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Memória Roda Viva

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José Miguel Wisnik

23/6/2008

"O futebol realiza muita coisa que deveria ser um modelo para as outras instâncias, as outras instituições", diz o professor, músico e escritor apaixonado por esse esporte

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[Programa ao vivo, permitindo a participação dos telespectadores]
 
Lillian Witte Fibe: Boa noite. Ele é conhecido como um professor de literatura que toca piano e compõe músicas. Mas para muita gente é o contrário: trata-se, antes de tudo, de um compositor e pianista que também dá aulas de literatura. Ele mesmo, por muito tempo, se dividiu entre essas especialidades. Até que resolveu abraçar para valer as duas causas. É autor de ensaios, crítica, poesia, letras e músicas e várias trilhas para cinema, teatro e espetáculos de dança. Agora, acrescentou ao conjunto da obra também o futebol, a sua terceira paixão e tema do livro que está lançando. No Roda Viva hoje o entrevistado é José Miguel Wisnik. Ao escrever agora sobre futebol, José Miguel Wisnik amplia o que já vinha fazendo através da literatura e da música para entender melhor o Brasil, nossa formação social, nosso imaginário. Uma proposta diferente dos seus sonhos de juventude. Ele estudou para ser pianista erudito e um concertista.
 
[Vídeo de José Miguel Wisnik, se apresentando ao piano, narrado por Valéria Grilo]: Cantando e tocando piano, em estúdios e palcos. Uma cena que se tornou comum no que se poderia chamar de segunda fase da vida profissional de José Miguel Wisnik. Paulista do litoral, nascido em São Vicente, dividiu o tempo de infância entre a escola, o campinho de futebol e o conservatório musical, onde se formou em piano, fazendo aperfeiçoamento mais tarde com o maestro Souza Lima. Queria ser um concertista. Por isso estudou muitos anos, mergulhado em Bach, Beethoven, Chopin. Prelúdios e noturnos marcaram seu modo de tocar e a harmonia calma e sutil que mais tarde revelaria em suas músicas. Mas o projeto de se tornar um pianista erudito começou a mudar aos 18 anos, quando Wisnik saiu de São Vicente para estudar em São Paulo. Foi fazer o curso de letras da Faculdade de Filosofia da USP em 1967, tempos de agito político e cultural. Os festivais da Record e do Paramount chamaram a atenção de José Miguel Wisnik para a música popular, ao mesmo tempo em que aumentava seu envolvimento com a literatura. Mas a carreira acadêmica falou mais alto. Entrou na faculdade como músico e saiu como professor de literatura. Durante anos, dividido entre música e literatura, produziu ensaios, críticas, poesias, além de composições. Mas a música ficava restrita ao círculo de amigos. Nos anos 90, e aos poucos, ele foi abrindo isso ao público, produzindo trilhas sonoras para espetáculos de dança e teatro. O primeiro CD, que leva seu nome, veio em 1993. Depois foram mais dois álbuns: São Paulo Rio, de 2000 e Pérolas aos poucos, de 2003. Também teve músicas gravadas por vários intérpretes da MPB. Mestrado e doutorado em teoria literária, suas teses relacionaram e fizeram a aproximação entre música e literatura, o que rendeu a publicação de livros como O coro dos contrários, que fala da música em torno da Semana de Arte [Moderna] de 22 [marco inicial do movimento modernista brasileiro, o evento ocorreu em São Paulo, no ano de 1922, no período entre 11 e 18 de fevereiro, no Teatro Municipal da cidade], Sem receita ensaios e canções, O som e o sentido e um song book, com letras e partituras de 33 músicas de seus três CDs. Agora, em novo livro, José Miguel Wisnik escreve mais de quatrocentas páginas sobre sua terceira paixão, cultivada desde a infância. Santista de carteirinha, viveu o melhor do futebol dos anos sessenta, em plena era Pelé. Quando o "rei" virou filme, José Miguel foi correndo ao cinema. Pegou a primeira sessão, no primeiro dia de exibição de Pelé eterno. Em Veneno remédio, Wisnik busca decifrar a experiência total do futebol na vida brasileira. Um estudo de dentro e de fora do campo, que coloca em cena dilemas da nação e de nossa vida social. E onde craques como Pelé e Romário "trocam passes" com filósofos, sociólogos, escritores, compositores populares, críticos e artistas na tentativa de compreender um fenômeno que, para o bem ou para o mal, é a cara do Brasil.
 
Lillian Witte Fibe: Para entrevistar José Miguel Wisnik, convidamos: o jornalista Oscar Pilagallo; Vladir Lemos, apresentador e editor-chefe do programa Cartão Verde, da TV Cultura; Arthur Nestrovski, músico e articulista do jornal Folha de S.Paulo; Fred Melo Paiva, editor do caderno Aliás do jornal O Estado de S. Paulo. Também está aqui com a gente a Laís Duarte, a repórter da TV Cultura que traz para o programa, como sempre, as perguntas enviadas por vocês, pelo público, telespectadores e internautas. E também está com a gente Paulo Caruso, que vai desenhar os momentos do programa com o seu impagável bom humor de sempre. Boa noite, Wisnik.
 
José Miguel Wisnik: Boa noite.
 
Lillian Witte Fibe: Eu vou subverter um pouco o assunto do nosso programa e começar lhe perguntando sobre o que aconteceu no Morro da Providência [militares que ocupavam a favela do Morro da Providência, em junho de 2008, renderam três jovens da comunidade local e os entregaram à facção contrária, traficantes do Morro da Mineira, pelos quais foram torturados e mortos], no Rio de Janeiro. Que esperança a gente pode ter numa cidade que é tão alegre, que é tão impregnada da cultura brasileira, enfim, tendo faculdades, algumas das melhores do Brasil, onde a gente viu o que a gente viu: os militares não só interceptam três rapazes no meio da rua como descumprem ordem de patentes superiores. Descumpriram ordem do capitão que mandou eles soltarem os meninos e os entregaram para os traficantes matarem. Que horizontes, você, como pensador privilegiado que é do Brasil, depois de toda essa sua reflexão nesse seu livro de 400 páginas e tudo o mais, o que lhe parece? Que horizonte a gente pode ver no Rio de Janeiro?
 
José Miguel Wisnik: Puxa, uma pergunta que salta diretamente para um ponto que é talvez o ponto nevrálgico da coisa toda. Eu vou responder um pouco recorrendo ao livro Veneno remédio, porque o livro não por acaso se chama Veneno remédio.
 
Lillian Witte Fibe: : Pois é, eu pensei também nisso.
 
José Miguel Wisnik: Exatamente, porque tem tudo a ver com a pergunta que nós sempre nos fazemos, na verdade, sobre o Brasil. O que me levou a escrever, por exemplo, foi o fato de que tantas vezes nós temos do Brasil uma visão positiva, mesmo paradisíaca, feliz, de uma grande reserva de alegria e de uma capacidade de criatividade popular que se expressa de tantas formas como a música, o futebol... Em suma, é isso que a gente pode chamar de uma "tecnologia de ponta do ócio", que o mundo reconhece no Brasil. Ao mesmo tempo que a gente vê, se depara com aspectos terríveis, sombrios e tão complexos porque tão entranhados, tão enredados que parece que a gente não vê saída para uma tal fusão como, no caso, entre a ordem estabelecida, representada pelo Exército presente numa favela e o fato de que é desta mesma ordem que sai de elementos do Exército um conluio com o crime organizado, com a guerra entre favelas e se faz disso um crime terrível, que é o resultado mais assombroso da combinação da ordem com a desordem, como se essas duas coisas se tornassem uma só. Isso está no cerne de uma questão brasileira que vem desde... no livro é tratada, por exemplo, através do ensaio de Antônio Cândido [de Mello e Souza (1918-), poeta, ensaísta, professor universitário e um dos principais críticos literários brasileiros], chamado Dialética da malandragem, que fala do Rio de Janeiro, do romance do século 19, que é Memórias de um sargento de milícias [única obra de Manuel Antônio de Almeida, publicada em 1954-55, em que conta as peripécias e desventuras de Leonardo Pataca, seu personagem principal, uma espécie de herói picaresco, que vive se metendo em confusão, livrando-se delas com muita malandragem], um romance que Antônio Cândido, quando analisou, disse que ali tinha uma forma de sociabilidade em que era normal que ordem e desordem se misturassem, para o bem – na visão dele – de uma sociabilidade não muito rígida, não muito culpada que tem uma propensão democrática. A mesma que, na verdade, produziu o samba, o futebol e o carnaval, que é essa capacidade de combinar até um lugar de contravenção com...
 
