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Paulo Markun: Boa noite. Ele viveu e lutou por liberdade num país e num tempo em que isso era impossível. Sofreu segregação em ônibus, escolas, hospitais e até igrejas. Era obrigado a entrar nos prédios por uma porta especial e não podia usar o mesmo elevador. Tudo isso por um motivo: não ser branco. Preso, acusado de sabotagem, foi julgado, condenado e passou doze anos em uma prisão de segurança máxima. E hoje está aqui, no centro do Roda Viva. Nosso convidado é o professor sul-africano Mac Maharaj. Fundador do movimento anti-apartheid ao lado de Nelson Mandela, ele ajudou o líder sul-africano a redemocratizar o país. O sul-africano Mac Maharaj começou na vida política no início da década de cinqüenta. Morou na Inglaterra e retornou ao seu país para lutar pela liberdade, que só viu depois de ficar preso e ver companheiros morrerem nas ruas e na prisão. Mac Maharaj era discriminado num país onde a segregação de raças era oficial.
[Comentarista]: Mac Maharaj tem 72 anos e passou os últimos cinqüenta envolvido na luta política contra o regime racista da África do Sul. Um dos fundadores do movimento anti-apartheid, foi preso nos anos 1960, junto com outros militantes, incluindo o amigo e companheiro de luta Nelson Mandela, cuja biografia mais recente teve Mac Maharaj como um dos consultores editoriais. Mandela: retrato autorizado não é um livro nem uma história convencional. A edição volumosa e graficamente bem tratada é volumosa e repleta de ilustrações. O texto se baseia nos relatos de sessenta entrevistados de todo o mundo: amigos, familiares, personalidades internacionais que tiveram alguma ligação com Mandela e que, em seus depoimentos, firmam a imagem do líder sul-africano como um dos homens de maior importância na história humana do século XX. De estudante de direito a primeiro presidente negro da África do Sul, Nelson Mandela tem sua história pessoal profundamente marcada por um dos mais odiosos regimes racistas já vistos no mundo. Colônia holandesa e depois inglesa, a África do Sul adotou, no final da década de 1940, uma política oficial de segregação racial, tornando ainda mais humilhante a vida da maioria negra; 75% da população do país ficou mais de três séculos sob dominação européia. Com o apartheid, os casamentos inter-raciais foram proibidos, os negros não podiam votar e a segregação se tornou ostensiva em ônibus, escolas, hospitais e lugares públicos delimitados para uso exclusivo da minoria branca. Foram mais de quarenta anos de racismo absoluto, que veio abaixo no final da década de 1980, por conta das pressões internacionais e, principalmente, do movimento negro, que teve em Mandela seu mais expressivo líder. Pacifista de início que depois decidiu recorrer à luta armada, passando 27 anos na prisão por causa disso, Nelson Mandela dominou a cena política após ser libertado em 1990. Ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1993 e ganhou também a primeira eleição multirracial do país, governando a África do Sul de 1994 a 1999. Mac Maharaj participou desse governo como ministro dos Transportes e vivenciou com Mandela o desafio que a queda do apartheid deixou ao movimento de libertação: governar o país negro mais rico do mundo por seus diamantes, enfrentar uma desigualdade social que concentra 90% da riqueza nacional nas mãos da minoria branca e combater um dos piores índices de infecção e morte que a aids [acrônimo em inglês pelo qual ficou conhecida a síndrome da imunodeficiência adquirida, doença causada pelo vírus HIV, que ataca e inutiliza células do sistema de defesa do organismo humano e é transmitida por meio de relações sexuais, transfusões de sangue ou partilha de seringas por usuários de droga] tem causado no planeta. Fora da vida pública desde 2005, Nelson Mandela tem se dedicado a causas sociais e direitos humanos, especialmente através de sua fundação. Mac Maharaj também se afastou da vida política e hoje é professor da Universidade de Benington, em Vermont, nos Estados Unidos.
Paulo Markun: Para entrevistar o professor e escritor Mac Maharaj, convidamos: Renato Rovai, editor da revista Fórum; Christian Lohbauer, cientista político do Gacint (Grupo de Análise de Conjuntura Internacional) da USP; Maria Amélia Rocha, jornalista; Kátia Mello, editora-assistente de comportamento da revista Isto É; Leila Leite Hernandez, escritora e professora doutora de história da África da Universidade de São Paulo e Vicente Adorno, editor-chefe de documentários da TV Cultura e comentarista internacional da Rádio Cultura FM. Temos também a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando em seus desenhos os momentos e os flagrantes do programa. O Roda Viva é transmitido em rede nacional de TV para todo o Brasil. Como o programa de hoje está sendo gravado, não é possível a participação dos telespectadores. Boa noite, professor.
Mac Maharaj: Boa noite e muito obrigado por suas palavras gentis.
Paulo Markun: Eu queria perguntar o seguinte: a África do Sul hoje é um país onde não há racismo?
Mac Maharaj: De modo nenhum. Ainda há racismo. Algo que existiu ao longo de um período de mais de 350 anos não pode ser removido em 13 anos. Porque racismo é uma questão de mentalidade, de como as pessoas pensam e como reagem. Assim, continua sendo um problema. E continua sendo um problema como alcançar a verdadeira igualdade. Na nossa Constituição existe igualdade, está escrito. Não temos mais o direito de discriminar pessoas, seja pela raça, cor, religião, cultura, idioma...
Paulo Markun: Aqui no Brasil também a Constituição diz isso. Agora, o fato de um setor dos negros na África do Sul ter avançado, no sentido de uma condição financeira melhor, de surgir uma classe média negra começa a estabelecer a desigualdade e a discriminação entre os negros também?
Mac Maharaj: O que está acontecendo é uma coisa muito importante, porque vem estabelecendo a base para todos terem oportunidades iguais. O crescimento da classe média negra é muito importante, mas não é o fim da história. É o começo da história.
Maria Amélia Rocha: Gostaria de falar um pouquinho sobre o livro que vai ser lançado aqui, sobre o seguinte: quando se faz um livro dessa dimensão com um personagem da dimensão do Mandela levantam-se todos os lados da história, tanto a nobreza, que está estampada no livro, quanto as fraquezas desse ser humano. Eu queria que o senhor falasse se descobriu fraquezas no Mandela e quais são elas.
Mac Maharaj: Muitas. Muitas fraquezas. Para começar, o modo como me perturbava quando eu estava preso. Em segundo lugar, um de seus grandes amigos, Ahmed Kathrada [é um ativista político sul-africano. Lutou, juntamente com Mandela, Walter Sisulu e Mac Marahaj, contra o apartheid] afirma no livro que Mandela pode ser um homem muito vaidoso. E ele também tinha fama de mulherengo. Então, ele é muito humano, como você e eu. A diferença é que, como líder, ele é um dos poucos que não escondem nem fingem que não têm fraquezas nem falhas.
