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[Programa ao vivo, permitindo a participação dos telespectadores]
Rodolfo Konder: Boa noite. Estamos transmitindo mais um Roda Viva. O convidado desta noite é o escritor Márcio Souza. Para entrevistá-lo, temos os seguintes convidados: Felipe Lindoso, editor da Marco Zero; Jefferson Del Rios, jornalista e crítico de teatro; Alexandre Machado... o convidado Alexandre Machado ainda não chegou; Djalma Limongi Batista, cineasta; Júlio Carlos Duarte, diretor executivo da revista Leia; Deonísio da Silva, escritor; Rinaldo Gama, editor assistente de artes e espetáculos da revista Veja; Ricardo Amaral, subeditor de política do jornal O Estado de S. Paulo. Para registrar os melhores momentos do programa, está conosco também o cartunista Paulo Caruso. Na platéia, assistem ao programa, convidados da produção. Amazonense de Manaus, o escritor Márcio Souza tem 44 anos, está certo?
Márcio de Souza: Correto.
Márcio de Souza: Doze.
Márcio Souza: Boa noite.
Márcio Souza: Olha, o interessante é que a história da minha região é uma história bastante constante. Na verdade, os inimigos continuam exatamente os mesmos. E a história parece que se repete sempre exatamente igual na região – e como farsa desde o início–. Hoje nós temos uma encenação que já aconteceu, por exemplo, no início do século, com as denúncias feitas por um missionário protestante, que denunciou a existência de índios escravizados nos seringais, de uma região não muito distante do Acre, que era o rio Putumayo, entre o Brasil e o Peru. Ele fez essa denúncia, foi um escândalo internacional, apareceram amigos da região, solidariedade em relação à região. E já tinham ocorrido também coisas semelhantes de viajantes no século 18, no século 19. Enfim, os amigos e inimigos são exatamente os mesmos.
Márcio Souza: Olha, eu não tinha, no início, nenhuma intenção de entrar na história do Chico Mendes, porque acompanhava o trabalho do Chico, tive alguns contatos com ele, que fazia seu trabalho lá no Acre. A Amazônia tem várias amazônias na verdade. Sou da Amazônia amazonense, que é uma outra luta, outra questão. E, quando ele foi assassinado, foi um choque para todo mundo, embora a percepção dessa morte e do trabalho do Chico fosse inteiramente diferente vista lá de dentro da região. Mas achei que ele já tinha muita gente lá, muitos defensores, então me mantive um pouco afastado; além do estado de choque um pouco em que eu me encontrava, porque nunca acreditei...
Márcio Souza: Exato, nunca acreditei, aliás, que ele.... porque não há uma tradição na história política da Amazônia – a não ser da ditadura militar para cá–... não há tradição desse tipo de violência, isso é mais típico do Nordeste. Então, é estranho para quem é de lá. Você via muitas brigas políticas lá na região e tal, mas nunca [se chegava às] vias de fato, nunca assassinatos realmente. São raríssimos os casos, até pelo menos os anos 40, 50... casos assim, de assassinatos políticos na região. É difícil para a psicologia da região a entrada de coisas como essa, do assassinato de Chico Mendes. Então eu não acreditava, fiquei estarrecido realmente com o senso da impunidade dos latifundiários, dos fazendeiros da UDR [União Democrática Ruralista] que promoveram esse massacre. Não só assassinando Chico, mas muitos outros líderes e militantes do movimento dos seringueiros lá do Acre e outras áreas da região, porque são várias as pessoas que estão sendo assassinadas quase que diariamente lá. Eu não queria me meter nessa história, mas aí, por outro lado, comecei a me irritar muito com as opiniões que estavam sendo dadas a respeito da minha região. Primeiro, porque ninguém foi perguntar nada às pessoas da região. E até para não me acusarem de xenófobo ou jacobino, não perguntaram para as pessoas que conhecem a região realmente. Por exemplo, eu nunca vi ninguém procurar o Paulo Vanzolini [compositor, autor de sucessos como Ronda, é também cientista, um dos idealizadores da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e criou, em conjunto com outros cientistas estrangeiros de renome, a “teoria dos refúgios” ao estudar a vegetação da Amazônia - ver entrevista com Vanzolini no Roda Viva] aqui em São Paulo, que é um cientista que tem um trato com a região amazônica de mais de quarenta anos, para perguntar o que ele achava do que estava ocorrendo na Amazônia, o que ele via de perspectiva nisso. Não, de repente você via um cantor de rock [o cantor britânico Sting, em campanha pela preservação da Amazônia e demarcação das terras indígenas, percorreu o mundo com o cacique Raoni, índio caiapó, foi recebido por alguns dos mais poderosos políticos e conseguiu atenção e dinheiro para a causa indígena no Xingu e na Amazônia] que pegava um cidadão que usa um cd nos lábios, um disco laser, e faz campanha mundial com propostas estranhas e completamente absurdas, algumas delas encobrindo, mais uma vez, interesses para a região que não eram exatamente os interesses das pessoas da região, muito menos para uma proposta de Brasil. Então, por isso, decidi entrar na história, falar. Eu já tinha feito, porque me achei na obrigação de fazer o argumento do filme que vai ser feito sobre o Chico Mendes. E, a partir daí, com esse material vivo sobre a vida dele, da pessoa Chico, decidi então fazer esse livro, que pertence a uma estirpe quase em extinção neste país, que é o velho e bom panfleto político. Não pretendo que seja história ou ensaio sociológico e tal: é um panfleto político, um texto que vem propor uma discussão.
Márcio Souza: É. Esse livro...
