;

Memória Roda Viva

Listar por: Entrevistas | Temas | Data

Agop Kayayan

28/12/1992

Para o representante do Unicef no Brasil, o novo Estatuto da Criança e do Adolescente só terá validade legal se a sociedade o legitimar no dia a dia

Baixe o player Flash para assistir esse vídeo.

     
     

[Programa gravado, não permitindo a participação dos telespectadores]

Jorge Jorge Escosteguy: Boa noite. Não chega a ser uma novidade para ninguém a situação em que vive hoje a criança brasileira. Ela sofre os mais variados tipos de violência. Violência do Estado, da sociedade, violência dos pais. Já se calculou em sete milhões, o número de crianças e adolescentes que vivem pelas ruas. Já se denunciou que temos um número de quatro mil meninos de rua que são mortos no Brasil. Há meninas que, antes mesmo de chegar à adolescência, são prostituídas nos garimpos da Amazônia. Há crianças espancadas e violentadas dentro de suas casas pelos próprios pais. No Roda Viva que começa agora pela TV Cultura de São Paulo, nós vamos discutir a situação da criança no Brasil. Vamos discutir as soluções para os problemas enfrentados por crianças e adolescentes. Uma discussão que, de certa forma, completa a abordagem feita durante esse mês de dezembro pela TV Cultura através de programas especiais sobre o assunto. No Centro do Roda Viva está sentado o senhor Agop Kayayan, representante, no Brasil, do Fundo das Nações Unidas para a Criança, Unicef. Kayayan tem 49 anos, é sociólogo e engenheiro agrônomo. Nasceu no Líbano e está no Brasil há oito anos, dois deles como representante da Unicef. Para entrevistar e debater com o nosso convidado desta noite no Roda Viva, nós convidamos: Gilberto Dimenstein, diretor da sucursal de Brasília do jornal Folha de S.Paulo; Roldão Arruda, repórter do jornal o Estado de S. Paulo; Ângela Santos, jornalista da TV Cultura; Lia Junqueira, coordenadora do serviço de advocacia da criança da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], São Paulo; padre Júlio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Menor em São Paulo; doutor José Raimundo da Silva Lippi, criador da Associação Brasileira de Prevenção do Abuso e da Negligência na Infância; Oded Grajew, presidente da Fundação Abrinq pelo Direito da Criança e coordenador do Pensamento Nacional das Bases Empresariais; e Maria Inês Bierrenbach, presidente da Comissão Teotônio Vilela. Lembramos aos telespectadores que como este programa foi gravado, não haverá perguntas ao vivo por telefone. Na platéia assistem ao programa, convidados da produção [...] Boa noite, doutor Agop.

Agop Kayayan: Boa noite.

Jorge Escosteguy: Em setembro de 1990, 71 presidentes e chefes de Estado, mais representantes de 159 países reuniram-se pela primeira vez em um encontro mundial de cúpula pela criança. O Brasil estava lá representado pelo seu presidente da República. Estabeleceu-se, no encontro, um plano de ação para a década de 1990 com a promessa de se implementar rapidamente a convenção da ONU [Organização das Nações Unidas] quanto aos direitos das crianças. Em outubro de 1991, um grupo no Brasil, criou o Pacto Infância. Essa iniciativa levou à realização, em maio desse ano de 1992, da reunião de cúpula de governadores pela infância. Ainda em 1992, durante o terceiro Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, em Brasília, no mês passado, o ministro da Justiça anunciou a criação do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente. Como se dizia antigamente, se um marciano descesse hoje no Brasil diria que, finalmente, a sociedade tomou juízo e passou a se preocupar com a coisa mais preciosa que ela tem, que são as suas crianças. O senhor diria que isso é uma verdade? Alguma coisa mudou de lá pra cá, diante de todos esses fatos ou foi pouca coisa que mudou?

Agop Kayayan: Mudou. Alguma coisa mudou e são mudanças interessantes. Uma das mudanças mais interessantes, no caso do Brasil, é a adoção do Estatuto da Criança e do Adolescente. É um fenômeno raro, mundialmente, para a transformação da convenção mundial numa legislação nacional. E, o que é ainda mais interessante nisso, é que é um fenômeno gerado pela sociedade com um movimento de sustentação que vêm de grupos de base e é aprovado pelo Congresso. Isso traz uma das mudanças mais significativas na maneira de se encarar a problemática da infância e da adolescência. E por isso a Unicef, esse ano, no seu informe mundial, coloca o exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente como um fato positivo no pensamento sobre a criança e o adolescente.

Jorge Escosteguy: Na prática, o que senhor tem observado? Porque isso, no fundo, é uma profissão de fé, ou seja, de intenções. Bom, na prática, o que o senhor tem observado em relação à melhora dessa situação crítica e dramática das crianças?    

Agop Kayayan: Na prática, têm acontecido mudanças interessantes, também mudanças positivas. Por exemplo, nos meios de comunicação, a criança e a violência cometida contra a criança não são mais tratadas nas páginas policiais, mas sim nas páginas de política nacional. Outro exemplo de mudança ao nível governamental é que as coberturas de vacinação aumentaram drasticamente. Outros exemplos vêm das empresas privadas. Várias empresas privadas se conscientizaram sobre a problemática e perceberam que a solução não vem só do setor governamental, estão participando da solução dos problemas da infância e da adolescência. [Entre] as organizações não governamentais há, por exemplo, a Pastoral do Menor e outras milhares de Ongs. Isso não quer dizer que tudo está melhorando. Na área de saúde existem ainda problemas muito graves; na área de educação, existem problemas muito graves; na área de proteção dos direitos da criança, existem problemas gravíssimos.

Jorge Escosteguy: Quais respostas o senhor tem encontrado nas Ongs para a solução desses problemas que o senhor considera graves?

Agop Kayayan: Existe, pelo menos, um conhecimento detalhado dessa situação. Não podemos dizer, para o Brasil - e isso não pode servir de desculpa para ninguém - que não se conhece a situação. Se conhece o suficiente. Existem dados excelentes, o IBGE tem publicado muito dessa informação. Isso é importante, a existência do conhecimento. Existe a consciência sobre o problema, dramatizado, talvez, pelo extermínio de adolescentes e pela presença tão chocante de crianças nas ruas em situações extremamente difíceis. Existem algumas soluções que foram feitas a nível federal, a nível estadual, a nível municipal. Existem exemplos extraordinários. O Brasil não precisa buscar exemplos em outros lugares, existem exemplos no país. Mas, ao mesmo tempo, há situações catastróficas como, por exemplo, a situação da educação básica, da educação fundamental. Este país não pode continuar com o mesmo tipo de educação fundamental. O nível de desenvolvimento do país não permite o tipo de situação de saúde que a criança enfrenta. E a pretensão do país em ser do Primeiro Mundo não pode permitir os delitos que a sociedade está cometendo contra as crianças.

Jorge Jorge Escosteguy: O Roldão tem uma pergunta.

Roldão Arruda: O senhor tocou em uma questão que, de certa forma,  resume o problema, na minha opinião, que é a questão educacional. No Brasil, já se sabe que, por exemplo, nós não precisamos construir muito mais escolas para resolver o problema do ensino fundamental. No entanto, nós temos milhões de crianças repetindo o ano e, em um certo momento dessa vida escolar, desistindo da escola, porque o ensino não é adequado às crianças. E, no entanto, se fala, pelo menos no Brasil, ainda, em construir Cieps, esse tipo de coisa. O senhor não acha, a partir desse exemplo que o senhor tocou rapidamente, que a questão do menor ainda é uma questão de vontade política? Porque também, lendo o relatório do Unicef, a gente fica com uma impressão muito otimista, no sentido que, do ponto de vista científico, tecnológico, de conhecimento, nós já teríamos condições de resolver esse problema. Mas, no entanto, ele continua essa coisa escandalosa que a gente vê no país. É uma questão de vontade política?

Agop Kayayan: É uma questão de vontade política, mas há diferentes níveis. Não é só uma questão de vontade política no nível do governo federal. É vontade política ao nível de governo federal, estadual, municipal, mas também vontade política ao nível da sociedade brasileira. Se tivesse uma cobrança organizada sobre a educação, a qualidade de educação, não teríamos essa taxa de repetência de 20%, que é típica de países com renda de trezentos dólares per capita, e o Brasil está em dois mil e poucos dólares. Segundo ponto, é do ponto de vista que interessa muito a vida econômica, não é só pelo benefício da criança, é também pelo futuro do país. Estão se formando, no mundo inteiro, blocos econômicos e o Brasil vai ter que competir nesses grupos mundiais com esse tipo de educação. Pelo menos com essa qualidade de educação, o Brasil não vai poder continuar competindo e outros vão aproveitar dessa situação. Então, se a inteligência brasileira não coloca essa questão da educação no seu devido lugar, o país estará indo em direção à catástrofe.