Christian Lohbauer: Professor, o que mais me impressiona na história de privações e de coisas notáveis por que o presidente Mandela passou pela vida é o fato de ser um dos únicos líderes políticos da história moderna, das democracias modernas que abdicaram de uma reeleição, vamos dizer assim. Ele completou um mandato e se despediu da vida pública. O que é uma coisa absolutamente inusitada, não há outro exemplo que eu conheça de grande proporção como o dele. Nem um Konrad Adenauer [(1876-1967) chanceler da República Federal da Alemanha entre 1949 e 1963, logo depois da Segunda Guerra Mundial], que começou a governar a Alemanha Federal com 73 anos e foi até os 87 em quatro mandatos parlamentares. Nem [Winston] Churchill [(1874-1965) atuou como primeiro ministro da Inglaterra de 1940 a 1945, durante a Segunda Guerra Mundial, e de 1951 a 1955], que depois da vitória na Segunda Guerra Mundial poderia ter encerrado a carreira, fez questão de voltar. Mas o Mandela não. Ele conseguiu, depois de todos esses anos de privação, tantos anos preso, completou o primeiro mandato e se desprendeu, quer dizer, deu um salto espiritual e largou as pequenices da política. O senhor, que viveu tão perto do Mandela, [pode dizer] o que é que esse homem tem que o fez capaz de abdicar dessa condição de homem público, que poderia ter um mandato permanente, vamos dizer assim?
Mac Maharaj: Acho que você levanta essa questão porque no mundo moderno os líderes não entendem um conceito simples: quando se está numa posição de poder, você se torna mais poderoso quando a deixa. Muitos políticos, quando alcançam o poder, quando conquistam a presidência acham que a forma de manter o poder e continuar poderoso é continuar no cargo. Mas se observarmos Mandela e observarmos a influência que ele tem no mundo todo, ela se tornou muito maior depois que deixou de ser presidente. É uma lição muito importante para todos nós no mundo: entender como usufruir do poder elegantemente e como abdicar dele, porque, ao abdicar, nos tornamos mais influentes no mundo. Por outro lado, eu diria que tivemos sorte. Ele se tornou presidente aos 77 anos de idade. Ele não tinha escolha.
Vicente Adorno: Professor, o senhor também não abdicou, de certa forma, de uma carreira política um pouco mais longa, um pouco mais significativa? Porque o senhor foi ministro e depois o senhor se retirou, voltou à atividade acadêmica. E, hoje, o senhor até mora nos EUA. O senhor está, de certa forma, um pouco apartado da realidade da África do Sul? O senhor acha que o senhor tem um poder diferente por causa disso?
Mac Maharaj: Sim, acho. Leciono em meio período, somente por sete semanas, duas vezes ao ano em Bennington. O resto do tempo fico na África do Sul, mas falo com os jovens em Bennington College. Consigo me tornar jovem por meio deles. E, ao mesmo tempo, os jovens ficam mais felizes ao conversarem comigo, porque tento entendê-los, saber do que gostam, de que música gostam, de que atividades sociais gostam e que mudaram desde a nossa geração. Então, acho que me respeitam mais por causa disso do que se eu fosse apenas ministro dos Transportes. Claro, abdiquei; eu me aposentei. Eu quis me aposentar muitas vezes desde 1990. Porque acho que há um outro lado para a luta de toda a humanidade. Acontece que nós supomos que, por meio dessa luta, daremos uma vida melhor a todos. Mas, ao longo de nossa luta, percebi que não conhecia meus filhos ou minha família. E achei que era tempo de reparar esse erro.
Vicente Adorno: Sempre tem um preço a pagar.
Mac Maharaj: Sim. Isso vale para hoje, porque não podemos fazer uma revolução se nossos próprios filhos não podem se beneficiar com ela, porque eles devem levar e transmitir nossos conhecimentos e valores para os filhos deles e para as gerações futuras.
Kátia Mello: Professor, o senhor foi um dos homens mais torturados no apartheid. E o senhor chegou lá jovem e com muita raiva na prisão e a convivência com o Nelson Mandela parece que mudou a sua maneira de pensar. Gostaria de que o senhor falasse sobre essa raiva. Onde foi parar esse ódio? E como é que vocês lidavam com esse sentimento?
Mac Maharaj: De fato, eu era um rapaz revoltado quando fui preso. Fui preso com 29 anos. Fui torturado durante dois meses e fui levado a julgamento quatro meses depois. Então, eu já tinha cabelos brancos em quatro meses. Cheguei à prisão muito zangado. Eu queria lutar, porque, para mim, como jovem, era mais importante lutar e morrer do que continuar vivendo daquela forma. O que Mandela me ensinou? Eu costumava discutir com os guardas da prisão todos os dias. E, no fim, eu acabava dizendo algo errado e eles me acusavam por ofendê-los. E Mandela me chamou um dia e disse: "Você está certo por reagir contra esta injustiça, mas o modo como o faz está errado. Você está dando ao inimigo a chance de puni-lo. Quando for abordar a questão, pare, conte até dez, acalme-se, escolha as palavras. Dessa forma, você conseguirá atingir mais aquele homem. Mas ele não poderá acusá-lo". Não sei se é uma boa lição, mas me diz algo sobre Mandela. Mostra que ele dá muita atenção a ouvir o outro lado, antes de decidir como agir e isso faz parte do mundo no qual vivemos. Dizemos que queremos que as pessoas falem, mas não ouvimos o que estão dizendo. Só queremos que ouçam o que nós dizemos.
Paulo Markun: Mas não há uma diferença, digamos, um limite muito pequeno entre essa atitude, que permite ferir mais seu adversário sem agir de maneira violenta, e a pura e simples colaboração ou, digamos assim, a subserviência? Porque essa é a grande discussão. Toda vez que a gente enfrenta um inimigo maior do que a gente, o raciocínio que a gente tem que fazer é: “Ok. Até quando pode ir a possibilidade de jogar e até quando é necessário, realmente, se confrontar de maneira radical e até perder?” Como se estabelece esse limite?
Mac Maharaj: Acho que você está levantando uma questão muito importante. Não há uma linha precisa que distinga a colaboração de um ponto de vista específico. Temos apenas nossos próprios recursos internos para nos conduzir. E temos de nos questionar o tempo todo. Sempre temos de duvidar se o que fazemos é o certo. Temos de nos questionar em nossa própria mente. E temos de nos perguntar: "Essa atitude está ajudando a causa, ajudando meus companheiros ou minha atitude vai ajudar o inimigo?" Não sei a resposta. Sei apenas que, quando nos disseram para andar, para ir ao trabalho em fila, trinta prisioneiros, nos mandaram correr até o trabalho. Mandela estava no meio e ele sussurrou para nós: "Andem em linha reta e andem devagar". E, silenciosamente, ele foi avançando até a frente da fila e começou a andar devagar. Assim, todos nós passamos a andar devagar. Fomos ao trabalho e trabalhamos, mas fomos com nossa dignidade intacta. Então, como fazer essa distinção? Não há uma resposta, não há um manual. Assim como não há um manual que lhe diga como responder quando estiver sob tortura. E não vou culpar ninguém que for torturado e falar, der informações, mas também admiro aqueles que não falarem.
Renato Rovai: Professor, se o senhor pudesse pontuar qual a importância do Mandela do ponto de vista de conseguir segurar esse ódio que se estabelecia, do ponto de vista negro e branco na África do Sul, principalmente até 1994... E hoje, qual a importância dele ainda para que essa "bomba-relógio" que está, de certa forma, em estado de compasso, não leve a sociedade sul-africana a explosões em dados momentos?
