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Memória Roda Viva

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Lima Duarte

15/3/1993

O consagrado ator de cinema, teatro e televisão divulga seu novo espetáculo Ser tão sertão e conta histórias da vida e da ficção

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[Programa gravado, não permitindo a participação de telespectadores]

Jorge Escosteguy: Boa noite. Guimarães Rosa está de novo nos palcos de São Paulo, na voz de um de seus maiores admiradores. E não por acaso, um dos melhores atores do cinema, do teatro e da televisão brasileira: Lima Duarte. Ele está na Sala São Luiz com o espetáculo Ser tão sertão e deve ficar até julho, com trechos da obra Grande sertão: veredas [1956], de João Guimarães Rosa. Lima Duarte é o convidado desta noite no Roda Viva, que começa agora pela TV Cultura de São Paulo.  Com 63 anos  [de idade] agora em março e cinquenta anos de carreira, Lima Duarte começou na televisão brasileira, quando a televisão brasileira começou no Brasil. Fez peças de teatro, rádio, cinema, televisão. Ficou conhecido por vários personagens de novelas na TV Globo, como Salviano Lisboa em Pecado capital [1975], Cassiano Mendes em Meu bem, meu mal [1990], Zeca Diabo, Sassá Mutema, Sinhozinho Malta e a última novela que ele fez foi Pedra sobre pedra [1992], onde interpretava Murilo Pontes. Lembramos aos telespectadores que o Roda Viva também é transmitido pela TVE da Bahia, TVE do Ceará, TVE do Piauí, TVE de Porto Alegre, TVE do Espírito Santo, TVE do Mato Grosso do Sul e TV Minas Cultural e Educativa. Para entrevistar Lima Duarte, nós convidamos Lúcia Soares, repórter do programa Metrópolis da TV Cultura; Leila Reis, editora do suplemento "Telejornal" do jornal O Estado de S. Paulo; Regina Ricca, repórter do "Caderno de Variedades" do Jornal da Tarde; Rosane Pavam, da revista IstoÉ, o crítico Edelcio Mostaço; a crítica Ilka Maria Zanotto; Aimar Labaki, crítico de artes e espetáculos da TV Bandeirantes e Rinaldo Gama, sub-editor de artes e espetáculos da revista Veja. Lembramos também aos telespectadores que, como esse programa foi gravado, não haverá perguntas ao vivo por telefone. Boa noite, Lima.

Lima Duarte: Boa noite, à disposição.

Jorge Escosteguy: Você está voltando, pela segunda ou terceira vez, com Guimarães Rosa, no espetáculo com trechos do Grande sertão: veredas. Por que essa paixão por Guimarães Rosa? Inclusive, é um espetáculo incrementado, tem música, fotos, slides muito bonitos.

Lima Duarte: É.

Jorge Escosteguy: Tem até essência de cheiro de mato no ar condicionado. [risos]

Lima Duarte: Essa é a idéia.

Jorge Escosteguy: E servem alguns quitutes antes da peça.

Lima Duarte: É, porque a idéia é a seguinte: é fazer Guimarães Rosa. E, sem dúvida, o seu Grande sertão: veredas é um dos livros mais citados e menos lidos da literatura mundial. Todo mundo diz: “Ah, é muito difícil, muito complicado e tal”, então a gente...Quem ajudou a organizar esse recital foram os professores José Gargulho, da USP [Universidade de São Paulo] e o professor David José de Moura Mattos, que é do Departamento de Sociologia da Arte ,da Unicamp. [Universidade Estadual de Campinas] Nós somos apaixonados pelo Guimarães e líamos muito, muito, até que um dia eles disseram: “Porque você não diz? Você diz tão bem, há uma empatia tão grande entre você e a obra”, eu falei: “Ah, então vamos organizar!”. Muitos colegas meus gostam de Shakespeare, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, e eu digo João Guimarães Rosa. Agora, a idéia geral do espetáculo é que ele fosse bem envolvente, que transformasse...eu quero enfiar Guimarães Rosa pelos sete buracos da cabeça de cada um.

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Você acha que sete buracos são suficientes para os que dizem que é muito difícil? Qual é a reação das pessoas?

Lima Duarte: Se estiverem todos abertos é até demais, mas muitos andam fechados. Então, no saguão, a gente distribuiu uns docinhos, uns quitutes lá de Minas Gerais, alguns até citados no livro. Guimarães Rosa entra pela boca. Depois quando chegam lá, a gente põe essência de capim barbatimão [planta nativa do Cerrado brasileiro] no ar condicionado. Guimarães Rosa entra pelo nariz. E depois têm uns slides lindíssimos do [...], que fotografou o Grande sertão: veredas. Guimarães Rosa entra pelos olhos, com um trabalho de multimídia do Paulo von Poser, que é um artista jovem, muito bom, muito prestigiado. E depois eu digo as palavras do Grande sertão: veredas. Eis Guimarães Rosa pelo ouvido.

Jorge Escosteguy: Agora, você não gostou, por exemplo, da versão que se fez na televisão do Grande sertão: veredas. [Em 1985, o livro foi adaptado em uma minissérie escrita por Walter Durst (1922-1997) e dirigida por Walter Avancini, protagonizada pelos atores Tony Ramos e Bruna Lombardi].

Lima Duarte: Ai, caramba! Estão me entregando...

Jorge Escosteguy: Que foi até, surpreendentemente, um sucesso.

Lima Duarte: Foi, sem dúvida. Eu não gostei, discuti isso com Walter Avancini, exaustivamente. Brigamos, até discutimos mesmo, porque eu tenho posições muito firmes a respeito do Grande sertão: veredas, é uma visão muito pessoal e muito própria. Também sei que cada um faz a sua leitura, como ocorre com grandes livros. Essa que está lá, na Sala São Luiz, é a minha leitura. São os trechos que eu acho mais importantes que eu ressalto e coloco, calçado por cançõezinhas que eu me lembro lá de Minas Gerais. Minha mãe era atriz de circo, ela fazia a peça e depois fazia um negócio chamado ato variado, onde ela cantava umas cançõezinhas...Na questão do Grande sertão: veredas que fizeram na televisão, de fato, não concordei com o espetáculo do Avancini. Se não for muito fastidioso, eu te explico aqui o porquê. Porque o Guimarães escreveu um livro que é, na minha opinião, sobretudo, uma história de amor, um livro sobre o amor. E, muito mais que uma história de amor, são dois jagunços, dois terríveis jagunços, muito eficientes, dois guerreiros com os dentes apontados, com unhas grandes, para ser todo o corpo uma coisa de guerra mesmo. Perdem-se as armas, eles dão dentadas. Então esse dois guerreiros machos...De repente, o Riobaldo, ou Tatarana ou Urutu-Branco começa: "Mas o que está acontecendo comigo que eu quero botar a minha mão onde ele botou a mão dele?". Eis o amor e denunciando em um olhar, em uma curva da estrada, em uma folha caindo, no sertão, na selvageria, na brutalidade, o amor que vem nascendo e se sobrepondo, até conquistar completamente os dois. Tanto que Riobaldo diz: "Era o amor mal disfarçado em amizade: é o amor!" E vende a alma ao demônio para se livrar desse amor. É uma metáfora muito bonita:  vender a alma ao ódio para se livrar do amor. Pois muito bem. No fim, ele descobre que é mulher, mas só no fim, depois do amor ter vencido completamente. Então, o que eu não concordei - e disse ao Avancini - é que ele colocasse a Bruna Lombardi - nada contra a Bruna, é uma atriz que tem lá o seu espaço, faz lá o que ela quiser - mas é mulher entre as mulheres. A Bruna é mulher, a primeira cena em que ela aparecesse, todos os espectadores saberiam disso. É uma mulher vestida de jagunço. E aparece o outro jagunço, só estão esperando chegar ao fim da história para ele transar ela, mesmo porque o jagunço com aqueles olhos, todo o bando se apaixonaria também por ele. Isso invalida, na minha opinião, um elemento poderosíssimo do livro, que é a vitória do amor, onde ele não podia vencer.

Jorge Escosteguy: Você não acha que, apesar de todos esses problemas, o fato de a televisão veicular uma obra como o Grande sertão: veredas, que é tão difícil e vende pouco, é meio caminho andado para, não digo popularizar, mas dizer Guimarães Rosa?

Lima Duarte: É um caminho inteiro andado, é uma coisa maravilhosa. Nós estamos discutindo e falando isso em um nível bem...não é? É evidente que o Guimarães Rosa, aliás, o grande serviço que ele presta à maioria dos novelistas...todas as novelas de região têm o Guimarães Rosa. Eu acho que foi um trabalho maravilhoso, foi um espetáculo maravilhoso. Minha posição é conceitual, a interpretação do Avancini é que eu não concordo. Aliás, a adaptação, que é do Walter Durst, uma pessoa maravilhosa, um grande profissional, foi lindíssima. E ele também não gostou muito da escolha.
 
Jorge Escosteguy: Aimar, por favor.

Aimar Labaki: É que dizer Rosa é tão difícil quanto dizer Shakespeare. Se você tivesse a direção desse espetáculo para a televisão e tivesse que escolher atores, quem você escolheria?

Lima Duarte: Pensei tanto nisso, que bom.

Aimar Labaki: Então fale.

Lima Duarte: Eu escolheria...O meu Diadorim é a [atriz] Regina Casé. [Ver entrevista com Regina Casé no Roda Viva]

Aimar Labaki: Regina Casé?

Lima Duarte: Regina Casé. Eu fiz um filme com ela: Os sete gatinhos [1980, dirigido por Neville de Almeida], e ela tem uma recôndita sensualidade, tão sensual e tão escondida, que é preciso ser descoberta. Isso a torna muito mais bonita e muito mais sensual. Isso, naquele tempo, não é? Não sei agora, mas ela tinha uma sensualidade que é um coisa... No filme, ela fazia a minha filha, e eu vi em trajes assim... e eu falava: "Que belo Diadorim!". Então eu a mandaria cortar os cabelos igual homem, falaria: "Quer uma obra definitiva na sua vida e na história da televisão? Você vai viver dois anos como homem. A Globo pode pagar".

Jorge Escosteguy: Você chegou a conversar sobre isso com ela?

Lima Duarte: Bota roupa de homem, e vai viver como homem em Minas Gerais, conversando como homem, bebendo como homem e depois vem aqui, põe a roupa e nós fazemos o Diadorim. Porque ela é uma mulher tão homem, e um homem tão mulher...

Aimar Labaki: E quem é o par ideal para ela?

Lima Duarte: O par? O Riobaldo, o Urutu-Branco, sou eu mesmo.