Márcio Souza: Tem, sim! Tem, é um livro inteiramente centrado na região Amazônica. É um livro sobre mundos perdidos, sobre mundos em extinção, sobre coisas que já estão ou totalmente extintas ou em processo de extinção. Inclusive o próprio romance – que dizem que é um pouco como os dinossauros, estão ou já extintos totalmente ou sobreviveram exemplares aqui e ali – é um dos temas do livro. Mas o grande tema é uma discussão sobre a Amazônia, é uma história que se passa lá e basicamente o ponto inicial do livro é uma referência a um livro clássico de aventura na Amazônia, do [Arthur] Conan Doyle, O mundo perdido, que ele publicou em 1912. Nesse livro tem um professor, um personagem, o professor Challenger. E esse professor vai fazer uma pesquisa na Amazônia e, entre parênteses aqui, a descrição que ele faz, a narração que faz da Amazônia, é exatíssima. Ele nunca esteve lá, o Conan Doyle, mas tinha conhecimento através de pesquisas no Museu Britânico, com seu amigo [Alfred Russell] Wallace, que esteve viajando nessa região. Mas o professor Challenger, esse personagem, descobre uma área que fica ao norte do Amazonas, hoje no território de Roraima, seria talvez o monte Roraima e ali, num platô completamente isolado do resto do continente, a evolução teria estacionado na pré-história. Ali existiriam dinossauros, Pterodactilus, animais pré-históricos em geral, inclusive uma tribo de homens das cavernas ainda em processo de evolução. Quando ele volta para a Inglaterra, faz uma reunião entre os cientistas ingleses da Academia Real de Ciências, em que relata a descoberta, mas ninguém acredita, especialmente porque ele sofreu um acidente na viagem de volta e não tem mais as provas. Ele é ridicularizado até que um outro cientista natural o desafia a mostrar essa região e, de fato, ele volta para a Amazônia com esse outro cientista e lá estão os dinossauros, os Pterodactylus e tal. No meu romance, que se passa atualmente, no final do século vinte, a neta desse cientista voltaria a Manaus, passaria um fim de semana no Hotel Tropical como turista. E, de regresso, ela é uma jornalista inglesa que trabalha numa revista de economia para a [...], uma dessas revistas que falam sobre os últimos investimentos de comida sushi. E ela é uma jornalista de uma revista desse tipo. E, voltando lá, ela reúne seus colegas e diz: “Olha, nós temos que fazer a matéria, porque existe na América do Sul um local chamado Brasil, onde, em uma cidade, encontrei espécimes vivos e com saúde de capitalistas que já estão extintos aqui na Inglaterra desde o século 18”. Então, mais ou menos essa é base da história do livro. É um livro sobre o atraso, sobre o que é moderno e o que é atrasado. Mas, ao mesmo tempo, é uma história que ficou muito engraçada no livro.
Júlio Carlos Duarte: É o seguinte: já dei uma folheada no livro e tem uma parte muito engraçada em que você faz uma sátira ao Santo Daime e à Lucélia Santos [atriz brasileira que, nos anos 80, tornou-se adepta e fervorosa divulgadora do Santo Daime]. Agora, por informações que tenho, parece que o Santo Daime é uma bebida que todo mundo utiliza, quer dizer, seringueiros, caboclos na Amazônia, não sei se isso é verdade. Queria saber se você já provou o Santo Daime.
Márcio Souza: Não, seleciono muito as minhas bebidas primeiro. [risos] Em segundo lugar, não é verdade que todo mundo bebe. Bebem os iniciados que fazem parte dessa seita, que, aliás, cresceu bastante. Agora, do ponto de vista da cultura da região amazônica, a seita não tem nada a ver; tem tanto a ver com a Amazônia quanto a umbanda tem a ver com a religião afro...
Márcio Souza: Não, a ayahuasca, inclusive, originalmente era usada apenas pelos povos indígenas e pelas pessoas autorizadas dentro da tribo, [como] o pajé, que oficiava algum tipo de ritual lá dentro. É muito comum entre os povos indígenas – não só da Amazônia, mas em outras regiões onde existe sociedade tribal – a utilização de fumaça ou pó para aspirar pelo nariz. Os ianomâmi, por exemplo, não têm música por [meio de] instrumentos, mas têm a narrativa do mito contada, que é uma verdadeira ópera e monólogo. O oficiante da ópera é que vai contar a história... Primeiro a comunidade escolhe a história, então pintam o cenário no corpo dele. Antes de começar [a contar a história], ele inala um pó e esse pó provoca... Ele, primeiro, tem vários... Tem um período de adaptação em que ele rola no chão e depois volta e se sente gigantesco, é como se ele tivesse uns três ou quatro metros de altura. E isso dá uma força para ele representar, porque a duração às vezes de uma história dessas é de umas 12 horas. Existem cenas filmadas dessa narrativa. Então é usado muito como complementação cultural dos povos – em alguns povos, nem todos. Outros povos, como o parintintin, que já está extinto, utiliza muito esse tipo de química para a sua atividade sexual. Eles eram verdadeiros atletas sexuais; inclusive a extinção deles foi curiosíssima, porque o último cacique dos parintintin terminou como dono de um bordel famosíssimo no rio Madeira. [risos]
Márcio Souza: É para lembrar aquele ensaio do Montaigne [(1533-1592), Dos canibais. [risos]
Márcio Souza: Bom, começando pelo Raoni, ele não é da Amazônia, é do Brasil central. Inclusive, na cultura de que ele faz parte... existe representação na região amazônica do mundo tribal que ele faz parte. E, de fato, aí vai um erro de percepção do Sting, que – entende?,– como cantor, muito bem intencionado – não nego isso – mas, como dizia o velho provérbio português, “de boas intenções o inferno está repleto”. Ele não faz uma diferença do que são as amazônias; tem histórias extraordinárias que já presenciei nesses desencontros. Em segundo lugar, sobre quem tem a voz da região e quem tem a verdade. Na verdade, acho que não tem pessoas autorizadas. É uma região muito complexa e que não está habituada a estabelecer um diálogo com o Brasil nem o Brasil está habituado a dialogar com a região. Isso é um problema grave, porque na verdade existem instâncias e entidades que poderiam falar alguma coisa sobre a região, porque já vêm realizando trabalhos lá. Por exemplo, o Naea, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade do Pará, é uma entidade que tem um conjunto, um plantel de cientistas que hoje está realizando extraordinários trabalhos na área de ciências humanas, na área de etnografia, na área da antropologia, na área dos impactos que os grandes projetos econômicos causaram no povo da região. Então ali você encontraria uma série de interlocutores que estranhamente nunca foram perguntados também. Em Manaus, por exemplo, tem o Inpa, que é o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, que vem realizando, desde os anos 50, um trabalho de levantamento especialmente na área de ciências naturais. E ali então, acredito, há alguns dos cientistas mais categorizados para falar até sobre a biota da região, sobre as relações dos projetos econômicos e sobre o meio em que foram instalados. E também nunca foram perguntados. Quando se fala de solidariedade na região, de levantamento de recursos, esses recursos não vão para ajudar o Inpa, especialmente porque esse instituto foi uma resposta do Brasil a uma tentativa anterior de internacionalização da região, quando foi proposta a criação do Centro de Pesquisas Woods e o Arthur Bernardes [presidente do Brasil de 1922 a 1926] revidou criando o Inpa e diversos órgãos de pesquisa na região. Aliás, é risível o fato de o Inpa ser a resposta brasileira a essa tentativa de ocupação política da região por forças e potências estrangeiras, porque a situação de penúria que vive o Inpa mostra muito bem a qualidade dos interesses que o Brasil mantém ali na região. E tem no estado do Amazonas, enfim, eu poderia citar vários núcleos importantes que não são nunca procurados inclusive.
Márcio Souza: Praticamente.
Márcio Souza [interrompendo]: É, tem aparentemente um... Mais um absurdo amazônico desse título.
