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Memória Roda Viva

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Elie Wiesel

12/4/2001

Sobrevivente de um campo de extermínio nazista, o escritor judeu busca respostas sobre o porquê da indiferença de muitos frente aos massacres de inocentes e desastres humanitários que grassaram o século XX

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Paulo Markun: Boa noite. Ele cunhou uma expressão que rodou o mundo e que hoje é, de certo modo, contestada pelo próprio autor. A expressão é "Holocausto". Sobrevivente dos campos de concentração nazistas, onde perdeu os pais e uma irmã, tornou-se um aguerrido combatente na luta pelos direitos humanos. Desde então, em suas andanças pelo mundo, em seus livros e seus artigos, ele exorta todos a se manterem atentos contra o que chama de "o grande mal da humanidade". E nós colhemos uma frase, dita por ele, para dar a medida desta apreensão. A frase é a seguinte: "o contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença. O contrário da arte não é a feiúra, mas a indiferença. E o contrário da vida não é a morte, mas a indiferença". O Roda Viva esta noite entrevista o escritor judeu e prêmio Nobel da Paz de 1986, Elie Wiesel. Para entrevistar Elie Wiesel, nós convidamos: o sociólogo Tulio Kahn, coordenador de pesquisas do Ilanud, Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinqüente; convidamos também o jornalista Moisés Rabinovich, repórter especial do Jornal da Tarde e ex-correspondente em Israel e nos Estados Unidos; está conosco ainda Vicente Adorno, editor de internacional da TV Cultura de São Paulo; também participa do programa o jornalista Jaime Spitzcovsky, diretor do site Prima Página e autor de coberturas jornalísticas em mais de quarenta países, entre eles a Rússia e a China – o Jaime também esteve no Oriente Médio diversas vezes; a historiadora Arlene Clemesha, autora do livro Marxismo e judaísmo - a história de uma relação difícil, especialista da questão judaica no século XX; o rabino Henry Sobel, presidente do rabinato da Congregação Israelita Paulista; participa também do programa o jornalista Adhemar Altieri, diretor de jornalismo da Rádio Eldorado. O Roda Viva, você sabe, é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. E como este programa está sendo gravado, ele não permite a participação dos telespectadores. Boa noite, Elie. Nós estamos gravando este programa no dia seguinte à posse do novo primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon. Eu queria saber se o senhor considera e se esse novo governo tem condições de finalmente obter aquilo que já provocou a concessão de cinco prêmios Nobel da Paz, mas até hoje é apenas um projeto para o Oriente Médio.

Elie Wiesel: Bem, alguns mereceram mais que outros, mas isso ocorre com todas as áreas, todas as pessoas, todos os anos. Eu não sei se eu mereci. Mas, quando se trata do Oriente Médio, eu sempre oscilo entre a maior esperança e o mais profundo desespero. Quando tudo vai bem, estou nas nuvens. Quando não vai, pergunto-me se a humanidade tem algum futuro. Agora, com Sharon como primeiro-ministro, tendo um governo de unidade nacional, tendo ouvido o que ele disse de imediato em seu primeiro discurso ao Knesset [Parlamento israelense], eu sinto que tudo seguirá de uma forma mais positiva. Barak [Ehud Barak] falhou. Lamento dizer, mas ele falhou. Ele e sua filosofia, ele e sua ideologia, ele e sua coragem, em termos políticos, falharam. O outro lado recusou-se a receber o que ele ofereceu em Camp David. [Casa de campo oficial do presidente dos Estados Unidos, situada do estado de Maryland. Acordos e reuniões entre chefes de Estado costumam ocorrer nesta localidade. Esta reunião especificamente ficou conhecida como Camp David 2000]. Eu acho que Sharon deve tentar algo novo, e espero realmente que as coisas melhorem.

Paulo Markun: O que é que... Eu sei que essa pergunta é uma pergunta difícil de ser respondida mas, em todo caso, a minha tarefa aqui sou eu fazer as perguntas e não encontrar as respostas. O que falta para que haja paz no Oriente Médio? Qual é o ponto central?