[risos]

Lima Duarte: Não, eu estou brincando. Se eu tivesse que fazer alguma coisa ali, eu fazia o Joca Ramiro, o Zé Bebelo. Hoje o homem já é mais difícil, porque ele diz como ele é: "Por mim o que eu pensei foi que eu não tive pai, isso porque eu nunca soube autorizado o nome de meu pai, e eu não em envergonho por ser de um escuro nascimento". Então ele é batumado, caboclo, não é? E eu não vejo nenhum, mas deve ter. Eu também não tenho visto muitos atores...mas homem é mais fácil, o Diadorim é difícil.

Jorge Escosteguy: Você chegou a conversar sobre isso com a Regina Casé?

Lima Duarte: Não, nunca falei. Estou dizendo isso pela primeira vez agora. Vocês gostaram da idéia? A Regina seria um belo Diadorim, não é?

Lúcia Soares: Lima, Ser tão sertão é um espetáculo classificado como um recital.

Lima Duarte: É.

Lúcia Soares: Um pouquinho antes do programa, eu estava conversando com a Rosi Campos, que é uma atriz paulista de teatro.

Lima Duarte: Lindíssima, bela atriz.

Lúcia Soares: E ela falou que você faz parte de uma geração que sabe falar no teatro, que a geração dela já não sabe falar, que a geração dela se preocupa mais com iluminação, com efeito cênico, com soluções cênicas. Você concorda? Você acha que a palavra, hoje, no teatro está sendo relegada a um segundo plano?

Lima Duarte: Eu não sou uma autoridade, não tenho ido muito a teatro, não vejo muito teatro, para opinar sobre isso, sem ser leviano, pueril. Mas a minha geração era a palavra. Eu trabalhava, fazia um teatro e era uma época em que se exigia dos atores que eles fizessem definições ideológicas claras. Eu trabalhei sempre em um teatro de grande definição ideológica, que foi o Teatro de Arena, por 12 anos.

Jorge Escosteguy: Há poucas semanas, esteve aqui no Roda Viva, o Antunes Filho [diretor de teatro entre os mais importantes do país, com carreira longa e de sucesso, inclusive internacional, conhecido também por empreender uma obra dramatúrgica e cenicamente autoral e por conceber uma escola de representação que formou muito atores - ver entrevista com Antunes no Roda Viva]. E já que se falou em palavra, ele disse justamente, em relação a isso, que os atores de hoje, principalmente os de televisão, parecem locutores.

Lima Duarte: [risos] É possível, também não vejo tanta televisão assim, não vejo tão criticamente assim quanto o Antunes Filho. Não, eu não vou me furtar a nada. Eu respondo tudo, falo tudo, não é murismo da minha parte, nem mineirismo não. Não vi o que o Antunes Filho disse, e também não sei se todos falam como locutores. Acho que ele fala muito, e se há uma pessoa que tem direito de falar, é o Antunes Filho. Mas quando fala muito, fala bobagem também, não é? E eu sou...

Regina Ricca: [interrompendo] Mas quem você identifica nessa nova geração de atores...

Lima Duarte: Só me permite uma coisa, deixa eu concluir aquilo ali, senão fica uma loucura, não é? Eu fazia um teatro de grande definição ideológica, e ideologia se definia pela palavra, pelo discurso, o nosso discurso era ideológico. Eu parava e fazia discurso. Então, nós cuidávamos muito da palavra, e da maneira de emiti-la. Assim que terminava o nosso espetáculo no [Teatro de] Arena, a gente subia e, orientados pelo [Augusto] Boal, pelo [Gianfrancesco] Guarnieri [(1934-2006), ator e dramaturgo nascido na Itália, com obra marcada pela densidade dramática e pela temática ligada aos problemas sociopolíticos brasileiros - ver entrevista no Roda Viva], por muitos dessa comunidade universitária, líamos tudo aquilo ali, e tínhamos que verbalizar as teorias com clareza.

Lúcia Soares: Lima, deixa eu só aproveitar, a Fernanda Montenegro [consagrada atriz brasileira de novelas, teatro e televisão, considerada pelo público e pela crítica uma das melhores de todos os tempos] está estreando um espetáculo aqui em São Paulo, Gilda, que também é uma alta comédia [estilo teatral realista, voltado para a burguesia e que denuncia a corrupção da sociedade e perda de valores como família e religião. Os autores enfatizam aspectos psicológicos dos personagens, suas palavras e ações], toda baseada na palavra, que é...

Lima Duarte: [interrompendo] Alta comédia é do meu tempo viu? [risos]

Lúcia Soares: É, é alta comédia, e ela também falou isso, quer dizer, passado tanto tempo, a palavra continua sendo um grande desafio para o ator. É isso?

Lima Duarte: Ah, eu acho que é. Eu comecei a fazer teatro...Se há uma coisa realmente curiosa e interessante para os senhores saberem, e até podemos conversar sobre isso, é que na elite de atores brasileiros, eu sou o único de formação rural. Tem atores que são médicos, advogados, dentistas...eu não, eu sou caboclo, sou caipira, nasci em uma invernada que meu pai tinha em Minas Gerais, e a minha mãe passou por lá em um circo. Ele a tirou do circo e [se] casou com ela. Nessa tão bizarra estrutura familiar que eu fui criado. E isso resulta no ator que eu sou. Eu só vim tomar consciência do que é ser ator no Teatro de Arena, onde eu comecei em 1961. E já no primeiro ano, ganhei todos os prêmios com a peça O testamento do cangaceiro. Lá vai Lima Duarte de novo a caminho do sertão! Mas fiquei ali. O Teatro de Arena acabou, definitivamente, em 1971. E o último espetáculo foi em Marselha, no lugar onde acabam as coisas que sabem acabar. Foi ali que eu me despedi, na porta do teatro. Eu estava com [os atores] Bibi Vogel [1943-2003], me despedi do Renato Consorte [1924-2009], do Guarnieri, da Dina Sfat [1938-1989]. E tivemos a consciência de que era o fim. O Boal estava preso, a maioria dos companheiros estava presa, era impossível continuar com o Teatro de Arena. E eu voltei para fazer as novelas. Bem, mas eu comecei com a minha mãe no circo, o estouro psicológico do ator que eu sou formou-se ali nas poeirentas estradas de Minas Gerais, naquela interpretação desbragada, brasileira, representando todo o repertório clássico brasileiro: Rosa do adro, A mulher que veio de Londres, Os dois garotos, Os dois sargentos, e na admiração e paixão de minha mãe, como mãe, mulher e atriz, é que me fiz ator. Tem uma história muito engraçada, eu gosto de contar história, sempre é melhor do que a gente mesmo. Então, quando a guerra [Segunda Guerra Mundial] acabou foi em 1944...a guerra acabou várias vezes, os que são da minha idade se lembram que foi acabando...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Oficialmente em 1945.

Lima Duarte: ...e nós estávamos trabalhando em Bebedouro. Minha mãe representava Maria Cachucha, do Joarcy Camargo. Ela era bonita, morena, de cabelos compridos...e eu ficava com ela na coxia. Ela era uma estrela e eu, um sapo.

Jorge Escosteguy: Você tinha quantos anos?

Lima Duarte: Uns 11 anos. E eu estava na coxia. Ela tinha um grande domínio sobre seu público, ela o levava para cá, para lá, um milagre mesmo. De repente o público começou a dispersar, um cochicho. Ela se encostou assim nas bambolinas ali: "Menino, menino!". Era uma estrela falando com o sapo. E eu: "fala mãe, fala!". E ela: "Vai ver o que está acontecendo, rápido!". E eu fui. Tinha acabado a guerra. Eu cheguei e falei: “mãe, acabou a guerra”. Ela disse: “O quê?” e  começou a declamar o hino nacional. E foi o momento de teatro mais bonito que eu vi na minha vida, porque a guerra não acabou só para ela, acabou para o público também. E todos começaram a cantar. Foi tão bonito aquela mulher declamando! E o circo - depois eu vim a aprender no Teatro de Arena -  toda grande representação baseia-se em um negócio chamado inter-relação, ou seja, eu me relaciono tanto com o meu parceiro de cena, que essa relação cai no inconsciente do público e chega com a verdade, puxa como se ama e como não sei o que lá. Mas não no circo não tem isso, no circo não tem inter-relação. Eu trabalhei com Vicente Celestino [(1894-1968) cantor e ator brasileiro], ele trabalhava de costas para o elenco: “Oh, meu amor como vai você? Bom dia!”. E a gente lá atrás:"Bom dia!".

[risos]

Lima Duarte: Então a gente trabalhava muito a palavra, falava alto, não havia aparelhagem de som.

Jorge Escosteguy: Ilka, por favor.

Lima Duarte: Perdão. Eu "falo mais que a boca", corta mesmo.

[risos]


Ilka Maria Zanotto: Mas é lindo ouvir o senhor! Eu quero fazer uma ponte, porque já se falou em ator, palavra, formação, Arena, Shakespeare. Já se falou de muitas coisas. [risos] Então, eu quero, primeiro, dar um testemunho aqui, porque eu fui critica do Estadão por vinte anos e só tive chance de fazer uma crítica sua, que foi em Bonifácio Bilhões [peça de teatro encenada em 1976]. Achei fantástico, achei muito bom o espetáculo, o trabalho, gostei do texto e de tudo. Mas eu assisto você desde o Testamento do cangaceiro. Ontem eu fui ver Ser tão sertão, e você, no começo, falou isso mesmo: que outros gostam de fazer Shakespeare e você gosta de Guimarães Rosa, que você lê todos os dias. É a sua Bíblia?

Lima Duarte: É o meu Alcorão [livro sagrado da religião islâmica].

Ilka Maria Zanotto: Seu livro de cabeceira. Então, na hora em que eu estava vendo, foi tanta emoção...E isso é um testemunho como crítica.

Lima Duarte: Obrigado.

Ilka Maria Zanotto: E a beleza que o espetáculo passou, principalmente na hora do lamento do Riobaldo, na morte de Diadorim... E me veio à cabeça um negócio: eu acho que os ingleses do século XVI, quando viam Shakespeare, deviam sentir essa emoção...

Lima Duarte: [interrompendo] Tomara!

Ilka Maria Zanotto: Então você, nessa tua brasilidade - em todo o dossiê de pesquisa que eles mandaram de pesquisa, muito bem feito aqui - você é um ator que se diz constantemente brasileiro, e procura ser. Chega à universalidade, naquela essência de ser homem, então isso...

Lima Duarte: Muito obrigado, você acrescente só mais o seguinte sobre isso...

Ilka Maria Zanotto: [interrompendo] Eu quero, depois vem a pergunta.