Roldão Arruda: E tem um questão, acho, a insensibilidade de quem tem poder de influência, poder político, o senhor não acha que é muito grande, ou seja, as pessoas que  poderiam  exercer essa influência já resolveram o problema da educação dos seus filhos, de uma certa maneira. Como o senhor vê essa questão? Essa insensibilidade, esse fosso que separa...

Agop Kayayan: É uma insensibilidade, é uma tradição histórica de modelos econômicos ultrapassados que o Brasil já não é, não está mais nessa situação. E eles vão ter que mudar, ou a sociedade vai ter que pressionar de uma maneira mais forte. E, se não acontecer isso, ficará claro, como um mais um são dois, que o país estará indo em direção à catástrofe. Eu visitei uma escola, não vou citar o nome do município, mas a uma hora, aproximadamente, de Recife, onde a professora tinha escrito no quadro negro a história dos egípcios antigos. Isso era na quarta série e tinha crianças de doze a 24 anos copiando o que estava escrito no quadro negro. Crianças que, provavelmente, não sabem onde fica Recife, onde fica Brasília, muito menos onde fica o Egito de hoje e qual era a história dos egípcios na antiguidade. Isso é um sistema totalmente falido. Não pode responder às necessidades atuais do Brasil. Quando vemos, por outro lado, por exemplo, um presidente da [empresa] Sony descrevendo o que fez o sucesso da indústria japonesa. 

Jorge Escosteguy: Gilberto Dimenstein tem uma pergunta, por favor. 

Gilberto Dimenstein: Por que o desperdício na área pública é tão grande? Por que, de cada cem dólares  que se gasta com uma criança, apenas vinte chega ao seu cliente final? O setor público é mundialmente incompetente ou a taxa de corrupção e o clientelismo no Brasil é maior?

Agop Kayayan: Tem dos dois um pouco, eu acho. Da incompetência e de mau uso dos recursos, e de tentativa de responder às pressões de pequenos interesses quando comparamos ao interesse nacional. Tem se respondido muito no passado, de uma maneira muito acima do que deveria ser, aos grupos de pressões e aos grupos de pequenos interesses, deixando de lado o interesse nacional. E não pode continuar dessa maneira. Não podemos continuar satisfazendo pequenos grupos de pressões com pequenos interesses, eu diria de pequenos interesses, quando, do outro lado, estamos criando uma geração que não vai poder participar desse processo democrático e não vai poder produzir da maneira que se deve produzir.

Jorge Escosteguy: É tão complicado assim fazer os recursos chegarem até...

Agop Kayayan: Não, não é tão complicado.

Jorge Escosteguy: O senhor diz que, em parte, é incompetência...

Agop Kayayan: Parte é incompetência, parte é corrupção. E essa resposta, digamos, aos pequenos grupos de interesse, eu também classificaria como corrupção. Porque existem exemplos de que, quando se tem  vontade política, os recursos públicos na educação são aplicados corretamente, chegam, independentemente de partido político. Existem exemplos em Maringá, em Capuí e em centenas de outros  municípios com partidos totalmente diferentes.

Oded Grajew: No seu relatório anual, a Unicef diz que, com apenas 25 bilhões de dólares, estariam satisfeitas todas as necessidades básicas das crianças do mundo inteiro. Isso significa uma quantia igual a que se gasta na comunidade européia em bebidas alcoólicas a cada três meses, mostrando a insignificância, ao nível mundial, da quantia. Nessa última proposta de reforma fiscal, foi apresentada, entre várias propostas, uma que previa que  todo o dinheiro arrecadado com esse novo imposto, Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras [IPMF], que seria mais ou menos  cinco a seis bilhões de dólares por ano, esse dinheiro seria colocado no Fundo da Criança, já criado, e esse fundo seria administrado pelo Conselho da Criança em conjunto com governo e a sociedade civil para atender às crianças brasileiras. Eu lhe pergunto primeiro: esse dinheiro, você acha que seria o suficiente para atender às necessidades básicas das crianças brasileiras, e se sim, o que você faria com esse dinheiro?

Agop Kayayan: Eu não tenho feito os cálculos de quanto precisaria exatamente, mas, primeiro, o que nós podemos dizer é que o Brasil, a sociedade brasileira possui suficientes recursos para resolver facilmente a situação da infância e da adolescência. O Brasil pode facilmente reduzir a sua mortalidade infantil pela metade, facilmente. Pode melhorar a qualidade da educação; pode aumentar a cobertura da educação; pode delimitar, se feito de uma maneira determinada, correta, a proteção dos direitos da criança.

Jorge Escosteguy: Tudo isso seria com o imposto novo?

Agop Kayayan: Sem impostos novos, eu acho. Usando os recursos que já têm, melhor, aumentando os recursos para a área de educação e saúde, gastando menos em outras áreas, talvez. Usando de uma maneira mais eficiente, como dizia Gilberto, [Dimenstein], para chegar ao beneficiário direto, que é a criança. Só que tem que ter os grupos de pressão da sociedade organizada para exigir, cobrar, indicar. As medidas são simples onde vimos mudanças. E existem sociedades muito menos ricas que o Brasil e de sistemas políticos totalmente diferentes: Chile, Cuba, Costa Rica, só para citar três da América Latina, que são mais pobres que o Brasil e possuem melhores indicadores que o Brasil, muito melhores. Então, pode ser de um fundo como esse, mas também tem que ser dos recursos normais de educação, de saúde, de justiça.

Jorge Escosteguy: São 28 bilhões de crianças que vivem em péssimas condições?

Agop Kayayan: Sim.

Jorge Escosteguy: Na atual situação, se houvesse vontade política e encaminhamento correto de recursos?

Agop Kayayan: A vontade política tem que ser também na distribuição da renda no Brasil. O Brasil representa um dos países de pior indicador de distribuição, de má distribuição de renda. Sabemos muito bem que uma muito pequena porção da população tem uma proporção da renda nacional muito grande, quando comparamos aos 50% mais pobres. Porque em comparações, de 1% e de 50%, 1% mais rico e 50% mais pobre são os piores indicadores de má distribuição.

Jorge Escosteguy: Padre Julio Lancelotti, por favor.

Padre Júlio Lancelotti: Agop, o Brasil está em 65º lugar no ranking mundial da vergonha. Isso aparece também um pouco no relatório do Unicef e está também em editorial do Estado de S. Paulo. Mostrando que no Brasil há 247 mil mortes/ano de crianças até cinco anos. E, nessa lista, o Brasil está abaixo do Paraguai, da Índia, da Etiópia, do Zaire e até do seu Líbano. É possível, como diz no relatório do Unicef, a questão da criança ser prioridade num modelo neoliberal? O neoliberalismo contempla a criança como prioridade? Isso é possível?

Agop Kayayan: É possível em diferentes sistemas políticos se a prioridade devida é claramente estabelecida para a criança. Temos visto em sistemas políticos tão diversos como Coréia do Sul, Sri Lanka, Cuba, que pode se melhorar, num prazo muito curto, a situação da infância. Não é tanto o sistema político. O sistema político tem a sua influência, a questão da criança é uma questão política, mas não é necessariamente uma questão partidária. E pode ser melhorada drasticamente em qualquer um dos sistemas políticos existentes.

Padre Júlio Lancelotti: O no sistema econômico neoliberal também?

Agop Kayayan: Também pode ser melhorado se tiver a consciência clara de que vão resolver a situação da infância.

Jorge Escosteguy: Maria Inês Bierrenbach, por favor.

Maria Inês Bierrenbach: Eu gostaria de insistir, ainda, em uma questão, uma linha já levantada aqui, mas com outro enfoque. Eu acho que nós podemos dizer, como se diz que a década de 1980 foi uma década perdida, nós podemos dizer que a década de 1990 aparece bem no sentido de conquistas sociais, em termos legais e institucionais. Porque veja, já foi dito aqui do encontro Mundial de Cúpula da Infância, em Nova York, na sede da ONU. O encontro de governadores ainda este ano, o Pacto pela Infância e, sobretudo, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que foi sem dúvida uma conquista da sociedade, do setor organizado, das organizações não governamentais e que resgatou a cidadania e os direitos para as crianças brasileiras. Agora, em termos de realidade concreta, qual é a concretude do dia a dia dessa criança?  Nós sabemos e são dados também divulgados pelo IBGE que 35 milhões de crianças brasileiras vivem em famílias que recebem renda per capita de até meio salário mínimo. Nós sabemos da realidade, da concretude da fome, da miséria, do analfabetismo, como já foi aqui apontado, dos altos índices de mortalidade infantil, menos em São Paulo, talvez, que decresceram com medidas de saneamento básico, mas, sobretudo do Nordeste e de alguns pontos ainda da grande São Paulo, eu diria também. E, agrega-se a essa situação dramática, eu costumo dizer que há um novo indicador social que é o assassinato de crianças e jovens. O Núcleo de Estudos de Violência da USP, através da professora Myriam Mesquita, fez uma pesquisa que indicou 994 casos de assassinatos de crianças e jovens em 1990, em São Paulo. Quer dizer, 2.7 crianças mortas por dia em São Paulo. Quer dizer, é um dado mais do que alarmante. Foi dito aqui, com propriedade, da vontade política, a qual eu agregaria, realmente, o compromisso político dos governantes em transformar, a vontade de transformar essa situação... Foram também apontadas aqui a falência das políticas sociais públicas brasileiras. Então, eu gostaria de saber como o Unicef vê essa situação e, sobretudo, como o Unicef pode interferir, no sentido de colaborar para que essas conquistas que estão no papel, realmente, se efetivem na prática, no cotidiano da criança brasileira. Qual o ponto de vista do Unicef?