Mac Maharaj: Acho que o que Mandela entende é que, embora fosse líder da população negra oprimida – somos a maioria na África do Sul – ele compreendeu que, quando se tornou líder do país, ele precisava unir pessoas diversas em uma única nação, para que houvesse um sentimento de ser sul-africano. Então, o objetivo dele é construir uma nação, não destruir nações. Acho que isso o mantém íntegro e o guia no modo como reage. Sei que houve momentos em que o procurei e disse: "Madiba..." – esse é o termo pelo qual nos tratamos – "Madiba, por que você é assim? Você foi visitar a viúva do idealizador do apartheid. E tomou chá com ela!" E a resposta dele foi: "Mac, se vocês querem continuar brigando, continuem. Mas estou mais interessado em construir uma nação e quero passar meus últimos dias de vida unindo as pessoas." Essa é a verdade para o homem. Talvez eu devesse me unir à raiva do mundo ocidental. Muitos me perguntam por que não sou amargurado. Digo que essa não é a afirmação correta. A afirmação correta é: se não reagir à injustiça, você não será humano. Se virmos ali uma criança de três anos de idade sendo agredida fisicamente pela mãe e não fizermos algo para impedi-la de fazer aquilo, não seremos humanos. Assim, a raiva é correta. Mas, se quiser agir e trazer benefícios, deve controlar sua raiva. E deve ser capaz de agir dizendo: "É isso que vou fazer, porque quero obter tal resultado". Preciso encontrar um modo de falar com aquela mãe, não para humilhá-la, mas para ensiná-la que aquela criança levará os valores dela para a sociedade que faremos amanhã. Então, esse foi o Mandela que, para mim, foi um companheiro muito importante e um privilégio. Quando penso nos 12 anos na prisão... Muitos dizem: "Lamento". Eu digo: "Não. Por favor, não lamente. Sou um homem privilegiado por ter podido passar 12 anos com Walter Sisulu [(1912-2003) ativista político sul-africano. Foi um dos líderes do Congresso Nacional Africano, movimento criado em 1912 e tido como a única resistência contra o apartheid no país. Foi preso nos anos 1960, juntamente com outros líderes do CNA, no evento que ficou conhecido como Rivonia Trail – julgamento de Rivonia, cidade satélite de Joanesburgo. Permaneceu 26 anos preso] com Nelson Mandela e por ter aprendido com eles”.
Paulo Markun: Professor, nós vamos fazer um rápido intervalo com o Roda Viva, que conta hoje na platéia com Larissa Marques, jornalista, Alexandre Pinto, empresário, e Daniela Fernandez, jornalista.
[intervalo]
Paulo Markun: A história de Mandela foi escrita à mão, num mosaico de cartas, bilhetes e trechos de seu diário durante os 27 anos em que esteve preso. No livro Mandela – retrato autorizado, estão reunidos alguns desses manuscritos que, por iniciativa de Mac Maharaj, foram guardados e mais tarde organizados de forma a permitir que Mandela escrevesse sua autobiografia. Longo caminho para a liberdade é a história da vida e da ação política de Mandela, contada por ele mesmo com a percepção e a vivência de quem transformou a própria vida numa lição de justiça, moral e dignidade. No mundo todo o livro foi considerado uma das mais importantes memórias a respeito de um líder de um momento histórico que instigou a humanidade a repensar seus destinos.
Paulo Markun: Eu queria entender o seguinte: quem já passou por uma prisão de segurança máxima sabe como é difícil um preso fazer qualquer coisa que não seja vigiada estritamente. Muito mais escrever uma obra completa e transportar isso pra fora da prisão. Sei que o senhor já respondeu essa pergunta "n" vezes mas, para os brasileiros, eu queria que o senhor explicasse como é que isso foi possível.
Mac Maharaj: Bem, na prisão você passa a ter mente de criminoso.
[risos]
Mac Maharaj: E você aprende a... Como lutávamos pela liberdade política, não aceitávamos a autoridade do sistema. Eles diziam que não poderíamos ter acesso a notícias, nós conseguíamos notícias. Diziam que não podíamos escrever biografias ou poesias, nós achávamos uma forma de fazer isso. Nesse caso, Mandela escrevia todas as noites de dez a 15 páginas à mão. No dia seguinte isso era dado a mim e eu copiava em letras pequenas numa folha A4. E, então, escondíamos o original e o dávamos para Kathrada e Sisulu lerem. No total foram sessenta folhas, dos dois lados. E, quando digitei em Londres, tornaram-se seiscentas páginas A4. Nós escondíamos isso numa pasta, nós fizemos uma pasta com papelão comum. Nós púnhamos isso entre as capas, fechávamos e fazíamos parecer uma pasta profissional. A única coisa que não aprendi a fazer foi falsificar dinheiro. Eu teria ficado muito rico.
Paulo Markun: Agora, houve um pouco de sorte nesse caso, na medida em que o senhor, pelo que li, saiu da prisão com esse material embaixo do braço e ninguém o revistou ou estou enganado?
Mac Maharaj: Eu havia pedido permissão para estudar, meus livros ficavam numa caixa de papelão. E essa pasta ficava na caixa com o material de estudo. E fui transferido de um presídio para outro, acho que passei por seis presídios antes de ser libertado. Eu ficava em confinamento solitário e o material era revistado regularmente, mas eles não o acharam. Acho que a época também influiu. Era 1976, após o levante [levante de Soweto], e onde quer que eu fosse os presídios estavam repletos de jovens que estavam se rebelando. E eles já tinham bastante trabalho com aqueles jovens e disseram: "Vejam aquele velho. Está acabado. Deixem-no em paz".
Leila Leite Hernandez: Professor, eu gostaria de fazer uma pergunta no seguinte sentido. Nós sabemos que essa política de segregação foi mais que uma política. Ela é uma política, mas é também um processo. Então, na verdade, esse apartheid vai aumentando gradativamente com o passar dos anos. Ela tem uma ideologia assentada numa forma específica dos brancos pensarem, que valoriza a sua etnia, a sua língua, as suas crenças num Deus que separaria brancos e negros. Mas esse não foi o único ator político, histórico das vidas de todos os senhores, ou seja, houve congresso nacional, houve congresso indiano, congresso dos mestiços, houve uma participação importante do Partido Comunista do qual o senhor fez parte. E, nesse sentido, nas suas vidas, no âmbito do processo histórico, houve avanços e recuos. Acho, sim, que muitos dos senhores não ficaram raivosos. Mas, mais do que raiva, tiveram ódio, como numa declaração muito explícita que o Mandela faz disso. Também a política oscilou entre uma política menos violenta com o exercício das armas e da violência física e uma intolerância mais amena, sempre uma intolerância positiva. Nesse processo histórico, portanto, vários personagens... As igrejas têm um papel muito importante na África do Sul e na África meridional de uma forma geral. Então, quero saber qual a sua importância nesse processo? Foi feito o livro, mas, o que é que se conversou para fazer o livro? Eu queria um pouco que o senhor colocasse esses outros companheiros, que também foram líderes, embora não tenham se tornado o mito que o Mandela se tornou.