Márcio Souza: Primeiro, um comentário sobre a palavra empate, que tem uma conotação, não exatamente amazônica, porque eu diria até que o Gil Vicente [(1465?-1536) escritor e poeta português, é considerado o primeiro grande dramaturgo de seu país] já usava um pouco essa conotação da palavra empate, que é de empatar realmente, de impedir, e não "zero a zero", não duas forças com a mesma possibilidade. A conotação é de impedir, de evitar, então era isso. Eles dizem: “Vamos empatar o desmatamento”, quer dizer, vão lá e impedem que o seringal seja destruído. Então é nesse sentido que essa palavra é usada lá e virou o nome de uma ação dos seringueiros. “Vamos fazer um empate!” Já se subentende o que significa tudo isso dentro daquele contexto do Acre. Agora, um reparo que eu gostaria de fazer nessa lista que você citou de países – é culpa minha: o livro não está saindo na Alemanha por enquanto. Errei na hora de listar, me confundi. Na verdade, no lugar de Alemanha, leia-se Noruega, que... De fato são dez países em que estão saindo [os livros] nesses 15 dias, agora, que terminaram no mês de maio e, nesta quinzena em que nós estamos entrando, começa a sair esse livro. Claro, pela repercussão toda, uma parte de editoras já publica normalmente meus livros e outras [vão publicar] pela primeira vez. Por exemplo, na Finlândia, eu só tinha um conto publicado, agora saiu esse livro e eles já estão interessados em outros livros meus. Mas falando sobre a percepção da imprensa que você comenta, de fato acho que a imprensa brasileira estava pondo Chico no devido lugar, digamos assim. Estava tratando-o como um líder chato, um líder sindical chato, até um pouco mais chato que os outros, porque ele saía lá do Acre para vir encher o saco aqui no Sul. Não é como o pessoal aqui, que já está no ABC [referência à região próxima à capital de São Paulo, com grande concentração de indústrias, principalmente de montadoras de automóveis. A sigla vem das três principais cidades da região: Santo André (A), São Bernardo do Campo (B) e São Caetano do Sul] mesmo, só faz atravessar uma pista e vem... Mas o que saía sobre o Chico na imprensa, o mínimo e tal, era condizente com o espaço que o movimento sindical, especialmente o movimento do negócio da luta no campo para reforma agrária, já tinha. E não foi a imprensa brasileira que chegou tarde, porque a imprensa internacional também chegou muito tarde em relação ao Chico Mendes. E ela chegou indicada por sinalizações e um pouco distorceram a figura dele.
[...]: Por exemplo?
Márcio Souza: Porque ele foi iluminado, não exatamente como aparecia anteriormente na imprensa, daí que recebeu um espaço maior. Porque o Chico morto ressuscitou não como um sindicalista, mas como um ecologista, um defensor do verde, não muito diferente também dos cantores de rock; um Chico despolitizado, um Chico Mendes dessangrado, liofilizado, foi esse Chico Mendes que recebeu todo esse espaço. Depois que se começou a repor toda a substância do Chico Mendes novamente, ele começou a irritar. E hoje, por exemplo, a imprensa volta a dar um pouco o espaço que ele merece. Então, na verdade, a imprensa não descobriu tardiamente, a imprensa já sabia o lugar dele. Não a imprensa, mas a grande imprensa, quem manda na imprensa. Acho que até houve muito esforço da parte de muitos jornalistas, muito do que sobrou do Chico, por exemplo, o seu último depoimento foi dado ao Jornal do Brasil, que publicou depois que ele morreu...
[...]: Coisa da mocidade dele.
Márcio Souza: Claro, acho que é importante o que você coloca aí. Primeiro, há um hiato, um espaço de experiência vivida entre O mostrador de sombra, especialmente naquele capítulo sobre o cinema da Amazônia e esse livro que estou publicando, é óbvio...
Márcio Souza: Um é de 1967. Eu estava completando vinte anos nessa história. Tem texto que publiquei com 14 anos no jornal e que pus nesse livro.
Márcio Souza: E um autor de Manaus, como você sabe, que não conhecia a Amazônia, porque até aquela época você podia nascer em Manaus, crescer, pegar um avião no aeroporto e ir embora para Miami, para a Havana, porque tinha aquele vôo, Miami-Havana-Manaus, em que vinham todos os grandes astros de Hollywood para o carnaval do Rio de Janeiro, passavam por Manaus, pernoitavam no Hotel Amazonas. Viagens direto para Europa ou para o Rio de Janeiro sem o menor contato com a região amazônica...
Djalma Limongi Batista [interrompendo]: Nós íamos receber todos esses astros – não era Márcio? –, inclusive até o Jean-Paul Sartre [(1905-1980) filósofo francês que formulou, em grande medida com base no pensamento de Heidegger, o existencialismo].
Rodolfo Konder: Nós vamos dar uma pergunta ao Jefferson Del Rios, mas antes nós vamos fazer um pequeno intervalo para dar espaço aos telespectadores, porque temos recebido muitos telefonemas. Vamos fazer um ping-pong com os telespectadores. Vou lhe pedir respostas bem sucintas. Tem aqui as três primeiras perguntas que dizem respeito ao Chico Mendes. José Santos, de Santana, pergunta o que inspirou você a fazer o livro O empate contra o Chico Mendes. Foi apenas o Chico Mendes?
Rodolfo Konder: Ricardo Dantas, de Perdizes: “Quais os resultados das últimas investigações sobre a morte de Chico Mendes?" Ele pergunta se você está sabendo.
Rodolfo Konder: Pedro Aci, de Jacareí: “O que poderia ter sido feito para se evitar a morte de Chico Mendes”?
Rodolfo Konder: Marcelo Lins, da Aclimação, pergunta de onde vem sua paixão pela Amazônia e pelos povos indígenas.
Rodolfo Konder: Silas Rosenveldi, do Jardim Paulistano, pergunta se você aconselharia, nos dias de hoje, alguém a abrir uma editora.
Rodolfo Konder: José Alvarez, de Taubaté, diz que durante a Constituinte, um deputado propôs uma emenda concedendo independência ao Acre. Ele pergunta se você é a favor da independência do Acre.
Rodolfo Konder: Marcelo Bonfá, do Alto de Pinheiros, pergunta se você acha que é bom, é positivo o futuro da literatura brasileira.
Rodolfo Konder: Margarida Pereira, da Lapa. "Como você vê um líder indígena premiado no exterior com 100 mil dólares pela defesa da Amazônia?"
Rodolfo Konder: André Luiz Pereira, de Pindamonhangaba, pergunta como você, um escritor que vive de direitos autorais, vê a atual conjuntura econômica do país.
Márcio Souza: Preocupadíssimo, porque parte desses direitos tinham virado, para a ministra [Zélia Cardoso de Mello, foi ministra da Fazenda do governo Collor (1990-1992)], especulação, objeto de especulação e estão presos até hoje. Provavelmente, não verei mais a cara deles. [risos]
Jefferson Del Rios: Um ecologista tido como radical e mal-humorado, como [José Antônio] Lutzenberger [(1926-2002) foi secretário nacional do Meio Ambiente do governo Collor], qual é a chance dele, no governo show do Collor, de realizar um trabalho efetivo pela Amazônia?