Agop Kayayan: Bom, de um lado, como você disse, a situação é dramática e, de outro lado, sabemos que existem soluções que permitiriam a melhora drasticamente - insisto no drasticamente - da situação da infância num curto prazo. Isso para os políticos é super importante. Durante a sua gestão, um político pode melhorar a situação da infância naquele prazo curto. Agora, o Unicef recomenda retomar os problemas que estão afetando a infância. Na área de saúde, quais são as principais causas de mortalidade infantil? E tocar esses aspectos com soluções de baixo custo, não necessariamente porque são para pobres, por exemplo, a reidratação oral é boa para mim, para você e para aquele que está ganhando um salário mínimo. E eu uso o soro caseiro na minha casa. Essa não é uma solução para os pobres, é uma solução para qualquer um que tem um problema. A maior causa da mortalidade no Brasil continua: a desidratação e a morte que resulta da desidratação. Existem medidas de longo prazo e de curto prazo; saneamento, que é um processo mais caro, que vai tomar mais tempo, mas, ao mesmo tempo, a terapia de reidratação oral, a vacinação, o cuidado das infecções respiratórias agudas. Todas essas medidas corretas, cientificamente estabelecidas não precisam ser mais pesquisadas, não precisa de pessoal sofisticado para aplicá-las, é só ter a vontade política e aplicá-las. Em alguns estados como, por exemplo, do Nordeste, onde a maior parte do nosso trabalho está concentrada, começaram a tomar algumas dessas medidas. O exemplo do Ceará foi um exemplo muito claro de que um estado pobre pode, tendo a vontade política, aplicando corretamente os recursos, reduzir a mortalidade infantil de uma maneira drástica. Reduzir 30% é uma coisa importante.

Maria Inês Bierrenbach: Só para complementar: eu posso entender, então, que a prioridade seria na área de saúde?

Agop Kayayan: Na área de saúde, educação e proteção dos direitos da vida das crianças. Não podemos mais aceitar, não se deve aceitar mais que crianças, pelo menos 150 mil crianças anualmente, menores de um ano, morram por razões estúpidas. Desculpe a palavra, mas são estúpidas.

Maria Inês Bierrenbach: É verdade.

Agop Kayayan: Não podemos aceitar mais que quatro crianças, adolescentes sejam "matados"  Não se pode aceitar. Não se pode aceitar que, duas, de cada dez crianças, repitam as suas classes por uma qualidade péssima de educação. Essas são coisas inaceitáveis, mas o que é positivo, o que é otimista, é que para tudo isso existem soluções fáceis e de baixo custo.

Jorge Escosteguy: Agop, por falar em soluções difíceis, a maioria mencionou a questão da violência. Queria fazer uma pergunta do nosso convidado da produção, o senhor Ademar Carlos de Oliveira, do Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Ele se refere ao envolvimento da Polícia Militar do Rio de Janeiro com execução sumária de crianças. E pergunta ao senhor: que perspectivas, objetivamente, o senhor vê na relação Polícia Militar e infância pobre e Polícia Militar e aplicação da lei, ou seja, Estatuto da Criança e do Adolescente. Seguramente não são soluções fáceis...

Agop Kayayan: Não são soluções fáceis pois não vão mudar de um dia para o outro. Mas, qualquer situação, as mais explosivas, as mais violentas, as mais difíceis, se são realmente um problema nacional de suficiente gravidade, que a sociedade assume seriamente, se resolve. Temos visto países que estão no meio ou estão acabando de sair de uma guerra e conseguem colocar ordem, quer coisa pior do que uma guerra? Estamos numa guerra e podemos melhorar essa situação, se tiver o compromisso e a exigência de toda a sociedade. Se cada brasileiro exige do seu representante no Congresso - e esse é um problema de gravidade pública, de importância séria - algumas soluções podem ser apresentadas. Se todo brasileiro exigir que no seu estado não se mate criança, a solução vai chegar. Essa área é a mais difícil talvez. Isso eu admito.

Jorge Escosteguy: Mas é porque há brasileiros que, infelizmente, acham que a polícia tem que matar mesmo.

Agop Kayayan: E podem ver os resultados que isso vai dar para o Brasil. Menos empréstimos de fora, porque esses mesmos brasileiros que acham que a polícia deveria matar essas crianças vão se queixar, quando não tiver boas relações econômicas com a Europa e o resto do mundo, do Primeiro Mundo. Se as relações comerciais forem afetadas, eles estariam muito tristes porque perderiam seus empregos, sua renda, porque já chegou um momento onde o resto do mundo - porque somos uma comunidade global - onde o resto do mundo está dizendo: não!

Roldão Arruda: Mas esse interesse do resto do mundo ainda não é muito pequeno? Por exemplo, a gente vê a questão ambiental, é mostrado como ela afeta a vidas das pessoas e que existe o risco de afetar a vida dos seus filhos, a pressão é uma coisa muito visível para a questão da camada de ozônio, da floresta amazônica etc e tal. Agora, são 250 mil crianças em uma única semana, segundo o próprio Unicef, e a gente não sente uma pressão desse tamanho. O senhor acha que ela pode aumentar, ela tende a crescer?

Oded Grajew: Só complementando a sua pergunta, hoje, na questão da dívida externa, se faz muita barganha entre dívida externa e questão ecológica porque [isso] está preocupando o resto do mundo. Aí, eu lhe pergunto, inclusive já existem propostas nesse sentido, se é possível a conversão da dívida externa em projetos voltados para a criança. Quer dizer, projetos bem feitos, supervisionados, mas que é um novo campo que se abre na questão ecológica e na questão específica da criança. Se isso é uma coisa viável?

Agop Kayayan: Bom, primeiro, a questão da comunidade internacional. Os assuntos de direitos humanos já não são, felizmente, de exclusiva propriedade do Estado ou do país onde acontecem abusos desse jeito, felizmente. Porque vimos o que aconteceu em diferentes partes do mundo e que, com a pressão internacional, que ao início parecia  ridícula, alguns pequenos grupos que iniciaram essas ações, mas que, eventualmente, se organizaram e conseguiram uma pressão efetiva para mudar. Então, já estamos nesse tipo de mundo. Na comunidade européia  está se discutindo a ligação de assuntos comerciais com o assunto de matança de adolescentes no Brasil. Isso é um fato já. Há discussões concretas e é muito positivo isso. Mas não é por razões externas que o Brasil deve dar a devida importância sobre matar adolescentes, é por razões mais internas: são os nossos filhos, as nossas crianças. E o meu [filho] e o seu podem estar entre essas crianças. E a solução não é matar uma criança pobre, na maioria dos casos, negra, que está na rua porque os pais deles estão ganhando meio salário mínimo. O que acontece com a criança que é de classe mais alta e que comete outros crimes, se mata? Você aceitaria esse argumento? Então, aquele menino que toma o carro da família e sai para fazer uma brincadeira sábado a noite e atravessa um semáforo? Matamos aquele menino também? O Brasil tem que colocar essas questões e cada um dos brasileiros tem que colocar essa questão já de uma maneira mais séria. Acabou o tempo da escravidão. Já não estamos tratando daquela época.

Oded Grajew: Fazer uma opção entre matar uma criança que roubou para comer e deixar aquele que roubou milhões de dólares para passear em Barcelona, essa é a opção que a sociedade brasileira deveria fazer.

Agop Kayayan: Não sei a quem ele está se referindo, mas a questão é aplicar a lei para todos de uma maneira igual. É pobre, cometeu um delito, aplica a lei. Tem uma lei excelente no Brasil e pode colocar com grande orgulho no peito, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Aplicar aquela lei para todos de uma maneira igual.

Jorge Escosteguy: O Lippi tem uma pergunta, por favor.

