você falou na criminosa falta de leitos para atender os aidéticos e no meio dessa entrevista aqui surgiu também o tema das grandes aflições das pessoas portadores do vírus ou das já contaminadas. Que receita que você dá, do ponto de vista político de serviço público, para cuidar das aflições das pessoas?  Parece-me que não tem exatamente nenhum serviço hoje cuidando das aflições. Existe só o trabalho clínico, digamos...

Herbert de Souza: Eu acho que existe... não quero dar uma receita, mas quero dar uma idéia... Eu acho que existe um remédio eficientíssimo para as aflições, é informação. Quer dizer, é isso que eu chamo de uma campanha educativa, informativa, nacional, consistente sobre saúde. E no caso especificamente sobre Aids, isso merece horas de televisão, não segundos. Esse é um investimento fundamental a ser feito. E isso está ao alcance do governo fazer.

Inês Knaut: E você defende também a criação de grupos de atendimento, psiquiatras, psicológico, enfim?

Herbert de Souza: Hoje existem, até aqui mesmo neste programa, representantes do Gapa [Grupo de Apoio à Prevenção à Aids], que é um grupo heróico, esse é um grupo heróico. É o grupo que resolveu dar apoio e atender exatamente essas pessoas que estão enfrentando a pior tragédia que a gente já enfrentou. E eu tenho observado... esse é um depoimento que eu quero dar, porque a gente tem falado muito da discriminação, mas a gente às vezes não observa que é mais fácil você perceber o lado negativo. Eu tenho sentido muita solidariedade. No momento em que eu expus e que eu falei, o que eu tenho sentido de solidariedade comigo, com Henfil, com Chico etc., com a luta, é muito maior, é milhares de vezes maior do que a discriminação. Até hoje eu não posso dizer que eu recebi pessoalmente uma discriminação que me ferisse. Mas eu já fui cumprimentado na rua, entende?, em todos os lugares, pessoas que nunca me viram e que falam: “Estou aí com a sua luta, sua luta é muito importante, sou solidário a ela”. E mesmo o pessoal do Gapa também, num outro momento, poderia dar esse depoimento, quanta gente que não chega e fala assim: “Não, eu quero participar aí”? E [gente] que não tem nenhum problema, entende?, que não está, às vezes, não está nem metido com o problema. Simplesmente por esse impulso fundamental que as pessoas têm. Eu quero deixar essa coisa muito registrada: existe um potencial de solidariedade, o potencial positivo da solidariedade, milhares de vezes superior a essas tendências discriminatórias, negativas etc. E se a gente ficar falando só da discriminação, a gente acaba só jogando água no moinho da discriminação. Eu quero falar também, eu quero falar principalmente da solidariedade.

Humberto Pereira: Betinho, uma coisa que me intriga no caso da discriminação do hospital São Vicente de Paula, no Rio de Janeiro, é que eles não estão aceitando mais doentes, e tiraram todos que haviam lá, os aidéticos, menos o Henfil. Porque que o Henfil ficou lá? Por que ele é famoso? Por que ele é importante? Aí não seria a contra-discriminação? O que é isso?

Herbert de Souza: Eu acho que o Henfil, como sempre, é um sinal de contradição até na morte. Ele está exatamente no hospital, num lugar que só tem ele, onde exatamente se discriminam hoje hemofílicos e aidéticos. Eles não têm como tirar o Henfil de lá. Não têm. E não vão tirar.

Humberto Pereira: Porque se ele está lá, está sobrevivendo, está provando que pode haver aidético lá dentro.

Herbert de Souza: Claro que pode.

Humberto Pereira: Ele é a prova de que o hospital...

Herbert de Souza: Aliás, a Vigilância Sanitária foi no local, nesse hospital, e constatou que ele é um dos melhores hospitais do Rio de Janeiro. E disse para mim o seguinte: “Se este hospital não pode atender aidético, então não tem nenhum que possa”.

Ricardo Kotscho: Betinho, por favor, Betinho... a Aids é um problema muito grave, todos nós sabemos... dramático, mas não é o único problema grave deste país. E a gente também sabe que você se dedica a vários outros [problemas]. Então, eu queria mudar um pouco de assunto para aproveitar esta oportunidade.

Herbert de Souza: Está bom, senão eu morro disso. [Risos]

Ricardo Kotscho: O que você sente quando vê aqueles anúncios do governo na televisão falando: “Governo José Sarney - tudo pelo social”? Quais são os últimos medidores sociais e econômicos do Ibase [Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas], onde você trabalha, que você dirige? Em alguma época da nossa história o povo brasileiro foi tão miserável?

Herbert de Souza: Olha, eu acabei de ver, exatamente, esses dias [atrás], um estudo feito por um estatístico e um economista, um deles se chama Marco Antônio de Souza Aguiar. E ele faz um estudo da evolução da massa salarial brasileira. E o estudo mostra que nunca [antes] essa massa salarial esteve tão baixa. Houve uma perda, do Plano Cruzado para cá, de cerca de 30% da massa salarial. E isso, há que se reconhecer, quer dizer... a evolução da massa salarial no Plano Cruzado foi ascendente, e por isso que ele foi tão bombardeado, desarticulado e acabou sendo destruído, porque a massa salarial crescia. Acaba o Plano Cruzado começa a baixar o poder aquisitivo. Não só o poder aquisitivo por causa do processo inflacionário, mas também essa composição do salário na produção começa a diminuir. Eu tenho a impressão  que os nossos indicadores sociais são muito pobres, não é? Por exemplo, o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] nos dá uma taxa de desemprego, é  menor que nos Estados Unidos: porque o IBGE não mede desemprego, nem emprego, ele mede atividade. Então, se você está fazendo alguma coisa, você está se mexendo, para o IBGE você está empregado. Nós temos essa situação incrível de ter... Uma vez, por exemplo, nós do Ibase fizemos uma pesquisa na baixada [fluminense], em Nova Iguaçu,  e chegamos a uma taxa de desemprego de 28%. Porque nós medimos emprego e desemprego e não atividade. Então, você tem hoje uma situação social totalmente desarticulada, destruída ao longo desses anos. E, nesse contexto, o discurso do governo de que é tudo pelo social passa como uma espécie de piada de mau gosto, realmente uma piada de mau gosto.