Márcio Souza: A minha esperança é que ele consiga levar à frente as suas propostas; inclusive para nós, da Amazônia, as propostas radicais de Lutzenberger são extraordinárias. E uma das propostas que nós gostaríamos de ver realizada é justamente uma espécie de moratória, dar uma parada para ver o que se pode fazer. Um outro aspecto – e o Lutzenberger também comunga dessa visão – seria a ocupação da região amazônica efetivamente, mas uma ocupação pacífica pela ciência, sob o controle do povo brasileiro. Agora, no contexto deste governo, realmente estão cada vez mais utópicas as posições de Lutzenberger. E acredito que o programa real do governo para a Amazônia e para a questão do meio ambiente nesse país é o programa da Escola Superior de Guerra, que foi exposto. Este acho que é o programa real; choca-se inteiramente com a filosofia e a perspectiva de luta do Lutzenberger. Como nativo da região, inclusive, estou envolvido até – todo amazonense está – naquela listinha de extinção, como o lobo-guará... Aquele negócio tonto, "estamos em extinção", então espero que ele consiga levar à frente esse plano, embora não acredite.
Márcio Souza: Olha, acho que...
Márcio Souza: Bom, primeiro acho que não fiz nenhuma demolição dessas de que você está falando aí, especialmente porque não sou professor. [risos] Fiz umas ironias, é verdade. Primeiro, porque você talvez não se sinta na minha pele, porque você é de um estado que não precisa de solidariedade e realmente estou em uma lógica, hoje, numa posição que... Chega certo momento em que é melhor a exploração do que certas solidariedades, porque contra a exploração há o que fazer, mas contra as pessoas que vêm prestar solidariedade, não, porque elas se julgam justas e são, você entende? E aí a discussão é completamente esvaziada. Então, você me pergunta se eu teria uma proposta pessoal diferente. É obvio que minha resposta e a minha posição são completamente diferentes da do general Leônidas. [risos] Embora a tradição política não seja nenhum lastro para ninguém... Não é porque você tem um passado de meia dúzia de cadeias e etc,. que isso vai lhe dar lastro para ter uma posição melhor que a do general Leônidas, não é exatamente isso. Mas a perspectiva que tenho, primeiro, é nunca deixar de politizar a Amazônia, a questão da Amazônia e a questão da destruição da região. Não concordo que a questão da região seja discutida com a questão regional, por exemplo, nunca concordei com isso. Faço parte de uma corrente muito importante de opinião nesse sentido dentro da região. Mas também não concordo que ela seja uma questão internacional.
Márcio Souza [interrompendo]: Talvez a questão ecológica, mas não a questão da região. Acho que tem duas discussões aí. Uma da questão da Amazônia, que é uma questão brasileira. Como não tem um projeto do Brasil, não pode ter um projeto para região amazônica. Você vê um momento em que a região teve uma exploração com objetivo realmente claro, foi no século, 18 com o Marquês de Pombal [Sebastião José de Carvalho e Melo foi o ministro do rei D. José I, de Portugal, de 1750 a 1777. Preocupado em fortalecer a economia do reino, que sofria com imposições da Inglaterra, pôs em prática uma política de ocupação da Amazônia, cujos limites haviam sido estabelecidos pelo Tratado de Madri, em 1750, assinado entre Portugal e Espanha]. Antes disso, ele mandou investigar, mandou o que tinha de melhor do ponto de vista científico da época dele e foi um projeto excelente para os portugueses, é claro, para o governo que Marquês de Pombal representava.
Márcio Souza [interrompendo]: Do Marquês de Pombal, que teve essa visão. Depois desse levantamento, ele aplicou na Amazônia, por exemplo, a industrialização, toda a estrutura de produção naval ainda restou. Inclusive, hoje, pelo interior do Pará, a construção de barcos tradicionais é memória da entrada de especialistas da área naval e também da manufatura de borracha. Até meados do século 19, a Amazônia exportava produtos manufaturados, não a borracha in natura. Outra coisa foi a introdução do pequeno proprietário agrícola e de uma agricultura mais avançada, tanto que foi pela Amazônia que entrou o café, que depois migrou para o Sul do Brasil. E havia outros tipos, o algodão, a plantação do cacau, que era nativo do baixo Amazonas, foi para Nordeste já domesticado dessa experiência. Como depois se perdeu ou nunca se construiu um objetivo, um projeto para o país, nenhuma região teve. Tudo correu à revelia de tudo. Acho que o grande drama da região é que ela ficou atada às estruturas econômicas subsequentes no que tinha de mais atrasado, que era o extrativismo. E, com o extrativismo, que é mais atrasado do que o latifúndio nordestino, por exemplo, mas sendo aplicadas ali técnicas modernas de drenagem da produção econômica da região, porque tudo que se produzia lá era encaminhado para as pontas mais modernas. Por exemplo, o ciclo da borracha inteiro financiou a República. Quando a Amazônia perdeu o que tinha, o café entrou para bancar, mas aí eles não tinham nenhum projeto, o café já estava financiando, então que se lasque a Amazônia, quer dizer, esta é a questão que se deve discutir no contexto de um "projeto Brasil": o que nós queremos do Brasil e o que nós queremos da região amazônica. Isso é indissociável da política desse país. E outra coisa: se você retira a Amazônia desse contexto político, é muito complicado pensar regionalmente ou pensar de maneira internacional. Porque quando você pensa de uma perspectiva internacional, por exemplo, hoje se fala muito na transformação da região em várias ou em uma só reserva extrativista. Isso dito para uma pessoa da região é um absurdo. Justamente porque foi o extrativismo que levou a região a esse estado de inanição política e econômica. O Chico Mendes, por exemplo, propunha a existência da reserva extrativista, como uma tática para evitar o fim do seringal. Mas, como ele era seringueiro no Acre e hoje se fala de seringal nativo naquele ano, quando na verdade tinha um seringal plantado ao longo de 150 anos de trato, porque esses seringueiros foram trabalhando de geração em geração esses seringais... Esses seringueiros do Acre têm experiência de silvicultura realmente. O que o Chico vislumbrava era um salto qualitativo, como os países escandinavos fizeram com a estação da madeira extrativa para silvicultura, um projeto semelhante. Eles não sabiam de nada desse negócio dos suecos, sou eu que já estou extrapolando. Mas, se ele soubesse, ficaria maravilhado, porque já há exemplos históricos disso. E, como [a d]o Chico, há outras propostas de lutas muito localizadas na região, então vejo com muita preocupação essa coisa do show bizz e da superficialidade. Eu me divirto, inclusive, com isso, mas acho que não pode ser só isso.
Rodolfo Konder: Márcio, antes de você responder essa pergunta, nós vamos ter que fazer um pequeno intervalo para os nossos comerciais. Agora eu queria alertá-lo para o seguinte: você fez uma provocação ao Caruso e já vi lá, na sua caricatura, que ele revidou à altura, e depois você vai ver só. Mas antes vamos ao intervalo, por favor.