Lillian Witte Fibe: Aliás, os meninos voltavam de um baile funk.
 
José Miguel Wisnik: Exatamente. Então, digamos que essa tradição que engendrou a cultura popular brasileira, grande parte dela que se tornou conhecida e fez se reconhecer o Brasil do século 20, é dela mesma. É desse mesmo tipo de relação que se produz a impunidade, o tráfico de influência, a violência para o policial. E, tantas vezes, essa junção da ordem com o crime. Então, eu diria, só para completar, que estamos assistindo a uma espécie de recrudescimento disso, do que é essa tradição da malandragem com a da marginalidade, as duas coisas se sobrepondo na cidade do Rio de Janeiro, a grande cidade onde toda essa história está concentrada. E essa profunda ambivalência é uma coisa que nos desafia a pensar o país. E, só para concluir, no meu livro é como se eu quisesse apontar que nós vivemos muito freqüentemente uma espécie de gangorra entre visão positiva ou visão negativa. E que nós temos que sair dessa gangorra e sermos capazes de olhar alguma coisa que está para além desse eterno balanceio, sermos capazes de olhar o que há de terrível no Brasil, ao mesmo tempo, reconhecendo as imensas possibilidades, potencialidades e originalidades do Brasil.
 
Lillian Witte Fibe: [interrompendo Laís Duarte, que começa a fazer uma pergunta a Wisnik] Espera aí, espera aí. Deixa o Oscar falar...
 
Oscar Pilagallo: Eu só queria continuar nesse assunto. Você puxa um fio no seu livro trazendo a tese do Gilberto Freyre, dizendo que, segundo ele, o futebol sublimou a violência e outras mazelas do país. Depois, evidentemente, você lembra também que isso acabou não acontecendo. Quer dizer, ele escreveu isso em 1938, logo depois da Copa de 38, quando o futebol brasileiro emergiu como uma força inclusive racial ou, pelo menos, uma democracia racial, como talvez tenha colocado. Mas, isso aí, enfim, acabou não acontecendo. Aí vem a crítica da esquerda dizendo que, muito bem, a tese dele está equivocada, você tem que fazer a análise social, política, econômica. Você, na verdade, traz a análise dele e traz esse contraponto. O que é que exatamente essa tese do Gilberto Freyre, mas vista em oposição a essa tese da esquerda?
 
José Miguel Wisnik: O que eu estou vendo é que nós começamos o programa como se fosse um jogo de futebol que a bola foi tocada, o pontapé inicial, imediatamente um lançamento para a área onde nós estamos já, cara a cara com o gol...
 
Lillian Witte Fibe: Tomara que o gol não seja, enfim...
 
José Miguel Wisnik: Contra.
 
Lillian Witte Fibe: Não desemboque em mais tragédia, isso que é o problema.
 
José Miguel Wisnik: Exatamente. Mas é curioso isso. Quando o Gilberto Freyre escreveu Casa-grande & senzala, foi na década de 30 e Sobrados e mocambos, logo depois teve a Copa de 38. E ele viu a Copa de 38 como a realização das teses que ele tinha, uma visão positiva da integração brasileira. Uma colonização que produziria um mundo, vamos dizer assim, uma civilização tropical mestiça e que isso era uma coisa original que tornava positivos aqueles aspectos que eram quase sempre vistos no Brasil. País tropical e mestiço era visto como negativo no final do século 19. Gilberto Freyre revirou isso e apresentou uma visão positiva disso. E quando escreveu um prefácio para o famoso livro de Mário Filho, O negro no futebol brasileiro, ele disse que o futebol e a música popular, ao se realizarem, canalizaram a violência do potencial brasileiro para uma realização alta. Como se o país ali se encontrasse consigo mesmo e superasse os possíveis horrores que ele poderia conter. Então, ele diz assim, a violência nas ruas, violência entre a violência, a malandragem, etc, seriam elementos, aspectos que seriam superados pela realização da cultura popular. E o que a gente pode ver, no entanto, que aqueles horrores que ele descrevia são horrores que a gente vê hoje em dia. Mesmo que o futebol tenha se tornado o futebol pentacampeão do mundo, e a música popular seja uma das grandes coisas em que o Brasil se reconhece. Ou seja, nem o futebol nem a música popular se tornaram aquelas panacéias salvadoras que resolviam, do ponto de vista da cultura, o problema brasileiro.
 
Oscar Pilagallo: Mas você também não concorda com o outro argumento?
 
José Miguel Wisnik: Aí a pergunta que está contida nessa sua é que há, então, quem diga: Gilberto Freyre estava equivocado e as questões verdadeiras são sociais etc, e a cultura não tem esse poder salvador que parece ter. Aí eu acho que nós temos que ser capazes de poder ver que existe uma força na cultura popular que se expressa, uma originalidade. E tudo isso que se realiza no futebol e na música popular nós temos que ver como alguma coisa que representa capacidades que a população brasileira teve de criar uma linguagem própria com uma escola informal. É uma escola informal. Não foram as escolas, não foi o ensino, não foi a educação formal, foi alguma coisa que não está bem explicada como surge, porque vem de algo mais profundo no país, que fez com que uma cultura poderosa esportiva, como o futebol, fosse capaz de ganhar o mundo e mostrar, ao mesmo tempo, beleza e eficácia. A música popular também. Então, eu não vejo razão para que o diagnóstico dos problemas brasileiros simplesmente sirvam para negar o fato de tudo aquilo que, na verdade, o país teria que aprender com o fato, com aquilo que a música popular e o futebol realizaram.
 
Laís Duarte: Wisnik, já temos inúmeras perguntas de telespectadores do todo o Brasil. Mas o Jackson Alves, de Curitiba, mandou a pergunta pelo telefone. Ele quer saber: qual a reflexão que o senhor faz da paixão pelo futebol no Brasil e outras manifestações de massa? Ele quer saber se podemos caracterizá-la como um processo de alienação.
 
José Miguel Wisnik: É. Então, essa é a outra questão que sempre retorna, que faz do futebol o que seria o "veneno remédio". Por quê? Todos nós, a população brasileira se encontra no futebol e se realiza, muitas vezes, no futebol. Quando o futebol brasileiro vence, convence, nessas ocasiões em que tanto para nós quanto para o mundo se dá um respeito por aquele... Então, aquilo nos realiza. Aí, ao mesmo tempo, há os críticos que vêem então nisso uma alienação: nós não resolvemos os verdadeiros problemas e ficamos substitutivamente realizando no futebol. Essa visão eu acho que precisa ser pensada de um outro jeito porque não se trata simplesmente de que o futebol representa uma alienação que nos faz fugir dos problemas. O futebol realiza muita coisa que deveria ser um modelo para as outras instâncias, as outras instituições. E para nós pensarmos. Não se trata de dizer: não resolvemos os problemas por causa do futebol. Mas, sim, nós nunca resolveremos nenhum problema se nós não entendermos porque o futebol se tornou tão importante para o Brasil e por que o mundo se reconhece no futebol brasileiro. Se a gente não for capaz de responder a essa pergunta, se a gente não for capaz de saber, por exemplo, por que o imaginário americano, norte-americano domina o mundo...
 
Lillian Witte Fibe: Mas o futebol não está se tornando, hoje, um esporte mais europeu até do que brasileiro? A Europa dá de dez, a gente passa uma vergonha danada quando vê as seleções da Europa jogando. Inclusive sem os jogadores brasileiros.
 