José Raimundo Lippi: Primeiro é um privilégio estar aqui com o senhor e eu gostaria de retomar a parte do menino da rua que o senhor colocou, tentando estabelecer a verdadeira realidade. Como trabalhador dessa área, eu sou, muitas vezes, questionado sobre qual a verdadeira realidade daqueles meninos na rua ou da rua? Em Belo Horizonte foi feito um levantamento por algumas instituições e a realidade mostrou que, na verdade, existiam seicentas crianças de rua, embora um número imenso delas estejam na rua. E a nossa incapacidade lá foi revelada nessa reunião de instituições de não conseguir resolver o problema de seicentas crianças. Mas existia muito mais na rua. Então, o real... Por exemplo, eu estive aqui em São Paulo, numa reunião até do Unicef, e fui assaltado aqui por um jovem. Uma coisa curiosa da vida, já que eu estava em defesa deles. Ele chegou com a mão e falou: “ô tio, não corra, não fala nada, me dá o seu relógio” e não era uma criança, não era provavelmente uma criança de rua. Então, para eu aprender a responder às pessoas que me perguntam: qual a verdadeira realidade das crianças que estão na rua e da rua. Quantos infratores, na verdade, temos, porque é um sistema... Falou-se muito aqui de corrupção, na minha cidade, por exemplo, tem um político, fulano 5%, fulano 10%, fulano 20% e não acontece nada. E isso... eu hoje dou assistência numa favela e vejo um sistema, em existem famílias que deixam os meninos ali e alguns com obrigação de trazer uma quantia "x" em dinheiro, porque se não trouxer, não volta. O que está acontecendo verdadeiramente? Nós estamos falando de macro problemas, solução macro, e essas que estão diante de nós, que muitos de nós estamos sofrendo?      

Gilberto Dimenstein: Eu gostaria de acrescentar uma informação, já que iria enriquecer a sua pergunta: é que muitos desses meninos de rua, e quem trabalhou nessa área em  reportagem, O Roldão também sabe, eles pagam pedágio para os policiais do roubo que eles fazem. E se eles não derem esse dinheiro, eles são presos e espancados. Eu conversei com várias meninas do Norte, Nordeste, Centro Oeste... Meninas que contam que: “se não roubarem o policial vem e bate”. Fizeram uma pesquisa em Recife muito interessante, perguntando para o menino de rua: “o que você quer ser quando crescer?”. Aí o garoto disse: “eu quero ser policial”. “Por quê?”. “Porque se eu for policial eu posso roubar sem ser preso”. Então, você vê que a noção de infração é muito complexa nesse meio. Não se divide entre bom e mau, mocinho e bandido, só.

Agop Kayayan: Bom, primeiro, com relação ao meninos de rua na rua. Claro, a proporção de meninos que dormem nas ruas é mínima, é pequena. A proporção de crianças que cometem ofensas à lei, que cometem crimes é muito pequena. A grande maioria são trabalhadores na rua; são trabalhadores para complementar o salário das suas famílias. De novo, voltamos para o assunto da desigualdade e da distribuição da renda. Esses são meninos que estão colocados [na rua] com o acordo das suas famílias, provavelmente, as suas famílias estão de acordo para que eles possam ir para a rua complementar o salário da família. Estando na rua e sendo menores, eles são aproveitados, abusos são cometidos contra eles. E, provavelmente, a quantidade de delitos  cometidos contra crianças é muito maior que a quantidade de delitos cometidos por crianças contra adultos. Mas ninguém ouve falar dos delitos contra as crianças. Quantas meninas são estupradas no Brasil? E quantos dos estupradores vão para a cadeia? Quantos dos que matam as crianças vão para a cadeia? Agora, quando um menino rouba e deve ser tratado como o Estatuto da Criança manda, aí tem gritos de que a violência aumentou. Mas onde estava essa violência quando estava sendo cometida contra crianças de seis, sete, oito anos, meninas que estavam sendo abusadas sexual e economicamente, esses mesmos meninos que estão na rua, que estavam sendo explorados? A sociedade não estava sabendo dessas coisas. Não tem muita estatística sobre abuso de crianças. Agora, uma coisa tão chocante como a matança de crianças, onde tem que ser pelo menos registrada essa morte, existe e são quatro por dia.

Ângela Santos: O relatório de 1993 do Unicef afirma que os programas de atenção especial à infância, eles dão uma contribuição fundamental para o rompimento do círculo vicioso da pobreza, que os números já mostraram bem. Como concretizar esse rompimento sem uma política efetiva de geração de empregos e de distribuição de renda? Aí, num segundo momento, eu também queria que o senhor analisasse a situação dos adolescentes no Brasil que são atendidos por programas, quer governamentais, quer de entidades não-governamentais até os 17 anos e depois eles esbarram no desemprego.

Roldão Arruda: Eu só queria fazer um adendo. Eu acho o trabalho do Unicef, eu o acompanho há alguns anos, existem coisas fantásticas, como esse do soro caseiro, eu queria fazer uma pergunta um pouco de cunho pessoal. O senhor não tem a sensação, quando o senhor observa num país onde aumentou o fosso entre ricos e pobres, onde o crescimento do PIB foi zero, que o senhor está sempre correndo atrás do prejuízo? Ou seja, que é muito difícil dar certo essa idéia. Está correndo atrás do prejuízo sempre? É só em cima do que ela estava falando.

Agop Kayayan: Primeiro, em brincadeira, mas em segundo lugar a sério, nós estamos correndo atrás do prejuízo, isso existe, mas não podemos deixar de ter a esperança. Mas falando sério, existe situações muito piores para a infância que a situação do Brasil. Acho que o presidente em exercício disse uma frase interessante: "há várias Somálias no Brasil". E é certo. Mas as soluções são relativamente simples, há aquelas de curto prazo, mas existem soluções a médio e longo prazo que precisam de esforços maiores. Quer dizer, um dos problemas - e o Brasil têm que enfrentar esses assunto por razões de sobrevivência - é a questão da distribuição da renda pela própria continuidade econômica deste país, e não vou entrar muito nessa área, mas pela própria continuidade do sistema econômico tem que haver uma melhor distribuição da renda. Tem que ter, mesmo olhando do ponto de vista empresarial tem que haver um mercado de consumidores. Mas, mesmo deixando esses lados, outra maneira, de curto prazo, para melhorar a distribuição da renda é melhorar a distribuição de serviços. Serviços de saúde, serviço de educação, proteção, esses são uma forma de renda. A família que pode contar com o serviço de saúde adequado, saneamento adequado, uma escola de boa qualidade gratuita está recebendo uma renda adicional. É uma maneira de melhorar a renda da população.

Ângela Santos: Só interrompendo, nós tivemos a oportunidade de observar, em Capuí, um trabalho muito sério na área da educação. É uma área que tem uma parte rural e a gente observou que as crianças vão para escola e elas tem um calendário até diferente, em função do trabalho, da ajuda que eles dão aos pais no campo. Agora, o que a gente viu é que a situação de pobreza para a família continua. Será que esse trabalho, essa atenção à saúde vai conseguir entrar nessa questão da pobreza, vai conseguir melhorar alguma coisa? Se sim, como?

Agop Kayayan: Bom, essa é mais uma... Essa história de talvez comparar Capuí com esse outro município que eu não vou mencionar o nome dele, em Pernambuco. O que eu poderia dizer é que as crianças de Capuí têm uma melhor chance de ter uma vida mais adequada, mais decente que as crianças daquele município em Pernambuco. Não estou dizendo que no Ceará é melhor que em Pernambuco, mas comparando a situação dessas crianças, eu diria que eles têm uma melhor esperança. Agora, eu também fui a Capuí e realmente existe um problema de emprego. Uma população que tem uma sede por trabalho. Adultos que querem, durante certas épocas do ano especialmente, ter uma fonte de renda para responder às necessidades das suas famílias. Se o país não enfrentar essa questão tão fundamental, eu acho que é o desastre a vista. Não se pode pensar  que 60% da população está fora do mercado, por um lado até puramente empresarial. Mas, também, não se pode admitir mais esses indicadores de outros tempos, de outros países de renda muito, muito menor. Sri Lanka, se compararmos o Brasil com o Sri Lanka, o Brasil saía numa enorme vergonha frente a um país muito mais pobre, com indicadores muito melhores de saúde, de educação.

Jorge Escosteguy: E nós temos vários desastres à vista, fora os que o senhor falou, mas nós voltaremos a esse assunto. Precisamos fazer um rápido intervalo. O Roda Viva volta daqui a pouco entrevistando hoje: Agop Kayayan, representante no Brasil das Nações Unidas para a Criança. Unicef. Até já.

[intervalo]

Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva que hoje está entrevistando o doutor Agop Kayayan, representante no Brasil do Fundo das Nações Unidas para Criança, Unicef. Lembramos os telespectadores que, como este programa foi gravado, não haverá perguntas por telefone. Doutor Agop, no primeiro bloco, o senhor falou que há soluções de curto prazo para alguns problemas da infância, da criança. Inclusive, soluções nas quais - o senhor advertiu - os políticos deveriam até estar interessados porque, utilitariamente, essas soluções dariam votos. Então, eu tenho que avisá-los, já que muitos deles não devem saber. Mas, enfim, pegando esse gancho que o senhor falou, como tem sido o seu relacionamento com o governo, com os políticos brasileiros? Eu lhe pergunto, inclusive, porque um pouquinho antes de começar o programa, o senhor conversava com o Dimenstein e ele dizia, por exemplo, que o chanceler Fernando Henrique Cardoso está interessado em conhecê-lo para conversar, etc. Como tem sido a receptividade dos políticos e do governo, tanto políticos do governo como parlamentares?