Mac Maharaj: Acho que o que herdamos no mundo – e isso não é para apontar culpados–... os chineses chamavam de bárbaro qualquer estrangeiro. Essa questão do racismo deve ser compreendida em seu cerne, porque permanece tão forte no mundo. É porque nega a outros seres humanos sua humanidade. E esse é um aspecto particular que acompanhou a escravidão e o comércio escravista que ocorreu na África. Porque nós lhes negamos a história, negamos que fossem seres humanos. E essa é a pior forma de agressão. E ainda convivemos com isso. No mundo todo sempre que há um conflito e as emoções afloram, uns passam a olhar os outros como superiores e inferiores. O desafio de viver num mundo multicultural e respeitar todas as religiões, todos os idiomas e culturas é um desafio para este século. E o que estamos fazendo na África do Sul não posso dizer que seja a resposta final. só posso dizer que contribuímos com a humanidade dando um passo adiante. O que isso diz sobre meus colegas? Acho que todos eles, dentro da luta, nos presídios, nas salas de tortura, até mesmo aqueles que falaram sob tortura nos ensinaram algo mais. Porque dar valor à vida humana é o maior valor que se pode ter como ser humano. A segunda lição é que nós pensamos que devemos chamar certas pessoas de racistas, então, olhamos para elas e dizemos que são racistas. Nós não percebemos... Ou dizemos que são inferiores porque são negras. Nós não percebemos que a identidade de um negro é criada pelo modo como a outra pessoa o vê. Então, se sua identidade é criada pelo modo como a vejo, tenho a responsabilidade maior de não a ver de um modo que diminua sua humanidade. Essas são as regras básicas para mim neste mundo. Não devemos nunca pedir, como um povo, qualquer coisa que não estejamos preparados para dar a qualquer outro povo. Se conseguirmos fazer isso teremos criado uma nova regra para relações internacionais.
Vicente Adorno: Professor, o senhor falou há pouco do desprendimento que o Nelson Mandela teve e eu queria retomar esse aspecto. Nós temos um péssimo exemplo do contrário, que é o de Robert Mugabe [dirigente político do Zimbábue a partir de 1980, quando o país conseguiu sua independência. Desde então, venceu todas as eleições presidências do país – em 1984, 1990, 1996 e 2002– sob forte suspeita de fraude. Em setembro de 2008, assinou o Acordo de Partilha de Poder com a oposição liderada por Morgan Tsvangirai, mediado pelo ex-presidente da África do Sul Thabo Mbeki, que governou de 1999 a 2008], no Zimbábue. E a gente tem também no momento uma crise muito séria na República Democrática do Congo [no começo de 1997 uma guerra civil se alastrou no Zaire e Mobutu Za Banga (1930-1997), presidente do país entre 1965 e 1997, foi obrigado a se exilar em Rabat, Marrocos. A África do Sul, sob a liderança de Nelson Mandela, intermediou as negociações entre os rebeldes, liderado por Laurent-Désiré Kabila (1939-2001) e ainda promoveu a saída de Mobutu. Depois da guerra o país passou a ser chamado de República Democrática do Congo]. Por que é que esses outros países não têm a mesma consistência política, digamos assim, que a África do Sul vem demonstrando?
Mac Maharaj: Uma coisa muito especial em relação à África do Sul foi que o apartheid foi condenado pelo mundo todo como sendo racismo institucionalizado. Até mesmo as Nações Unidas o condenaram. No mundo todo, mesmo quando estávamos presos, líamos como as pessoas protestavam na Nova Zelândia contra a seleção de rúgbi da África do Sul, como protestavam nos Estados Unidos. Assim, nós desenvolvemos um grande sentimento de dívida com o mundo todo. E desenvolvemos um respeito pelo mundo, porque percebemos que não fomos só nós que, sozinhos, vencemos. Hoje enfrentamos os problemas o Zimbábue. A condenação, todos hesitam na África: como condenar um ao outro? Como seguir em frente? E acho que é errado, porque é preciso dizer uma coisa: "Esse é o nosso princípio. O senhor, sr. Mugabe, não respeita os direitos humanos de seu próprio povo." Mas, a partir daí, temos de nos perguntar: "Como ajudar o Zimbábue a realizar mudanças?" No Congo, eu me orgulho porque a África do Sul chamou todos os partidos do Congo e realizou uma conferência com eles na África do Sul, paga por nós, para que continuassem a conversar. Para chegarem a um acordo para as eleições, que são realizadas agora. E, agora, o ex-vice-presidente, que era líder dos rebeldes, está refugiado na embaixada sul-africana em Kinshasa. Você me pergunta como e por quê. Não estou aqui para julgar, mas estou aqui para dizer como devemos agir. E acho que, no meu próprio país, não me orgulho do modo como agimos com Mugabe, mas me orgulho muito do modo como agimos com o Congo. Temos de achar um meio de seguir em frente. E temos de fazer isso sabendo que a democracia, por si só, não é a resposta para uma melhor vida para as pessoas e para a igualdade. As regras do mundo devem mudar. Hoje não podemos exportar açúcar para os Estados Unidos, porque ele é protegido, porque na França o subsídio para uma vaca é maior do que nós mesmos recebemos anualmente em salários. Essas regras devem mudar. E só mudarão se países como o Brasil, com sua economia poderosa, países como a Índia, com sua economia poderosa, países como a China se unirem e disserem: "Vamos ter um comércio igualitário e justo."
Leila Leite Hernandez: A África do Sul sempre teve um papel importante para o bem e para o mal na política regional africana em relação a Angola, Moçambique [e] ao próprio Congo. E, agora, tem que substituir a Organização da Unidade Africana, a Unidade Africana, que pretendia ou pelo menos tem como objetivo atuar numa forma mais combativa nesses problemas que surgem na África. O senhor acha que isso é viável ou ainda estamos num momento em que é preciso ainda liderança da África do Sul, dos seus líderes, do senhor, do Mandela entrando nesses acordos [durante] esse período de transição das outras áfricas?
Mac Maharaj: Uma coisa importante que surgia na África é o que chamamos de grupo de análise dos pares. Nele, ex-líderes se reúnem, vão de país em país, fazem uma avaliação e elaboram um relatório. É algo positivo ser julgado por seus pares. Acho que há uma fraqueza nisso, porque, após o julgamento, o que você fará para que parem de agir daquela maneira? E Mugabe é um exemplo imediato. Estamos buscando nosso caminho e devemos fazer isso nos mantendo unidos. Não digo que encontramos as respostas, só digo que a liberdade da África do Sul nos levou a fazer as coisas de uma maneira diferente. E esperamos que outros peguem o que fizemos e façam melhor. Não vou dizer a ninguém: "Não lutem com armas por seus direitos nacionais". Não posso dizer isso, mas posso dizer uma coisa: "Esteja sempre pronto para fazer um acordo se surgir a oportunidade", porque precisamos de uma coisa nesse mundo, precisamos de um mundo no qual conflitos sejam resolvidos sem guerras.