Maria Victória Benevides: Betinho, explica um pouco... para o IBGE, o cara, por exemplo, que está tomando conta de carro na rua está empregado?

Herbert de Souza: Está empregado.

Maria Victória Benevides: É caso óbvio de desemprego.

Herbert de Souza: Vou te dar um exemplo: se tem uma família - pai, mãe e fillha -  o pai é metalúrgico do ABC, a mãe é dona de casa e a filha está na escola. Para o IBGE, tem duas pessoas desempregadas e uma empregada. Só o operário que está empregado. Aí o operário se desemprega, ele é despedido, a mãe passa a lavar roupa e a filha vai vender bala na estação. Por esse critério dois estão empregados e um está desempregado.

Maria Victória Benevides: Dobrou o emprego da família.

Antonio Carlos Ferreira: Betinho, eu gostaria agora que você ouvisse uma pergunta que nós temos gravada, é uma pergunta do publicitário Carlito Maia que vai entrar também por esses monitores, por favor.

Carlito Maia: Meu querido Betinho, eu queria saber por que é que perseguem tanto os traficantes de cocaína e deixam agir livremente os traficantes de sangue humano?

Herbert de Souza: Carlito [risos], se eu soubesse responder isso! É... Na verdade, a sua pergunta que é muito séria, ela nos indica o seguinte: existem dados mostrando que, no Rio de Janeiro, boa parte dos bancos de sangue estão ligados à máfia do narcotráfico e ao jogo do bicho etc. Inclusive, existe uma história de que o primeiro banco de sangue que é ligado ao jogo do bicho no Rio nasceu disso. As pessoas iam jogar e não tinham dinheiro, aí subiam no banco de sangue, vendiam um pouquinho de sangue, baixavam e faziam suas apostas. Quer dizer, narcotráfico, tráfico de sangue, crime organizado no narcotráfico e crime organizado na questão do sangue são coisas muito parecidas. Por isso é que não se persegue nem um nem outro. Porque o dia que houver uma fiscalização sanitária eficiente e séria, consistente neste país, em 24 horas se termina com a questão da má qualidade do sangue no Brasil. E eu queria aproveitar - eu vou ser um homem de idéias, homem que vive pensando as idéias - eu queria te dizer uma idéia que eu tive... foi a seguinte e quero transformar isso aqui num apelo. Eu estou convencido de que se nós tivéssemos o apoio de todos os médicos do Brasil para o controle da qualidade do sangue, nós também poderíamos resolver esse problema. E o princípio seria o seguinte: o médico que prescreve o sangue ou derivado de sangue, ele poderia ser co-responsável pela qualidade do sangue ou do derivado de sangue que ele prescreveu para o paciente. Portanto, ele deveria verificar a procedência do que ele prescreveu e verificar a qualidade do que ele está indicando para o paciente. Eu acho que se nós tivéssemos esta adesão massiva dos médicos, ativa e militante, nós também resolveríamos o problema. Porque se ficar só por conta da Vigilância Sanitária nós vamos levar muito tempo ainda para resolver.

Maria Carneiro da Cunha: Betinho, ainda sobre esta questão do sangue, parece que o sangue não é só traficado in natura, ele também é utilizado para a fabricação de muitos medicamentos. E parece que a maioria desses medicamentos é feita por grandes multinacionais e elas utilizam como matéria-prima basicamente o sangue dos países subdesenvolvidos, tipo do Brasil, Haiti, que foi um grande vetor de contaminação dos Estados Unidos. Então, se frisou muito a contaminação pela via sexual, isso não mascarou em grande parte essa contaminação pelo sangue, que pode ter sido muito mais ampla do que se pensa?

Herbert de Souza: Eu acho que você tem razão nas duas coisas. Primeiro a questão do sangue não é só o banco de sangue, é a indústria do sangue. Inclusive o fator mais caro não é o plasma, é o derivado. É globulina, por exemplo, é albumina [proteína presentes no sangue], aí que está o filão de ouro do sangue. E isso é uma grande indústria, uma indústria internacional. E, realmente, o sangue do pobre... alguém inclusive aqui já disse que essa é a vingança do pobre, né? Quer dizer, o sangue do pobre passa através dos derivados, volta e mata o rico através da aids. Eu não acredito nisso, mas essa é uma idéia que se coloca aí. Tem alguma base de verdade, porque realmente o sangue do pobre é transformado e industrializado. Então, eu acho que isso aí é uma questão... E a outra pergunta que você colocou é...?

Maria Carneiro da Cunha: É que essa contaminação pelo derivados de sangue pode ter sido muito mais ampla do que se pensa.

Herbert de Souza: Ah, sim. No nosso caso, Brasil, é 15%, sub-registrados é 15%, no Rio de Janeiro é 18%, portanto o número é muito grande. Eu estou convencido que nós temos uma sub-notificação gravíssima em relação a isso.

Antonio Carlos Ferreira: Betinho, só um minutinho Humberto, é que nós recebemos aqui muitas perguntas sobre dúvidas de aids, que eu não estou colocando porque o programa não está muito em cima disso. Inclusive é mais uma vez mostra da importância de uma campanha nacional que você mesmo aqui foi um dos defensores, dessa campanha nacional de mobilização e de esclarecimento da aids, que a aids não está esclarecida. E tem diversas perguntas aqui, mas você mesmo cometeu um deslize grave aqui no programa e você não percebeu.