Arthur Nestrovski: Posso engatar uma pergunta, já que entramos nesse assunto do futebol. Um dos muitos temas que aparecem no livro é a questão que o José Miguel chama de “otimização do rendimento”. Ou seja, uma forma de pensar o futebol baseada na otimização, especialmente na exploração dos espaços do campo, que seria a forma, por excelência, do futebol europeu contraposto a um futebol brasileiro de invenção, de contar com a inevitabilidade, ou argentino, enfim. Mas, na verdade, o que se tem visto, recentemente a Eurocopa, nos últimos jogos, e nos jogos melancólicos da seleção brasileira recentes, por incrível que pareça, parece uma reversão disso. O Brasil parece estar adotando um modelo de otimização do rendimento máximo. A Argentina, igualmente, no último jogo foi como se esses dois escretes [times], voltados à otimização de seus rendimentos, chegassem a um ponto de neutralização. Não acontece nada no jogo, porque os dois estão tão planejados em ocupar os espaços dessa forma que não acontece nada. E, curiosamente, nos jogos da Eurocopa, é como se o Brasil tivesse realizando agora de fora para dentro. Nós vamos ter que aprender a jogar futebol de novo vendo o exemplo da realização brasileira de fora para cá.
 
Lillian Witte Fibe: É isso, professor Wisnik?
 
José Miguel Wisnik: É o seguinte. Isso que está acontecendo, que o Arthur descreveu bem, nós temos que relativizar da seguinte maneira. Nós sempre olhamos o futebol – no Brasil tendemos a fazer isso – como se o momento em que está se passando fosse absoluto. Por exemplo, antes da Copa de 2002, o Brasil passou pelas mais catastróficas eliminatórias. Quando foi para [a Copa de] 70, saiu uma seleção desacreditada. Nós imaginamos que o futebol ideal brasileiro está sempre no seu melhor momento.
 
Lillian Witte Fibe: : A gente torce, atavicamente, nós nascemos torcendo para o Brasil, ainda bem.
 
José Miguel Wisnik: Mas faz parte disso a tal gangorra que consiste em absolutizar o momento. Eu acho que esse é o momento em que, na Eurocopa, está se dando uma grande demonstração de uma vitalidade do futebol que o [Pier Paolo] Pasolini [escritor e cineasta italiano] chamava de futebol de prosa. Futebol de prosa é isso: é jogado como se fosse um raciocínio, um time bem armado na defesa, com passes triangulados em que uma bola pela ponta centrada resulta em gol. A Alemanha jogando contra Portugal deu uma demonstração assim, atual, viva, daquilo que seria o melhor futebol de prosa. Onde o gol é resultado de uma espécie de raciocínio rápido que se dá como se fosse uma frase que vai seguindo o seu caminho e que chega à conclusão que é o gol. O Pasolini falava no futebol de poesia, que é um futebol em que você não vai por caminhos lineares. Então, o drible, o chapéu, um corta-luz, um passe enviesado, a criação de espaços onde não existe espaço. A surpresa justamente de uma... Em que o gol surge não como resultado de uma espécie de causa e efeito, mas uma criação inesperada de um lugar que não estava previsto. Isso tudo caracteriza esse futebol no qual nós nos reconhecemos. E que, apesar de a Seleção Brasileira não realizar isso agora, por motivos que estão ligados a uma mentalidade que, afinal, não sabe... Que toma emprestado uma concepção de jogo que acaba negando as melhores possibilidades do futebol brasileiro. Ao mesmo tempo, o futebol europeu está todo cheio de jogadores brasileiros que são levados para lá e que ali realizam uma capacidade que é do futebol brasileiro, que é de inventar gols. Nos últimos tempos, muitos...
 
Lillian Witte Fibe: A gente conta também aqui com a colaboração de três usuários do comunicador Twitter que permite troca de pequenas mensagens via celular e e-mail. Eles já estão pondo na internet as impressões sobre a entrevista de hoje. Para ver o que eles estão escrevendo, basta acessar os endereços que aparecem na tela. Quem usa o Twitter e também quiser registrar suas opiniões sobre o programa, basta postar as mensagens com o tag #rodaviva. A TV Cultura também está no Twitter. Para nos seguir, basta clicar “follow” no endereço: twitter.com/tvcultura. E para participar, não deixe de fazer perguntas também pelo telefone (11) 3677-1310. Use também a internet, é claro, se você quiser, para se informar sobre os próximos programas e enviar por e-mail perguntas, críticas e sugestões. Nosso site é: www.tvcultura.com.br/rodaviva. A gente volta logo depois do intervalo.
 
[intervalo]
 
[Vídeo de um trecho do show de José Miguel Wisnik]  
 
Lillian Witte Fibe: Bem, a entrevista de hoje é acompanhada na platéia por três “twitteiros” que estão pondo na internet os comentários deles sobre o programa. Alexandre Matias, jornalista e blogueiro sobre música; Roberta Zuain, publicitária e blogueira também de música; e Rafael Gomes, cineasta, membro do site Música de Bolso. E a gente está voltando com a entrevista com o músico e professor de literatura José Miguel Wisnik. Eu vou sair um pouquinho do futebol para lhe perguntar sobre essa polêmica entre o seu amigo Caetano Veloso e o Fidel [Castro - governante de Cuba] ao qual, aliás, o Caruso se referiu no intervalo. O que o senhor achou disso? O que o senhor achou dessa discussão a distância entre os dois? O Caetano se referindo à baía de Guantánamo numa música [de mesmo nome, composta por Caetano Veloso] e o Fidel, bravo com ele, porque ele defendeu, em tese, os direitos humanos, enfim. E defendeu mesmo, ele falou que em matéria de direitos humanos, ele é mais Estados Unidos do que Cuba.
 
José Miguel Wisnik: O Caetano fez uma música que praticamente é uma... São poucas palavras, mas fala sobre a instalação de uma... a instalação não, o fato de como os Estados Unidos tomaram a base da baía de Guantánamo para fazer ali um centro de tortura, interrogatório ou o que seja. E quebrando os direitos humanos que eles se propõem a representar para o mundo. E aí, nessa música, o Caetano disse que se sentia abalado com se fazer isso e quase colocando o que seria... quase que expondo essa posição dos Estados Unidos junto de um Estado policial, quando os Estados Unidos, supostamente, representariam uma sociedade de transparência e de direitos individuais garantidos. E disse isso que, em suma, prefere essa garantia dos direitos e a transparência...
 
Lillian Witte Fibe: E que não aceita ordem de ditador também, não é?
 
José Miguel Wisnik: Não, eu quero dizer o que levou antes...
 
Lillian Witte Fibe: Isso na música. Entendi.
 
José Miguel Wisnik: Antes de o Fidel ter se manifestado sobre. Eu estava situando o contexto. E o Fidel disse que ele fazia uma espécie de pedido de perdão aos Estados Unidos. Quer dizer, eu não entendi de onde que...
 
Lillian Witte Fibe: De onde ele tirou isso. Acho que o Caetano também não entendeu, mas aí os dois deveriam... Houve um bate-boca bastante inusitado entre os dois.
 
José Miguel Wisnik: É. Daí, então, que o Caetano respondeu sobre não prestar contas a ditadores e achar que o Fidel nos deve explicações sobre o fato de ter levado o socialismo de Cuba à herança dos Estados policiais que os socialismos reais criaram. Agora é uma discussão inusitada, mas me lembra uma outra. Quando o Fernando Henrique [Cardoso] com o Mário Soares, portanto, os representantes do Brasil e Portugal, estadistas do Brasil e Portugal, fizeram um livro que era um debate entre os dois, a grande repercussão que esse livro teve foi quando o Fernando Henrique dizia que preferia Caetano ao Chico Buarque. Isso foi o dado que mais chamou a atenção do que o que eles conversavam ali. Então, isso tem a ver, de certo modo, com essa presença que compositores populares têm no Brasil como formadores de opinião ou como pessoas que...
 
Lillian Witte Fibe: Isso que eu ia perguntar. Então, é como gosta de dizer o Caetano: que não gosta do verbo “repercutir” e prefere “ecoar”, com toda a razão. O que ele fala tem tanto eco, causa tanto eco a ponto do Fidel gerar uma resposta de um estadista.
 
José Miguel Wisnik: Eu acho que foi uma demonstração desse eco, que tem a ver com o fato de que, realmente, no Brasil, a música popular ganhou uma importância pública que é ...
 
Lillian Witte Fibe: Ainda bem.
 