Kátia Mello: Eu queria justamente falar sobre isso, sobre pegar em armas, quer dizer, vocês lutaram, vocês... O Mandela, inclusive, em um dos momentos, dizia que só não renunciaria à luta armada, quer dizer, não é essa a idéia de um pacifista. Qual foi a importância disso dentro das negociações e dentro do processo para desmantelar o regime?
Mac Maharaj: Quando as pessoas se enfrentam com armas é um erro pensar que a solução é primeiro renunciar à violência. Elas devem ter recorrido às armas por um motivo especial. E você e eu podemos não gostar do motivo, mas, em geral, deve-se à existência de um Estado opressor. Mandela recusou-se a abdicar da violência. E ele disse: "Por que exigem isso quando a violência começou no sistema de apartheid? Não vamos discutir isso. Vamos concordar que o que estamos fazendo agora destruirá nosso país e o futuro de nossos filhos. Seus filhos e meus filhos. Por isso é importante sentar-se e conversar. A violência diminuirá quando começarmos a conversar." E esse é um grande problema no mundo hoje, quando dizemos "a pré-condição é que largue suas armas". Como um combatente pela liberdade, jamais largarei minhas armas quando parecer que estou me rendendo.
Kátia Mello: Inclusive, ele foi muito criticado por ter relações – queria que o senhor comentasse também– com o Yasser Arafat e com o [Muamar] Kadafi da Líbia.
Mac Maharaj: Sim. E ele disse: "Não permitirei ao mundo, sobretudo ao mundo ocidental, aos Estados Unidos, cujos governos nunca nos apoiaram, que agora digam quem deve ou não deve ser meu amigo." Ele disse: "Vejam. O Ocidente foi à Segunda Guerra Mundial e vocês eram aliados de Stalin. E querem me dizer hoje quem será meu aliado?”
Vicente Adorno: Eles se aliaram também com Saddam Hussein durante muito tempo e depois enforcaram ele.
[risos]
Mac Maharaj: Exatamente. E, exatamente por ter assumido essa posição, Mandela foi capaz de ajudar a Líbia a solucionar o caso de Lockerbie e de convencer Kadafi a entregar os terroristas de Lockerbie [atentado de Lockerbie] para serem julgados em Haia [também conhecido como Corte Internacional de Justiça, o Tribunal de Haia é o principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas. Foi criado em 1946, substituindo a Corte Permanente de Justiça Internacional, que existia desde 1922, para arbitrar sobre disputas legais entre Estados e fornecer pareceres consultivos sobre temas de interesse de organismos e agências internacionais], porque ele manteve as portas abertas. E a lição, para mim, é que, em todos os setores de nossas vidas, em nossa família, em nosso país, quando houver um conflito – e haverá conflitos –, não se vá tão longe a ponto de fechar a porta. Se eu vir uma cobra nessa sala e for uma cobra perigosa e não tiver armas, o que devo fazer? Devo tentar convencer essa cobra a ir para lá, para que possa se esconder e sair daqui. Devo deixar a porta aberta. Não devo fechar a porta e lutar com a cobra, pois vou morrer. Essa é uma lição simples na vida para mim.
Renato Rovai: Professor, eu queria retomar um pouco esse debate sobre o poder continental da África do Sul, hoje, no continente. Hoje a África do Sul detém 50% do produto interno bruto da região subsaariana, da parte sul da África, e 20% do total do continente. Ela tem um poder econômico fantástico e, de alguma forma, tem destruído algumas economias locais, por exemplo Moçambique. Moçambique é hoje absolutamente desindustrializado, em boa medida porque é vizinho da África do Sul. Como o senhor imagina que o país vai ter que se relacionar com esse dado? E de que forma ele pode se relacionar de [maneira] solidária com esse tamanho que tem do ponto de vista regional? É possível que a África se torne um país sub-imperialista? O senhor vê esse risco?
Mac Maharaj: Não posso dizer que seja impossível. É possível. Porque vivemos numa economia mista com participação do Estado e do setor privado. Assim, eles podem espoliar o restante da África. Essa é uma possibilidade teórica. Qual é a prática? A prática, novamente, é que, quando nos tornamos livres, uma das primeiras coisas que nós fizemos e que Mandela fez, foi viajar pelo mundo para agradecer pela ajuda. E dissemos ao nosso povo: "No momento, não queremos controle nas fronteiras. Gostaríamos de abrir nossas fronteiras". E diziam que estávamos cometendo um erro. "Nós temos 30% de desemprego. E deixam estrangeiros virem tirar nossos empregos?" E dissemos: "Não podemos odiar uns aos outros. Devem entender que nos tornamos livres, porque Moçambique, Zâmbia nos deram um lar... Botsuana... nos deram um lar de onde lutar. E devemos ficar unidos”. Mas a maior questão é: muito embora a África do Sul seja uma economia importante, no mundo ela não é nada, é um pequeno pontinho. A menos que construamos uma economia do sul da África, da região como um todo, não teremos influência nenhuma no mundo. Então, o que estamos fazendo? Estamos tentando. Temos uma união aduaneira, para que todos possam ter a palavra, com Moçambique; eu pessoalmente ajudei, quando era ministro, a construir o corredor de Moçambique e a transferir assistência ao porto de Maputo que fica em Moçambique. E transferi algumas operações de Durban para Maputo, porque é mais perto para nossa indústria, torna os custos com transporte menores. Assim, temos de trabalhar nos ajudando, em vez de trabalhar espoliando um do outro. É como quando se sobe uma escada. Há duas pessoas subindo escadas, no mesmo degrau em cada escada e você se estica e puxa esse homem para baixo e acha que subiu mais. Não, você não subiu mais. É preciso ir para cima.
Paulo Markun: Professor, vamos fazer mais um rápido intervalo e voltamos em instantes com o Roda Viva, que hoje é acompanhado na platéia por Eduardo Duarte, estudante de jornalismo, William Jacobini, engenheiro, Fernando Stabile, advogado, e Eric Rao, fotógrafo e estudante.
[intervalo]
Paulo Markun: Professor, logo no início do programa eu fiz uma afirmação. [Mas] depois me dei conta de que fiz uma afirmação sem saber se ela era verdadeira. Disse o que o senhor era segregado em todos os lugares da África do Sul. E o senhor não é negro, o senhor é indiano de origem, certo? Eu queria perguntar, em primeiro lugar, se é verdade isso, se havia o mesmo tipo de segregação para indianos e negros, se havia distinção nesse tipo de discriminação. E, mais do que isso, como era o cotidiano de alguém que vivia na África do Sul do apartheid? Porque o que a gente tem de noção é apenas e tão somente aquilo que a mídia publica, desde os filmes até os próprios livros, que contam a história, mas não a vida real. Como era isso, havia essa distinção?