Agop Kayayan: A receptividade ao Unicef tem sido melhor do que se esperaria normalmente. Eu tenho trabalhado na América Central durante dez anos e não tenho visto nada similar à recepção que o Unicef tem entre os políticos. E tentamos, aoUnicef é um dos, digamos, advogados da criança junto aos políticos. E, em relação aos políticos, têm os que não tem interesse e não são bons políticos, mas temos tido vários contatos com diferentes tipos no Congresso, com governantes, com governadores. O Pacto pela Infância reuniu 24, dos 27 governadores. Temos relações constantes com órgãos do governo, como Ministério da Educação, Ministério da Justiça...

Jorge Escosteguy: ...Agora, isso rendeu que tipo de iniciativas por parte do governo, dos políticos, por exemplo?

Agop Kayayan: Surpreendente. Às vezes, algumas dessas iniciativas são fulminantes, suficientes e fortes. Por exemplo, a vacinação. Me surpreende. O Brasil saiu de um nível muito baixo de vacinação e subiu para um nível muito aceitável, digamos. Pode ser melhorado ainda. E isso - ligando com a questão do otimismo - demonstra que o país pode fazer esses avanços porque têm os recursos humanos, têm os recursos financeiros, é só aplicar corretamente esses recursos. É realmente inteligente, da parte dos políticos, tentar resolver esse problema porque eles vão colher os frutos dessa política.

Jorge Escosteguy: No mínimo vai render voto?

Agop Kayayan: Vai render voto. E o Unicef, muitas vezes se critica o Unicef e diz: "vocês não estão colaborando com tal político ou outro". Nós estamos colaborando com todos os políticos, todos os partidos, aliás, é a idéia do Pacto pela Infância, de que todos os partidos, todas as organizações no país devem e podem participar da solução dos problemas, independentemente de ideologia política. 

Roldão Arruda: O senhor não acha que a campanha de vacinação, por exemplo, do jeito que ela é feita no Brasil, com grande cobertura pela imprensa é um caso de rendimento político imediato, enquanto o problema de saneamento básico é muito mais difícil de convencer algum político em investir nisso?

Agop Kayayan: Não. Acabo de ver nos jornais, na semana passada, que um governador conseguiu um empréstimo de duzentos milhões de dólares para saneamento. No momento em que o Brasil não está recebendo muitos empréstimos, isso é indicador de que... E, para um político é importante isso, melhorar o saneamento, poder dizer ao eleitorado que melhorou o saneamento e conseguir nesse momento tão difícil um empréstimo para isso.

Lia Junqueira: Eu estou nessa área desde a década de 1960 e até hoje não consegui sentar em uma mesa para discutir problemas da criança e do adolescente. A gente sempre está falando do problema do outro. Porque deverestar ainda com o nome de menor, porque essa falácia do Estatuto, dizendo que é da criança e do adolescente é piada, ele continua sendo menor. Porque o que faz com que ele seja menor é a diferença de vida que ele leva até hoje. Agora, considerando o Brasil, todo mundo é técnico de futebol e de criança. Quer dizer, basta ter uma instituição que precisa de alguém para assumir um cargo, qualquer um serve, só vai depender de ter uns padrinhos políticos e do interesse para trabalhar. Agora, são poucos os técnicos. E, por tudo que a gente ouve... trinta anos, eu já estou tratando de neto de menor infrator que eu conheci na década de 1960, que já está na rua, seja menino de rua ou menino na rua, não me importa, sei que ele não está na casa dele, não tem um lar para viver, os pais são desempregados e o que custa é arrumar emprego para ele, nunca para o pai dele. Senão também, se a gente resolver o problema do menino de rua, das crianças que estão na rua, muita gente vai ficar desempregada. Não sei se existe o interesse para que se resolva isso de uma vez. Agora, por que não se pensa em um programa que não precisa projeto, não precisa técnico, não precisa nada. Vamos fazer, para todas as crianças, um programa como da classe média. Porque tirando a vacina e o soro, que são as duas únicas coisas no Brasil que serve ao pobre e ao rico, o resto tudo que é programado é só para o pobre. O que me leva a crer que o pobre não tem o direito ao saber. Porque se essa massa aí chegar a saber, começa a mandar. E não interessa para nenhum de nós que esse povo consiga mandar. Então, eu não entendo, é muito dinheiro que se gasta, e eu chego a dizer até, e as pessoas ficam assustada, que o menino da praça da Sé, [se colocacarmos] Pastoral do Menor, Unicef, Febem [instituição do governo estadual de São Paulo voltada para ressocialização de menores infratores], Funabem [Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor], tudo isso, ele custa mais caro que um garoto que estuda no São Luiz, que é o colégio mais caro de São Paulo. Agora, para quê tanto? O Unicef tem o interesse em resolver ou dar condições para que o Brasil resolva o problema da criança, porque saber resolver todo mundo sabe, as causas, todo mundo sabe, aqui, passou por várias pessoas e todo mundo conhece as causas. Nós sabemos até quantas crianças morrem por dia. Nós sabemos que o sarampo mata. Todo mundo sabe tudo a respeito da criança. Agora, por que, até hoje, tudo que eu ouvi hoje aqui, eu já ouvi em 1960, ouvi em 1970, ouvi em 1980, passei  os anos 1990 ouvindo e tenho certeza que [ouvirei em] 1992, 1993, 1995? No ano 2000, talvez, a gente consiga aplicar esse estatuto que está aí. [Então] o que falta para mudar? Saber, todo mundo sabe. Projeto, pelo amor de Deus, chega. Porque a gente deveria ter hoje um projeto para fazer a revisão dos projetos existentes para saber o que deu certo e o que não deu. E tem muita coisa que dá certo. Agora, causa estranheza quando falam na prostituição no Amazonas. Eu atendo crianças no Serviço de Advocacia com oito, nove anos [e são] prostitutas que residem na praça da Sé. Eu atendo criança, fazemos enterro de criança, recém-nascida, de um ano de idade, de dois, que são estupradas, são mortas por vizinhos, por policiais, por companheiros da mãe. Nós temos crianças que estão tremendamente prejudicadas porque foram espancadas pela mãe. Agora, eu realmente não sei. Eu acho que nunca existiu no Brasil alguém que levasse a sério a situação da criança. Sempre se pensa no menor. O nosso discurso, até hoje, até agora, nesse momento, foi dele. Por que não se cria coragem e faz um programa decente, porque meus filhos tiveram escola decente. Acho que todos aqui, se estão sentados aqui, todos passaram por uma boa escola. Por que as crianças tem que ficar na rua? Criança tem que ter limite. Isso é muito bom para educador de rua. Para quem fica na rua. E a criança só sai da rua, se tiver uma coisa melhor para oferecer para ela, porque a rua é lúdica, é perigosa e emocionante. Tudo que ela vive ali é maravilhoso. Ela perde toda relação da família e passa a viver com a relação da rua, que é muito mais importante porque não tem um limite na família. Agora, o que é que falta? Dinheiro eu sei que não é. Quanto que o Unicef gastou este ano, eu nem pergunto do outro ano que teve o Estatuto, que eu sei que o Unicef, com o Estatuto, gastou demais. Agora, eu pergunto, este ano que passou, quanto foi que o Unicef gastou no Brasil e o que isso representou para cada criança que está na rua. As instituições estão aí, as Febens arrebentando, as crianças institucionalizadas custam muito caro, o Unicef ainda não viu isso, mas tudo bem, pelo menos as crianças de rua, quanto foi que o Unicef gastou, este ano que passou, voltado para as crianças, especificamente, e quanto gastou com projeto e com o pessoal do trabalho do projeto.

Jorge Escosteguy: Apenas complementando a pergunta da Lia sobre o quanto se gastou, o nosso convidado, José Manuel de Almeida, representante das Aldeias SOS, pergunta ao senhor sobre a campanha SOS  Criança, da Rede Globo 1992, quanto foi arrecadado, quanto o Unicef recebeu, como foi distribuído o resto e como o Unicef vai aplicar esse dinheiro?

Agop Kayayan: O orçamento total do Unicef, no Brasil, este ano, 1992, é ao redor de oito milhões de dólares. Isso pela taxa atual não sei quanto daria.

Jorge Escosteguy: Dá para comprar dois Raís [jogador de futebol que começou sua carreira no Botafogo de Ribeirão Preto, porém ficou conhecido no São Paulo. No começo de 1993, foi vendido ao Paris Saint-Germain, da França, por 4,6 milhões de dólares]...