José Miguel Wisnik: ... inédita em outros lugares. Isso porque o Brasil é um lugar onde a música popular é muito forte. E a música popular é tantas vezes feita por artistas que são, ao mesmo tempo, escritores. Chico Buarque é autor de três romances. O próprio Caetano tem dois livros de ensaio. Tom Zé tem livro, Arnaldo Antunes é autor de livros de poesia, e assim Jorge Mautner, Waly Salomão e Antônio Cícero. Eu mesmo estou aqui como exemplo desse fato que parece estranho ...
 
Lillian Witte Fibe: É verdade.
 
José Miguel Wisnik: ... mas está ligado à enorme força, muito diferente do que acontece em outros lugares em que a música popular tem e ganhou no Brasil, que é...
 
Vladir Lemos: Aproveitando que você juntou aí a música e o futebol, vou voltar um pouquinho à violência pelo seguinte: a gente falava disso no primeiro bloco, e tanto o nosso futebol quanto a nossa música foram temperados com uma certa malandragem. Essa malandragem, na verdade, acabou virando bandidagem, acho que é até por isso que a gente volta tanto, e a violência ficou nos rondando aqui. A partir do momento em que essa malandragem virou bandidagem, qual é o tipo de música e de futebol que a gente vai ter? Será que não é isso que você mesmo falou do comprometimento da capacidade de criar? Essa nossa realidade não está...
 
José Miguel Wisnik: Qual é a...?
 
Vladir Lemos: A capacidade de criação, na verdade. A violência, de certa forma, inibe isso. Porque a gente falava que o nosso futebol vai mal, mas a nossa música parece também que não é tão criativa como já foi em outros tempos, como nos melhores momentos de Caetano, por exemplo. Você mesmo, em algumas entrevistas, chega a citar que hoje em dia talvez a gente não tivesse pessoas de vinte e poucos anos fazendo o que eles foram capazes de fazer nos idos dos anos 60, por exemplo.
 
José Miguel Wisnik: É. São realidades muito diferentes. Naqueles festivais de 1960, na época em que eu estava na faculdade, como se mostrou aqui... Para mim, a faculdade... Eu me formei num curso de letras onde eu tive grandes professores e, ao mesmo tempo, eu me formei vendo os festivais de música popular, os shows de música popular, o cinema de Glauber Rocha [(1939-1981), uma das grandes referências do cinema brasileiro, é o nome mais famoso do movimento conhecido como Cinema Novo] que estava passando ali em volta. O Teatro de Arena, o Teatro Oficina e essas coisas todas. E ali tinha uma geração de vinte e poucos anos que estava fazendo canção e a bola estava com eles. E é de se pensar por que isso pôde acontecer. Eu acho que isso aconteceu, em grande parte, porque era um período, havia a escola pública e anos e anos de democracia...
 
Vladir Lemos: Você vê a degradação do ensino público como um dos fatores fundamentais para mudar tudo.
 
José Miguel Wisnik: Eu acho que uma coisa que marca profundamente o Brasil é o fato de a escola pública ter perdido... ter deixado de ser referência do ensino. As pessoas não se formarem, as crianças não se formarem numa escola onde elas estão num bem público, usufruindo de um direito comum, num lugar onde classes sociais se cruzam. E, em vez disso, há uma grande separação social baseada na educação e uma ênfase na escola particular.
 
Fred Melo Paiva: Wisnik, eu gosto muito da análise que você faz da sociedade brasileira quando toma o jogo dentro das quatro linhas. Então, eu queria que você discorresse um pouco sobre esse paralelo. Se você pegar o futebol inglês, ele sabe que o caminho mais curto para o gol é uma linha reta e ponto final. O sujeito dá um chutão da defesa e o outro cabeceia na área e esse é o jogo deles, historicamente. A gente vai por caminhos tortuosos, não é? Volta a bola, vai para a frente, vai para trás, dribla. No final das contas, a gente ganhou mais do que os ingleses, não é? Se você fizer um paralelo com a sociedade brasileira, você é um otimista em relação ao Brasil? Apesar da violência, apesar do exército no Morro da Providência, apesar disso tudo, você acha que temos chance de dar certo como sociedade, traçando caminhos um pouco tortuosos e menos objetivos do que os europeus, os ingleses, os alemães?
 
José Miguel Wisnik: Olha, eu não diria que sou um otimista. Eu tenho uma visão trágica desse processo. Mas eu acho que a gente tem que olhar para as maravilhas e os horrores que a experiência brasileira produziu no mundo. E essa experiência não se confunde com nenhuma outra. Ela é uma experiência que tem que ser vista por sua originalidade, pela singularidade que ela tem. Hoje em dia, por exemplo, existe uma visão de um modelo racialista norte-americano que tenta se aplicar ao Brasil para entender o Brasil. E entendê-lo dentro das categorias duais de ou é branco ou é preto, e negando o fato de que o Brasil é um país formado com escravidão e mestiçagem. E que essas duas coisas produziram essas belezas e horrores de que a gente está falando. Nós, com muita facilidade, em certo momento, ao nos esquecermos dos horrores, afirmamos as positividades desse processo e, depois, nos deparamos também com tudo o que há de negativo e tal. Eu considero que ser capaz de olhar para o Brasil de uma maneira que não seja apologética, quer dizer, o elogio das belezas do Brasil, e nem seja necessariamente a visão de que se trata de uma sociedade atrasada, fracassada, nunca capaz de realizar um projeto e, portanto, condenada a girar em falso nisso. Essa é uma possibilidade. Nós não sabemos o destino disso. Mas nós temos que olhar com toda a firmeza para esse quadro e ver que, no Brasil, coisas surpreendentes aconteceram quando justamente essas originalidades de escravidão com mestiçagem, por exemplo, geraram uma linguagem que é, ao mesmo tempo, criativa e capaz de também mostrar-se eficaz. E isso é algo que, hoje em dia, por exemplo, a escola desqualificada, por um lado, está longe, muito longe de ser capaz de perceber que é desse modo que os jovens brasileiros aprendem, produzem, criam. Se a gente tivesse uma visão de educação, aliás, se tivesse um projeto educacional realmente concentrado, centrado na importância que a educação tem, considerando o quanto... Quando se lida com arte, cultura, jogo e criação, nós criamos formas realmente eficazes. Eu acho que se daria um banho de eficácia se a gente quebrasse essa separação que faz uma escola formal degradada, uma grande escola informal que produziu grandes coisas e produz. Mas que, de certa maneira, se tornou menos visível, se tornou pulverizada, se tornou espalhada, e não tem mais centro. Porém continua a existir uma coisa forte espalhada pelo país, de muitas formas, não é? O rap, por exemplo, paulista, que criou uma cultura própria de gravação, uma linguagem, fez isso. Afirmar sem escola nenhuma. Sem nada.
 
Oscar Pilagallo: Queria continuar nesse assunto ainda, falando de democracia racial. No livro, num certo momento, você fala que essa democracia racial no futebol prescreve, mas não descreve...
 
José Miguel Wisnik: Exatamente.
 
Oscar Pilagallo: ... o Brasil. Qual seria essa prescrição? Porque é muito difícil transpor uma situação de jogo para uma situação mais complexa de um país. Qual seria essa prescrição?
 
José Miguel Wisnik: No futebol brasileiro, uma população pobre, excluída e, em grande parte, segregada, mostrou a sua capacidade de criar uma linguagem que é, ao mesmo tempo, artística, capaz de ter representação, de ter um reconhecimento enorme como ela tem. E isso, no futebol brasileiro, a gente pode dizer que o Brasil não realiza a democracia racial. Mas o futebol brasileiro, pode-se dizer que ele realizou a democracia racial.
 
Lillian Witte Fibe: Acabou o bloco. Se a gente for ler livro agora, não vai dar certo. A gente vai para mais um intervalo e volta já com a entrevista de hoje que é acompanhada na platéia por Maria Emília Bender, editora da Companhia das Letras e por Laura Vince, artista plástica. Até já.

[intervalo]

[Vídeo de um trecho do show de José Miguel Wisnik]  

Lillian Witte Fibe: A gente volta, então, com a entrevista com o músico, professor de literatura e agora autor de livros sobre futebol, José Miguel Wisnik. Acho que a gente ainda não falou do Garrincha. Então, eu que sou leiga totalmente em futebol, queria lhe perguntar porque é onde o senhor justamente cita o nosso querido Armando Nogueira. Aliás, num momento em que o senhor se refere ao Garrincha, sobre a história do antônimo do drible. E eu estou me lembrando que a nossa entrevista foi quase toda sobre antônimos até agora, sobre os opostos dentro da coerência como o título do seu livro, Veneno remédio. O Garrincha foi um visionário até na hora de fazer o antônimo do drible, é isso?
 