Mac Maharaj: O que era extremamente criminoso em relação ao apartheid é que pegavam todos os negros e os discriminavam por não serem brancos; depois pegavam os negros e os separavam entre africanos, pessoas de origem mestiça, pessoas de origem indiana; e, mais tarde, pegaram os negros e começaram a separá-los com base em sua etnia e seu idioma. Mas negros, mestiços e indianos viviam em áreas separadas. Às vezes tinham o mesmo trabalho, mas mestiços e indianos tinham salários melhores. Quando eu estava preso com Mandela e trinta outros, a maioria era de africanos. Todos recebíamos o mesmo mingau no café da manhã, mingau de milho. Mandela e os outros africanos recebiam uma colher de chá de açúcar. Os mestiços e os indianos recebiam uma colher de sopa de açúcar. E não podíamos dividir. Quem dividia violava um regulamento da prisão. Esse era o grau de refinamento em termos da desumanidade. E, às vezes, não acreditamos que outro ser humano possa pensar assim. Assim, a raça e a discriminação racial afetavam africanos, mestiços e indianos. Eles decidiam onde você ficava, que escola freqüentava, para que hospital iria e até em que túmulo seria sepultado. E tinha de ser separado. Mas a diferença, aquela colher de chá de açúcar, evitava que nos uníssemos. Era para criar uma impressão de que nos odiávamos e de que temíamos uns aos outros. E, para mim, a maior lição é: nunca encoraje as pessoas a temerem as outras, porque o medo o levará fazer coisas erradas.
Maria Amélia Rocha: Professor, o senhor acredita que exista a possibilidade de o senhor ver ainda um mundo sem racismo?
Mac Maharaj: Se não houver, estou pronto para voltar à prisão. Não. Eu preciso acreditar nisso. Preciso acreditar nisso, porque acredito que o que nos torna humanos não é nosso próprio egoísmo, é nossa capacidade de influenciar o próximo. Eu me torno humano pelo modo como trato você e como trato a natureza. E, quando me torno humano, todos ao meu redor também se tornam humanos. Tenho uma grande fé. Compreendo as raízes históricas do racismo, as raízes históricas da intolerância, mas acredito que nossa humanidade é definida por valores maiores do que a necessidade da guerra e de nos matarmos.
Paulo Markun: A propósito dessa questão ainda, o Rappin Hood, que é um rapper e colaborador do programa Metrópolis, da TV Cultura, tem uma pergunta para o senhor.
Rappin Hood: Salve, salve, toda a rapa da TV Cultura, programa Roda Viva! Eu gostaria de saber, Mac Maharaj... Aqui no Brasil a gente vive um racismo velado. É um lugar onde alguns dizem que não existe racismo, mas na verdade o Brasil é um país racista. Eu gostaria de saber de você como vê, anos depois do fim do apartheid, o racismo na África do Sul e no mundo.
Mac Maharaj: Acho que apenas começamos a estabelecer as condições para abordar esse problema do racismo. Em nenhum lugar do mundo foi abordado de modo satisfatório. Ele existe na África do Sul, nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, na Alemanha – onde não querem operários turcos. Em qualquer parte do mundo existe. A questão é que, não se pode acabar completamente com ele, a menos que se crie uma situação de oportunidade e igualdade econômicas. Enquanto houver pobreza e fome, haverá espaço para isso ser gerado e fazer uma pessoa temer a outra, porque quero um emprego e não quero que você tenha emprego, porque vai tirá-lo de mim. Temos de compreender que esse problema não será solucionado em poucos anos. É um problema que temos de abordar em casa, em nossa família, em nosso local de trabalho, em nossas escolas, em nossos clubes e na política. Somente a lei não resolverá esse problema, pois estamos falando numa mudança de comportamento. Estamos falando em perceber que, se tornarmos outras pessoas melhores, isso nos tornará melhores. Esse é o problema. Estamos longe de solucioná-lo, mas identificamos o problema. É um passo adiante. E, mesmo no Brasil, é preciso poder falar sobre isso de modo construtivo em vez de escondê-lo sobre o tapete. Tire isso de debaixo do tapete e deixe que as pessoas discutam sem ter de brigar. Vamos conversar sobre o que é bom para todos nós e como, se um brasileiro que é discriminado, se esse grupo de pessoas puder se tornar médicos, advogados, engenheiros, como isso será melhor para todos os brasileiros, porque você terá maiores recursos.
Christian Lohbauer: Pois é, mas é justamente esse aspecto que eu queria levantar. O senhor lutou junto com Nelson Mandela, dedicou sua vida a combater um sistema explícito de apartheid social e racial. No Brasil, a gente tem enorme dificuldade de lidar com esse tema, porque a gente não tem uma definição muito clara do que acontece aqui. Tem gente que acha que tem, tem gente que acha que não tem. Na verdade, existe um racismo subliminar e a conseqüência disso é que existe... O acesso aos recursos, as posições nas universidades, nas empresas etc., acaba sendo direcionado indiretamente às comunidades mais brancas, vamos dizer assim. Então, o que acontece, esse governo decidiu partir para uma política de determinação de cotas raciais. E isso também gera um enorme debate, porque, se na África do Sul era menos complicado definir quem era o quê, no Brasil isso fica bem mais difícil. Cabe, na verdade, ao indivíduo dizer se ele é negro, amarelo, azul ou verde. E é isso que complica demais, porque a vaga nas universidades é para as minorias raciais. E, ao que me parece – e eu estou plenamente de acordo com o senhor –, é que a conversa deve se dar em torno das oportunidades. O que o senhor pode trazer como opinião da experiência sul-africana dessa idéia de cotas para minorias raciais nas universidades?
Mac Maharaj: As cotas são o que eles chamam de ação afirmativa. Isso surgiu no mundo como um instrumento para, em parte, compensar esse desequilíbrio. Na África do Sul, fizemos um trabalho fantástico quanto à discriminação por sexo. O Congresso Nacional começou afirmando que na lista de candidatos ao Parlamento deveria haver 30% de mulheres. Alcançamos isso. Agora, estão dizendo que deverá haver 50% de mulheres. O processo está sendo levado adiante. No setor privado, cada vez mais mulheres – ainda são muito poucas– estão se tornando presidentes de empresas, estão se tornando professoras universitárias, estão se tornando vice-reitoras de universidades, diretoras de hospitais... Mas ainda são poucas. O que estou dizendo é que o sistema de cotas ajudou. Em outros casos, as cotas podem ajudar por um tempo e depois se tornarem um freio, impedindo o progresso. Por que digo isso? Por exemplo, temos o importante dever de construir a unidade como um sentimento de nação na África do Sul. Mas, como o apartheid colocava os africanos embaixo, mestiços e indianos aqui e os brancos no topo, agora a questão é: a quem devem ser dadas oportunidades? E começar a definir cotas acabará fazendo com que uns temam os outros. Então, é preciso testar e talvez eu esteja errado, só tenho uma opinião: é a de que numa sociedade democrática vamos chegar a um consenso com um diálogo público de qual é a minoria mais vulnerável na comunidade. Definiremos isso dialogando e, em intervalos de alguns anos, perguntaremos a eles: "Vocês estão esperançosos ou estão pessimistas?" E, se esse grupo minoritário estiver esperançoso, significa que se está fazendo a coisa certa. Mas, se ele estiver pessimista, então, saberá que está errando. Pegue o mais baixo dos baixos e use-o em um teste. Não pergunte à maioria que agora está no poder. Pois, se perguntarmos à maioria, dirão que estão bem. Talvez isso seja parte do problema. É preciso dialogar para determinar e concordar quem é a minoria das minorias em sua sociedade. E vamos concordar em testar para saber se o que fazemos está gerando esperança ou desespero, porque nós não sabemos. Estamos numa jornada na qual temos de aprender uns com os outros. E, mais importante, vamos aprender com nossos erros. Acredito que estudamos história não para saber o que fazer, mas o que não fazer.