Herbert de Souza: Sim...

Antonio Carlos Ferreira: Quando eu perguntei que remédio que você tomava, você disse assim: “Eu tomo cerveja”. Pois eu recebi várias perguntas querendo entender o que você disse. Você vê a responsabilidade de uma campanha pela aids? Você vai ter que explicar o que você quis dizer. [risos]

Herbert de Souza: É verdade [risos]. Essa não foi uma coisa grave, eu vou explicar. Eu digo que eu sou uma pessoa que gosta muito de cerveja porque a cerveja me relaxa. A barra é muito pesada, né? Então eu, como milhões de brasileiros, gosto de meu chopp e da minha cerveja. E tenho uma tese científica minha que é a seguinte, a cerveja tem qualidades naturais fantásticas - mas isso é minha tese [ironiza]. Eu [risos]... aliás, houve uma pesquisa no Canadá que saiu numa revista aí conhecida, onde se comprova... fizeram um teste entre pessoas que tomavam cerveja e pessoas não que tomavam. As que tomavam viviam muito melhor. Aí concluíram que a cerveja era uma coisa ótima! Mas isso é uma brincadeira, eu não estou aqui querendo dizer que cerveja cura aids, porque não é esse o assunto.

Antonio Carlos Ferreira: Aproveitando, José dos Santos da Vila Carrão está perguntando para você se, depois de tanta projeção dentro do cenário nacional, você pretende ser candidato a alguma coisa. [risos]

Herbert de Souza: Eu pretendo ser candidato sim. Eu quero, eu quero ser candidato a figurar naquela estatística daquelas pessoas..., daquela estatística que diz assim: tantos por cento contaminados pelo vírus da aids [em quem o vírus] jamais se manifestou. É essa estatística que eu quero.

Antonio Carlos Ferreira: Humberto, por favor.

Humberto Pereira: Betinho, esse negócio da cerveja aí é uma brincadeira, evidentemente. Agora, ela traz também aqui uma outra coisa que está acontecendo com a aids, que já aconteceu com o câncer, acontece com toda a doença grave, que são os assim chamados tratamentos alternativos. É claro que você, com o Chiquinho doente e com o Henfilzinho doente [os irmãos de Betinho], está vendo dezenas...

Herbert de Souza: Ah, sim.

Humberto Pereira: ...de soluções, ou milagrosas ou não, ou pára científicas ou não. Existe alguma coisa séria dentro, alguma coisa séria dentro desses tratamentos alternativos?

Herbert de Souza: Olha, essa questão é seria. Eu não sei se existe um tratamento sério e alternativo, mas essa questão é séria. E ela tem várias dimensões. Aliás, para aids e para tudo o que se refira à saúde. Saúde é um campo de manifestação disso. Olha, eu já recebi propostas de medicamentos de todos os tipos. E propostas de solução que passa por paranormais, paranormalidade etc. Milagres que, olha, se todos eles funcionassem o Henfil já estava curado umas duzentas vezes, o Chico umas trezentas, e eu já estava sem a contaminação do vírus. Isso coloca uma coisa fantástica que é a pressão psicológica que as pessoas têm, e vivem, sofrem, quando buscam uma saída para a questão da morte, né? Porque a aids tem esta coisa, fala assim: aids/morte. Está identificada à morte. Então, a solução para o problema da aids, da morte, passa em milhares de casos por essa solução de milagres. E eu cheguei à seguinte conclusão, pessoalmente: eu não quero saber. Mas isso é uma postura minha, porque se eu for atrás disso eu não faço outra coisa na vida hoje do que estudar as diferentes, as centenas de soluções alternativas. Esses dias um amigo meu me chamou e disse assim: “Olha, eu queria te apresentar um fulano que tem um remédio que já curou mais de trinta pessoas. Mas não é um negócio tradicional, não, você tem que acreditar e tal”. Eu falei: “olha, posso te pedir um favor? Eu quero morrer tranqüilo”! Entendeu? Deixa eu morrer tranqüilo porque não dá para ficar correndo atrás de todas as alternativas e soluções que aparecem. Isso é muito mais grave ainda porque a medicina tradicional, a chamada medicina alopata, ela não tem a saída ainda. E então vem uma pessoa e diz assim: “A macrobiótica está curando”. Bom, então já vou eu para macrobiótica. Aí diz assim: “Mas a acupuntura está tendo resultados ótimos”. Aí já vai você fazer acupuntura, você começou a comer o arroz integral e já está na acupuntura. Aí fala assim: “Mas a homeopatia já curou mais de quinze”. E aí já vai você com a homeopatia. Daí a pouco fala assim: “Não, o AZT também está bom”. Aí você toma AZT, já está com quatro. Depois tem aquele fulano que tem aquele poder espiritual indiscutível, que já curou mais de 15, aí você já vai também. Quando chegar no décimo você virou o quê? Quer dizer, você e sua família, porque você passa a viver em função disso.

Humberto Pereira: Você acha que essas saídas que são propostas, elas poderiam... Se não tem eficácia nenhuma [elas podem] constituir mais um fator de alienação da responsabilidade social e política que a gente tem que ter  em relação ao problema?

Herbert de Souza: Não, eu [não] acho não. Eu acho o seguinte: para mim eu acho que os médicos, os pesquisadores, os cientistas, poderiam dar uma contribuição imensa que é, em vez de deixar isso por conta só da vítima, do paciente que está querendo uma saída, que todo mundo quer se agarrar numa saída numa situação dessa, deveria haver um esforço sistemático de avaliação científica ou objetiva dessas alternativas. Por que não? Se a medicina tradicional não tem a resposta definitiva, por que não fazer uma verificação científica da questão da macrobiótica, das diferentes coisas? Portanto, eu acho que a aids coloca um desafio multidisciplinar, interdisciplinar e intervisões de medicina. Eu acho o que alopata não pode achar que a China não existe, Que a homeopatia não existe. Ele não tem este direito, isso é um tipo de realidade que está aí, que tem que ser enfrentada. O que eu digo é que isso não pode ficar para quem está doente, não é? Quer dizer, a opção não pode ser minha, eu tenho que ter informações e avaliações científicas, objetivas. Aara até mesmo dizer: olha, vale a pena combinar, entende? - além da minha cervejinha, né? -, vale a pena combinar uma macrobiótica com homeopatia. Eu acho que são caminhos também que podem ser válidos. O que eu não tenho é condições de dizer se eles são ou não. Mas alguém deve ter.