José Miguel Wisnik: É, o Garrincha... Engraçado que quando a gente compara Macunaíma, a história do Macunaíma, a infância do Macunaíma e tudo o mais, compara com a biografia do Garrincha pelo [escritor] Ruy Castro, por exemplo, a gente vê que é impressionante a coincidência...
 
Lillian Witte Fibe: Só que o Garrincha não é a ficção como o senhor também fala, não é isso?
 
José Miguel Wisnik: Exato. Mas mostra o quanto Macunaíma está ligado a um tipo de sociabilidade brasileira da qual o Garrincha foi talvez a última grande manifestação, como se aquilo completasse todo o mundo, que o inconsciente brasileiro se realizasse no Garrincha e, de certo modo, desaparecesse com ele. Então, ele é conhecido no mundo inteiro como sendo esse poeta da gratuidade do jogo. Que, ao mesmo tempo, era eficaz, mas que se comprazia em driblar, voltar e redriblar e, portanto, querer que durasse o máximo esse tempo em que você brinca com a bola, está com ela, finge que vai e não vai. E o Armando Nogueira diz isso: que sempre era previsto que o Garrincha fosse sair pela direita. Todo mundo sabia que o Garrincha saía pela direita. No drible, quando se supõe que o driblador ameaça de um lado e vai para o outro, e ele ameaça pelo lado. Aí, como diz o [jornalista, poeta e escritor] Paulo Mendes Campos, ele oferece um pouquinho da bola para o zagueiro, o zagueiro vem, ele passa pelo mesmo lado. Então, o antônimo do drible é fazer o drible...
 
Oscar Pilagallo: Essa poesia do drible, do Garrincha, tal, hoje em dia, como é que você vê isso? Tem muita crítica que se faz a esses dribladores que, na verdade, não procuram um jogo mais objetivo, não é um drible para chegar no gol. É um drible bonito, vamos dizer. Acho que o mais famoso desses é o drible da foca, [em] que [o jogador] vai cabeceando.
 
José Miguel Wisnik: Um jogador de Minas Gerais que inventou o drible...
 
Oscar Pilagallo: Ele foi muito criticado por causa disso, os zagueiros criticaram, os críticos da televisão, quem entende mais acabou criticando. Como é que você vê isso? Isso é só uma firula, uma retórica vazia ou tem poesia nisso?
 
José Miguel Wisnik: Acho que justamente o drible teve um lugar muito importante no futebol até os anos 70. Depois o drible passou a ser pensado dentro da lógica que o Arthur aqui se referiu, a otimização do rendimento. Um técnico, quando tem um grande driblador, pensa numa relação custo-benefício, como se fosse um planejador que ele pode usar ou não. Aquele driblador fica, na verdade, sob suspeita. No futebol atual, o driblador está sempre um pouco sob suspeita. Eu acho que o maior driblador dos últimos tempos é Robinho [apelido de Robson de Souza, futebolista que iniciou sua carreira em 2002, jogando pelo Santos. Em 2008, foi transferido do Real Madrid (Espanha) para Manchester City (Inglaterra)]. Claro que tem dribladores que são puros firuleiros e a pedalada... A pedalada é uma espécie de um cacoete; muitas vezes o jogador dá umas pedaladas que não levam a lugar nenhum, depois ele passa a bola e tal. Eu acho que o Robinho revolucionou o drible. Ele criou uma zona de indeterminação entre o jogador, a bola, o campo e o adversário que fez com que ele fizesse – e ele faz – volta e meia assim, como se fossem verdadeiros poemas de criação inesperada ali. Agora, o Robinho, ao mesmo tempo, é um jogador, nesse sentido, mais antigo no futebol brasileiro, porque ele parece com coisas que a gente via na década de 60. E acho que é um dos mais modernos, porque ele tem uma visão muito vertiginosa, muito instantânea do passe em profundidade. Que na verdade era aquele princípio do tal overlaping [jogada em que o lateral sai da defesa, passa para alguém, para depois receber a bola na frente e mandá-la para a grande área] que o Cláudio Coutinho [técnico de futebol do Flamengo e da Seleção Brasileira na década de 70] dizia. Quer dizer, quando percebe que um jogador vem vindo com esse toque que cria espaço. Então, eu acho que o Robinho é uma figura fundamental para o futebol mundial nesse sentido. Ele representa o elo perdido entre esses dois mundos. E, no entanto, você vê ele jogar no Real Madrid, você vê que, às vezes, ele está jogando muito bem, aí você não sabe direito o que se passou, perde um jogo ou outro, a imprensa não noticia. E, de repente, ele está no banco de reservas. Esse lugar, como eu falei, é solitário, é glorioso e é meio inglório, o lugar do driblador no futebol contemporâneo.
 
Arthur Nestrovski: Você concorda comigo? Você estava falando a respeito do Robinho e do drible. Acho que uma das coisas que acontece com o grande driblador, e isso para reforçar o seu ponto de que o drible pode ser de uma eficiência extraordinária, que isso caracteriza a eficiência maior da arte do futebol brasileiro. No momento em que o jogo está de tal forma administrado, sempre parece ter jogadores estrategicamente colocados para impedir que o outro time avance, o driblador é aquele que, onde não existe espaço, cria espaço. E nesse sentido é parecido com um poema, com uma obra de arte. Onde não existia algo se faz. Fura o ar onde não tinha lugar para fazer nada.
 
José Miguel Wisnik:  A Copa de 2002 é uma copa em que, em espaços já muito fechados e situações muito equilibradas... porque todo mundo, todas as seleções, quer dizer, a Turquia, times sem tradição, a própria Coréia chegaram longe naquela Copa. E outras seleções de tradição caíram. Porque houve um igualamento muito grande desse tipo de jogo. E, nessas situações, a capacidade de criar relances de imprevisibilidade é que criou a possibilidade de desequilibrar esse equilíbrio por um momento. A Copa de 2002 foi ganha assim. Na Copa de 2006, o Brasil tinha um repertório maior de jogadores, de craques, de possibilidades e tal. E aí acho que houve um grande choque entre esse potencial e a visão conservadora, prosaica, prosaica no mau sentido, acadêmica, de um futebol muito estático que é o do Parreira [foi técnico da Seleção Brasileira], que dizia...
 
Lillian Witte Fibe: Para não falar da próxima Copa, que Deus me livre! Vamos passar batido no futuro, por enquanto. Laís, diga. A Laís tem muitas perguntas de telespectadores.
 
Laís Duarte: O André Arnaldo, de Americana, pergunta se não seria positivo se o Brasil ficasse fora da próxima Copa do Mundo.
 
Lillian Witte Fibe: Nossa, nossa!
 
Fred Melo Paiva: Wisnik, dentro disso aí, queria aproveitar e perguntar uma coisa. Eu acho, não sei se isso é uma coisa minha, que hoje a Seleção Brasileira desperta muito menos paixão do que antes. Você acha que é porque ganhou demais? Porque o futebol é isso, não é? A torcida do Corinthians virou o que é porque passou muito tempo sem ganhar. 
 
Lillian Witte Fibe: O que o Vladir acha, que é, na verdade, o super especialista. Vladir, o que você acha?
 
Vladir Lemos: Eu acho que vencer muito não tira o brilho de ninguém não, aumenta. Eu estou curioso para que ele responda a pergunta da Laís até para saber como ele torce. Porque a gente está te vendo aqui de fala mansa. Como é o Wisnik que se entrega ao futebol? É um cara que grita? Como é que é, Wisnik? Sem querer te impedir de responder a pergunta do Fred.
 
José Miguel Wisnik: Eu gosto de assistir futebol de maneira concentrada. Eu não gosto de juntar muita gente, dando palpites e falando coisas que não têm a ver com jogo. Marinheiros de primeira viagem para falar do que não estão entendendo, entende? Eu assisto como se fosse...
 
Vladir Lemos: Para dentro.
 