Vicente Adorno: Professor, tem outra coisa que o Brasil acho que está compartilhando com a África do Sul neste momento. Recentemente, uma pesquisa de opinião disse que hoje o brasileiro tem muito mais medo de violência urbana do que de perder o emprego. A África do Sul também tem um problema parecido. Como vocês estão tentando lidar com isso?
Kátia Mello: Eu queria acrescentar à pergunta do Vicente, que é justamente sobre esse tema... Existe esse legado, aqui vivemos a cultura da violência e na África do Sul também. Nós temos o legado da ditadura dentro das prisões, a tortura, o sistema... E eu queria que o senhor comentasse isso, inclusive o que está sendo feito por lá?
Mac Maharaj: Acho que parte do problema é o modo como você me vê. Devido ao que eu passei: tortura, aprisionamento, tudo... você supõe que não estou traumatizado, você supõe que não há cicatrizes dentro de mim, você supõe que não há cicatrizes em Mandela. Não acredito que isso seja verdade. Acredito que vivemos numa sociedade traumatizada, brancos e negros, adultos e crianças e, quando se vive com o trauma, existe um grande potencial de violência nessa sociedade. Na minha opinião, na África do Sul nós estamos num estado de negação do nosso próprio trauma. Quando as crianças cresceram vendo aos oito anos de idade crianças sendo baleadas pela polícia todos os dias, quando as crianças têm de lutar com paus e pedras, quando vêem suas mães passarem fome e morrerem sem comida, porque deram ao filho o último bocado, o que acontece com a psique delas? O que acontece com a certeza delas do que é certo ou errado? O que digo é que devemos abordar essa questão com um diálogo maior, porque devemos abordar não só o que a lei deve dizer e o que a polícia deve fazer, mas o que cada um de nós deve fazer. Outro dia o alarme do meu vizinho disparou. Ouvi e me levantei para ir ver. Minha mulher disse: "Não vá. Os ladrões podem estar armados e podem atirar em você." Assumi um compromisso em 27 de abril de 1994, quando as eleições haviam acabado, porque meus filhos haviam me visto pegando em armas... Eu os chamei,e peguei minhas armas e disse "hoje nós votamos; agora posso dizer que meu maior sonho se realizou" e peguei as armas e as joguei fora. Mesmo assim, as pessoas me dizem: "Nessa violência, você precisa de uma arma". Tomei uma decisão pessoal. Não preciso. E não fui socorrer meu vizinho. E você não pode acabar com o crime se não puder ser o guardião do seu irmão. Faz parte da mudança, mas começamos dizendo que estamos traumatizados, que fomos afetados. Gostamos de fingir que somos perfeitos. Não somos. Você não pode passar por sessenta dias de tortura, 12 anos de encarceramento e dizer a si mesmo... E ficar separado de sua mulher e de seus filhos. Seus filhos não o vêem durante anos quando são pequenos. Não se pode passar por isso sem traumas ou cicatrizes em cada um de nós. Por isso vivemos assim. Quando Mandela diz que quer fazer coisas pelos netos e bisnetos, digo "já não fez o bastante pelo país?" Mas entendo. Ele se sente culpado por não ter estado presente para os filhos. Assim, vivemos com culpa se negarmos, mas se criarmos condições para falar a respeito, começaremos a achar formas de abordar a questão.
Paulo Markun: Ficou a segunda parte da pergunta, que é mais, digamos, específica, que é o seguinte: no Brasil ficou institucionalizada a tortura aos presos comuns. Isso é uma regra, há exceções, ao contrário do que talvez fosse razoável pensar. Pergunto se na África do Sul isso acontece também e como se combate isso, até mesmo como se encara isso, porque aqui há quem diga que isso não é um desrespeito aos direitos humanos, porque presos e bandidos não são humanos.
Mac Maharaj: Primeiro, estive... Fui torturado e fui um comandante que captura as pessoas e diz "este aqui tem informações". Eu o entregava à segurança e mandava conseguir as informações. Nunca recebi informações úteis por meio de tortura. E não acho que isso ajude em lugar algum. Mas faz parte do poder e faz parte da natureza de força e violência na sociedade você começar a pensar que com o uso da tortura vai conseguir vantagens para sua causa. Na África do Sul, hoje, há muitos relatos de que numa África do Sul livre nossa polícia agrediu um presidiário ou uma pessoa que foi presa. Criamos um mecanismo para investigar a polícia. Acho que é um mecanismo importante, mas não é o fim da história, porque vivemos numa sociedade de desigualdade, vivemos numa sociedade em que as oportunidades são poucas, e numa sociedade que incentiva as pessoas a passarem por cima de outras e acharem com isso que são melhores. Então, eu concordo. O problema continua e o maior perigo é se tornar desumano e dizer: "isso é natural". Isso não é natural. Porque quando você sobe nos ombros de outra pessoa você está se tornando uma pessoa menor. Está diminuindo sua humanidade.
Paulo Markun: Vamos para mais um rápido intervalo e voltamos daqui a pouco com a entrevista desta noite, que é acompanhada da platéia com Cláudia Warnes Thadei, produtora cultural, Gerson Luiz Morelli, professor universitário, Valentina Moreno, produtora cultural, e Priscila Costa, estudante de rádio e TV.
[intervalo]
Paulo Markun: Professor, há cientistas que dizem que um passo importante para eliminar o racismo seria extinguir o conceito de raça e substituí-lo pelo conceito de espécie humana. O senhor acha que isso ajuda?
Mac Maharaj: Sim, acho que no âmbito da ciência há somente uma espécie e é a raça humana, mas a sociedade cria teorias sociais e o racismo faz parte dessas teorias sociais. E esses conceitos são criados, às vezes, para entender a sociedade e outras vezes se tornam instrumentos para o exercício do poder. Vai mudar alguma coisa se utilizarmos outro termo? Não sei, porque ainda assim haverá discriminação e teremos de criar um novo termo para dizer "sim, este aqui é discriminatório". O racismo ganhou uma reputação pela qual ninguém quer dizer "sou racista". Talvez já seja um avanço. Mas não sei se apenas a criação do conceito de raça humana eliminará o problema.
Paulo Markun: Mas a idéia dos cientistas – não compartilho necessariamente disso – é que não se poderia sequer usar a expressão raça humana, mas sim espécie humana.