Rodolfo Konder: Nós voltamos ao Roda Viva desta noite, que está apresentando uma entrevista com o escritor Márcio Souza. Ricardo Amaral, por favor, você poderia repetir a pergunta?
Márcio Souza: Ah, é interessante que eu não vi esse dilema.
Márcio Souza: Ele sempre foi do PT. O Chico é fundador do Partido dos Trabalhadores Nacional e ajudou a organizar o Partido dos Trabalhadores do Acre; inclusive, quando conheci o Chico, foi no dia da assinatura da ata de fundação do PT aqui em São Paulo.
Ricardo Amaral [interrompendo]: Qual era a tendência do Chico?
Rinaldo Gama: Márcio, parece que nós estamos aqui nos debatendo desde o início, com um dilema entre amazônicos e não amazônicos, quem conhece a Amazônia e quem não conhece a Amazônia. Logo no princípio de seu livro você esclarece que vai falar como amazônico e, ao longo do livro inteiro, se refere, volta a esta colocação: “Nós, os amazônicos, pensamos assim ou pensamos assado”. E você fez aqui, entre aspas, uma acusação à imprensa, de que ela teria chegado tarde – não a imprensa brasileira, mas a imprensa comum e tudo que a imprensa possa implicar – ao fenômeno Chico Mendes. Uma das primeiras coisas que você disse aqui foi que a sua idéia inicial não era tratar do Chico Mendes. Você, provavelmente, tinha na cabeça uma coisa sobre a Amazônia, um novo livro sobre a Amazônia. E depois, mais adiante, você diz que a imprensa chegou tarde quando Chico Mendes já estava em vias de ser assassinado ou depois de ser assassinado. Eu pergunto: se o Chico Mendes não tivesse sido assassinado, haveria um livro chamado O empate contra Chico Mendes, assinado por Márcio Souza, um amazônico? E esse mesmo livro teria o interesse de dez países? Embora você tenha publicado livros lá, sei de tudo isso, mas é o Márcio ficcionista, quer dizer, tudo isso não teria sido uma conjunção de fatores entre Amazônia, a questão ecológica? Inclusive para você, porque um livro que tem em algum momento o nome de Chico Mendes – e acho que não é por acaso que você não pensou primeiro no Chico Mendes –... Na minha opinião, pelo menos, o Chico Mendes aparece e some aqui no livro, assim como um fio que vai longinquamente conduzindo o que você quer falar, mas ele está no título. Então pergunto: será que só a imprensa internacional, ea imprensa brasileira chegaram atrasadas ao Chico Mendes ou todos nós chegamos atrasados ao Chico Mendes – inclusive os "amazônicos" como você? Se ele não estivesse morto, existiria esse livro?
Rinaldo Gama [interrompendo]: O Chico Mendes só valeria um livro se ele tivesse morto?
Deonísio da Silva [interrompendo]: Fui eu que disse, Rinaldo.
Márcio Souza: Foi o Deonísio da Silva que disse, aliás, defendi a imprensa, dizendo que... Aliás, foi outra posição...
Rinaldo Gama: É, mas você disse que a imprensa, de qualquer maneira, diante de um cidadão como o Chico Mendes, que era uma pessoa que irritava, deu a ele um espaço reduzido e agora volta a dar a ele um espaço reduzido. Você terminava a sua colocação assim: “é um espaço que ele mereceria”.
Rinaldo Gama [interrompendo]: Quer dizer, a colocação de Chico Mendes aqui, então, vem como uma forma de tornar o debate um pouco mais atrativo, já que...
Rinaldo Gama: Então esse outro livro que você faria, que seria mais para esclarecimento, pela falta de uma bibliografia etc, sairia aqui – de um lado - e, do outro lado, teria um livro que seria esse, digamos, ampliado, em que o Chico Mendes teria uma dimensão maior e aí você discutiria mais a questão Chico Mendes?
Rinaldo Gama [interrompendo]: Vocês chegaram a pensar nisso enquanto ele estava vivo? Enquanto ele esteve vivo, você chegou a discutir isso, a propor que ele apresentasse a você um depoimento, que ele fosse incluído em um projeto que você tinha? Márcio Souza, nós estamos falando um pouco por hipóteses. Digamos que o Chico estivesse vivo e feliz com a Isamar [companheira de Chico Mendes], lá em Rio Branco, continuando sua luta. O Chico entraria nesse livro de história da Amazônia em um capítulo que falaria ou sobre o fim do extrativismo ou no capítulo que falasse sobre as lutas populares na região amazônica, incluindo a luta dos sindicalistas rurais de Santarém...
Márcio Souza: Não, porque é uma questão que se vem discutindo há muito tempo. Eu não estou discutindo hoje, não é novidade para ninguém que estou discutindo a região. Então enquanto a história vai rolando, vai se discutindo isso.
Rinaldo Gama: Pois é bem por isso que estou lhe perguntando se você chegou a propor ao Chico Mendes isso que você está me contando agora...
Márcio Souza [interrompendo]: Não!
Márcio Souza: Não, nunca. Inclusive, meu contato foi muito rarefeito. Lamento muito não ter tido mais contato com ele...
Márcio Souza [ignorando a interrupção de Rodolfo]: Para você ter uma idéia, eu tive dois contatos com o Chico pessoalmente: um aqui em São Paulo e outro em Manaus, quando Chico foi ser julgado na Auditoria de Guerra, arrolado com outros sindicalistas como Lula, Jacó Bittar [um dos fundadores do PT, atuante sindicalista da área petroleira, foi prefeito de Campinas (SP) de 1989 a 1992], naquele episódio de 1980. Meu irmão ficou mais amigo dele, porque foi o encarregado de ficar conduzindo os sindicalistas do Acre de um lado para outro de carro. Tive contato com ele, conversei algumas vezes; duas exatamente, ele me telefonou para participar de eventos no Acre aos quais não pude comparecer por outros compromissos. Mas eu não estava envolvido, porque não sou seringueiro, não sou acreano, sou amazonense. A luta dos acreanos era aquela, nós temos nossas lutas. Fiz trabalhos, que nunca foram publicados, de análise sobre a situação da Zona Franca de Manaus que ajudaram os trabalhadores de lá. Eu estava na minha luta, e eles nas deles. Eles sabiam o que eu estava fazendo em Manaus e eu sabia o que o Chico estava fazendo no Acre. Mas nós estávamos cada um na sua luta. Ocorreu um fato e a Amazônia, naquele momento, se tornou uma questão internacional discutida no mundo inteiro. Hoje não mais. Depois, caiu o Muro de Berlim [muro construído em 1961, na cidade de Berlim, depois da derrota dos alemães na Segunda Guerra Mundial, dividindo-a entre os aliados: a parte ocidental (capitalista) para os americanos, britânicos e franceses, e a outra para os soviéticos, que implantaram o sistema comunista. A queda do muro, em novembro de 1989, marcou o início do fim do regime comunista no leste europeu e provocou uma crise generalizada nos partidos comunistas] e toda a situação do Leste Europeu... hoje esta é a grande questão internacional. A Amazônia já foi para segundo plano.