Lima Duarte: É muito difícil, é muito terrível, muito difícil essa minha opção. Porque eu optei pelo Brasil. E nós somos uma lamentável, uma triste colônia cultural. Então eu, como sou um ator brasileiro, passo a ser o grande palhaço nacional, está certo? Nunca tenho acesso às grandes coisas. Não, "isso aí é um brasileiro, e lá vem ele com aquelas coisas lá"... Mas eu também sei disso, eu sei que é muito difícil ser brasileiro no Brasil. Quando você lida com idéias, como diz o Guimarães [Rosa]: “Uma coisa é por idéias arranjadas na cabeça, outra é lidar com um país de pessoas, de mil e tantas misérias”. Desculpe só esse apêndice.

Ilka Maria Zanotto: Agora, eu quero só saber de sua formação. Porque você é da década de 50, você fez televisão, começou pela televisão, a formação foi televisiva. Na década de 60, foi do Arena, onde você amadureceu política e artisticamente, e finalmente, você fala muito na questão da memória emotiva, que é o conceito básico do Stanislavski [(1863-1938) Constantin Siergueieivitch Alexeiev, escritor e diretor russo, criador do tradicional Sistema Stanislavski, técnicas e princípios baseados na atuação verossímil  que são básicos na formação dos atores, até hoje] que nos chegou Eugenio Kusnet [(1898-1975) um dos maiores destaques do teatro brasileiro com formação stanilavskiana, das décadas de 60 e 70] eu quero...

Lima Duarte: E porque também no Brasil não há escolas, você é um "prato raso", todos nós somos um "prato raso", apesar de todos eles ficarem deitando na erudição. Não temos escolas para ensinar a ler e a escrever, então não tem escola de ator no Brasil. Cada um tem que percorrer o seu caminho, fazer a sua escola, e aprender sozinho. Então eu aprendi com a minha mãe, no circo e achei que eu tinha que ser brasileiro, interpretar esse gestual brasileiro, a prosódia, a emoção, esse povo tão maravilhoso, tão mágico. É isso que eu quero interpretar e tive que fazer a minha escola, porque não tem. Se eu fosse inglês, teria escola para representar...

Ilka Maria Zanotto: Eu acho que aqui houve a Escola de Artes Dramáticas do Alfredo Mesquita. Mas eu estou querendo dizer, você fala em Ziembinski [(1908-1978) Zbigniew Marian Ziembiński, natural da Polônia, veio para o Brasil aos 33 anos, sendo um dos fundadores do moderno teatro brasileiro e do conceito de "teatro de diretor"] também, com o qual você trabalhou...

Lima Duarte: Lindo, lindo!

Ilka Maria Zanotto: ....e fala nesse conceito-chave que o Kusnet injetou. Eu gostaria de saber como um russo do realismo psicológico e um polonês expressionístico influíram na formação de um ator tão arraigadamente brasileiro. O Stanislavski te considera um ator brasileiro por excelência.

Lima Duarte: É o que eu tento ser mesmo, eu trabalho.

Ilka Maria Zanotto: Mas como? Houve influência?

Lima Duarte: Eu trabalho com prosódia, houve sim. Eu trabalhei com Ziembinski, eu trabalhei com Kusnet. O Kusnet era um grande amigo meu, me admirava e me ensinou essas coisas. Você tem a emoção brasileira, você é detentor dela, você sabe identificá-la e falar sobre ela. Muitas vezes, conversamos sobre isso com o Kusnet. Agora, com o queridíssimo Ziembinski, eu fiz uma novela chamada O rebu [1974], não funcionou e tal. Mas o que me comovia no Ziembinski, às lágrimas mesmo -  é que ele interpretava o personagem principal nessa novela, que era o doutor [Conrad Mahler] e eu fazia o ladrão ítalo-paulista, que estava lá no Rio de Janeiro, entrei em uma casa para roubar, não encontrei nada, encontrei um convite e fui naquela festa - os nossos personagens, no decorrer da novela, cresceram muito, muito. Então o Bráulio Pedroso, que era o autor, fez a gente ficar amigos. Então, o processo do Ziembinski era uma coisa apaixonante, pateticamente grandiosa. E eu chegava e falava: “Ziembinski, você é polonês, como é que você pode interpretar em português, em brasileiro e passar? E como é que você se comunica? Eu, se for para a Polônia, eu morro de fome, não vou ser nem gari, não consigo! Você consegue expressar-se artisticamente! Como é que você dominou isso?". E ele fazia assim: “Primeiro, mais difícil é não decorar a palavra, mais difícil é decorar os sentimentos, a emoção. Saudade para você, brasileiro, é uma coisa, para mim, polonês, é outra. Então, quando o meu personagem diz "saudade", eu quero chegar ao público brasileiro! Então, pego um companheiro,  vou para casa, desbasto com ele todo o texto e leio, e fico olhando os olhos, e leio: "Você, cuidado comigo!" e vejo se ele sente medo, tem o perigo. Se não sente, preciso achar como faz a entonação para por o perigo". Aí eu falava: “Que trabalho! Que loucura!". Trabalhávamos muito juntos. Então não me interessava novela, nem interpretação, nem nada! Mas que aula de vida, que aula de beleza que o Ziembinski me deu em todos os capítulos. E foi isso que me ajudou muito.

Edélcio Mostaço: Você é bastante caracterizado, você se autodefine como um ator brasileiro muito, muito...

Lima Duarte: Me autodefino e sou definido, por favor.

Edélcio Mostaço: É claro, e com muita justiça. Mas eu acho que você está em uma idade ótima e como uma experiência de trabalho para fazer qualquer grande personagem da dramaturgia internacional, não é? E você tem feito muito pouco teatro, por quê? Você não é convidado ou não tem aceito os convites?

Lima Duarte: Não, não, até que sou bastante convidado, mas os convites são meio espertos assim, para ir viajar, para ganhar um dinheirinho e tal. Essa não é mais, por que se você trabalhar muito, trabalhar muito, trabalhar muito, troca de carro. Então essa mixaria desse dinheirinho aí, não me interessa. Eu já cheguei também em um ponto que...ganho mais do que preciso, e muito menos do que mereço! Isso com certeza. Agora, fazer um grande papel, eu já pensei assim, em uma grande montagem, com um grande diretor, que me dissesse coisas novas, que me fizesse vibrar mesmo. Eu queria ser ator agora, porque eu queria trabalhar palavra por palavra, emoção por emoção, mas não tem aparecido. A televisão tem me dado mais oportunidade de trabalhar mesmo, de trabalhar o que eu quero, eu desenvolvo uma caminho pessoal na televisão, vocês têm que concordar com isso. As novelas que eu faço sou eu, sou sempre eu, independente do Benedito Ruy Barbosa, do Aguinaldo Silva, do Dias Gomes [autores de consagradas telenovelas e minisséries da Rede Globo], sou eu! É o recado que eu quero dar, isso tem me satisfeito muito.

Leila Reis: Por falar nisso, estreou, essa semana, uma novela que tem a tua cara, o seu jeito. Por que você não está nela, em Renascer, do Benedito Ruy Barbosa?

Lima Duarte: Uma coisa também que eu gostaria que os senhores me fizessem justiça é que a interpretação brasileira na televisão deve muito a mim. Eu codifiquei, estabeleci o gestual, as palavras. Me orgulho e sou feliz porque eu trabalhei muito isso. No Teatro de Arena, quando eu fui para lá, foi porque eu fazia umas coisinhas bem feitinhas.  Lá, eu aprendi a discutir, aprendi que a grandeza mesmo do teatro está na mesa, os ensaios de mesa que são maravilhosos! É onde a gente veicula idéias, conversas, fica sabendo como estão os atores, como são as pessoas e tal. E ali eu fui descobrindo essa maravilha que é o teatro. Então comecei a discutir com o Boal porque é que o jagunço mineiro detesta tanto o cangaceiro, porque é que o cangaceiro e jagunços são tão diferentes, um é recôndito e o outro se expõe, é matador. E o Boal e todos eles concordaram que eu poderia fazer direitinho o gestual, a prosódia. Eu penso isso sistematicamente e levei isso para a televisão. Olha, em 1951, na televisão movida à lenha ainda, fiz o primeiro Guimarães Rosa, que foi Corpo fechado...

Regina Ricca: [interrompendo] Lima, desculpa...

Lima Duarte: Só me desculpe isso. Então isso é uma coisa que eu ando pleiteando ultimamente, que o ator, na televisão, que quiser interpretar um personagem brasileiro, tem que olhar, tem que falar comigo. Isso funciona em Pedra sobre pedra, porque quando você vai fazer uma novela na Globo - e eles pagam bem por isso - significa entrar em uma novela e estabelecer o padrão dela, aqui! A Fernanda [Montenegro] faz isso naturalmente, com grande propriedade e beleza. É esse o padrão: "É aqui que vocês têm que chegar, menos que isso não vai interessar a novela. Isso significa não fumar maconha, não beber cachaça, dormir cedo, decorar desesperadamente, chegar no estúdio e gravar". E quando o diretor disser: “gravando”, sai perfeito. Então, é bom mesmo que eu esteja para o pessoal...Se eu não tivesse feito isso na televisão, estabelecido os padrões, codificado a prosódia e o gestual, o modelo seria o Mazzaropi [(1912-1981) ator, produtor e diretor de cinema, conhecido pelo caipira que representava  e que tinha como referência o Jeca Tatu - personagem estereotipado criado por Monteiro Lobato], que não era mal, era lindo. Mas era uma caricatura, uma caricatura grosseira.
 
Leila Reis: E por que você não está em Renascer?

Lima Duarte: Por que é que eu não estou? Eu estive em Renascer por muito tempo...

Leila Reis: No projeto?

Lima Duarte: Quando eu terminei Pedra sobre pedra, pouco tempo depois me chamaram para fazer a novela, eu falei: “Nossa Senhora, mas outra vez, outro coronel?”. Mas eu via bem esse coronel, não tem personagem fora de você, no meu caso, estão todos aqui dentro. O Boni [o produtor José Bonifácio de Oliveira Sobrinho] me pediu, me deu uma passagem para a Europa, para ficar lá, no festival de vinhos com o doutor Roberto Marinho, e falei “bom, estão me alisando para fazer a próxima [novela] das oito, tudo bem". Quando eu voltei, ele disse: “Olha, Lima, nós queremos que você faça o personagem principal”. Eu falei: “está bem, vou fazer”. E seríamos eu e a [atriz] Letícia Sabatella. Aí depois passou o tempo, a coisa lá na Globo é muito assim: reuniões, vai fazer, não vai fazer e me chamaram: “Não está mais na novela”. Eu falei: "mas por quê? O que é que houve?”. E eles: “A Letícia Sabatella engravidou e saiu da novela. E você saiu também". Aí eu já comecei a me sentir o último dos atores!

[risos]

Jorge Escosteguy: Dependia da Letícia Sabatella?