Agop Kayayan: Muito pequeno se comparado ao tamanho do país, aos problemas do país. O que foi arrecadado pela campanha Criança Esperança [programa televisivo exibido, anualmente, desde 1986 pela Rede Globo em parceria com aoUnicef e que tem como objetivo arrecadar verbas para projetos sociais relacionados à infância carente] é ao redor de 12 bilhões de cruzeiros, que vai dar mais ou menos um milhão de dólares, ao redor de um milhão de dólares. A quantidade de recursos do Unicef, eu diria, não é importante. Isso eu diria também para responder a sua pergunta sobre programa de meninos em circunstância difícil, provavelmente nós devemos ter gastado entre um e meio, dois milhões de dólares. Então, a quantidade de recursos que o Unicef gasta não é importante. O que é muito  mais importante são os recursos que gastam o governo federal, os governos estaduais, municipais e a sociedade civil. Porque a sociedade civil gasta muito também com a criança. Com relação a...se são crianças deles, nossas, são nossas crianças. Inclusive as minhas crianças, eu tenho três filhos brasileiros já. E já não podemos mais falar - e isso é uma advertência que todo mundo deve tomar a sério, os mais pobres, a classe média e a classe rica - já não podemos falar dos problemas deles. É o problema de todos. Porque o filho do rico, apesar de estudar num colégio particular, caro, etc, vai ter que lidar com aquele menino que estudou ou que viu no quadro negro uma história sobre os egípcios antigos. Aquele vai ser o trabalhador na sua empresa e ele vai ter que explicar para aquele adulto porque - e aí, entre parênteses, naquela escola em Pernambuco tinha adultos na quarta série, tinha uma mulher de 24 anos - vai ter que explicar para ele como fazer funcionar a máquina na sua empresa.

Lia Junqueira: Aí que eu acho que está o grande erro, que é sempre deixar essas crianças num certo nível e até nos preocupamos com ela porque amanhã ela vai nos servir. Por que essa criança, amanhã, não pode virar um empresário? Elas não têm que ser preparadas para servir. Elas têm que ser preparadas para serem cidadãos. Elas têm que ser preparadas para agir, para mandar, ter o poder. Agora, essa idéia aí é o que eu ouço. Tem que preparar... A gente pega nas instituições: é assentar tijolo, é ser lapidador de cristal, é ser não sei o quê. Por quê? Ele não tem chance nem de ser artista. Se eles puderem, se tiverem o dom de pintar o quadro, jamais pintarão porque nunca chegou um pincel e uma tela na mão deles. Eles não podem desenvolver o dom musical porque, na nossa cabeça, eles têm que se preparar porque amanhã eles vão servir aos nossos filhos. Esses sim que possuem saber e que vão mandar. Eu quero ver aonde a gente vai chegar impedindo que essas crianças atinjam o saber sem o menor medo que amanhã eles mandem.  Eu digo isso com a alma muito limpa porque o que eu já vi de gente mandando, o que eu já vi de gente no poder, olha, qualquer um desses infratores que fugiram e tudo, talvez, eles se saissem melhor porque, talvez, fossem mais sutis, quer dizer, que não nos aborrecessem tanto. Agora, eu acho que deveria ter essa igualdade, sabe, saúde e educação, tem que ser para todos, não diferenciada, só porque o fulano é da rua. Quer dizer, tem um tipo de educação diferente só porque ele é da rua. Porque para o filho da gente, a gente vai escolher o melhor que tem; a gente vai escolher o que tem de mais moderno; a gente vai dar tudo o que tem para que eles estudem e tenham um bom atendimento de saúde. Agora, eu não concordo, eu continuo chamando essas crianças de menores. Até surgir o Estatuto, eu era a única pessoa no Brasil que os chamava de crianças, não é que eu queira ser do contra, eu quero um dia ter o prazer de chamá-los de criança porque eles estão muito longe de serem crianças. Falta muito. Não sei se nesse século vai dar uma luzinha, assim, para que eles saibam, pelo menos, o que vem a ser criança.

Jorge Escosteguy: Senhor Agop, se o senhor quiser complementar, depois o Gilberto tem uma pergunta para o senhor.

Gilberto Dimenstein: Só queria dar uma informação: há muitos projetos que são estimuladores de vida artística e com muito bons resultados. Tem uma moça aqui que ensina balé para as crianças carentes em favelas. Vai ser um projeto lançado pelo Canadá. Na Bahia, projetos maravilhosos. Recife, projetos maravilhosos de arte. Simplesmente, e eu acho que o Agop concorda, é complicado mesmo. Olha para o sujeito...

Lia Junqueira: Eu sei que é complicado, você conseguiu citar três projetos no Brasil todo.

Gilberto Dimenstein: Não, eu poderia falar de pelo menos uns cinqüenta. O problema que ela coloca até que é verdade, de certa forma, porque a questão do ensino básico que você também colocou, é o que vai garantir a ele ser um empresário e possa ser...

Lia Junqueira: Qualquer escola para criança rica possui balé, pintura, música, tudo o que você quiser. Agora, quanto você acha que... No o Brasil inteiro, só há três projetos, podem ser maravilhosos, mas são três projetos.

Jorge Escosteguy: Há mais projetos. Inclusive, os programas da Cultura são realizados [a partir de] experiências bem sucedidas em relação à criança. 

Agop Kayayan: Oded tem uma pergunta, por favor.

Oded Grajew: Antes disso, talvez uma sugestão. Da mesma forma que o Unicef fez a quantificação de 25 milhões de dólares para resolver todos os problemas, pelo menos os básicos das crianças no mundo, seria interessante que se fizesse a mesma quantificação para o Brasil e, inclusive, a qualificação, quanto e como fazer. Seria um  norte para a sociedade. Dentro disso, eu gostaria de me colocar no lugar do telespectador um pouco, do telespectador que está angustiado com tudo o que ele ouviu e, certamente, com o que ele vive no seu dia a dia. Então, de forma prática, se você pudesse dizer para o empresário, para a dona de casa, para o profissional liberal, para o trabalhador, para a criança rica, o que cada um, diante dessa angústia, desse dilema, o que cada um deles, em termos práticos, poderia fazer para colaborar? Eu sei que tem gente que se sensibiliza, se sente angustiado, tanto o rico quanto o pobre, empresário, o que cada um poderia fazer em relação ao problema da criança no Brasil?

Agop Kayayan: Bom, eu entendo muito bem essa angústia do cidadão que quer fazer alguma coisa. Nós nunca somos solitários. Pertencemos, de uma maneira ou outra, à organizações de algum tipo; pertencemos às igrejas; pertencemos às associações profissionais; pertencemos aos clubes. Somos eleitores, então, podemos, na nossa vida, colocar de uma maneira sistemática quais são as prioridade da criança-adolescente, então, podemos participar dessa solução. E nem todas são, necessariamente, contribuições financeiras. Talvez a contribuição financeira é a solução do problema, seja uma maneira prática de participar da solução, mas não é a mais importante. Perguntar ao representante do Congresso para quem votou: o que você está fazendo? Ou por que não esta promovendo tal  medida? Tentar influir de maneira democrática, levantar o assunto nas suas organizações, onde ele ou ela são membros, assuntos da criança. Igrejas podem fazer muito pela criança. As associações profissionais de advogados, de médicos, de enfermeiras, de trabalhadores, de sindicatos, qualquer tipo.

Oded Grajew: Você poderia aconselhar, por exemplo, quem possui boa vontade mesmo, as associações, que queiram fazer alguma coisa, mas não sabem como, para fazer algo de uma forma produtiva, por exemplo?

Agop Kayayan: Sim, mas não é, necessariamente, o Unicef que tem que fazer isso. Têm muitas outras organizações que podem fazer. Existem os conselhos municipais, estaduais, federal. E uma maneira seria participar desses conselhos, é uma maneira  concreta de fazer parte nas soluções do problema da infância.

Roldão Arruda: O senhor acha que o interesse da comunidade tem crescido em torno desse problema, ou o problema é tão escandaloso que ela se refugia, ela foge um pouco do problema?

Agop Kayayan: Eu acho que não. Eu acho que o interesse tem aumentado, a visibilidade do problema tem aumentado. Não podemos dizer que a pessoa média, digamos, o brasileiro médio, é insensível ao que vê: crianças desnutridas, crianças mortas, crianças assassinadas. Eu acho que ele tem a sensibilidade. O que tem, um pouco é o que o Régis estava dizendo, o que eu, João ou Maria, o que eu posso fazer para participar dessa solução? Existe a vergonha nacional sobre a situação também. Não é todo mundo, mas existe num nível relativamente alto, quando comparado com outras sociedades. Os meios de comunicação tiveram um papel muito importante na conscientização dessa problemática.

Roldão Arruda: O senhor acha que se essa consciência fosse maior, por exemplo, a impunidade que se vê em casos de menores assassinados, que estimulam novos assassinatos...?