José Miguel Wisnik: Como se fosse música. Mas não quer dizer que não é uma relação apaixonada. É uma loucura aquilo... Mas só que é concentrado. Não sei se é porque eu torci para o Santos nos anos...
 
Vladir Lemos: Ficou mal acostumado.
 
José Miguel Wisnik: Não é que [fiquei] mal acostumado, eu tenho uma tranqüilidade em relação a... Eu já fui bem servido de...
 
Vladir Lemos: Teve a sua cota de vitórias.
 
José Miguel Wisnik: Tive minha cota de vitórias. Então, eu aceito situações adversas com mais naturalidade, às vezes. Que o Brasil seja... [Arthur Nestrovski faz algum comentário inaudível] Veja a serenidade que eu estou depois de uma derrota por quatro a zero.
 
Lillian Witte Fibe: Vamos falar do telespectador.
 
Laís Duarte: Seria bom ou não se o Brasil não se classificasse?
 
José Miguel Wisnik: Eu acho que o que interessa é como que ele chega a se desclassificar, por exemplo. Se ele, em suma, afinal de contas, não fez outra coisa senão se desclassificar, que isso aconteça. Mas eu não torço por isso. Eu sofro com o fato de que mentalidades estreitas e estáticas desperdicem as potencialidades que estão dadas para se jogar. É o caso, eu acho, da Copa de 2006, uma copa de total sofrimento para mim porque justamente achei que o [Carlos Alberto] Parreira fez... Primeiro que ele não pôs o Robinho, o jogador que era o elo entre, como eu disse, o futebol antigo e o futebol moderno. Em todos os grandes jogos que o Brasil fez na Copa anterior, com grandes vitórias sobre a Argentina, sobre a Alemanha, sobre o Chile, se não me engano, com partidas muito expressivas, o Robinho estava presente em todos esses jogos. Ronaldinho Gaúcho não estava em todos. O Ronaldo não estava em todos. Mas o Robinho estava e ele era um jogador que tinha o poder de criar essa fagulha que é uma coisa que caracteriza o futebol brasileiro.
 
Vladir Lemos: Perdão. Concluo que o Dunga não estaria no comando da Seleção se dependesse de você, não é?
 
José Miguel Wisnik: Eu acho que o Dunga entrou pela mesma coisa. O negócio de criar com os jogadores uma espécie de sentimento de parceria familiar em que mais vale o jogador que jogou, que mereceu o lugar e aí ele fica. Ele não tem a visão que eu acho que um técnico tem que ter que é a capacidade de inventar situações novas. O técnico lê o jogo enquanto ele está acontecendo e intervém sobre o jogo, altera o jogo, mexe no time, dá um nó tático em alguém. Isso hoje em dia é uma característica que a presença do técnico hoje é de uma vedete, um protagonista. Não era assim em tempos passados.
 
Lillian Witte Fibe: É o caso do [Luiz Felipe] Scolari, não é?
 
José Miguel Wisnik: Eu acho que o Dunga foi indo por esse ramerrão que está dando nesse estado de certa pasmaceira no jogo da Seleção. Eu sofro com isso, na verdade.
 
Lillian Witte Fibe: Vamos lá, Laís, faça mais uma pergunta de telespectador, por favor.
 
Laís Duarte: O Rodrigo Rodrigues, lá de Belo Horizonte, quer saber como você vê a realidade do futebol marcada por uma perspectiva mercantilista de que os torcedores são possíveis clientes de empresas e os clubes são bancos que preferem ganhar dinheiro do que títulos.
 
José Miguel Wisnik: O livro trata bastante disso. Todos esses assuntos, aliás, que aqui a gente tem que... São assuntos complexos que a gente tem que abordar por um lado, por outro, mas perder muitas coisas importantes em cada uma das questões que foram levantadas. Essa é uma questão que acompanha... eu acho que, da Copa de 98 para cá, houve uma espécie de futebolização do mundo. O futebol se tornou um elemento fundamental do imaginário mundial. Isso é inseparável da capitalização do futebol que é isso a que você está se referindo. E esse fenômeno é um sintoma do mundo contemporâneo e o futebol é uma demonstração disso. Só que o futebol é, ao mesmo tempo, o esporte mais complexo de todos os esportes dos jogos modernos...
 
Lillian Witte Fibe: Coletivos. 
 
José Miguel Wisnik: ... porque ele tem uma margem maior de acaso, de contingência. Ele é menos planejável. A bola é perdida muitas vezes de um time para o outro. Ele tem uma margem narrativa muito maior do que os outros jogos que são geralmente duelos de ataques contra defesas, fazendo com que todo o duelo resulte em ponto marcado ou espaço ganho. E, no futebol, a bola vai e volta, sem que o placar se modifique, por exemplo. Isso, eu acho, cria uma situação de paixão porque ele tem uma narratividade mais parecida com a vida e mais envolvente, nesse sentido. Ele se tornou o esporte mais mundial por causa disso e também menos previsível. Enquanto ele é capitalizado e se torna esse banco gerenciado com consumidores e se torna suporte de publicidade e tudo o mais, ao mesmo tempo, tem alguma coisa no futebol que não se reduz a isso, não é previsível, não é planejável e faz com que... Por exemplo, os grandes times galáticos fracassaram rotundamente, por quê? Fundados nessa lógica. Então, o futebol é, ao mesmo tempo, uma demonstração da capitalização do mundo e o mais extraordinário sinal do lugar onde ela não consegue se completar, e não consegue se fazer completamente.
 
Oscar Pilagallo: Seria por isso, Wisnik, que o futebol não consegue penetrar de maneira efetiva nos Estados Unidos? Porque é um esporte que, como você falou, não contabiliza a toda hora. Você pode passar o tempo todo sem que nenhum gol tenha sido feito e, no entanto, a arte está toda lá. Isso aí é uma coisa que para o americano não funciona.
 
José Miguel Wisnik: Esse é um assunto também tratado no livro. Porque o imaginário americano fez com que a gente usasse calça jeans, escutasse música pop e visse cinema de Hollywood, [comesse] fast food e [bebesse] coca-cola. Mas nos esportes não. O basquete não se tornou o esporte mundial. Os esportes que interessam aos Estados Unidos, ainda mais o futebol americano e beisebol, não interessam ao mundo, e o esporte que interessou mais ao mundo não interessa aos Estados Unidos. Isso é muito curioso porque ali é uma falha do imaginário norte-americano, e é nessa falha que aparece justamente o Brasil que ocupou um lugar. Eu acho que tem justamente diferença de lógicas que estão implícitas. Nos Estados Unidos parece não fazer sentido, para a mentalidade americana, o jogo em que não esteja clara a relação ataque e defesa, e que a performance se traduza em competência que se contabiliza. Se você não contabiliza, eles não sabem o que é isso. Eles não estão preparados para o zero a zero, os Estados Unidos. Nós podemos ter grandes históricos e maravilhosos clássicos com zero a zero.
 
Oscar Pilagallo: Eles tentam, o [David] Beckham [famoso jogador de futebol inglês] foi para lá para tentar incentivar. O Pelé tinha ido antes.
 
José Miguel Wisnik: O time pior pode ganhar. Mas eles não estão preparados para o zero a zero nem estão preparados para o que o Nelson Rodrigues chamava de “sobrenatural de Almeida”, que é o acaso que interfere no jogo. Enquanto que o futebol contempla tudo isso. Contempla o lance gratuito, contempla o acaso e você não tem uma permanente oposição clara, dual entre... Então é interessante que os Estados Unidos não tenham essa afinidade com o futebol. Ela é na verdade sintoma de uma civilização que não brinca em serviço. Para eles o negócio é produtivo.
 

Lillian Witte Fibe: A gente vai fazer mais um intervalo e volta já com o Roda Viva que entrevista José Miguel Wisnik.