Lima Duarte: Meu Deus do céu! Já disse que quero ser o último decadente, na última ilha dos mares do sul, eu quero voltar para o interior de Minas, até que um dia o telespectador liga a televisão e diz: “Uai! Cadê aquele rapaz que faz uns caipiras bem feitinhos? Por onde é que ele anda? Sumiu!" Pronto. É assim que eu quero. Mas com essa bandeira, já vão entregar a minha decadência.

Aimar Labaki: Lima.

Lima Duarte: E eu saí por causa da Letícia, tiveram que abaixar a idade do elenco. Entrou essa loirinha, como ela chama?

[risos]

Leila Reis: Adriana Esteves, que foi sua colega em Pedra sobre pedra.

Lima Duarte: Foi, foi. E em Meu bem, meu mal também.

Leila Reis: E você não gostou disso?

Lima Duarte: Eu não gostei, mas também não ligo muito, eu já... Puxa vida, a essa altura, se eu estiver dependendo de um personagem, eu realmente ia procurar o caminhão para ir embora. Mas achei estranho, não é? Mas tudo bem.

[risos]

Aimar Labaki: Lima, me conta uma coisa. Quando você estava falando com a Ilka, você disse que, pelo fato de ter feito essa opção pelo brasileiro, pelo tipo brasileiro, você não tinha acesso às grandes coisas. Quando você diz isso, quer dizer exatamente o quê? Onde você se sente discriminado?

Lima Duarte: Eu quero dizer exatamente isso, na medida em que é discriminado tudo que é brasileiro.

Aimar Labaki: Sim, mas na prática, isso tem onde? Falta dinheiro para produzir coisas?

Lima Duarte: Nas resenhas semanais, nos suprimentos todos, na grande imprensa.

Aimar Labaki: No jornal.

Lima Duarte: No jornal, de um modo geral. O público, não! Quando você lida com macro audiência, quarenta, cinquenta milhões de telespectadores por noite, é evidente que você não pode ligar para opiniões, não é? Uma ou duas geralmente são pessoais.

Aimar Labaki: Então você diz que só se sente discriminado pela imprensa, esse é o problema?

Lima Duarte: Quando você lida com a macro audiência, a opinião que interessa é desses quarenta milhões que chegam através das pesquisas. Esses são fiéis.

Aimar Labaki: Além de você, quem que codificou a coisa do ator brasileiro?

Lima Duarte: [interrompendo] Queridos amigos. Dionísio de Azevedo [1922-1994] ajudou muito, o Jofre, que veio bem depois, começou velho.

Aimar Labaki: Jofre Soares [1918-1996]?

Lima Duarte: É, é um ator que eu acho lindão, ele é bem brasileiro.

Aimar Labaki: [interrompendo] Hoje em dia, quem continua isso?

Lima Duarte: Eu acho que [José] Zé Wilker trabalha bem isso, por ser cearense, por ser bem inteligente, ele tem uma visão bem crítica do brasileiro, coloca isso em cena. Quem mais? O [Antônio] Fagundes está se dedicando a isso também e funciona legal, o José Dumont é bom também.

Aimar Labaki: No teatro, você conhece o trabalho do Carlos Augusto Carvalho?

Lima Duarte: Eu conheço muito, trabalhei com ele. Ele fez [a peça] Meu tio, o Iauretê.

Aimar Labaki: Mas você gostava do trabalho?

Lima Duarte: Adorava a adaptação do Durst,  Meu tio, o Iauaretê é um trabalho lindo.

Aimar Labaki: E o trabalho do Cacá como ator?

Lúcia Soares: O Cacá está na televisão agora, fazendo Renascer.

Aimar Labaki: É, ele está em Renascer.

Lima Duarte: Olha, eu faria diferente, isso não quer dizer que eu não goste do trabalho dele, mas eu faria diferente. Aquele personagem do Meu tio, o Iauaretê é uma coisa fantástica, que eu gostaria de fazer um dia na televisão. Porque o Guimarães começou como ficcionista e terminou como lingüista. E Meu tio, o Iauaretê é o ápice, é exatamente onde ele une a ficção à filologia, porque é a história de um homem que é filho de um negro escravo com uma índia, portanto ele fala  [a língua] bantu, é índio, mas fala português, porque ele é brasileiro, então a palavra é um absurdo. E ele usa muito, muito assim, assim a língua [barulho com a boca] e eu acho que o som tem que ser usado “à náusea" nisso aí, porque é o som...

Aimar Labaki: [interrompendo] E não tinha o trabalho?

Lima Duarte: O Carvalho, o rapaz, fez uma coisa muito de físico assim, que vai virando onça assim e tal, ele se dedicou, enfim, e se preocupou mais com isso e muito menos com palavras, não é? Então, ele está conversando com o cara, e de repente, esse cara diz assim: "Você parece perigoso?". E ele: "Eu pareço perigoso. Tem uma outra hora que eu pareço mais”. Poxa, eu acho que tem uma carga de tragédia, de uma violência nisso...E essas coisas eu não senti muito no espetáculo.

Regina Ricca: Ô, Lima.

Lima Duarte: Opa!

Regina Ricca: Você faz pouco teatro, não é?

Lima Duarte: Pouco.

Regina Ricca: E você, por outro lado, apesar de fazer muita televisão, muito mais televisão, é um crítico da televisão. Na semana passada mesmo, no jornal onde eu trabalho, você criticava o dramalhão De corpo e alma [1992, escrita por Glória Perez]. Você tem uma série de restrições a uma espécie de dramaturgia que vem sendo feita por aí, e mesmo assim você não se sente incomodado em trabalhar na televisão? E quais são os bons autores, para você, de televisão?

Lima Duarte: Bom, eu procuro sempre escapar disso, não é? Eu também não faço crítica, é fofoca que eu faço, não é crítica, eu falo o que eu vejo, não é? Eu acho que a novela, a grandeza da novela brasileira é o fato de ela ser brasileira. Eu fiz uma novela venezuelana uma vez, é uma história engraçada... Para você ver como é isso, era uma novela chamada A gata [1964], a primeira e única de uma moça chamada Marisa Woodward e ela que era "a gata".

Regina Ricca: Onde? Na Tupi?

Lima Duarte: Sim, televisão movida à lenha ainda, e eu fazia um sujeito que, por extrema sutileza, chamava Barrabal, era um bandido, mas ele era tão bandido que ele tinha um navio negreiro! [risos] Ele era proprietário de um navio negreiro, e tinha uma plantaçãozinha de cana ali, a história se passava nas Antilhas.

Regina Ricca: Tudo em estúdio?

Lima Duarte: Tudo em estúdio, as Antilhas ali, as bananeirinhas, tudo. [risos] Eu achava que era mais legal, mais bonito. Uma das primeiras novelas que fiz se passava no Amazonas, eu era um guia amazônico, e um cientista e a [atriz] Lolita Rodrigues era a esposa do cientista. Eu ia lá de guia amazônico, tudo no estúdio de papelão. Então se você elimina o underground, você tira esse Brasil de floresta, de terras, o que fica somos nós, é a interpretação. Então, tem que ser mais brasileiro ainda, ainda que seja assim. Mas nessa aí era engraçado, que não tinha nem Brasil, nem Antilhas nem nada, eu era um proprietário de um navio negreiro. Então eu andava com um chicote na mão, passava um preto e eu: “pá!”. [Lima interpreta uma chicotada]

[risos]

Lima Duarte: E bebendo vinho. Um dia, a Marisa Woodward, que era uma atriz que não tinha muita experiência, era muito bonitinha, mas ela tinha que topar com esse homem, essa fera,  falava: “Barrabal...". E eu: “O que é que é?!”. E ela: “Barrabal, você há de pagar por seus crimes!” [risos] Mas um dia - e a novela era patrocinada pela [marca de produtos de higiene pessoal] Colgate - em uma reunião, sentou um americano especialista em mídia e disse: “A novela está caindo de audiência”. Eu falei: “Isso é comigo”.

[risos]


Lima Duarte: Sempre é comigo. E ele: “Está caindo de audiência, porque o bandido é muito ruim! E tem muito preto na novela. E a mocinha é muito canastrona”. Soluções: “O bandido vai para Paris e volta melhor”.
 
[risos]

Lima Duarte: A França melhora o caráter! [risos] Dá uma epidemia na senzala e mata a negrada toda. A mocinha morre e vem a irmã dela, que era a Rita Cléos [1931-1988]. Nós conquistamos a audiência toda, dito e feito.

Regina Ricca: Mas, Lima, algumas novelas hoje nem esse charme têm, não é?

Lima Duarte: É, esse charme da falta de recurso, da primariedade...Era uma televisão primária, não é?

Regina Ricca: Como é que você vê esse caminho da telenovela brasileira?

Lima Duarte: Eu acho que...

Regina Ricca: Você acha que ela está escorregando um pouco para esse lado e botando esse pezinho no México? [refere-se ao estilo adotado nos dramalhões mexicanos]

Lima Duarte: Eu acho que o grande autor para a televisão brasileira é Walter George Durst, na minha opinião. Escreve bem, é mais inteligente, é o melhor adaptador. Eu fiz durante 11 anos a TV de Vanguarda [principal teleteatro paulista da década de 50] com ele, na TV Tupi. Ele fez adaptações primorosas, maravilhosas. Eu decidi mesmo sobre a minha vida, sobre o que eu queria fazer, quando ele adaptou Calunga, de Jorge de Lima, para a televisão, que foi um espetáculo lindíssimo. Eu fiz Calunga.

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Lima, um pouquinho antes de chamar o intervalo, a Rosane tem uma pergunta para você.

Lima Duarte: Desculpe, viu, mas eu acho o Walter George Durst um grande autor, acho o Dias Gomes um grande autor, mas também não quer escrever mais. E acho que essa coisa de cinco ou seis ficarem escrevendo uma novela é muito ruim, explico o porquê: porque o homem é o estilo. O sujeito escreve uma novela e, no caso, eu tenho que lidar com o estilo. Quando o Aguinaldo Silva escreve uma novela, eu tenho que pegar o jeito dele falar. Então, de repente, vem outro e eu me arrepio, eu falo: “Meu Deus! Isso quem escreveu? Eu não posso, essa palavra ele não usa, entendeu?". E é muito difícil para a gente. Isso piorou muito a novela.

Jorge Escosteguy: Rosane, por favor.

Rosane Pavam: Lima, essas adaptações de obras clássicas sofrem muita dificuldades quando passam para o cinema ou para a televisão. Recentemente, está se adaptando A terceira margem do rio [1962], que é um conto do Guimarães Rosa. Eu temo por isso pelo fato de, especialmente, esse conto ter a característica de não ter ação. Você acha que algumas obras são intransponíveis? [o conto foi adaptado pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos, em 1994, para o filme homônimo]

Lima Duarte: Eu sinceramente acho que Grande sertão: veredas é uma delas.