Elie Wiesel: Como vamos passar uma hora e meia juntos, devo dizer-lhe: sou melhor com perguntas do que com respostas. Passei toda a minha vida adulta fazendo perguntas. Ensino aos meus alunos a arte de questionar. Adoro perguntas. Há uma missão nas perguntas. E acredito que estamos todos aqui numa missão em busca de um significado, de compaixão e de paz. O que falta? Não faço idéia, mesmo. Houve bons momentos. Quando Sadat foi a Jerusalém, eu [me] lembro de tê-lo visto pela TV, chegando a Jerusalém - e eu não costumo chorar, mas derramei lágrimas ao ver aquele homem chegando sozinho em seu isolamento, pois estava isolado em outro mundo, e ele foi a Jerusalém. E eu pensei: "O que um homem pode fazer?". Mas eu vi os que o receberam, havia centenas de pessoas, entre elas havia pais que tinham perdido os filhos na guerra de 1973 [a Guerra do Yom Kippur], iniciada por Sadat. Havia maridos que tinham perdido as esposas, esposas que tinham perdido os maridos, mas eles o receberam com tamanho fervor, com tamanho amor. Eu senti: "Olhe. É possível. É possível obtermos na história uma mudança de valores". E por que isso não ocorreu agora? Isso quase ocorreu. Eu estava em Washington em 13 de setembro de 1993, quando Rabin [Yitzhak Rabin] – que era meu amigo –, e Arafat [Yasser Arafat] apertaram as mãos. Eu não acreditava no que via. Algo acontecia, a história parecia avançar. Eu estava convencido de que estava vendo o capítulo seguinte, o segundo capítulo da história que Sadat havia começado. Mas as coisas deram errado. É o fanatismo? Isso é sempre ruim. O fanatismo é sempre destrutivo. Destrói a esperança que temos uns nos outros. É apenas a política? Eu não sei o que é, mas algo acontece com essa região do mundo. Jerusalém foi destruída 17 vezes em sua história. Não houve um império na antiguidade que não tenha tentado destruir Jerusalém e tenha conseguido. Babilônios, romanos, os cristãos quando tentaram retomar os lugares sagrados do Império Otomano... O que tem Jerusalém que atrai tanta guerra? E Jerusalém deveria ser a cidade da paz. O nome significa "Cidade da Paz". Receio não ter a resposta. Tudo que eu sei é que está lá.

Paulo Markun: O senhor acredita que talvez, apesar de tudo isso, deva haver a persistência e em uma determinada ocasião – sem que se explique exatamente porque, ou de que motivo – a paz finalmente vença na história? Não há um caminho lógico para isso?

Elie Wiesel: Não temos escolha. Deve haver paz naquela região. É muito perigoso. Existem muitas armas hoje e existirão amanhã. Algumas são perigosas. Saddam Hussein acha que há um arsenal lá. Algumas realmente existem. O Irã... As coisas são perigosas. Palestinos e israelenses devem perceber que não há saída para eles. Eles devem viver em paz. Como? Eles devem decidir. Mas eu sugeriria uma coisa: educação. Acredito em educação acima de tudo. Eu começaria com crianças no jardim de infância. Elas deveriam se encontrar pelo menos uma vez por mês. Ficarem o dia juntas. Crianças judias deveriam ir ao jardim de infância palestino. E, depois, para outras escolas. Depois, colégios, universidades. Professores, pintores, jornalistas, arquitetos deveriam se encontrar durante anos e construir pontes de entendimento. E sei que encontrarão meios de viverem juntos. É preciso.

Jaime Spitzcovsky: Eu queria mudar um pouco o foco do Oriente Médio – eu tenho certeza que nós vamos depois voltar a conversar sobre o tema – mas, em uma palestra recente, o senhor disse como os escritores e filósofos no final do século XIX estavam otimistas em relação ao novo século que se aproximava. No entanto, este século, que terminou há pouco, foi senão o pior, foi provavelmente um dos piores da história do ponto de vista da violência: Primeira Guerra Mundial, Segunda Guerra Mundial, Holocausto – do qual o senhor foi vítima –, genocídios na África, Camboja... O que deu errado no século XX? Porque que o século XX foi tão trágico?