[intervalo]

[Vídeo de um trecho do show de José Miguel Wisnik]  
 
Lillian Witte Fibe: Você está acompanhando, no Roda Viva, a entrevista com o músico e professor de literatura, José Miguel Wisnik. Professor, também não gostaria de encerrar o programa lhe perguntando sobre... eu lembrei, aliás, quando a gente conversava agora sobre ensino público. A deterioração da educação das crianças e tudo o mais. Esse fim melancólico de carreira que parece ser a de dois dos maiores jogadores do mundo dos últimos tempos, o Ronaldo e o Ronaldinho. Será que foi falta de banco escolar? Porque, puxa vida, eu li que o Ronaldo, por exemplo, tem toda a "infra" que um David Beckham também tem. Ele tem o mesmo marqueteiro que fala para o David Beckham o que ele deve declarar, o que ele não deve, com quem ele pode ser fotografado, com quem não pode. O que é conveniente para a carreira dele, lógico, não é um ditador ou uma equipe de ditadores atrás dessas personalidades. Será que é um viés brasileiro? Felizmente a gente não vê acontecer com todos. Mas, puxa vida, essas duas estrelas máximas, talvez, não sei quantas nas últimas décadas. Eu sei que você, tirando o Robinho, exceção ao Robinho, tem o Ronaldo. O senhor se mostrou um fã tremendo aí do Robinho durante todo o programa e no seu livro também. O que é que acontece com gente que... É o dinheiro que enlouquece esses moços? Qual é o seu diagnóstico?
 
José Miguel Wisnik: Bom, eu acho que o Ronaldo Gaúcho está longe de encerrar a carreira. Ele...
 
Lillian Witte Fibe: Mas nenhum time quer nada com ele a essa altura aparentemente.
 
José Miguel Wisnik: Não, isso é um momento qualquer. Eu acho que é o seguinte: o Ronaldo Gaúcho vem de arrebentar nos anos de 2004, 2005 até 2006.
 
Lillian Witte Fibe: Ele era todo comportadinho e, de repente, para a gente, aparentemente pirou e começou a gostar das noitadas e aí não ia treinar. Vladir, eu estou... me corrija.
 
Vladir Lemos: É um pouquinho exagerado, talvez. Eu acho que ele realmente, como o Miguel citou aqui, passou por uma fase que é difícil de se manter daquela maneira. Acho que são dois casos distintos, o Ronaldo e o Ronaldinho.
 
José Miguel Wisnik: E está mal contada essa história. Por que de repente, no Barcelona, ele foi ficando ali de escanteio? Ao mesmo tempo que o time... Porque tem um jogador que representa, num dado momento, o time está todo voltado, polarizado nele. Depois tem um processo, eu acho que no futebol atual, esse que nós tínhamos falado que é intensamente investido na figura do número 1, que faz parte dessa capitalização, mercantilização do futebol que precisa erigir o número 1. No tempo de Pelé, não havia o número 1. Não havia nenhuma eleição.
 
Lillian Witte Fibe: Mas eles também ganhavam muito menos.
 
José Miguel Wisnik: Claro, claro. Mas eu quero dizer exatamente que tudo isso deixa o sujeito numa posição que é um momento limite em estar no auge e cair dali. Então, todos os número 1, de algum modo, depois passam por uma crise, um processo, uma certa reversão daquela posição em que estavam. Então, não vejo muito ainda o que é que está acontecendo com o Ronaldo Gaúcho ou qual vai ser o destino dele, mas acho que ele tem muito chão pela frente. O Ronaldo está num momento em que ele tem uma contusão gravíssima, pela segunda vez, de uma coisa de difícil recuperação. E antes disso ele já vinha fazendo partidas em que ele jogava duas ou três e tinha distensões. Ele teve problemas musculares, além de problemas agora já nos dois joelhos. E é uma situação que ele está experimentando, que com a idade que tem, que certamente é terrível para todos esses que até atingiram um lugar.
 
Lillian Witte Fibe: Poxa, mas com todo esse dinheiro, pega o melhor analista do mundo e vai lá conversar com ele. Gente, sabe por quê? A gente é da televisão, é meio familiarizado com esse mundo do deslumbramento, das estrelas... Até dentro da TV Globo, há pessoas informalmente conversando com as pessoas que vão para o vídeo e falando: “Olha, gente, cuidado”. Enfim, é uma coisa meio informal, claro, porque não se compara a um fenômeno desse. Mas com todo esse dinheiro, paga o melhor analista do mundo! O segundo melhor, sei lá. Não sei.
 
José Miguel Wisnik: Não creio na psicanálise como essa panacéia universal.
 
Lillian Witte Fibe: Ou outro. Mas...
 
José Miguel Wisnik: Tenho respeito, inclusive eu uso.
 
Lillian Witte Fibe: ... um aconselhamento profissional. Eu não entendo, não consigo entender o que eles fazem consigo mesmos.
 
José Miguel Wisnik: Mas, Lillian, eu acho que o destino pessoal, quero dizer, tem uma história pessoal de que isso faz parte. No caso do Ronaldo, inclusive esse episódio escandaloso dos travestis [em abril de 2008, ao sair de uma boate, o craque teria estado com três travestis, e se negado a pagar pelo programa que, segundo ele, não chegou a ser consumado por ter percebido que não eram mulheres. Ronaldo prestou queixa na delegacia contra os travestis por tentativa de extorsão. O caso se tornou público, afetando a imagem do jogador], é um episódio no qual, com tudo o que custou a ele e representa um momento em que aquilo aparece como indissociavelmente ligado a uma decadência futebolística e tal, é um episódio em que isso apareceu publicamente como escândalo porque ele se recusou a ser chantageado. O que é, de todo modo, uma atitude ética. E difícil de fazer. A mais difícil de fazer. Ter vários conselheiros e, ao mesmo tempo, pagar o que aquele... Ele tinha dinheiro para pagar o que qualquer daqueles travestis pedisse e encerrava esse assunto. E estaríamos satisfeitos com a imagem do Ronaldo que não pareceria ser isso que é. Mas tem mais grandeza ele ter aparecido nessa situação sob... Quer dizer, ter sofrido tudo isso, esse preço, não tendo pago aquele preço. Então eu relativizo muito o que seria o diagnóstico de uma degradação esportiva, moral e tudo o mais. Não é isso que eu vejo no Ronaldo também.
 
Laís Duarte: Wisnik, o Jonas Leandro, de São José dos Campos, pergunta: qual presente pode contribuir mais para o futuro de uma criança, uma bola ou um livro?
 
José Miguel Wisnik: Eu sou professor de literatura há 35 anos na universidade pública e gratuita. A minha vida é dedicada ao ensino de literatura, e livro é uma coisa fundamental para o destino do país. Os recentes diagnósticos mostraram quanto que os garotos e garotas brasileiros não sabem ler um parágrafo, não sabem dar sentido a um parágrafo. Essa é uma questão brasileira crucial. Ou seja, a capacidade de leitura é uma coisa que define o destino de tudo o que se possa fazer no Brasil, tudo o que se possa conseguir em termos de competir eficazmente, de crescer socialmente, economicamente. De criar tecnologia, de qualquer coisa que você quiser imaginar, depende de uma população capaz de ler um parágrafo. E capaz de ler um parágrafo significa ler, significa o livro. Então o livro é para mim um bem que é fundamental para tudo. Quando eu participei, aliás, junto com o Arthur, do Museu da Língua Portuguesa, nós fizemos uma antologia da poesia em língua portuguesa dita por várias pessoas, lida por várias pessoas. E ali tem Machado de Assis, tem Haroldo de Campos e tem Guimarães Rosa e Clarice [Lispector]. Isso lido por pessoas e... Rappin Hood [nome artístico de Antônio Luiz, inspirado em Robin Hood, ele é um dos principais nomes do hip hop paulistano] lendo o Gregório de Matos. E a gente vê crianças – é um museu muito visitado – assistindo àquilo, ficando deitados no chão, ouvindo aquela poesia. Isso para mim era o desejo de que se tornasse um modelo de alguma coisa para o Brasil inteiro. Que aquelas gravações, junto com um livro que acompanhasse, aquilo fosse para as escolas. Porque mataram a literatura nas escolas no Brasil. E isso para mim acho fundamental. E quando eu escrevi esse livro, ao mesmo tempo, é sobre futebol, mas o livro que pretende ser um livro que não é facilitador. É um livro que seja também de reflexão, em suma, é livro sobre futebol.
 
Vladir Lemos: Não quero deixar você escapar sem fazer uma pergunta. Você falou tanto do livro, eu concordo inteiramente com você. Mas não queria deixar de lhe perguntar: qual a melhor música sobre futebol já feita no Brasil, já que a música é uma maneira de sensibilizar as pessoas também?
 