Rosane Pavam: É, acho que o seu caminho de recitar trechos é um bom caminho. E A terceira margem do rio, por exemplo?

Lima Duarte: É muito bonito, mas o Nelson Pereira dos Santos é tão bom, não é? Então, ele fez a leitura dele e eu vou ver. Como ele é de bom gosto, pode ser muito bonita. Você fica com a sua leitura, não é?

Rosane Pavam: Todos.

Jorge Escosteguy: Lima, nós precisamos fazer um rápido intervalo, o Roda Viva volta daqui a pouco, entrevistando Lima Duarte.

[intervalo]

Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva, que hoje está entrevistando o ator Lima Duarte. Lembramos aos telespectadores que, como o programa foi gravado, não há perguntas ao vivo por telefone. Lima, um pouquinho antes do programa, a gente estava conversando, antes de entrar no estúdio, e relembrando alguns personagens seus, que você fez na televisão.  Como só tinha personagens rurais, você disse: "Põe alguns urbanos aí, para não ficar uma coisa muito rural".

Lima Duarte: Para dar uma misturadinha.

Jorge Escosteguy: O fato de você ter ficado mais conhecido por personagens rurais te incomoda um pouco? Como você se sente em relação a isso?

Lima Duarte: Ah, me incomoda na medida em que as pessoas não fazem uma leitura devida do personagem. Então pega aí as resenhas semanais que dizem: “O Murilo Pontes está parecido com o Sinhozinho Malta”. Isso não tem grande importância para mim, senão confundir o telespectador e o leitor. O que eu quero é que eles façam uma leitura devida do Murilo Pontes, que era fundamentalmente diferente do Sinhozinho Malta, que era diferente do Sassá Mutema, que era diferente do Zeca Diabo. Por exemplo, o Sassá Mutema era bóia-fria, então eu fiz um trabalho porque pensei que o bóia-fria é um ser social completamente inusitado, novo, complexo, já que medeia o camponês e o operário, ele é um operário do campo. Então eu fui passar um mês lá, veja você como é bonito, como eu gosto de estar sempre poético de todas as coisas, porque sempre a minha interpretação será poética. Então eu fui falar com um deles lá e perguntei: “como é que você vem?”, e ele: “O caminhão passa lá na minha cidade, que é Guaíra, e pega a gente, mas não sabemos onde vamos trabalhar”. Eu falei: “você não sabe se você vai carpir café, colher algodão, colher laranja?”, e ele disse: “Não, quando chega é que a gente vê". E o amor dele, a felicidade dele, carpindo um cafezinho, ou milho, ou feijão, era uma coisa bonita. E é por isso que ele estão tão infelizes agora, todos nós estamos ficando um povo infeliz, porque cortaram esse laço. Então eu falava para ele: “É só na hora?”, e ele: “Ah, quando 'nóis' vê laranja, 'nóis' fica contente, porque o cheiro é bom, é gostoso, é limpo, mas tem muita cobra”. Eu falei: “Mas você gosta de colher laranja?” e ele disse: “Eu gosto, mas acontece uma coisa que eu não entendo: na segunda-feira eu colho 120 caixas, na terça eu colho 110, na quarta é cem, e na sexta-feira, eu só consigo colher oitenta. Eu não sei o que acontece comigo, que eu trabalho e não consigo”. É a canseira, é a má alimentação! Isso eu achava tão bonito! Ele me dizer e não entender isso, e pedir que eu explicasse. Eu não posso explicar o mundo, a vida. Mas é assim mesmo, você é um grande colhedor. E isso eu levava para o personagem, e se eu levo isso, pego esse elemento, essa pérola perdida em um emaranhado de bobagem e coloco no personagem, o sujeito vem e diz: "Oh, mas está parecendo o Zeca Diabo".

Jorge Escosteguy: Mas como é isso, colocar em um personagem? Você, a rigor, quando recebeo texto feito pelo autor da novela, como encaixa estas coisas? Quer dizer, é só no gestual, na maneira de falar, ou não?

Lima Duarte: Não, um capítulo de novela é uma folha de papel em branco com algumas coisas escritas, a hipérbole quem faz é você. E ela pode ser linda, poética, maravilhosa ou miserável de acordo com quem faz. Quem faz essa hipérbole? Eu acho que a rapaziada hoje só decora e fala, se é dramático fala alto, fala depressa, se é engraçado fala meio arrastado...

[risos]

Regina Ricca: É que a questão é que são sempre personagens rurais, não é, Lima? Você meio que se especializou...

Lima Duarte: Não, são sempre personagens. O fato de ele ser rural...Não creio que esse elemento que eu acabei de citar relativo ao Sassá Mutema, seja uma coisa pertinente ao rural, é um ser humano. Se eu coloco essa poesia nele, pretendo que ela seja poderosa. O Zeca Diabo também era um personagem rural, mas ele era...o que é que eu pensei? Quando me disseram, você vai fazer um matador, eu estava mal na Globo na ocasião...

Lúcia Soares: Ô, Lima, é isso que eu ia perguntar...

Lima Duarte: E eles iam me mandar embora.

Lúcia Soares: Essa história do Zeca Diabo contando hoje, é quase inacreditável, quer dizer, você estava meio encostado na Globo. Falaram que você ia fazer um papelzinho, quer dizer, era uma participação pequena.

Lima Duarte: Eu tinha dirigido o Beto Rockfeller [1968, da TV Tupi], que era uma novela linda e tal, e eles me contrataram como um grande diretor mesmo, para fazer a revolução que a Globo faria, o sistema Globo e tal. O próprio Beto Rockfeller foi solicitado pelo povo, pelas camadas sociais, querendo um herói plausível, cotidiano, possível, e daí inventou-se um "bicão" que era o Beto Rockfeller. Bem, então fui para lá e não funcionou, fiz uma novela que era o maior fracasso, incrível, uns dos maiores fracassos da Globo.

Lúcia Soares: Que era O bofe [1973, escrita por Bráulio Pedroso e Lauro César Muniz]. 

Lima Duarte: Sim, foi muito mal, foi tudo errado. Então terminaram o meu contrato, e eu ia ser mandado embora, mas acabou a novela e :"Você vai ficar mais uns 15 dias aí, como que é? Vai fazer alguma coisa?". Eu falei: “Tudo bem, o que é para fazer?” O Boni me chamou lá e falou assim: “Fica firme, você é um homem do qual precisamos.” O Boni é meu amigo, meu admirador, ele queria que eu fosse assistente dele, quando ele foi para lá. Eu trabalhava no Arena, não quis ir. Então ele disse: “Você vai ficar aqui e vai ser ator, você não interpretou ainda”. Era, eu estava muito chateado porque ocorreram coisas horrorosas  em O bofe, pequenas traições, do cotidiano, da profissão, da vida. Eu fiquei muito chateado, e falei: “Ah, eu quero ir embora”. Mas aí me chamaram e disseram: “Enquanto você não vai embora, você vai fazer um papelzinho aí”. Eu telefonei para o Dias Gomes, que era meu amigo, do tempo em que fizemos rádio juntos, falei: “Dias, o que é esse personagem?”. E ele: “Lima, é uma coisa pequena, puseram você?” Eu falei: “É, o que é?”. “Não, é que tem aquele negócio que não inaugura o cemitério em O bem amado [1973], você é um tremendo cangaceiro, que chega lá e o homem é um frouxo! Não mata nada! É uma mentira! Não é um matador! É só isso, e você some”. Eu falei: “Está legal, mais alguma coisa para trabalhar? Um matador que não mata, é interessante".

Regina Ricca: Temente a Deus, não é?

Lima Duarte: É, ele é temente a Deus, ele tinha todos os traços básicos do caráter brasileiro, adorava a mãe, ele temia muito a Deus, ele era... O que é que ele era então? Vítima de uma estrutura social viciada, mentirosa. E por aí pode-se fazer uma pessoa bonita. Então...

Lúcia Soares: [interrompendo] E foi aí que você determinou que o Zeca Diabo não tinha uma participação pequena mais?

Lima Duarte: Não, aí a entrada dele era a cavalo, então eu arranjei um bigode de matador, um olhar de matador, revólver de matador, roupas de matador, cavalo de matador, mas não matava. Então como é que se concretiza isso? A primeira fala dele era em um bar: “O senhor me dê uma cachaça”. Então eu vinha a cavalo, as janelas se fechavam, as crianças fugiam, cheguei no bar, encostei no balcão e disse: "O senhor me dá uma cachacinha, faça o favor?".

[risos]

Lima Duarte: E foi assim que começaram a desatar esse fio. "Como, mas ele é bicha? Com essa voz, voz de “viado”, que é isso?" Não, é macho, mas não é um matador, é uma vítima da estrutura social viciada. E fomos comigo, o público foi comigo. E recebemos milhares de telefonemas, que ele não podia sair...

Regina Ricca: Lima, como é que funciona isso?

Lima Duarte: E eu fiquei na Globo muito bem, até hoje.

Regina Ricca: Você foi uma surpresa, vamos dizer assim, até para o próprio diretor da novela, essa voz, a construção desse personagem. Você discutia isso, que faria uma voz meio afeminada?

Lima Duarte: Não, a televisão é uma máquina que caminha sobre rodas, não tem tempo. É por isso que eu tenho dó da rapaziada, porque o cotidiano dos estúdios é uma coisa insuportável, eu reconheço. É feito de gritos, suor, calor, mentira, traições, é uma coisa horrível. Eu vejo as meninas que têm que ser lindas, belas, e com esse calor, ficam desmontando e vão para a maquiagem. Havia umas moças que entravam para fazer maquiagem e Paulo Gracindo [(1911-1995) ator brasileiro de rádio e televisão] dizia: “Isso não faz maquiagem, isso entra em obras!”.

[risos]


Lima Duarte: Em O bem amado, havia coisas divertidíssimas, o Paulo era um grande amigo meu, não é? E todo o elenco, éramos grandes amigos. Então a Globo alugava uma casa a sessenta quilômetros do Rio. A gente ia às seis horas da manhã, e um dia está lá um crioulinho na porta, aqueles que tem lá no Rio, meio peladinho e tal, olhando. Saí eu, e aí saiu a Yara Cortez, saiu a Dirce Migliaccio, saudosa, aí saiu o Paulo Gracindo. O neguinho não agüentou e falou assim: “Mas esse elenco de O bem amado, se jogar um pó de mata-velho, metade morre e a outra metade fica tonta". Eu falei: "Ô safado!". Saí correndo atrás dele e ele falou assim. "O senhor não fica tonto não!"

[risos]

Leila Reis: Mas Lima, por falar em Paulo Gracindo...