Inês Knaut: Betinho, mas isso envolve o médico admitir que ele não é onipotente. Aí vem a minha pergunta: como está hoje a tua avaliação a respeito da classe médica? Me parece que ela está... a credibilidade em relação à classe médica está no mesmo nível que está a [da] classe política, talvez até a classe dos jornalistas, enfim, não sei.

Antonio Carlos Ferreira: Inês, só para esclarecer o Betinho, eu recebi várias perguntas que eu não coloquei aqui na mesa, com críticas severíssimas aos médicos. Enquanto aqui a gente criticava os políticos vinham perguntas, vinham telefonemas de críticas terríveis aos médicos. Então, agora, por favor, responda à pergunta da Inês.

Herbert de Souza: Olha, é muito difícil a gente generalizar, né? Muito difícil, por exemplo, dizer: porque os padres... porque os médicos... porque os advogados... etc.

Inês Knaut: Porque os políticos...

Herbert de Souza: Porque os políticos... Essas generalizações são muito perigosas. Eu realmente não iria por aí, não iria. Eu acho que a classe médica brasileira está enfrentando problemas extremamente sérios com a medicina, com a sua formação, com a sua prática médica, com a ética médica, com sua sobrevivência. É uma classe que foi... Antigamente, o médico era um profissional liberal, profissional liberal era aquele que vivia dos seus próprios recursos de atender pacientes. E, além disso, trabalhava no hospital público, porque aquilo dava prestígio a ele. Hoje, a maioria dos médicos são assalariados que vivem trabalhando em três, quatro, cinco, seis, sete lugares, ganhando mal e correndo de um lado para outro, sem ter condições de ler, se atualizar, de fazer praticamente nada. Então, essa categoria, eu acho que a gente deveria buscar a responsabilidade mais coletiva disso. A sociedade brasileira, nós todos fomos nos destruindo certas coisas que já eram conquistadas, já tinham sido conquistadas e que hoje estão assim. Então, cada um fica tentando achar o seu médico, não é? Eu achei o meu, então, você acha um médico e preserva ele. "Olha, esse aqui eu achei". E você de repente pode se encontrar com outros que realmente são terríveis. Agora, eu acho que existe um... Eu estou convencido, existe um problema de reconstrução aqui, tá? Esta sociedade tem que ser, tem que estar sendo reconstruída na saúde, na educação, na política, na economia etc.

Inês Knaut: Você acha que isso passa pela constituinte, pela nova Constituição?

Herbert de Souza: Também pela Constituinte. Agora, ela passa por nós, não é? Por exemplo, eu hoje sou um parlamentarista. Por que eu sou um parlamentarista? Porque eu estou cansado de hipotecar a minha responsabilidade, de alienar a minha responsabilidade nas mãos de um presidente salvador, entende? Quer dizer, eu não quero hipotecar mais a minha responsabilidade. Então, eu elejo um deputado e fico no pé dele o tempo todo, no parlamento. Pelo menos isso. Mas sem abrir mão da minha responsabilidade. Eu não posso dizer: “fulano vai governar o país e vai salvar o país”. Ninguém salva o país se nós todos não salvarmos. Se cada um não for cidadão 24 horas por dia, e não [apenas] no momento de votar de quatro em quatro anos.

Ricardo Kotscho: Betinho, mais dia menos dia vai ter eleição para presidente. Um dia, quem sabe, deixam a gente votar, né? Uma questão que está colocada, já que todo mundo falou que o problema é político... Você, como cidadão, hoje você votaria em quem para presidente da República?

Herbert de Souza: Esse é um grande problema! [risos] Esse é um problema maior que a aids. Entende? Maior que a aids. Porque eu, hoje, não estou querendo mais fazer concessões, entende? E dizer assim: voto numa pessoa... Não, entre fulano e sicrano eu...

Maria Victória Benevides: Votar no menos ruim, né?

Herbert de Souza: Votar no menos ruim. Isso é terrível... Isso é terrível: votar no menos ruim. Por isso que eu estou querendo um parlamentarismo, porque eu digo assim: "bom, põe um presidente lá com aqueles poderes e tem o parlamento". E vamos brigar 24 horas por dia no parlamento. Porque se o primeiro-ministro não dá certo, cai. Cai quantas vezes for necessário. E isso é ruim? Não, isso é bom, a Itália que o diga.

Maria Victória Benevides: Mas, Betinho, para você ficar no pé do deputado, que seria o ideal..., porque o grande problema da política hoje é a irresponsabilidade da política. Irresponsável no sentido que ele não tem que prestar contas, quer dizer, político não é cobrado, não tem meios institucionalizados para se cobrar do político e, eventualmente, até chegar a retirar-lhe o mandato, como existe em outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo - isso não é coisa de xiita [radical], isso é coisa de um país capitalista como nos Estados Unidos. Tem em outros países também, com vários tipos de mandatos diferentes. Então, para gente chegar até isso, que seria o ideal, nós temos que mudar a representação. Mas, principalmente, nós temos que fazer uma coisa que você vem lutando há tanto tempo - e o Ibase é um instituto importantíssimo nesse assunto - que é a participação popular. E que infelizmente, hoje, com esse descrédito todo na ação política, na Constituinte e na Nova República [período pós pós-regime militar, inicia-se em 1985],  e tudo mais, tem diminuído muito de interesse para todos. Como é que você está vendo a possibilidade de um ressurgimento da participação popular, nas sociedades de bairro, em associações profissionais, em partidos, em movimentos populares, movimentos sociais, movimentos de mulheres, quer dizer, todos os movimentos por participação mesmo? Que chega até a esse ponto de, ao lado de participação direta, de forma de democracia direta, mantermos a democracia representativa. Mas com essa exigência da responsabilidade, da cobrança mesmo. Isso que você falou aí, ficar no pé. Eu acho que todo mundo que está ouvindo, que está frustrado com a idéia [de] que jogou seu voto fora, [pensando] que não adianta mais participar, deve ter gostado disso aí. Mas como é que você vê essa história hoje?