Márcio Souza: Acho que poderia explicar um pouco assim... Funciona na minha intimidade essa questão da seguinte maneira: tenho uma formação em ciências sociais na Universidade de São Paulo. Então sou um escritor meio anfíbio, digamos assim, trabalho muito com o jogo da criação, o jogo poético, o lance de dados na poesia, como diria o Haroldo de Campos [poeta concretista, tradutor e ensaísta]. E, ao mesmo tempo, para fazer esse jogo poético, preciso de uma sólida base investigativa. Só consegui fazer o Galvez, por exemplo, meu primeiro romance, depois de pesquisar para A expressão amazonense [do Colonialismo ao neo-colonialismo], um livro que foi publicado posteriormente ao Galvez, mas que é anterior ao Galvez. Quando publiquei o Galvez, ele já estava pronto, o Galvez acabou puxando a edição do Expressão amazonense. Esse livro é uma espécie de roteiro pessoal de conhecimento da minha própria região. Eu já tinha até me reportado anteriormente a quanto nós éramos forçados a ter uma educação lá em Manaus, para não ter o menor convívio com a região amazônica. E um pouco do roteiro desse aprendizado foi sintetizado na Expressão amazonense, como a base não só para o meu trabalho literário, mas também até para o trabalho teatral. Da mesma forma como os outros livros que eu fui publicando, como O palco verde, sobre a experiência teatral, posterior à própria experiência, um pouco para compreender o que tinha ocorrido com aquela experiência. Como agora com o Chico Mendes, porque muitas das idéias de Chico Mendes já estão no romance que é anterior, embora O fim do terceiro mundo vá ser publicado agora em outubro, é um romance, um livro anterior ao livro sobre o Chico Mendes e a Amazônia. Então a parte teórica entra um pouco assim como ou reafirmação das minhas inquietações ou então roteiros também de descobertas e propostas de discussão sobre essa questão.
Márcio Souza: Não tenho notícias quanto à novela, agora os direitos pertencem ao Hector Babenco e espero que ele faça o filme.
Márcio Souza: Marcílio foi meu colega no colégio Dom Bosco, lembro-me muito bem do Marcílio. O Gualter, que é outro amigo meu, que está por aqui pelos estúdios, também deve lembrar do Marcílio. Acho que os salesianos, sem saber, são responsáveis bastante pelo que sou hoje. [risos]
Márcio Souza: Acho que, se ele quer ajudar realmente, primeiro deveria se informar sobre os canais que realmente estão precisando de ajuda. E acharia válido se ele continuasse esse trabalho.
Márcio Souza: Conheço o trabalho deles no Parque Nacional do Xingu, acho que são importantes amigos dos índios.
Márcio Souza: Eu tenho feito muitos trabalhos, nesses últimos anos, que ficam ao lado das entidades como a Comissão Pró-Índio de São Paulo. O trabalho da Comissão Pró-Índio foi importantíssimo e ainda é para ajudar a luta dos povos indígenas do Brasil. São entidades como a Comissão Pró-Índio que deram todo esse avanço, não apenas de organização, mas também de elevação, inclusive, da parte do conhecimento técnico dessas lideranças. O aparecimento hoje de lideranças extraordinárias, que discutem com conhecimento de causa a sociedade brasileira, que vêm de militâncias como a Comissão Pró-Índio de São Paulo.
Márcio Souza: Acredito que sim. No Acre tem várias lideranças, inclusive a do próprio Osmarino [Amâncio Rodrigues] que é o presidente [e fundador] do Conselho Nacional dos Seringueiros...
Márcio Souza: ...que está nesse momento sendo ameaçado pelos pistoleiros, lá dos latifundiários, ele é uma liderança à altura do Chico.
Márcio Souza: No caso da Força Aérea, não. O trabalho da Força Aérea é digno dos maiores louvores. Eu diria, inclusive, que é mais fácil você xingar a mãe de um caboclo perdido no interior da Amazônia, do que a do piloto da FAB. A atuação da FAB é uma coisa assim extraordinária. Realmente quem conhece a Amazônia sabe dos problemas da região, sabe o alto serviço prestado pelos pilotos da FAB por essas linhas, por essas pessoas que estão lá, por esses malucos que saem de Manaus em suas aeronaves fazendo a ligação dessa região. Falando da FAB, acho que mereceria até um país melhor, para a FAB atuar melhor ainda.
Márcio Souza: Não acredito, não.
Márcio Souza: Na área de governo, desconheço.
Márcio Souza: É que a mãe dele proibiu esportes perigosos, não é? [risos]
Márcio Souza: Tenho muito medo dos liberais brasileiros, não é de hoje. Aliás, acho que as pessoas um pouco mais preocupadas com o país temem o liberalismo, as maneiras como ele chega aqui. Acho que uma das formas mais cruéis do liberalismo justamente é a afirmação de que as artes no Brasil já receberam ajuda demais e hoje precisam aprender a conviver com suas limitações, a vencer com aquilo que o mercado lhes der. São afirmações desse tipo que, mais uma vez, em nada colaboram para o processo brasileiro. Agora mesmo quando o Deonísio da Silva comentava sobre a perspectiva da literatura brasileira, uma coisa que me ocorreu, por exemplo, e sempre me ocorre, é que tudo que foi possível fazer individualmente pelos escritores brasileiros, para a literatura brasileira fora do Brasil, foi feito. Mais do que foi feito agora, só se o Brasil tiver uma perspectiva, só se o Brasil souber o que quer de si mesmo. Acho que essa resposta que precisa ser dada ao país ou o país [precisa] se dar, é fundamental para saber como agir em relação a outras, mas fundamentalmente como reagir em relação à questão da cultura. Nós realmente tivemos, nesses trinta anos de ditadura militar, um processo grave de impedir que se desenvolvessem as relações sociais que produzem a cultura. Acho que nós tivemos, na área criativa do país, muita dificuldade, porque, se nós formos computar, o Estado nunca deu nada para os verdadeiros artistas. O Estado nada deu, ao contrário, tentou impedir. Nós temos hoje listas das peças que foram interditadas durante esse período todo, um número incontável de músicas que foram proibidas, de filmes que foram proibidos, cortados e mutilados, de livros que foram proibidos. Todo o esforço feito foi muito esforçado para que isso não chegasse ao contato com os espectadores, com os leitores brasileiros. De outro lado, essa discussão da participação do Estado... Nunca foi possível nem estabelecer as reais proporções em que o Estado pode intervir - e