Agop Kayayan: Existe a consciência também, eu acho, da impunidade. O que não existe, eu acho, é na mão do cidadão comum, uma maneira concreta de reduzir isso. Eu acho que o João e a Maria não querem ver no Brasil criança assassinada, ou está aumentando a proporção de gente que não quer mais ver isso. Eu assisti a uma cena muito interessante no Rio de Janeiro, onde um cinematógrafo estava filmando uma criança na rua e um casal que passava protestou: "como vocês podem estar filmando isso? Não é bem assim." A consciência está lá. Eu acho que está faltando como, concretamente, o cidadão brasileiro pode participar na solução. Eu acho que, participando de organismos, de Ongs, as organizações não governamentais, por exemplo, elas estão fazendo um bom trabalho. O seu vizinho, à sua esquerda, está fazendo um excelente trabalho. Elas precisam de voluntários, precisam de recursos, precisam de recursos humanos e os cidadãos podem fazer esse tipo de trabalho. Estão trabalhando por uma causa, não sei... se tem alguma situação tão dramática quanto a da criança aidética.

Maria Inês Bierrenbach: Deixa-me levantar um aspecto que, em geral, não aparece. Eu, de certa forma, até já me senti contemplada pelo que foi citado aqui, que é a questão do jovem infrator. Em geral, não se discute a questão do jovem infrator. Inclusive, nem sequer aparece na agenda oficial, ao menos que ocorra um problema tipo rebelião, como o que ocorreu recentemente na Febem [em outubro de 1992 houve uma grande rebelião na Unidade Febem de Tatuapé, causando a destruição de parte do complexo e a morte de quatro adolescentes ] e que tem ocorrido ao longo dos anos. Então, o jovem infrator chama atenção para a questão da criança. Eu diria que é mesma voz da criança excluída da sociedade. E esse problema é sério e envolve alguns atores aí principais no encaminhamento dessa questão, entre esses, a polícia que está estreitamente vinculada à questão, uma vez que é [ela] que vai às ruas e leva as crianças e os jovens para as entidades assistenciais, porque estão perambulando ou porque estão procurando sobreviver nas ruas ou porque são pretos ou porque estão mal vestidos, a polícia os encaminha para as entidades assistenciais. A Justiça também está estreitamente vinculada, co-participante, co-responsável por essa questão, mas em geral são as entidades de assistência, as Febens da vida, que aparecem como a grande responsável pela questão do jovem infrator. E eu acho que nós teríamos que apontar, conjuntamente, uma solução. Também, até me reportando às alternativas de atendimento que não são só internação de jovens, que é a medida adequada, nos casos dos infratores, é a medida mais aplicada, a medida mais facilmente aplicada. Mas, na realidade, existem outras alternativas, até mesmo previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, do qual o Júlio, como representante da Pastoral do Menor vem fazendo um trabalho muito significativo em relação a alguns projetos de liberdade assistida com resultados, assim, surpreendentes. Então, eu pergunto: em que medida o Unicef prioriza essa questão do jovem infrator, ou se não prioriza?. E, em que medida, a experiência em outros países, eventualmente bem sucedida, poderia servir como referencial para uma questão que nós ainda estamos engatinhando em termos de grandes metrópoles e de Brasil como um todo?

Agop Kayayan: Bom, talvez o menino infrator, a criança adolescente, é um pouco a dramatização, é o que aparece de uma maneira mais chocante, sobre a situação da infância e da adolescência. E, com relação a isso, um ponto que você mencionou sobre o Estatuto, eu queria esclarecer um aspecto, um mito que se está criando no Brasil, na população que não tem lido o Estatuto da Criança e do Adolescente. De que o Estatuto deixa esses meninos livres de qualquer coisa. Existem medidas muito adequadas para meninos infratores contempladas no Estatuto. O que falta é a sua aplicação correta.

Lia Junqueira: ...Mais cruéis do que para adulto.

Agop Kayayan: Pode ser, é uma escala. E o que eu disse no início é que, provavelmente, existem mais infrações contra crianças do que infrações cometidas por crianças contra adultos. São infrações também de diferentes níveis. Cometemos infrações contra nossos próprios filhos que parece que nem a gente se dá conta. Falamos com eles de 70 cm, um metro, a uma altura de um metro e setenta. Eles olham e vêem nossos joelhos, a nossa barriga. Nem abaixamos para falar com eles, para conversar com eles. Essa é uma pequena infração. Mas o assunto é importante porque é um fenômeno que dramatiza um pouco esse problema também da desigualdade social. E levanta muito as paixões, digamos, públicas. Em certos casos, de uma maneira prática, concreta, que temos que enfrentar. O que fazemos, se somos um pequeno comerciante numa rua e, de repente, aparece a notícia de que na rua tal tem meninos infratores, meninos que furtam e o negócio cai, de uma semana para outra. O que fazemos com aquele comerciante? Mandamos matar a criança que aparece naquela rua para que, no dia seguinte, apareça em igual quantidade?

Maria Inês Bierrenbach: E, em geral, as perspectivas para esse jovem, que é estigmatizado como infrator, realmente são muito pequenas. Uma delas é essa, morrer nas periferias das grandes cidades.

Agop Kayayan: Uma é morrer nas periferias. Mas existe, na própria experiência brasileira, eu não acho tão necessário buscar fora. Eu acho que há exemplos de tratamento, de trabalho de maneira preventiva e de tratamento muito bons no país. Podem ser mais de acordo com alguns grupos do que outros, podem estar mais de acordo com um método ou outro, não importa, mas existem exemplos de tratamento. Existe um trabalho com esses meninos, em entender porque esses meninos e meninas foram infratores, são infratores, e como resolver aquele problema. Se um menino ganhar dinheiro, precisa ganhar dinheiro. Porque aquele menino sabe melhor do que eu, você e os outros, que o seu irmão de dois anos que está em casa, chora à noite inteira porque está com fome. E ele tem que, de uma maneira ou outra, trazer comida para o irmão. Ou, ele sabe que ele está sendo explorado por adultos que dizem: “você vai se prostituir, você vai para cama com aqueles adultos e vai me trazer tanto dinheiro por dia, senão, apanha”. Eles são muito mais realistas.

José Raimundo Lippi: Atrás de uma criança tem sempre um adulto, não é verdade?

Agop Kayayan: Tem. Mas não necessariamente sempre de uma maneira negativa. Estou colocando os aspectos negativos, mas tem também os aspectos dos bons educadores. O Brasil tem heróis nessa área, gente trabalhando com meninos em situações muito difíceis. Meninos drogados, infratores. Há todo um trabalho preventivo. Têm adultos, não sei se a palavra correta seria “santos”, mas que realmente são extraordinários. Estão fazendo, não vou apontar as pessoas, mas existem alguns aqui.

José Raimundo Lippi: Uma pergunta, no sentido... Aqui tem o Estatuto que eu considero, realmente... As suas letras são brilhantes, mas são frias porque estão no papel, vai depender de nós. Aqui, na Declaração Universal dos Direitos da Criança, o princípio sexto diz: "direito ao amor e a compreensão por parte dos pais e da sociedade”. Eu, como psiquiatra e psicólogo, eu vejo que esse laço, esse afeto, esse apego que une as pessoas, a cidade grande vai tornando cada vez mais frágil. Eu denominei o fenômeno de "negação coletiva". Quando a gente vê uma criança com a mão estendida, uma com outra no colo na rua, você já não escuta, já não enxerga, já não vê mais, já não sente, até como uma defesa. Então,  “eu tenho que fechar os vidros do carro”. Sinto que se nós não partirmos da base para cima... Porque o problema não é de dinheiro, já está visto aqui. Tem uma própria informação do Unicef mostrando que a mortalidade infantil diminuiu em países com recursos econômicos muito pequenos. Seja, então, problema de vontade política, de aplicar melhor esse dinheiro. Mas, o que o Unicef tem feito para que os conselhos tutelares possam ser instalados? Eu lembro, com o Gilberto [Dimenstein], participei em Porto Alegre há uns dois anos e pouco e lá já estava se fazendo alguma coisa. O de Belo Horizonte, os cinco que nós temos que instalar, continuam emperrados por legislações, compreende? Enquanto a comunidade não assumir isso, nós cidadãos  não conseguirmos tomar em nossas mãos as decisões da vida da criança, porque tem que passar por ali. O menor infrator, ele irá para o juiz, ao passar por ali, e às vezes nem precisará ir, se tivermos condições. Foi falado aqui que o Unicef gastou muito com o Estatuto. E com os conselhos tutelares? Como que nós podemos fazer para despregá-los de uma vez e poder...

Agop Kayayan: Apoio aos diferentes lados. Não podemos ir de um lado só. Um apoio ao nível de opinião publica, esclarecendo o que são os conselhos, o que fazem, quem compõe o conselho, como são eleitos, qual o papel, alguém estava perguntando há pouco, como um cidadão comum pode participar? Esse é um. Esclarecendo os meios de comunicação, os jornalistas, aos comunicadores, o que são os conselhos, qual o papel do conselho? Trabalhando com os governantes e colocando que um conselho não é um bicho papão. Não é a sociedade civil que vai chegar e tomar o poder da mão deles, que é vantajoso para...

José Raimundo Lippi: São os representantes...