Herbert de Souza: Eu acho o seguinte: aqui nós temos uma série de companheiros da imprensa que sabem que existe uma certa ótica nos meios de comunicação ao ver a sociedade. Tem certas instituições, certos movimentos, certas atividades que envolvem às vezes uma pessoa e são transformadas em manchetes. Tem certas personalidades neste país que, quando gaguejam, seu gaguejar se transforma numa manchete. Enquanto isso existem centenas de outros, ou milhares de outros movimentos, que envolvem milhares de pessoas, que fazem um esforço imenso e que não conseguem espaço. Eu sempre dou o exemplo da Contag, né? A Contag é a Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura, tem 2,8 mil sindicatos filiados, mais de sete milhões de membros filiados etc. A Contag, para aparecer na mídia... entende? O Zé Francisco tem que quase atear fogo às vestes.

Maria Victória Benevides: Só falam na UDR.

Herbert de Souza: Enquanto isso, a UDR aparece. Então, você fala assim: como está o movimento sindical? O movimento sindical rural? Puxa, é um movimento importantíssimo. Por exemplo, este ano e ano passado, quase todo ano quando os canavieiros do nordeste fazem greve. Eles fazem greve com duzentas mil pessoas, que fazem greve em condições de fome. Muitas vezes a gente, para dar solidariedade lá, arranja dinheiro para o sujeito comer para poder resistir à greve. Se ele tem um prato de comida, ele resiste. Então, isso não aparece.

Antonio Carlos Ferreira: Betinho, só um minutinho...

Herbert de Souza: O que eu quero dizer é que eu acho que existe um Brasil submerso, né? Um Brasil submerso dos movimentos sociais que estão aí. E que todas às vezes que ele têm chance de se manifestar surpreende todo mundo. Qual foi a nossa surpresa com as diretas? Uai, todo mundo está pensando em política?! Todo mundo está...

Maria Victória Benevides: Saíram de casa.

Herbert de Souza: Saíram de casa. Mas não estava saindo todo dia? Mas naquele dia o Brasil se viu... Acordou. 

Antonio Carlos Ferreira: Betinho, a bem da verdade eu disse aqui que nós recebemos várias críticas, por telefone, aos médicos. Mas recebemos também aos políticos. Os políticos também foram bastante criticados pelos nossos telespectadores. Mas eu vou ler agora uma carta, quer dizer, uma mensagem por telefone, que é de um sobrinho seu, Roberto Souza de Oliveira, aqui da Vila Mariana. Ele diz o seguinte: “Tio Betinho, se sua força interior pela vida contagiasse descontroladamente todas as pessoas, inclusive as que estão no poder, estaríamos no caminho da cura da aids”. Isso é uma mensagem do seu sobrinho, que eu acho que vai emendar aqui com algumas outras perguntas. Temos muitos telespectadores preocupados no que fazer agora, no ponto de vista do conjunto da sociedade com relação à aids. Então, Luci Abreu, da Barra Funda, pergunta: “Como um amigo leigo pode ajudar na parte psicológica de um aidético?”?

Herbert de Souza: Deixa eu responder essa que esta é muito importante.

Antonio Carlos Ferreira: Perfeito.

Herbert de Souza: O que uma pessoa com aids precisa de um amigo. É carinho, solidariedade, entende? Presença. É isso que precisa. E isso toda pessoa pode dar. Então, esse é um remédio que está ao alcance de cada um. Se uma pessoa com aids for cercada de carinho, ela poderá, não viver o tanto que ela queria, mas ela poderá até morrer tranqüila.

Antonio Carlos Ferreira: Guadalupe Garcia, do Brooklin, pergunta: “Qual a mobilização da sociedade civil, de pessoas que não pertencem a grupos de risco, e o que elas podem fazer?" Se ela já existe, essa mobilização, e se isso seria importante. O Rafael Faustino, da Lapa, pergunta como um leigo pode ajudar um aidético e como voluntários podem ajudar as vítimas da aids?

Herbert de Souza: Bom, eu acho que aqui em São Paulo existe um grupo que está organizado para esse tipo de apoio que se chama Gapa, não é? O Gapa é uma das formas mais importantes para aquelas pessoas que querem participar. Porque eles trabalham diretamente em solidariedade com as vítimas da aids. E eu diria que, se alguém quer participar, deveria buscar contato com o Gapa.

Antonio Carlos Ferreira: Marcos Paulo Barbosa, de Santa Cecília, se diz aidético e pergunta: "Sou portador do vírus há três anos e qual o conselho que você daria para aumentar minha imunidade? Existe alguma coisa nesse sentido?"

Herbert de Souza: Bom, eu não sou médico. Eu poderia ser preso aqui por... [risos].

[...]: Falsidade ideológica.

Herbert de Souza: Não, por prática ilegal da medicina.

Antonio Carlos Ferreira: É que já vieram muitas perguntas anteriores aqui que eu, no momento...

Herbert de Souza: Eu quero dizer aquilo que eu faço, tá?