deve intervir - nessa questão, justamente porque esta pergunta nunca é respondida: o que nós queremos neste país? Uma vez que se responder esta pergunta, países que já responderam estão sabendo o que fazer com a cultura. O Estado intervém no município na Alemanha Federal e a arte vai muito bem. Um dos teatros mais inventivos do mundo é o teatro alemão hoje. Ele é inteiramente financiado pela municipalidade. A Alemanha não financia escritores, as editoras lá são todas particulares, mas o governo alemão ajuda na divulgação dos seus escritores no mundo. Eles pagam as traduções dos seus escritores. A mesma coisa se poderia dizer, por exemplo, do Canadá, que é um país da América, um país jovem, portanto sem tradição. Podem afirmar: “O Estado na Alemanha faz isso, porque já tem uma tradição histórica”. Mas o Canadá – que é tão jovem quanto o Brasil, talvez até mais jovem que o Brasil – tem. O Canadá, que nem é nação como o Brasil, é um Estado com várias culturas que se entrelaçam, com basicamente uma cultura de língua inglesa e uma de língua francesa. O Canadá sabe o que quer e tem uma política do Estado participando na movimentação. A literatura canadense hoje é uma literatura internacional com a ajuda do Estado. Nunca ninguém saiu acusando a Margaret Atwood, por exemplo, a mais importante escritora de língua inglesa do Canadá, talvez uma das melhores escritoras de língua inglesa do mundo, de ser uma marajá da cultura do Canadá, porque eles sabem o que querem do país. Eles estão realmente imbuídos de uma perspectiva para o país. Acho que essa é a discussão que deveríamos fazer, porque há um papel para o Estado, como há um papel para a independência da produção cultural. Acho que encontrar essa política – e a sociedade já deu indicativos disso, a sociedade como um todo – é o que deve ser feito. O que acontece é que o Estado.... Por exemplo, hoje, nessa mutação do governo Collor... O Estado brasileiro sempre está começando do nada, eu até acho estranho quando [se] diz que o brasileiro tem falta de memória. Acredito que nós temos é “disritmia histórica”, porque nós estamos sempre levando pauladas desse tipo. Nós estamos lembrando uma coisa e, de repente, parece que o ciclo... inclusive já computado de 15 em 15 anos. Começamos do zero, esquecemos, levamos uma paulada histórica, um pontapé, uma patada histórica e esquecemos tudo. Mas a questão principal é essa, que tem viciado, inclusive, todas as políticas.
Márcio Souza: Bom, quando eu morava aqui em São Paulo, estudava aqui, trabalhei muito como roteirista da Boca do Lixo que era muito família naquela época. Boca do Lixo produzia filmes de cangaceiros, comédias caipiras. A censura era muito rigorosa, não tinha essa liberação dos costumes que é hoje o típico da Boca do Lixo, o que era uma pena, inclusive, porque poderíamos ter uma diversidade maior de roteiros naquela época, naquela oportunidade, não talvez de posições, mas pelo menos de temas. Agora é verdade essa história do Ferreira de Castro, aconteceu com ele. E era o romance A selva. Ferreira de Castro era o maior escritor da Amazônia e ele escreveu um dos livros mais importante da região amazônica, que é A selva, o relato clássico da cultura da borracha. A história toda se passa num seringal, tem um português que vai ser seringueiro na Amazônia e tal. É um romance muito sério, apenas de ser um português no seringal, não tem nada engraçado, é um livro seriíssimo. E fui convidado para fazer o filme, fiz adaptação para o cinema e o Ferreira de Castro, inclusive, já tinha vendido várias vezes os direitos desse filme para as empresas americanas. Eles nunca tinham conseguido realizar, porque ele era muito rigoroso. Até que ele vendeu para um brasileiro que não ouviu o que ele dizia e fez mesmo o filme e me chamou para dirigir. E, de fato, ele assistiu ao filme, que era muito ruim, era péssimo, era uma das piores coisas que já foram feitas pelo cinema brasileiro. E ele foi assistir em uma estação em Lisboa e morreu uns três dias depois. Acho que fui eu que o matei realmente. [risos]
Márcio Souza: Limpei o campo da Amazônia em matéria de escritor importante, talvez até para mim mesmo. Agora, isso foi um aprendizado...
Márcio Souza: Não, não me sinto culpado não, eu...
Márcio Souza: Não, eu me sinto culpado pelas vitórias dele... [risos] Mas a história foi importante, esse... Quando eu fui para a mesa de montagem e comecei a ver esse filme, primeiro para o meu retorno para a Amazônia esse filme foi importante. E, de outro lado, o ato de trabalhar como roteirista especialmente para o [Antonio Polo] Galante, para o [Alfredo] Palácios, que estão aí ainda produzindo filmes. Na época eles tinham uma empresa chamada Servicine, praticamente fui roteirista exclusivo da Servicine. E eles tinham estoques de histórias, isso me deu uma canja enorme, porque não eram exatamente filmes para o Festival de Cannes, mas para o público do interior de São Paulo, um público popular. E eles tinham fórmulas muito claras do que queriam, sabiam exatamente, pediam um tipo de roteiro. Por exemplo, eu ia fazer um filme de cangaceiro, não podia ter muito cavalo, porque a produção era pobre, podia ter no máximo dois tiroteios e tal. Então essas limitações um pouco dessacralizaram o ato de escrever para mim. E eu tinha que escrever realmente, em geral, até um roteiro por semana, porque o pagamento não era lá muito alto também e eu precisava viver. Eu era estudante e a coisa que fazia era o roteiro, então isso me deu... Sempre adorei cinema, essa arte é um dos pontos fundamentais para a compreensão do romance no século vinte. E, além disso, tive essa participação interna na feitura do filme e tal e até uma ambição de ser do cinema. Depois descobri que não era a minha realmente, deixei o cinema em paz, coisa que, aliás, muitos cineastas brasileiros já deviam ter tido essa autocrítica também... [risos] Mas essa experiência reconheço até hoje que foi importantíssima, porque não sento hoje com a gravata do autor, mas sim com a mesma sensação do roteirista, porque vou jogar uma história, vou brincar com aquela história, com os espectadores, e hoje, no caso, com os leitores.
Márcio Souza: Infelizmente o grupo terminou em 1980, justamente com a peça A resistível ascensão do Boto Tucuxi. Essa peça...