Agop Kayayan: Os representantes do setor governamental. Fazer, por exemplo, projetos, idéias, que emanem desses conselhos, que venham dos conselhos, se transformem em realidade. Dar treinamento aos membros do conselho. Estamos numa cidade, numa metrópole, e é fácil encontrar técnicos de bom nível. Mas pensemos naquele município que não tem tantos recursos nem uma variedade tão grande de recursos humanos e que precisam ser treinados. O Unicef tem gastado recursos relativamente altos  para o treinamento dos membros dos conselhos tutelares. Quer dizer, temos que fazer o máximo em todos os lados para que a lei seja aplicada. E a lei, de uma maneira igual, para todos os brasileiros, que seja pobre, classe média ou rica. Eu acho que aí podemos fortalecer o papel dos conselhos e parece um argumento para convencer mas, realmente, ser brasileiro e andar fora e dizer que realmente nós temos um Estatuto e o aplicamos, isso é ser do Primeiro Mundo.

Jorge Escosteguy: Padre Júlio Lancelotti, por favor.

Julio Lancelotti: Eu vou perguntar um assunto que você já falou e que é muito caro para nós por causa do trabalho que nós desenvolvemos. Na reunião de cúpula dos chefes de Estado há um ponto para as ações específicas para a sobrevivência e proteção do desenvolvimento das crianças e, na parte da saúde infantil, o número dez fala justamente da questão da aids. Acho que tanto para essa questão, quanto  para outras questões aqui apontadas, talvez a pergunta seja mais ou menos no mesmo sentido. A Organização Mundial de Saúde prevê que, no ano 2000, isso é pouquíssimo, nós vamos ter dez milhões de crianças infectadas no mundo. De  quarenta milhões de infectados no mundo, dez milhões serão crianças e estarão na América Latina, na Ásia e na África. Nesse ponto dez se fala também do empenho que o governo tem que fazer. Em várias questões que nós estamos colocando, você procura quase que voltar a bola aqui para nós dizendo: “vocês têm que se mobilizar, vocês têm que sensibilizar, vocês têm que gritar”. Você sabe também que nós gritamos muito, apanhamos bastante em muitos momentos, tivemos vitórias, e também muitas derrotas. Mas numa questão como essa, e em outras questões também, a ação do Unicef, muitas vezes, não tem uma limitação diplomática muito forte? Uma limitação da relação que tem que manter com o país onde está. Eu digo, nesse sentido, até que nível de pressão o Unicef pode chegar? Em alguns casos, nós temos resolvido problemas de violência com pressão externa, quando esse ano, a Polícia Militar desencadeou a operação meninos e meninas de rua, só da Itália chegaram  mais de dez mil cartões para o governador do estado. Ninguém publicou isso, mas nós temos, na Pastoral do Menor, mais de dez mil cartões cópias dos que foram para aí. Até que ponto a pressão do Unicef pode funcionar ou de que instrumento de pressão se vale em questões como essa da aids e outras questões?

Jorge Escosteguy: E até que ponto, eu diria, essa imposição diplomática pode cercear, por exemplo,  a sua entrevista hoje no Roda Viva.

Agop Kayayan: Bom, pode me acreditar que o pior que eu sou é diplomata. Eu não sou muito bom diplomata. Eu fui condecorado na Guatemala pelo trabalho que o Unicef fez lá. E, no discurso de agradecimento, eu tive que dizer ao ministro das Relações Exteriores, pedindo desculpas, que talvez o Unicef não era tão diplomático, mas que nosso assunto era um pouco superior às regras diplomáticas - 150 mil crianças menores de um ano que morrem estupidamente por ano não agüentam nenhuma regra diplomática. Nós temos a nossa maneira de trabalhar com governos, tem o aspecto público, o aspecto privado, e o que se diz em público não é o mesmo que se diz em privado. Usamos argumentos, dependendo da situação, desde ameaça velada, até o agredecimento, reconhecimento e estímulo, prêmios do Unicef para ações e, às vezes, nos colocam com problemas  com parte da sociedade civil, mas tem uma gama inteira, digamos, de ações em situações de infrações de direitos humanos. O Unicef é muito vocal e no Unicef existe uma regra, que se o representante é considerado persona non grata, a menos que seja por suas ações negativas no país, ele é condecorado, apesar de não existir condecorações no Unicef. Mas ele é reconhecido, seu trabalho  [é reconhecido],e muitos representantes do Unicef são premiados por terem sido declarados persona non grata no país.

Roldão Arruda: Você tem que ter uma paciência imensa porque, se no Brasil, por exemplo, há quase 250 mil crianças que morrem por ano, por uma situação que poderia ser evitada, e vocês fazem um relatório, a coisa médio prazo, longo prazo, mas, isso é jogado na nossa cara: 250 mil crianças morrem por ano, não é uma coisa que dá para se pensar amanhã. E vocês tem que negociar, aquela paciência, mostrar que existem caminhos. É preciso ser muito diplomata, não?

Agop Kayayan: Tem, tem que ser sim. Tem que ter muita paciência, tem que sempre estar buscando uma solução. Quer dizer, só ficar na denúncia... A denúncia é um trabalho importante. A denúncia séria, denúncia quantitativa, objetiva, bem comprovada, mas não é o suficiente. Dizer que aqui existe um problema, a pessoa pode dizer: “muito bem, mas sempre tivemos esse problema”. Agora, se eu puder chegar e dizer: “existe o problema, mas existem tais soluções e são factíveis, amanhã, dentro de um ano, você pode ter tal resultado". E, por isso, os informes do Unicef funcionam assim: denunciam e imediatamente dão os exemplos positivos. Temos que repetir Ceará, e mais se repetir Ceará, eu acho que estamos começando...

Jorge Escosteguy: Já que não é necessário ser assim tão diplomático, eu lhe perguntaria qual foi a maior decepção com o governo brasileiro, desde que chegou aqui.

Agop Kayayan: Bom. Não sei. Nunca tinha pensado nesse aspecto, mas eu diria, talvez, quando mudam de programas bem elaborados, de um administrador público para outro. Quer dizer, quando vem um ministro que não  aplica um trabalho preparado anteriormente que era positivo. Essa seria uma decepção. A outra, é um país tão rico ter uma situação tão ruim pelas crianças.

Oded Grajew: Sobre a Convenção dos Direitos da Criança que, no Brasil, assinaram o nosso presidente e o nosso Congresso. Aqui diz o seguinte: “os estados tomarão todas as medidas  legislativas, administrativas, educativas, apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental”. O Brasil está cumprindo a Convenção Sobre os Direitos da Criança?

Agop Kayayan: Não. Nesse sentido não é uma questão de sim e não, realmente é uma questão de escala. Para proteção da saúde, sim, protegeu a saúde das crianças com uma melhor imunização.

Jorge Escosteguy: Doutor Agop, desculpe interromper, eu continuo achando o senhor muito diplomático, o nosso tempo está se esgotando. Eu lhe farei uma última pergunta ou lhe colocaria uma última observação. Se falou aqui muito da necessidade de participação da sociedade, como que as pessoas podem trabalhar pela criança, não necessariamente com recursos, mas com recursos humanos, etc. Eu gostaria que o senhor deixasse, o mais breve possível, por favor, uma mensagem a essas pessoas. Não às pessoas que estão mais conscientizadas um pouco disso, mas, por exemplo, ao casal, como o senhor mencionou no Rio de Janeiro que, ao invés de se escandalizar com a criança dormindo na rua, se escandalizou com o cinegrafista que estava filmando. Eu ainda acho que esse casal é maioria no Brasil.

Agop Kayayan: Vou voltar para assunto de maior decepção, agora me lembrei. A minha maior decepção é que vinte anos atrás, quando eu era menos brasileiro, eu dizia aos meus amigos que o Brasil era o país do futuro. E que, dois anos atrás, eu tive que repetir a mesma coisa, os meus amigos disseram: “Agop já basta, vinte anos atrás você falava a mesma coisa”. Isso se aplica às crianças e vai ver é a minha decepção. Para o cidadão comum, que eu chamo o João e a Maria: emitir um julgamento sobre as crianças, entender melhor. Existem os dados, existe a informação. Segundo: pensar que o futuro do Brasil é dentro em pouco, pouco tempo e o que eles estão fazendo, agora, com as crianças, vão colher dentro de pouco tempo. E que cada um pode trabalhar, ao nível da sua pequena comunidade, ao nível do seu estado e ao nível federal, só que com ações. Não podem ficar nas declarações.

Jorge Escosteguy: Muito obrigado. Nós esperamos que a sua mensagem atinja o coração e a mente de muitos brasileiros  que ainda não se sensibilizaram com esse problema. Agradecemos a presença aqui, nesta noite no Roda Viva, do doutor Agop Kayayan, representante no Brasil do Fundo das Nações Unidas para a Criança, Unicef. Agradecemos aos nossos convidados e ao telespectador. O Roda Viva fica por aqui e volta na próxima segunda feira às nove horas da noite. Até lá e muito obrigado.

Sobre o projeto | Quem somos | Fale Conosco