Antonio Carlos Ferreira: Vieram algumas perguntas dizendo: "Por que em você o vírus [não] evoluiu e evoluiu em seus irmãos?". E isso também...

Herbert de Souza: Isso também, pelo que eu saiba, não existe. Isso inclusive é uma das linhas da pesquisa da aids. Talvez inclusive uma das formas de descobrir a cura seja por esse caminho. Existem várias teorias e várias pesquisas sendo feitas. Seria uma proteína que, sei lá, algo que contenha o vírus e deixa ele a nocaute, deixa ele parado.

Ricardo Kotscho: Eu não queria fazer uma pergunta, mas uma sugestão, eu acho importante. Tonico [refere-se ao apresentador], tem muita gente querendo ajudar. Já que tem gente do Gapa aí, poderia dar o telefone, o endereço, alguma coisa, para servir às pessoas?

Antonio Carlos Ferreira:  Eu já já vou pegar o telefone do Gapa e vou dar aqui no ar.

Humberto Pereira: E outra coisa é o seguinte: o carinho que você falou aí que o aidético precisa, né? É uma informação. Você faz uma visita para um aidético, entra no quarto do aidético, conversa com ele, cumprimentá-lo. Feito a Lady Diana, por exemplo, cumprimentou um aidético na Inglaterra. Tem uma foto clássica - do doutor Gallo [Robert Gallo, cientista estadunidense. Um dos responsáveis pela descoberta do vírus da aids], né? - encostado no peito de um aidético. Esse esclarecimento: tem perigo a pessoa [abraçar um aidético]? Porque para que fazer o carinho ela tem que saber disso.

Herbert de Souza: É importante toda pessoa saber, entender, que as únicas formas comprovadas - porque o resto é charlatanice, seja ele quem for que estiver dizendo -, as únicas formas comprovadas de contaminação são pelo sêmen, o esperma contaminado, e pelo sangue contaminado, quando entra na corrente sangüínea. Agora, uma pessoa que vai visitar um doente que não vai ter relações sexuais com o doente. E nem [vai] receber transfusão desse doente, ele não tem nenhum perigo de contaminação. Inclusive, existem pesquisas em vários centros hospitalares, com hospitais, médicos e paramédicos, que estão tratando de aidéticos há anos e que não tiveram nenhum caso de contaminação.

Vitalina Dias da Silva: Mesmo esposa de hemofílicos não estão contaminadas, e nem  filhos. Que é um...

Herbert de Souza: Esposas de hemofílicos. Olha aqui. Eu vou dar um testemunho meu. Os três hemofílicos: o Henfil, o Chico e eu, não é? As nossas três companheiras, com quem nós convivemos, a minha companheira eu convivo com ela há dezessete anos, é... E o Henfil conviveu com a companheira há dez anos. O Chico desde que nasceu que está casado com a Nívea. As três são negativas. Portanto, quer dizer...

Vitalina Dias da Silva: Lógico. Isso é uma prova mais do que cabível, né?

Herbert de Souza: Então, uma pessoa pode ir visitar um aidético tranqüilamente, cumprimentá-lo, conversar, entende? Fazer carinho etc. etc. Ele não estará correndo nenhum risco de contaminação.

Humberto Pereira: Agora, e o contrário? A pessoa que vai visitar, ela pode ser perigosa para o aidético?

Herbert de Souza: De repente pode até [ser] se ela está gripada, entende? Se ela está com alguma infecção, ela sim pode colocar em risco o aidético. 

Maria Carneiro da Cunha: Betinho, eu queria fazer uma colocação ou uma pergunta que está relacionada mais à questão que você estava respondendo da Maria Victória. Você falou muito da manipulação que existe na grande imprensa a respeito das questões políticas. Eu gostaria que você comentasse como é que é a questão da Aids está sendo tratada nos meios de comunicação em geral. Você acha que está sendo correta? Se há desinformação...

Herbert de Souza: Eu acho que os meios de comunicação de massa no Brasil - no geral, uma avaliação global -, estão fazendo mais pela informação do que o governo.

Maria Carneiro da Cunha: Acho que todos os jornalistas aqui estão interessados nessa questão.

Herbert de Souza: E eu acho que a mídia - tanto os jornais, as revistas, a televisão - têm prestado um serviço público - com deficiências que possam existir, porque o jornalista não é um especialista, de repente ele transmite ou dá curso a uma informação que não tem fundamento. Aí é um problema delicado. Então, pelo contato que eu tenho tido com jornalistas - e nós participamos inclusive de uma campanha, da Globo, que eu participei falando sobre a questão de sangue - existe uma vontade de participar, uma vontade de colaborar. Eu não incriminaria nem atiraria nem uma pedrinha na imprensa e nos meios de comunicação de massa. Eu acho que eles são grandes aliados nossos na campanha de informação.

Ricardo Kotscho: Betinho, eu queria fazer uma pergunta bem amena. Está perto do Natal aí. Queria saber qual o presente que você gostaria de ganhar neste Natal?
 
Herbert de Souza:
  Esse seria a cura. [risos]

Vitalina Dias da Silva: Betinho, eu gostaria de dizer o seguinte: parece que, em São Paulo, a Igreja está saindo da passividade, sabe? Nós estamos participando - o Gapa, o Centro dos Hemofílicos de São Paulo e outros grupos -, nós estamos participando junto com a Igreja de um movimento de informação. Começamos da base, que são os próprios pastores, Tem igreja budista, todas as igrejas de São Paulo estão participando, os líderes das igrejas. E nós estamos tentando fazer que com seja levada uma informação ao nível de pastoral de igreja, quer dizer, aquele padre de uma paróquia que tenha... - mas levar informação correta - para deixar de haver esse alarde, essa informação negativa, esse medo, esse pânico. Que, na realidade, às vezes a pessoa está tão mal informada que tem ido... não porque, vamos supor, aposto que quem assistiu seu programa hoje está mais tranqüilo, inclusive. Eles têm muito medo de tudo o que está sendo informado, eles não sabem nada das coisas. 