Márcio Souza: Foi com essa peça que ele ganhou as eleições infelizmente. [risos] Ele não era tão resistível, não. Existia esse movimento lá em Manaus no teatro instrumental do Sesc, que era uma entidade vinculada ao Sesc, mas era independente... Eles tinham um contrato, um acordo com o Sesc, que participava com a parte dos recursos para as produções e passou, depois um certo tempo, a funcionar como fórum de debates das idéias lá. E entrei no grupo em 1973, até então minha experiência teatral ou como expectador era muito limitada. Eu tinha feito só sonoplastia para uma peça, enfim, não tinha muita ligação, tinha escrito um texto por curiosidade, influenciado por O rei da vela [considerado o texto teatral mais importante de Oswald de Andrade, publicado em 1937, representado em três atos] aqui. E mais tarde seria encenada pelo grupo essa peça, que é Tem piranha no pirarucu, foi encenada em 1978, mas o grupo era importante justamente como espaço de debate sobre a Amazônia. Isso me atraiu muito, porque era o que queria fazer. Tinha saído aqui de São Paulo, tinha voltado para a Amazônia com a intenção de encontrar um trilho que me conduzisse à região amazônica e o grupo foi perfeito, porque ali estavam reunidas algumas das inteligências da cidade de Manaus, algumas das sensibilidades da cidade. De tal forma que chegou o momento, em 1974, em que o grupo estabeleceu como projeto de trabalho trazer para a cena a Amazônia. A Amazônia não como folclore, não como regionalismo, como é visto no sul do Brasil, a partir da leitura do regionalismo feito pelos nordestinos, mas sim a Amazônia como uma perspectiva crítica da história da região, inserindo também os povos indígenas, que é o outro lado da fronteira. Então, digamos, nós tínhamos dois trilhos em que o grupo caminhava, que era trazer os povos indígenas e suas culturas para o palco e fazer uma leitura crítica da história da região. O grupo montou um espetáculo sobre o choque cultural no período colonial, entre os colonizadores portugueses e os povos indígenas. Montou um largo espetáculo sobre a modernidade da Amazônia que foi As folias do látex, um vaudeville [gênero de peça teatral em forma de pantomima, cuja trama é apresentada, geralmente, por meio de letras adaptadas de conhecidas canções populares] que fazia um resumo cômico e trágico da história contemporânea da Amazônia, começando pelo Charles Marie de la Condamine [personagem de As folias do látex que na obra foi o autor da primeira comunicação de caráter científico sobre a borracha] e terminando na crise econômica que começa na Primeira Guerra Mundial. E outros espetáculos, inclusive, montou o primeiro trabalho sobre a Zona Franca de Manaus, que era o primeiro texto realmente crítico. Ninguém até então tinha coragem de falar, de dizer que a Zona Franca era feia, todos elogiavam muito a Zona Franca. Nós montamos, era um teatro de 50 lugares e, na primeira semana, foi um sucesso extraordinário, esse espetáculo foi visto por trinta mil espectadores, foi assim o maior sucesso do grupo. Imediatamente todo mundo começou a bater na Zona Franca, gente que tinha um texto escondido na gaveta há dez anos saiu, publicou no jornal, e tal, e foi uma avalanche de crítica. A primeira vez também que se falou em Manaus sobre defesa dos povos indígenas foi depois da encenação de A paixão de Ajuricaba, a cuja montagem original você assistiu até, em Campina Grande. As primeiras lutas pela preservação da cidade de Manaus, especialmente da memória do ciclo da borracha, repercutiram na Assembléia Legislativa na Câmara a partir da encenação das Folias do látex, lá em Manaus também, e da ironia que se fazia com esse processo histórico. Acho que a experiência foi seminal para mim; é uma experiência, inclusive ,que pessoalmente lamento que tenha sido realizada numa época muito hostil e também numa região muito complicada, sem tradição para esse tipo de cultura crítica. De tal forma que o grupo começou num processo de colisão com a sociedade local. Especialmente foi a partir de As folias do látex, que eles perceberam que não era exatamente um grupo bem comportado. Com a montagem de Tem piranha no pirarucu, nós fizemos a prova dos nove para eles de que realmente nós não estávamos brincando. E, quando nós anunciamos que íamos montar A resistível ascensão do Boto Tucuxi, eles pressionaram, nós perdemos o teatro, essa peça foi encenada no Teatro Amazonas. E a imprensa de Manaus sequer aceitava anúncio pago, porque tinha empresas nacionais que gostariam de nos ajudar, já tinham nos ajudado anteriormente, queriam pagar os anúncios e eles recusavam. Nós fizemos esse espetáculo com os atores saindo nas ruas, fazendo propaganda com filipeta. Deu bastante público, o espetáculo ainda fez duas semanas com a casa muito boa no Teatro Amazonas e o grupo se despediu do teatro em 1980.
Deonísio da Silva: Márcio, nessa cadeira onde você está sentado, esteve, pouco tempo atrás, num outro Roda Viva, o ministro Armando Falcão. [risos] Não sei se você está sentindo alguma coisa. O Armando Falcão recolheu durante os quatro anos em que esteve à frente do Ministério da Justiça, no governo [Ernesto] Geisel [1974 a 1979], dito governo de distensão lenta, segura e gradual - quem jogou futebol sabe o quanto dói uma distensão... Ele recolheu 508 livros. Só para reiterar, não é que a imprensa... Isso sem nenhum ressentimento, não sou daqueles que têm rancor, porque a imprensa não cuidou de um livro de tal autor ou do seu mesmo, não é nesse sentido, é no sentido de lamentar. Se, por exemplo, você depender da revista Veja, que é uma das maiores revistas semanais de informação do Brasil dos últimos dez anos, para fazer um levantamento da literatura brasileira, você vai chegar à conclusão de que a literatura brasileira foi estéril, não houve nada, porque ela não registrou o que houve. Mas você pega, por exemplo, o livro do ano da Enciclopédia Britânica do ano passado e você vê lá uma chusma de autores que não foram registrados aqui e que o inglês viu. Talvez eles escreveram para inglês ler, não é? Mas eles viram. Então queria dizer que... é uma forma de pergunta no meio de uma afirmação: acho que no Brasil, nós não temos, não para dizer que a imprensa seja culpada dessas coisas, não é nesse sentido. É no sentido de dizer que nem a imprensa nem a universidade chegaram ainda à literatura brasileira, talvez no próximo século cheguem. E está acontecendo aí também uma verdadeira revolução, uma renascença cultural com a literatura infanto-juvenil. Espero que, daqui a vinte anos, nós tenhamos umas edições iniciais de cem mil exemplares, e não os modestos três mil que hoje se fazem. Mas a pergunta, então, para ficar dentro... Só essa retificação, me julguei no dever de fazer, porque o Rinaldo estava atribuindo a você uma afirmação que não fizera. É a seguinte...
Rodolfo Konder [interrompendo]: Só que nosso tempo está se esgotando, se não vai fazer a pergunta, então, vou encerrar.
Rodolfo Konder: Márcio, você tem um minuto para responder.
Rodolfo Konder: Muito bem. Márcio de Souza, nós agradecemos muito a sua presença aqui no Roda Viva. Agradecemos a presença dos convidados que nos ajudaram a fazer essa entrevista; agradecemos a presença dos convidados da produção, dos telespectadores, inclusive daqueles que nos mandaram as suas perguntas. Obrigado ao Caruso, que registrou os melhores momentos – inclusive, você vai receber, certamente, uma caricatura bem à altura dele.