Lima Duarte: Só concluindo, você não tem tempo de nada, você decora, faz a sua hipérbole e mete os peitos.

Regina Ricca: É, mas isso você consegue porque tem uma outra história.

Lima Duarte: Porque eu tenho uma vivência grande.

Regina Ricca: É, e essa outra geração não tem.

Lima Duarte: Não tem.

Regina Ricca: A geração é praticamente criada na televisão.

Lima Duarte: Eu não acredito em grandes atores com menos de trinta anos. Eles que me desculpem, mas é muito vida, interpretar é muito difícil, muito difícil! A vida mesmo, espremeu o ser humano até saltar o caroço, é uma tarefa desesperadora. Então, você tem que ver, tem que chorar, a dor é que ensina a gemer mesmo e fazer direito!

Rinaldo Gama: Pegando um pouco carona nisso que você acabou de falar, você insiste muito que você é um sujeito do campo e, portanto, esse sentimento, essas emoções que você passa, quando interpreta personagens, de alguma maneira, do ambiente rural, estavam guardadas em você. Você deu exemplo do que você faria com a Regina Casé, se ela tivesse que interpretar Diadorim, quer dizer, ir para Minas Gerais, vestida como homem, uma interpretação, digamos assim, realista, não é? Quer dizer, viver aquilo que ela não conhecia, talvez, tenha sido o problema da Bruna [Lombardi], quando você fala que, além do aspecto físico, que denunciava que era uma mulher etc, tinha essa vivência que ela não conseguia transmitir porque não houve preparação.

Lima Duarte: Mas, reconheço que a Bruna se esforçou muito e fez até um trabalho bonito.

Rinaldo Gama: Ao mesmo tempo, você fala nessa correria da televisão, você acabou de frisar isso, a necessidade de tudo não poder sequer ser discutido, com um ator, ou mesmo com o diretor, ou o autor da novela. Eu pergunto para você o seguinte: no caso de novela com esse cunho regional, é impossível, é equivocado colocar no elenco, encabeçando o elenco, o que está acontecendo agora com Renascer, um sujeito como Antônio Fagundes, com as características de...o último papel dele em novela foi um cirurgião plástico sofisticadíssimo, não é? Ou Adriana Esteves. É equivocado esse tipo de escolha de elenco para uma novela que se pretende rural? Como você resolveria essa questão, você perderia esse tempo, faria um investimento nessa preparação realista, quer dizer, mandando as pessoas para esses lugares, vivenciar aquilo, até por uma questão de...

Lima Duarte: [interrompendo] De vida.

Rinaldo Gama: História de vida já tem. Você faria isso, perderia esse tempo, quer dizer, faria esse investimento, para o bem da empatia, do funcionamento da novela?

Lima Duarte: Eu acho, suponho que o Fagundes tenha trabalhado isso. E ele é um grande ator, não é? Mas não é apenas uma questão de trabalhar isso, é uma questão de não deixar que o trabalho sobre isso apareça, deixar ser criticamente isso, fazer o  realismo crítico, sempre um olhar crítico sobre essas pessoas, sobre a beleza delas, e não ser elas, não se envolver nunca. E isso é um trabalho difícil, e racional mesmo, que eu suponho que o Fagundes estará fazendo. Por exemplo, eu vi ele fazer um homem mais velho, casado com uma moça bem mais nova. E eu vi uma cena deles andando na praia assim e tal. Acho que é uma coisa ipanamense, é uma coisa carioca, fica andando na praia. Eu faria desse romance, se eu estivesse no lugar dele, uma outra novela ou a própria novela, porque um homem de muita idade, que se apaixona por uma menina muito mais nova, essa paixão vem cheia de culpa, especialmente, sendo brasileiro, vem cheio de desespero, porque é inconveniente, é ruim para esse coronel andar com aquela menina lá, ele ia ter que exibi-la naquela sociedade, naquele mundinho, não acontece isso facilmente com um homem. Eu pensaria muito sobre isso, e faria um romance desajeitado, e por isso mesmo, muito bonito. O que uma jovenzinha oferece para um homem daquela idade para prendê-lo tanto? Umas coisinhas lá na cama, melhorzinha? É bom, mas não é tudo. Um homem... Então seria uma coisa de vampirizar mesmo aquela juventude, de puxar e tomar para ele. Eu trabalharia sobre esses elementos que são, com certeza, mais poderosos.

Jorge Escosteguy: Ô, Lima, você falou no começo desse segundo bloco sobre voz.

Lima Duarte: Mas eu não quero pontificar sobre o trabalho de ninguém, está todo mundo lindo, maravilhoso. O Fagundes, eu acho lindo, está todo mundo lindo, eu estou dizendo como eu faria, está certo? Pode ser uma porcaria o que eu faria.

Jorge Escosteguy: No começo do segundo bloco, você falou em voz, então você é famoso por algumas vozes, até o Edélcio estava comentando também no intervalo.

Lima Duarte: É.

Jorge Escosteguy: Como é essa história de você era a voz, o "master voice"?

Lima Duarte: Tem a "voz do sovaco" também, já mata os dois com uma cajadada só.

Jorge Escosteguy: Isso.

Lima Duarte: Eu sou retirante, não sei se eu já falei isso, eu vim para São Paulo, em um caminhão de manga, que vinha de Brodósqui. Eu briguei com meu pai, eu tinha 14 anos. No dia seguinte, nem me lembrava mais da discussão, mas o meu pai, que não era nem um pouco burguês, falou assim: “Você não falou que ia embora, rapaz? Vai-te embora!”, como eles falam lá em Minas. Eu falei: “Bom, pai!”, e ele: "Vai-te embora! Tem um amigo meu que vai com um caminhão de manga para São Paulo, e você vai subir e vai-te embora!. Eu falei: “Pai, então está bom” . A mãe deu 500 “paus”, e chorou um pouco, o pai foi duro, não era nem um pouco mau, ele era lindíssimo, muito sensível; é que ele sabia que eu estava pronto, que não podia ficar  lá. E o caminhão passou,  eu fui lá para cima das mangas e foi a viagem mais linda de toda a minha vida, porque de noite, tinha o universo limitado pelo farol, era de terra a estrada e o cheiro agridoce da manga, misturado com o diesel...e aquela viagem foi maravilha. Quando eu cheguei, no lindíssimo Mercadão de São Paulo, ajudei o homem a descarregar as mangas e depois ajudei o outro caminhão e fiquei lá, empurrando aquele carrinho de manga. Na terceira noite, me chamaram para ir para a zona [local que concentra atividades de prostituição], e eu falei: “Ah, eu vou! Mulher, vou". Fui lá e conheci uma judia francesa, muito inteligente, que tinha vindo tocada pela guerra, e que me ensinou tudo o que a minha mãe não pode ou não soube me ensinar. Fiquei morando com ela, deve ter sido uma maravilha na vida dela, ela tinha quarenta e tantos anos, eu tinha 14 ou 15. E ela que me falou um dia, ela sabia das coisas, um dia eu estava ouvindo rádio: "Vem, garoto, vem aqui ajudar a construir esse mundo novo". E eu falei assim: “Que coisa boa fazer esse drama aí  no rádio agora”. Ela falou: "Por que você não vai lá tentar?. Ela me ensinou a fazer o teste e até me deu um dinheirinho para eu pegar o carro. E eu fui fazer o teste na Tupi, que era no mato. E eu cheguei lá, o homem me deu o papel para ler e eu falei assim: "PRG2, Rádio Tupi de São Paulo, a mais poderosa emissora paulista". O homem falou: "Mas de onde é que sai a sua voz, do sovaco?".

[risos]

Lima Duarte: Eu falei: "não, senhor". Eu falava demais como eles falam lá em Minas, daquele jeitinho assim, então meu apelido ficou sendo "voz de sovaco". Mas eu queria trabalhar. Aí o homem falou: “Não, o rádio é uma coisa séria, você não pode falar com essa voz, não”. Eu falei: “Como é que eu faço para trabalhar aqui, então?”. Ele falou: “Então, você vem de operador de som, amanhã você vem e liga as válvulas”. Eu chegava, ligava as válvulas,  ficava esperando ela esquentar, quando o filamento estava vermelho, já eram seis horas da manhã, eu ia lá ligava os microfones e chegavam os caipiras, a minha gente, fazendo esse tipo de programa: "Acorda, vagabundo, está na hora! Acorda vagabundo!". Aí eu comecei assim, eu chegava lá, ia para o estúdio, ligava os microfones e imitava cavalo [Lima faz imitação de cavalo]. Tonico e Tinoco, Torres e Florêncio, Caboclinho e Rialinho [duplas sertanejas de sucesso na época],  todos eles ficaram grandes amigos e me chamavam. Até que uma pessoa linda, definitiva na minha vida, um homem, um herói moderno, duro por fora e macio por dentro, um cowboy chamado Oduvaldo Vianna, chegou para mim e disse assim: “Você vai fazer um papel na minha novela”. Eu falei: “Não, senhor Oduvaldo, o senhor sabe que eu tenho uma voz de sovaco”.

[risos]


Lima Duarte: "Eu estava precisando, de uma porcaria de uma voz dessa mesmo, vamos lá, vai lá". E eu fui fazer um caipirinha no rádio-teatro. E ele chegou e falou para mim: “Como é que eu falo no fim?". E eu: "Participou desse programa Ariclenes Venâncio Martins" [nome verdadeiro de Lima Duarte].

[risos]

Lima Duarte: Ele falou: “O quê?” Eu falei. “Meu nome é esse, moço, Ariclenes Venâncio Martins”. Eu falei: “Sim senhor! Eu sou de Minas e tal”. Ele disse: “Você não pode trabalhar com esse nome não rapaz!”. Falei: “Aí meu Deus não posso trabalhar com essa voz, não posso trabalhar com esse nome”.

[risos]

Lima Duarte: Eu falei: “O que eu faço, senhor Oduvaldo?”. E ele: “Arranja outro nome aí para falar lá”. Eu falei: “O senhor põe Paulo Roberto”. Ele disse: “Ah, o que é? Bicha agora? Para trabalhar com esse nome? Arranja um nome de homem!". O Oduvaldo era bravo. Aí telefonei para minha mãe, ela é espírita, daqueles lados de Uberaba e ela me disse: “Meu filho, que hominho enjoado é esse que não deixa você trabalhar com seu nome, um nome tão bonito?”. Mãe é mãe, não é? Eu falei: “Mas não pode, mãe, trabalhar com esse nome”. E ela: “Então ponha o nome do meu guia de luz, que você vai ser muito feliz. Ele se chama Lima Duarte".

Lúcia Soares: Olha!

Lima Duarte: Tenho que acreditar em milagre, não tenho?