Herbert de Souza: O escuro dá medo.

Vitalina Dias da Silva: Exatamente. Acho que é uma coisa muito positiva que está havendo, e a gente tem muita esperança que esta informação chegue bem.

Herbert de Souza: Eu quero dar um depoimento. Eu tive uma conversa com Dom Evaristo há um mês atrás, quando eu vim aqui em São Paulo, e eu estou convencido de que Dom Evaristo entendeu completamente o que é a questão e como deve atuar.  Quer dizer, eu acho que nós temos nele um grande aliado, não aliado de curto prazo não, ele é uma pessoa que está absolutamente compenetrada da importância dessa questão e da participação da Igreja nisso. Feliz a cidade ou o estado que tem um cardeal como esse, que nem todos têm...

Vitalina Dias da Silva: É verdade... dá licença só um minutinho, eu queria dizer para o doutor Demócrito, senhor Demócrito Moura, que os movimentos de hemofílicos são muito atuantes, e que os hemofílicos são mobilizados em nível nacional. E a gente participa em tudo, a gente participa assim, começa num bairro...

Herbert de Souza: A gente participa tanto que ela já está se sentindo hemofílica.

Vitalina Dias da Silva: É exatamente. Eu digo que eu sou presidente da Associação dos Hemofílicos. Eu acho que um dirigente de uma obra assistencial só pode ser bom quando ele se sente hemofílico. Realmente, eu falo como hemofílica, me sinto e me ponho como mãe de todos, sabe? Aquele grande amor. E realmente eu batalho com tudo que posso, participo de todos os movimentos de São Paulo e também viajo um pouquinho quando posso.

Demócrito Moura: Eu fiz aquela pergunta ou aquela intervenção, só por uma razão...

Vitalina Dias da Silva: Sim.

Demócrito Moura: Eu acho óbvia, todo mundo vai concordar. Este país só terá solução quando cada um de nós assumir a responsabilidade por melhorar este país.

Vitalina Dias da Silva: Exatamente.

Antonio Carlos Ferreira: E, Demócrito, eu gostaria até de interromper agora para dar o telefone do Gapa, que o pessoal pediu aqui, onde está organizado o pessoal... O Gapa quer dizer exatamente: Grupo de Apoio e Prevenção à Aids. O Gapa, aqui em São Paulo, onde se organizam as pessoas dispostas a lutar pelo combate a aids, fica na Alameda Nothmann, 1223 em Santa Cecília [Confira os contatos atualizados do Gapa acessando http://www.gaparp.org.br/]. A caixa postal é 04106 e o CEP 01051, em São Paulo. Agora, anotem, por favor, o telefone 255-5777, ramal 38 e ramal 75.

Vitalina Dias da Silva: Eu queria só dizer uma coisinha, uma coisa que passou despercebido neste programa. Acho que nós, hemofílicos, não podemos deixar para trás. É sobre doação de sangue. Precisa ficar bem claro que quem doa sangue não pega aids. E que o doador é ainda a pessoa que faz com que o hemofílico viva. Acho que nós hemofílicos dependemos do doador de sangue. Nós estamos conseguindo viver até hoje porque encontramos pessoas que doam sangue. Então, que essas pessoas não deixem de comparecer aos bancos de sangue e que não deixem para que só o pobre doe sangue. Ou as camadas que mais necessitam, até precisam receber, eles é que são mais sensíveis aos apelos da comunidade. Que os empresários possam marcar uma hora. O pessoal vai colher sangue no local, sabe? E [que] todo mundo doe sangue. Se pelo menos cada indivíduo, cada brasileiro doasse sangue duas vezes por ano, teríamos sangue para todo mundo.

Inês Knaut: Betinho, como é que você está...

Herbert de Souza: Muito bem, eu apoio, aprovo a sua campanha, a nossa campanha.

Inês Knaut: Quando você precisa tomar fator 8 [proteína utilizada por hemofílicos para a coagulação do sangue], como é que você está escolhendo? Que posto você está escolhendo, que critério que você está usando?

Herbert de Souza: A minha solução foi drástica.

Inês Knaut: Queria lembrar que você falou a respeito dos testes em pool. Queria que você explicasse melhor como você está selecionando. Como se deveria selecionar, na tua opinião?

Herbert de Souza: Teoricamente... eu acho que não só teoricamente, na prática toda transfusão, todo sangue deve ser testado individualmente. E se ele não tem contaminação, então se processa. Nem sempre isso é feito assim. A questão da qualidade do sangue depende muito do local que faz [o teste]. Por isso é que eu apelo aos médicos para que eles orientem os pacientes para saber: “Olha neste local está sendo feito corretamente”. Que nem todo mundo tem que entender de testes. São vários testes etc. Agora, no meu caso especificamente, eu fiz, estou conseguindo fazer de uma forma drástica. Eu decidi que eu não sou mais hemofílico, então não tomo mais transfusão. Tem quatro anos e meio que não tomo mais transfusão.

Inês Knaut: Você tem conhecimento de casos de pessoas que também estão assumindo, digamos, essa postura drástica?

Herbert de Souza: Não, eu acho que louco como eu não.

Ricardo Kotscho: Betinho, você viveu duas situações extremas na vida, o exílio e agora a aids. O que dói mais, o exílio ou a aids? 

Herbert de Souza: Olha, cada um dói de uma forma, cada um dói de uma forma. Porque essa questão da pátria, sabe?, a chamada... A gente pode falar mal do Brasil o tanto que quiser, mas quando você está fora dele dá uma saudade, entendeu? Dá uma vontade de voltar. De falar: "ô terrinha miserável, mas eu queria estar lá!" Entendeu? Queria estar lá! Eu quero viver...