Mac Maharaj: Sim. Mas, depois que fizer isso, o que acontecerá ao índio brasileiro? Os filhos dele terão oportunidades iguais para ir à escola? Terão os mesmos benefícios ou lhes serão negadas essas oportunidades, porque são indígenas da América do Sul? A mudança do termo pode ser importante para nos lembrar que somos um só povo. Mas, ao mesmo tempo, não é uma resposta para a realidade da discriminação que ocorre. E o mal que combatemos é o mal da discriminação. Nossa briga não é para que você abdique de seu idioma, você se envergonhe de sua cultura, você se envergonhe de sua cor. Não. Nós lutamos para dizer: "orgulhe-se de quem você é, mas respeite o outro. Orgulhe-se de seu idioma, mas respeite todos os idiomas. Orgulhe-se de sua cor, mas não vou lhe dizer por quem deve se apaixonar. Isso é assunto seu." É com isso que estamos lutando. Como conseguir unidade como raça humana e como conseguir respeito pela diversidade, compreendendo que o único verdadeiro respeito pela diversidade é todos terem oportunidades iguais na vida.
Vicente Adorno: Professor, não haveria a possibilidade de discutir isso de outro jeito? Se, vinte anos atrás, alguém me dissesse que nós estaríamos discutindo religião como acontece hoje eu acharia que essa pessoa estaria maluca. No entanto, hoje também existe esse preconceito da religião. Aqui nessa televisão uma vez coloquei uma notícia no ar e um erudito muçulmano me chamou a atenção: “Por que você está falando em terrorismo islâmico? O terrorismo islâmico não existe, porque o Islã é contra qualquer forma de violência. Você não diz terrorismo protestante, judeu, católico ou de qualquer outra forma. Por que você está se referindo a isso?” Aí, eu o chamei pra cá e ele falou num programa nosso sobre esse tipo de discriminação que, hoje, os fundamentalistas quase sempre são identificados com os islâmicos, mas existem fundamentalistas cristãos e judeus etc. Como a gente lida também com esse outro tipo de preconceito?
Mac Maharaj: Acho que voltamos à mesma questão fundamental, de que toda religião, toda ideologia têm potencial para o surgimento de fundamentalistas porque estão ligadas ao exercício do poder e ao uso da força. Há igualmente fundamentalistas católicos como há presbiterianos, protestantes e budistas. Assim, o terrorismo não é inerente a uma determinada religião. Nosso desafio é saber se há um problema político em torno do qual isso surgiu ou se é um problema de segurança. Normalmente, os que estão no poder gostam de definir qualquer oposição como sendo um problema de segurança. Assim, ignoram uma solução política. Eu concordaria com você até o ponto em que eu diria que diversidade significa o reconhecimento das diferenças e a legitimidade de todas as religiões. Na África do Sul, podemos dizer à população que, após 1994, não há necessidade de violência. Antes de 1994 não havia o voto, então, eu não podia dizer para não fazer daquela forma. Mas, agora, quando os vejo protestando com violência digo a eles: "Estão protestando diante de uma injustiça, estão certos. Mas, quando começam a matar pessoas, a destruir bens, estão errados, porque agora há os instrumentos para mudar o sistema". Estamos nesse ponto e isso pede uma coisa, repetidamente: diálogo, diálogo e mais diálogo. E, assim, vocês me interrogaram e isso faz parte do diálogo.
Leila Leite Hernandez: Essa questão que o senhor coloca com propriedade, com uma clareza muito grande, ou seja, diferenças sem implicar desigualdades, assimetrias, acho que remetem um pouco a gente para a questão semântica do que significa apartheid, porque racismos existem nas áfricas como um todo, Brasil, EUA etc. O apartheid tem particularidades. Na verdade, ele segrega as sociedades por uma questão étnica, por uma questão racial, por uma questão lingüística, por uma questão religiosa, pela própria visão que se tem do que é humanidade. Na verdade, ela perpassa a sociedade como um todo e hierarquizou os mestiços entre si. Ela hierarquizou os negros no seu bloco. E também partiu... Então indianos, mestiços e os próprios brancos. Os brancos mais pobres, os portugueses imigrados também eram discriminados. Então, era um sistema que acho que talvez, com um pouco de exagero, a gente pode chamar de totalitário. Um sistema totalitário que vai se construindo ao longo do tempo. Quando os senhores iniciam essa desconstrução, e ela paulatinamente caminha até chegar ao governo de transição, e depois à Comissão para a Verdade e a Reconciliação, tratava-se do quê? De, além de unificar a sociedade, começar a inventar a nação com alguma identidade comum [criada em 1995 pela Lei da Promoção da Unidade Nacional e da Reconciliação, a Comissão foi instituida por Nelson Mandela com o objetivo de promover a unidade e reconciliação nacionais do país em relação às vitimas do regime de apartheid]. Como o senhor mesmo diz, a lei é importante, mas ela não basta, não dá conta desse cotidiano tão fragmentado, tão fracionado. Até o ponto em que o senhor participou do governo e, agora, indo à África do Sul, do que o senhor sabe, o que está sendo feito efetivamente, não só em termos das intenções do governo, em termos de política educacional e política cultural?
Kátia Mello: Só pra acrescentar a isso eu gostaria de saber... Porque tem o chamado state of mind, que é como as pessoas pensam. Então, imagino que depois de 350 anos as pessoas não mudaram o jeito de pensar de uma hora pra outra. Como é que se trata, no governo, das escolas aonde agora vão negros e brancos e todos estudam juntos? Imagino que tenha uma série de problemas também em relação a isso na prática.
Mac Maharaj: Mais uma vez, vamos nos orgulhar do que nós, como seres humanos, conseguimos realizar. Criamos sistemas educacionais que podem nos ajudar a conquistar o universo e a viajar para Saturno e Plutão. Mas, ao mesmo tempo, tornamos tudo tão especializado, que mesmo um físico não é mais apenas um físico. Ele é um tipo específico de físico. E o resultado é que precisamos começar a reconhecer que nosso sistema educacional, embora tenha nos trazido tão longe, não capacita nossas crianças para serem cidadãs do século XXI. É um desafio que temos de enfrentar. Faço parte desse processo em Bennington College, por isso leciono lá. Não sou professor por formação, mas reconhecemos que não estamos produzindo o cidadão do século XXI. Esperamos continuar mudando, mas eu sei por experiência própria, tenho uma regra muito simples. Talvez, ao simplificar, você cometa grandes erros, mas a regra simples é a seguinte: não me interessa o que meus filhos pensam, o que me interessa é como eles pensam, porque, se aprenderem como pensar adequadamente, poderemos sempre debater, argumentar e acordar e chegar a uma conclusão. Mas, se aprenderem apenas em que pensar, não haverá debate. Esse é o desafio, mas não é um desafio novo na educação, foi reconhecido há muito tempo. Apenas não encontramos um meio de progredir e esse é um dos esforços que me motivam a lecionar em Bennington College. Então, mais uma vez, desculpe, não tenho uma resposta. Só tenho uma coisa a dizer: como podemos unir nossas mentes? Como podemos nos desafiar? E como podemos fazer testes para saber se estamos chegando aos resultados certos? Os políticos – e foi por isso que me aposentei após cinco anos – querem que você os julgue pelas intenções deles. Acho isso errado. Devem ser julgados pelos resultados, não pelas intenções.
Paulo Markun: Professor, nosso tempo acabou e eu queria agradecer muito a sua participação e dizer que, certamente, haveria outros pontos a serem discutidos, mas televisão é assim. Queria agradecer aos entrevistadores e aos espectadores em casa.