Edélcio Mostaço: Você falou agora na sua experiência de começar em rádio, é uma época incrível, de vocês fazerem esses programas que acordavam a cidade.

Lima Duarte: É isso aí.

Edélcio Mostaço: Há pouco tempo, você voltou novamente ao rádio para fazer um tipo de programa...Eu queria saber como foi essa sua experiência, essa volta, quer dizer, como é que está o rádio hoje? Que tipo de programa está se fazendo nessa parte entre madrugada e manhã, que acorda a cidade? E como você se relacionou com isso?

Lima Duarte: Assim, voltar era uma coisa, era uma personalidade...Então já não era mais eu, me senti estranho, não me sinto bem assim, eu gosto de chegar lá, falar com as pessoas, e viver aquele momento em conjunto mesmo. Não pude, porque ficou todo mundo me "incensando" lá. Mas, eu não sei o tipo de rádio que se faz, eu também não tenho esse contato tão íntimo para fazer uma análise. Acho que rádio mesmo é serviço agora, informar como é que está o tempo, quantos acidentes, quantos morreram. E de manhã, é que ele pode ser bem brasileiro mesmo, porque há uma legião muito grande de ouvintes, é o horário nobre do rádio, não é? As senhoras estão fazendo o almoço e deixam o rádio ali. Então bastante inteligente é a pessoa que falar com propriedade com essas pessoas. Eu queria que fosse mais verdadeiro, mas eu não conheço, também não ouço rádio nessa hora.

Jorge Escosteguy: Lima, desculpe, faltou você explicar a voz do Chateaubriand.

Lima Duarte: O Chateaubriand teve um acidente vascular cerebral grave, todos sabem. E ele teve limitações terríveis, ele falava e ninguém entendia. E um dia ele ia receber o embaixador da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, então me chamaram lá,: "Chama o melhor locutor da rádio para ler um discurso". Então chegaram para mim - eu era o melhor ator lá na Tupi - falaram assim: "Olha, vai lá, você vai ter que ler um discurso para o Chateaubriand. Eu peguei o meu carrinho, cheguei lá, e vi a bandeira soviética a cinquenta metros da moradia do general, falei: “Nossa Senhora, isso vai sobrar para mim, viu!”. [risos] Na sala embaixo estavam os comensais habituais da mesa dele que eram Pietro Maria Bardi, [ver entrevista com Bardi no Roda Viva] Geraldo Banas, Garibaldi Dantas, o senhor Ruben Berta, o Edmundo Monteiro, esse pessoal das Rádios Associadas. E eles disseram: "Vai lá em cima, que o homem quer falar com você". Eu subi, havia uma cama hospitalar, com aqueles aparelhos todos. Ele me deu um calhamaço, eu comecei a ler para ele, ele deitado lá e, de repente, estava me xingando. Eu falei: "o que é que há? O senhor quer, vá chamar outro". Peguei e joguei aquilo: "eu sou um ator, não preciso me submeter a essa humilhação, o senhor está me xingando". Fui-me embora. Aí me pegaram lá embaixo, voltei lá: "se o senhor tiver um pouco de calma, eu destrincho isso aqui e nós fazemos um trabalho bonito. Mas se o senhor ficar nervoso, vai ficar pior, vai ser horrível para mim". Calma, palavra por palavra, ele tinha citações em russo, em francês, ele era um homem de erudição, não é? E eu comecei a ler aquilo, e acertei, acertei. E fiz um discurso muito bonito. Ele era muito esperto, muito inteligente, e muito comovente, aquele motor poderosíssimo, preso naquela carcaça imóvel... E só saltava pelos olhos, e tanta vida, tanta inteligência, aqueles olhinhos, era um espetáculo fantástico o olhar do doutor Assis! E nós acabamos ficando grandes amigos. Ele me pôs um apelido brilhante que é "master voice". Eu me divertia muito com ele, e ele se divertia muito naqueles banquetes com a dona Yolanda Penteado Matarazzo, dona Nair Pacheco Silva, essas grandes senhoras, grandes amigas dele.  E assim eu fiquei, a voz do doutor Assis Chateaubriand. Viajei muito com ele, fazia os discursos por ele, com o tempo eu já aprendi tudo, então nem precisava mais ele escrever, entendeu? Eu, inclusive, ficava junto quando ele conversava com os ministros lá, porque ele não falava e eu falava: "O doutor Assis Chateaubriand acha, doutor Júlio Sabadin - que era o ministro da Educação - que aquela portaria número oito vai provocar isso". E ele, de repente: "Espera um momentinho, para o tape, o senhor não falou daquele outro?". E era assim, nos divertíamos muito doutor Assis e eu.

Leila Reis: Mas, Lima, eu estive conversando com Cassiano Gabus Mendes [(1927-1993) radialista, profissional de televisão e autor de novelas. Comandou a TV Tupi e passou por outras emissoras de TV, até chegar à Globo, onde escreveu várias novelas de sucesso entre os anos 70 e início da década de 90], também falei com Walter George Durst. Você tem duas famas nessa época.

Lima Duarte: Dessa época.

Leila Reis: É, eles te conhecem há muito tempo.

Lima Duarte: Uma eu sei que é a de mentiroso.

Leila Reis: Grande mentiroso.

Lima Duarte: Sou contido.

Leila Reis: A outra que você é um grande pão-duro.

[risos]


Leila Reis: O Paulo Gracindo estava me dizendo que toda vez que vocês trabalhavam juntos, você convidava para uma cerveja, só que chegava na hora e você falava: "Estou com roupa de cena, paga aí".

[risos]


Lima Duarte: Histórinha engraçada é essa aí, foi assim: quando a gente chegava na casa de Sepetiba para fazer O bem amado, eu trocava de roupa, e ia gravar e ele também. Na hora do almoço, a gente tomava uma cachacinha. Era proibido, mas a gente fugia e tal, e íamos para o botequim. Chegava lá e dizia: "dá uma cachacinha, dá uma cachacinha". Na hora de pagar eu falava: "Paulo, estou com roupa de cena". Ele pagava. No outro dia: "Paulo, estou com roupa de cena". Pagava. Um dia, nós fomos gravar em Paris, e fomos tomar um negocinho ali, E ele, bobão, bebe cassis, aquelas coisas de velho alagoano. Eu bebi um Calvados doce [brandy de maçã originário da região francesa da Normandia] que é uma pinga de francês. E na hora eu falei: "Pô, estou com roupa de cena". E ele: "Não, não embola!". Daí eu fiquei com a fama de pão-duro, mas é só a fama, gente!

[risos] 

Jorge Escosteguy: E mentiroso?

Lima Duarte: Não, é tudo baseado na verdade.

Leila Reis: E aquela história de que o Chateaubriand quebrou a câmera com a garrafa de champanhe?

Lima Duarte: Faço questão de citar nomes, espere.

Lúcia Soares: Foi o Lima que inventou essa história, que a emissora custou a entrar no ar.

Lima Duarte: Para quem achar que é mentira.

Regina Ricca: Lima, queria que você confirmasse se é verdade ou não, mas parece que você se negou a dar um depoimento sobre o doutor Assis ao escritor Fernando Morais, que está escrevendo a biografia de Chateaubriand [refere-se à obra Chatô, o rei do Brasil, de 1994].

Lima Duarte: Me neguei sim, ele insistiu bastante.

Regina Ricca: Por quê, Lima?

Lima Duarte: Porque o que houve entre mim e doutor Assis foi uma coisa muito pessoal, se desenvolveu em um terreno de grande intimidade, nós ficamos grandes amigos. Ele, sem poder falar, só olhando e eu falando por ele. Essa coisa não é para estar em biografias, essa coisa é nossa, minha e do doutor Assis. Então por que eu vou falar?

Aimar Labaki: Você jamais vai autorizar uma biografia sua porque sua intimidade não pode ser devassada?

Lima Duarte: Não, pode e deve, mas não a do doutor Assis. O que houve entre nós dois foi uma coisa muito recôndita, que não é para estar em biografia...

Regina Ricca: Mas é que você presenciou histórias interessantes do doutor Chateaubriand.

Lima Duarte: Isso sim.

Regina Ricca: E elas poderiam ser utilizadas nessa biografia.

Lima Duarte: Mas tem tanta gente que estava nessa história. Ele fala com os outros, eu tenho sempre uma visão muito pessoal, muito particular das coisas.

Ilka Maria Zanotto: Lima, desculpe, eu quero voltar um pouco para o teatro. Eu vi aqui que você fez quarenta novelas e trinta peças de teatro, além de vinte filmes. Então, você é plurifacetado e, no teatro, sua contribuição foi incrível. Nesse dossiê "Teatro", que saiu na Revista da USP [Universidade de São Paulo], aqui em São Paulo, praticamente todos os ensaios versavam sobre o teatro dos ensinadores que instrumentalizam o ator, investindo na presença, na expressão física, em detrimento do diálogo e que, quando recorrem a textos, quase nunca são teatrais, tratam-nos nem sequer com pretexto...

Lima Duarte: É.

Ilka Maria Zanotto: ...mas como roteiros a serem submetidos a projeto pessoal reducionista, na busca de uma nova sensibilidade, torna-se descartável o sentido do que se faz, em resumo. Eu estou lendo porque é o prefácio que eu fiz para a obra do Lauro Cézar Muniz, que criou o Zé Bigorna...[refere-se ao episódio escrito por Muniz, O crime do Zé Bigorna. O filme, cujo personagem principal é interpretado por Lima Duarte, é de 1977].

Lima Duarte: É, e o Sassá Mutema.

Ilka Maria Zanotto:...que eu acho que é a máxima criação de toda a televisão e não foi citado até agora, não é? É quando o teatro quase maciçamente se volta para a dissolução do texto, para a abolição da narrativa, assumindo a própria linguagem como tema de representação.

Lima Duarte: [interrompendo] Espera aí, isso é relativo ao teatro da década de 60 ou de agora?

Ilka Maria Zanotto: Ao teatro de agora.

Lima Duarte: Ah!

Ilka Maria Zanotto: Teatro de agora, sobre os contemporâneos.

Lima Duarte: Certo.

Ilka Maria Zanotto: Esses ensinadores que estão aí, que são absolutos, que instrumentalizam o ator.

Lima Duarte: É.

Ilka Maria Zanotto: O ator já não é a peça principal, nem o texto. É o projeto pessoal do diretor.

Lima Duarte: Isso é diametralmente oposto ao teatro que eu fazia, que nós fazíamos em 60.

Ilka Maria Zanotto: Então, é o teatro que investe furiosamente no formol, a ponto de motivar os espectadores a ouvir com os olhos, quando se preconiza e se pratica a morte da palavra. Então qual seria aí o lugar para uma dramaturgia tradicional como Lauro César Muniz, por exemplo, e de um trabalho de um ator como você? Agora eu quero que você se posicione diante desse teatro, você tem visto esse teatro.