Ricardo Kotscho: Falar mal dela aqui.

Herbert de Souza: Aqui, aqui. Você tem que falar mal aqui, lutar aqui, batalhar aqui. Quer dizer, estar fora do país é uma questão que dói, profundamente. Talvez seja um dos piores castigos que uma pessoa possa ter. Enquanto o homem for nacional - acho que vai ser durante muito tempo, a gente é internacional por acidente, né?, você acaba indo etc. e tal. Mas cada um de nós, no fundo... aquela rua, aquele bairro, aquela família, aquele espaço, aquela história que você fez num determinado lugar. Tirar isso de uma pessoa é uma violência terrível. Quem viveu o exílio sabe disso. Para mim hoje estar aqui é algo absolutamente fundamental. Eu evito até viajar para fora, porque eu já perdi nove anos fora. Eu tive que viver nove anos fora, eu quero viver tudo aqui. Então, isso é uma coisa que dói. Agora, aids dói também para burro. Mas são duas dores específicas, não dá para dizer qual que dói mais, né?

Antonio Carlos Ferreira: Betinho, antes de encerrar nosso programa - nós já estamos quase terminando - primeiro eu gostaria de fazer uma retificação com relação ao telefone do Gapa, que é o Grupo de Apoio e Prevenção à Aids, aqui em São Paulo. O ramal saiu um pouco errado: é 255-5577 e o ramal 3875. E eu li ramal 38 e ramal 75. O ramal é 3875. Betinho, eu gostaria de terminar este programa aqui lendo mais algumas mensagens - nós recebemos centenas delas - de apoio a você, da sua força interior. Mas eu gostaria de ler mais algumas aqui que são interessantes, que eu selecionei aqui. Paulo Dávila, de Jardim Colombo, de São Paulo: “Estou muito emocionado pela coragem e lucidez e perseverança do entrevistado. Queria apenas mandar uma mensagem: Obrigado pela lucidez e pela coragem”. Lídia Bolette, de Tatuapé, em São Paulo: “Quero me congratular com você e para que não se deixe abater daqui para frente. Eu já fui portadora de um câncer e nunca desisti”. Cecília Cunha, de São Judas: “Tenho o maior respeito pela sua família. Há seis anos tenho um problema de aneurisma cerebral e continuo vivendo. Desejo muitos anos de vida, para você continuar na luta, vivendo com toda a força e em toda a fração de segundo. Um beijo no seu coração”. Eu gostaria que você fizesse um último depoimento para encerrar o nosso programa com relação à esperança de vida. 

Herbert de Souza: Bom, eu acho que eu poderia terminar este programa com esse "beijo no coração", né? Porque no fundo é mais ou menos isso que eu tenho tentado passar e viver. Eu não creio que a luta de cada um, que a luta política, que a luta por uma sociedade mais justa, mais humana, seja algo que possa se dissociar das relações das pessoas. Quando a política está lá e a gente está cá, algo está errado. A política tem que ser algo que esteja dentro a gente, nas relações concretas que a gente tem. Então, por exemplo, participar da questão de reforma agrária, de participar da luta da aids, ser solidário com essa menina que está sobrevivendo com esperança na questão do câncer, essas coisas estão todas misturadas. Estão todas muito misturadas. E uma das palavras ou das emoções para mim que mais me tem fortalecido, tocado, não é a dor nem a discriminação, é a solidariedade que situações de vida e de morte, e principalmente de vida, de construção de futuro, colocam para cada um. Eu acho que vale você apostar nisso, que é o forte. Apostar nisso é que é o bom, apostar nisso é que vale a pena. E eu diria o seguinte, que se ninguém acreditar em nada disso, realmente teria que se ver diante do espelho e falar assim: então para que que eu estou vivendo? Não é? Quer dizer, ou a vida realmente tem um sentido, e esse sentido tem que ser muito grande, ou então, realmente, não tem. Sabe, não tem porque a gente perder tempo com a gente mesmo nesse sentido. Agora, eu queria aproveitar e terminar dizendo o seguinte: eu gostaria que a gente aqui neste país pudesse chegar um dia e fazer um programa como esse, que fosse um programa de todas as coisas boas que a gente tem. De todos os desenvolvimentos da política, dos políticos, dos médicos, que fosse um grande programa eufórico, né? Eu creio que isso não é impossível, porque se a gente pensar bem, a possibilidade de construir uma sociedade diferente, insisto, não está no outro. Ela está em nós e em cada um de nós. Se nós formos capazes de ver o outro. Nos relacionarmos com o outro, termos solidariedade com o outro. E eu acho que isso é política. Eu não quero dissociar política da vida. Isso é que é política, é o dia que a gente conseguir construir uma sociedade em que você dizer assim: você é o irmão do Henfil, você é irmão do Chico? Sou. Dele e de todos os demais, né? Quer sejam eles hemofílicos ou não.

Antonio Carlos Ferreira: Muito obrigado Herbert de Souza, Betinho, por sua participação em nosso programa. Queria agradecer também a participação de todos nossos convidados, agradecer também os telespectadores que mandaram muitas perguntas a este programa. Roda Viva volta na próxima segunda-feira. Boa noite a todos.  [Todos os participantes batem palmas]

Herbert de Souza esteve novamente no Roda Viva em 1996. Leia a entrevista.

Betinho morreu no dia 09 de agosto de 1997, aos 61 anos, em sua casa, no Rio de Janeiro. Assim como seus irmãos, Henfil e Chico Mário, ele foi vítima das doenças adquiridas nas transfusões, com sangue contaminado, a que era obrigado a se submeter por ser hemofílico. O diagnóstico de sua morte foi hepatite C. Em 11 de agosto seu corpo foi cremado e as cinzas espalhadas em seu sítio, em Itatiaia.

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