José Miguel Wisnik: O futebol, de Chico Buarque. Tanto fez a música como fez alguns pequenos textos que são fundamentais, que são grandes sacadas sobre o que é o futebol.
 
Fred Melo Paiva: Wisnik, você considera os clubes brasileiros como instituições culturais no país? E, nesse sentido, você acha que é hora de discutir mais seriamente – é uma pergunta perigosa – uma espécie de Proer [Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional] dos clubes brasileiros? Quer dizer, porque são instituições, de uma grandeza, de uma importância que tem um Flamengo, um Atlético, um Corinthians, todos assolados por dívidas. Era hora disso ser tratado como um resgate, como coisa que não deixasse morrer instituições culturais do país? Ou não? Você acha que não? Deixa como está?
 
José Miguel Wisnik: Até onde eu posso dizer alguma coisa sobre isso, como está no livro, existe uma enorme capacidade no futebol brasileiro de gerar. Gerar jogadores com essa tal escola informal que acontece independente de todas as instituições. É uma criação cultural coletiva que veio se dando ao longo desses tempos, que aproveitou, que tomou para si a linguagem do futebol inglês e que fez dela uma coisa. Então, isso é capacidade de gerar. E grande incapacidade de gerir. Sem insistir muito no trocadilho, mas, para mim, ele é significativo disso tudo que a gente vê no modo como os clubes, como as instituições, o destino que dão a tudo isso. Agora, esses meandros, as bases pelas quais funcionam, é uma coisa que, na verdade...
 
Vladir Lemos: (...) Os clubes já refinanciam dívidas, acabaram de ganhar a Timemania [jogo de loteria organizado pelo governo federal para ajudar os clubes participantes a pagarem as suas dívidas com o governo brasileiro. Funciona como a Mega-Sena, porém no lugar de números são utilizados os escudos dos clubes participantes].
 
José Miguel Wisnik: Mas não é um campo que eu conheça o suficiente para lhe responder sobre...
 
Fred Melo Paiva: O que eu acho curioso é que quando a [companhia aérea] Varig decretou a falência, houve toda uma discussão. Quer dizer, vamos deixar esse símbolo e tal morrer, e isso não existe com relação a um Flamengo que deve 300 milhões de dólares, um Atlético Mineiro que deve 230 milhões de dólares. E que torna a operação desses clubes quase inviável, não é?
 
Lillian Witte Fibe: E a corrupção nisso tudo, gente? E a corrupção então...
 
José Miguel Wisnik: Bom, desculpe eu não ser muito específico nessa resposta, porque eu não saberia analisar essa situação para dizer alguma coisa que fosse tão relevante assim. De todo modo, quando se deu essa futebolização do mundo de que a gente estava falando, houve uma grande transferência de valores para o futebol europeu e outros. E os brasileiros se espalham por aí, há uma depauperação dos campeonatos. Então, há problemas de funcionamento, de gerência, de administração desses clubes e tudo o mais. E, ao mesmo tempo, uma desidentificação, de certo modo, do torcedor com a seleção. É uma questão que você tinha lançado antes e que eu acho que você tem razão no seguinte: quando a gente torcia para a Seleção a gente também torcia para jogadores que são de vários times brasileiros e jogadores do seu time, que você acompanha, que fazem parte da sua vida que estão ali naquela Seleção. Então a Seleção é um ponto de convergência de diferentes identificações regionais, nacionais, expressas ali. E quando esses jogadores estão todos fora do Brasil, circulando nessas contratações milionárias, em outros futebóis, em outros campeonatos, o vínculo com a seleção brasileira deixa de ser daquela mesma natureza. Eu acho que é uma perda dessa relação direta com o futebol, o reconhecimento disso. Tantas vezes também tem jogadores que você não viu jogar ainda, eles já estão contratados por clubes europeus, você não acompanha o crescimento, porque é uma coisa... A gente acalentou... os craques, no princípio, iam para a Europa no final da carreira e eram atacantes. Depois passaram a ir já no meio da carreira. Depois já são contratados e agora são criados quase em viveiros. Não são só os atacantes, são os meio campistas, depois os zagueiros, os goleiros e os técnicos. Então há uma espécie de queda, uma sucção para fora, não é? Que faz parte de todo um processo em que o futebol perde alguma coisa daquela... de uma graça, algo... uma inocência e, ao mesmo tempo, que dá aquela vibração, ao mesmo tempo trágica, lírica, dramática, etc. Em parte, isso se dá. Mas o interessante do futebol – e isso tem a ver com a análise que é longamente desenvolvida no livro – é que todas essas explicações vacilam no futebol porque o futebol nos desmente. Isso é a melhor coisa, de certo modo, do futebol, em relação a todos os outros esportes. A gente faz análises, vaticínios, previsões etc, e o futebol é maior do que isso. O futebol parece ter morrido, e de repente, grandes jogos na Eurocopa. O futebol brasileiro parece estar por baixo... Eu não digo que sou um otimista nesse sentido, porque eu não acredito que as coisas vão num caminho de melhorarem e progredirem, não tenho essa visão. Elas podem também piorar muito e isso depende de... Mas se depender da minha vontade, elas... O melhor é o que tem que ser afirmado, e o futebol é bom por causa disso. O futebol mostra que o assunto não acabou, que a partida só acaba quando termina, e a partida não termina nunca nesse sentido. Ou enquanto a gente consegue ver.
 
Lillian Witte Fibe: Professor, o nosso tempo já acabou, e o Arthur morre se ele não fizer a última pergunta para o senhor. Está ansiosíssimo para fazer a última pergunta desde o começo do programa.
 
Arthur Nestrovski: Desde que fui convidado para participar, eu tinha essa vontade de fazer. Na verdade são três perguntas em uma.
 
Lillian Witte Fibe: Nossa, não dá tempo. Três não dá tempo!
 
Arthur Nestrovski: Muito rápido e elas não são minhas. Eu fiquei pensando quem poderia entrevistar o Zé Miguel, um livro tão pessoal como esse, que tem lances que são particularmente pessoais. Eu lembrei que a Clarice Lispector, durante muitos anos, escreveu para o Jornal do Brasil e ela tinha, na sua coluna, ela muitas vezes entrevistava pessoas. E ela fazia sempre as mesmas três perguntas. E eu queria fazer. Então eu estou chamando Clarice Lispector para entrevistar José Miguel Wisnik.
 
Lillian Witte Fibe: As respostas são rápidas? Porque senão vão tirar a gente do ar.
 
Arthur Nestrovski: São três perguntas fáceis, ela perguntava o seguinte. Qual é a coisa mais importante do mundo? Qual é a coisa mais importante para a pessoa como indivíduo? E o que é o amor? Essas são as três perguntas de Clarice Lispector para José Miguel Wisnik.
 
José Miguel Wisnik: Eu acho que vão ser rapidíssimas. [risos] A coisa mais importante acho que é ter oportunidades, o máximo de igualdade de oportunidades, mantendo o máximo de liberdade. E acho que para cada um, é ter companhia nesta vida, ter amizade, ter alguém com quem você possa dividir e, ao mesmo tempo, possa mergulhar na aventura única de cada um. E o amor, acho que tem uma definição da própria Clarice, não é? Que eu estou me lembrando que é a troca de dons entre os que nada têm. Acho que é isso. O amor nesse sentido. O amor que é terrível, é forte, é poderoso e, no fundo, indefinível. Mas eu fico com essa coisa que a própria Clarice disse. Quando a gente troca com o outro aquilo que a gente mesmo não tem. Portanto, se dá ao outro aquilo que ele nem tem. Mas tem uma amorosidade que é, ao mesmo tempo, no sentido... o amor é amorosidade. Amorosidade eu acho que é gostar da vida. 
 
Lillian Witte Fibe: Bom, o Roda Viva então chega ao fim. A gente quer agradecer a presença do José Miguel Wisnik aqui, à bancada de entrevistadores, muito obrigada, gente! Agradecemos também a sua atenção e colaboração. As perguntas que não puderam ser apresentadas aqui durante o programa vão ser encaminhadas ao nosso convidado.
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