Lima Duarte: O meu lugar seria a Casa do Ator.

Ilka Maria Zanotto: É o que está aí, ganhando todos os prêmios.

Lima Duarte: O meu lugar seria a Casa do Ator, a aposentadoria diante desse teatro, porque eu dou um depoimento pessoal, e eu espero e pretendo que a minha vida seja rica o suficiente, para expor por meio dos meus personagens. E isso é que eu tento fazer sempre, e não posso realmente admitir um diretor que me transforme em um poste ou em um pufe, não é? Para ficar ali no canto, isso não é o meu teatro, eu não sei fazer. Eu acho que o ator é poderoso e bastante criador, tanto quanto o diretor, claro, afinado com ele, mas dá o seu depoimento pessoal, de homem do seu tempo, agir sobre o seu meio, sobre a sua sociedade, alterá-la e melhorá-la se possível. Essa é a missão do ator que eu estendo e que eu aprendi no Arena. Eu faço questão de fazer, e se você me permite, eu tenho feito isso até nas telenovelas. Eu dou sempre o meu depoimento pessoal, eu me exponho mesmo, eu abro a minha alma pelos meus personagens. Acho que essa é a função do artista, se você quiser, como diz o Guimarães Rosa, por idéias arranjadas na cabeça, nós podemos colocar. E a função do artista é introduzir ruídos no sistema, onde quer que ele se estabeleça. E em cada ruído, provoca uma reação em cadeia que acaba por se transformar em um outro sistema. E o artista tem que romper também, mas sempre tendo o ponto de partida e por meta e por fim a sua gente, o seu povo. Esse é o teatro que eu aprendi. Quando digo que sou o único ator de formação rural na elite de atores brasileira, quero dizer que me orgulho disso, tenho pensado muito maduramente sobre isso, houve um tempo que eu tinha até, também, por injunção do imperialismo cultural, vergonha disso. A gente tem mesmo vergonha de ser brasileiro, e eu tinha também vergonha de ser um ator brasileiro, de ser esse tipo tão passional e de me entregar tanto à poesia e ao coração, esquecendo a razão. E o que é que me difere dos outros? O que é que difere uma pessoa que é da roça, um caboclo, de um sujeito da cidade, que tem filhos e netos? Então eu fico pensando que educar é um pouco assustar. Quando eu chegava em casa, a minha mãe pegava e raspava minha perna assim, quando você molha e seca ao sol fica um risco branco, aí eu apanhava, porque tinha ido nadar no poção, que era o meu inimigo. O meu inimigo era a montanha, o cavalo, a cobra. A onça nunca foi o meu semelhante, nunca foi, isso é uma coisa que é dolorosa para mim. Eu digo para os meus netos: "cuidado, que aquele menino vai te roubar o tênis!". Todo perigo vem do meu semelhante hoje, claro, que é um ser humano pior, diferente. "Meus filhos, cuidado que esse cara vai te dar maconha, cuidado que ele te rouba, cuidado com o bêbado, cuidado com a polícia!". O meu nunca foi. E eu não sei ser assim. Então, esse elemento tão ponderado na minha criação, eu carrego para a minha interpretação. Eu sempre trabalho a favor, e faço questão de dar um depoimento pessoal, porque acho que aí na minha infância está o cerne do humanismo que eu sou, e que faço questão de defender.

Aimar Labaki: Por isso que você não é o diretor?

Lima Duarte: Esse liberalismo de consumo que anda por aí, a mim não engana não.

Aimar Labaki: É por isso que você não chamou o diretor para fazer o teu espetáculo?

Lima Duarte: Não, aquilo ali eu quis dizer ao Guimarães Rosa.

Aimar Labaki: Mas você não sente falta de um interlocutor, uma pessoa que esteja dirigindo?

Lima Duarte: Sim, sinto muito, uma pessoa que tenha uma visão perspectiva disso, que fique de fora e fale.

Aimar Labaki: E por que você não chamou alguém?

Lima Duarte: Lima faz assim, caminha assim, porque isso aí não é um espetáculo, isso é um recital, é uma coisa que eu monto para minha satisfação. Para te dizer a verdade, eu pago para fazer isso, se eu quisesse fazer outras coisas nesse horário, eu ganharia muito mais. Eu tenho pago para fazer o Guimarães Rosa, mas me satisfaz tanto, eu sinto tanta alegria, é uma chuva de delícias toda noite, quando eu digo aquelas palavras.

Aimar Labaki: Tem algum diretor da nova geração, mesmo da velha, com quem você trabalharia em teatro?

Lima Duarte: Ulysses Cruz [diretor de teatro, que foca seus espetáculos em adaptações de obras literárias e no teatro de encenação]. Talvez ele fosse uma pessoa que eu gostasse, eu me entenderia muito com ele. Já trabalhei com Antunes [Filho] nos tempos da velha Tupi e tal, mas acho que ele grita muito, eu não gosto, sinceramente. Não acho humano, não acho bonito, não acho grande ele transformar aqueles meninos todos no prolongamento dele mesmo.

Aimar Labaki: Você gosta dos espetáculos do Ulysses?

Lima Duarte: Eu gosto, acho que são mais humanos, mais bonitos.

Lúcia Soares: Eu só queria voltar um pouquinho, porque quando você estava falando do Chateaubriand, estava dizendo da intimidade, que você freqüentava a casa dele.

Lima Duarte: Muito.

Lúcia Soares: Agora estou lembrando do outro patrão, que é o Roberto Marinho.

Lima Duarte: Doutor Roberto.

Lúcia Soares: Queria saber da sua relação com Roberto Marinho. E vou emendar e perguntar uma outra coisa para você, aquela passagem com a Janete Clair, você estava matando um personagem?

Lima Duarte: A gente estava falando aquilo, porque ela vibrava e tinha uma sensibilidade de [empregada] doméstica e escrevia para elas, era maravilhoso o que ela fazia, não é? Eu acho que ela era uma espécie de Nelson Rodrigues. O Nelson Rodrigues tem uma visão crítica disso, tem uma fala incrível, que é bem específica disso. São as viúvas, as famosas vizinhas do Nelson Rodrigues. Ele diz assim: “Olha lá, o marido foi enterrado de manhã. De tarde, ela já está chupando um Chicabon [sorvete da marca Kibon]. Isso é dor que se apresente?”

[risos]

Lima Duarte: Isto é uma peróla, é uma coisa tão fantástica que aquilo ele não escreveu, ele ouviu, ele pegou do povo e isolou do contexto e nos oferece assim, e aí nós entendemos a nossa gente. A Janete também era um pouco assim, ele ouvia e tinha uma sensibilidade que batia tanto com eles... e tinha uma cena, por exemplo, em que eu era um milionário em Pecado capital. A [atriz] Beth Faria, linda...

Lúcia Soares: Salviano Lisboa.

Lima Duarte: É, Salviano Lisboa. Ela, morena, de cabelos bem pretos, e sempre se vestindo amarelo, ficava lindíssima,  e me apaixonava e tal, e afinal de contas, depois de vinte anos de casado, em uma viuvez ainda recente, esse homem que não era habituado a esse jogo do amor, esse jogo da sedução, sai para conversar com a secretária que ele quer "traçar," então ele é canhestro, é claro, eu pensava nisso. A cena se passava na melhor boate do Rio de Janeiro, a Privê, nós chegávamos lá, sentava ela, eu, chegava o maítre: "Doutor Salviano, doutor Salviano, como está o peru?”. E ele disse: "Está bom, está fresquinho, traga um à califórnia, e eu pedi e a doméstica, em casa, falava: "Que maravilha, pagou um peru à califórnia". E, cenicamente, também fica...eu, Lima Duarte, falava: “Trinche, por favor”. Trinchava e a Beth comia o peru e eu comia e tal, depois no fim eu dava um presentinho para ela, cinco mil dólares de presente, então era uma coisa...e tem que fazer, tem que aceitar, tem que ser verdade. Ai as pessoas amam, como amaram a Janete. É insubstituível.

[risos]

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Desculpe, nosso tempo está quase terminando, eu não posso estourar porque estamos em rede. Eu queria fazer uma última pergunta, que é, talvez, o acontecimento mais importante ou mais falado de misturar ficção com realidade, ou seja, o que houve na última novela da Globo, com o assassinato de uma atriz e depois, a exposição, que foi muito discutida, muito polêmica, dessa atriz nos capítulos posteriores à morte dela.  Qual é sua opinião sobre esse fato, ou seja, depois de o crime ter acontecido, a Globo exibir cenas dos dois personagens, de Daniela e seu matador? [refere-se ao caso Daniela Perez]

Lima Duarte: Se usaram isso para conseguir audiência, é uma coisa lamentável, eu não acredito que tenham feito isso. O Boni é uma pessoa muito inteligente, o melhor homem de televisão que tem no Brasil.  E ele não permitiria isso, eu creio. Agora, é uma visão pessoal da autora. Também estou tão distante, não quero ser leviano diante de um problema tão grave. Eu posso te falar dos atores nas novelas, insisto, quando você lida com macro audiências é inevitável você deixar ser tocado pelo personagem, ou de tocá-lo, ou de construí-lo. É o seguinte: todos os dias, às oito e meia da noite, quando você faz um bandido, milhões de pessoas começam a te odiar. Rapaz, isso deve ter uma força!. Eu fazia uma novela em que tinha que beijar a  [atriz] Maitê Proença ou não beijar. Era um beijo demorado do Sassá Mutema. Eu saía de manhã, o meu porteiro falava: “Pô, não vai beijar aquela boquinha? Beija!” [risos] Entrava no táxi, o motorista: “Senhor, ela chegou assim e o senhor não beijou? Bom, vai sair esse beijo ou não vai sair?”. Quando eu chegava no estúdio, eu dizia:"Pelo amor de Deus, me beije!". E ela também: "Me beija".

Jorge Escosteguy: Parecia que era uma decisão sua.

Lima Duarte: Porque a novela é durante um ano e são cinquenta milhões de pessoas [assistindo], então é muito forte isso, é muito difícil. Às vezes, eu me surpreendo, quando estou fazendo uma novela, com reações que são do personagem. Mas eu não sou louco, não sou esquizofrênico, eu sei isso, eu penso isso. Acho que isso ocorre um pouco, mas você precisa ter bastante clareza para saber que é o personagem, não é você.

Jorge Escosteguy: Está bom. Nós agradecemos então a presença do Lima Duarte. Agradecemos também aos companheiros que nos ajudaram na entrevista. E lembramos aos telespectadores que o Roda Viva volta na próxima segunda-feira, às nove e meia da noite. Até lá, uma boa semana e boa noite a todos.

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