Elie Wiesel: Provavelmente uma combinação de eventos. A República de Weimar não fez seu trabalho [(1919 – 1933) período republicano parlamentar alemão instaurado ao término da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1919)]. Acho que o Tratado de Versalhes foi um erro, porque ele foi feito para humilhar uma nação, e humilhar a nação alemã foi um erro. [o Tratado de Versalhes foi um tratado de paz que deu fim a Primeira Guerra Mundial, e que impôs severas restrições econômicas, militares e a perda de diversos territórios e colônias para outras nações] Hitler [ditador alemão (1933 – 1945) e responsável direto pela eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), bem como pelo massacre de milhões de pessoas de diferentes etnias, em especial judeus e ciganos, durante esse período de guerra] não chegaria ao poder se não fosse pela humilhação do povo alemão [e] a situação econômica da Alemanha. E [havia] a autoconfiança da França. Por exemplo, a França acreditava que ninguém a derrotaria. Tudo isso junto, e havia muitas pessoas insatisfeitas no mundo todo, descontentes com o que o mundo fizera com elas ou com outros. E sempre há algo irracional na guerra. A guerra nem sempre é um produto racional. Há algo irracional. Como foi possível um homem como Hitler, que não possuía talento algum além de demagogia, como ele conquistou a opinião pública, o público e os corações da Alemanha, as mulheres alemãs, as crianças? Vendo na TV filmes feitos na época, eles olham para Hitler... Meu Deus, o modo como olham para ele, é como se olhassem para um santo ou para Deus, se Deus pudesse ser visto! Isso é irracional. Mas uma coisa também é clara, acho que tem a ver com a idéia de que é possível reduzir uma pessoa a uma abstração. E isso ocorreu em dois movimentos, duas ideologias totalitárias: comunismo e nazismo. E eu não as comparo, nazismo foi pior. Mas reduzir uma pessoa a uma abstração, esse foi o primeiro pecado capital. Se a pessoa não passa de uma abstração, por que não fazer o que quisermos com ela? Ou com mil, ou um milhão delas? Foi uma combinação de idéias: idéias errôneas; muitos desejos: desejos perversos; muitas ideologias: ideologias desumanas. E houve o culto da morte, personificado pelos nazistas. Todas essas coisas juntas produziram o pior século da história.

Jaime Spitzcovsky: Essa combinação pode se repetir no século XXI?

Elie Wiesel: Eu pertenço a um pequeno grupo que acredita, talvez ingenuamente... Neste caso, é uma utopia, e o significado é o do século XVI, no qual a utopia é um lugar que não existe. Mas ainda acredito, ingenuamente, que o que chamo de Holocausto – já não gosto dessa palavra – foi um evento único, que não pode e não deve se repetir. Mas outras coisas ocorreram, você citou algumas. Os massacres na África, na [Guerra da Bósnia] Bósnia, as ondas de horror que varreram a civilização. E o verdadeiro problema também foi a indiferença. Houve indiferença ao nazismo no século XX, e há indiferença hoje [perante] as enormes tragédias que ocorrem no Terceiro Mundo. Poderíamos ter poupado muitas vidas na Bósnia. Com certeza poderíamos ter evitado o massacre de seiscentas a oitocentas mil pessoas em Ruanda. [Massacre de Ruanda] Por que não fizemos isso? Mas não fizemos.

Moisés Rabinovich: Amanhã, pelo calendário hebraico, 14 adar, é a festa de Purim, e para os telespectadores é difícil entender, então eu explico um pouquinho. [Adar é o 12° mês do calendário judaico, e corresponde aproximadamente aos meses de fevereiro e março] Purim é o carnaval judaico. O carnaval judaico comemora a salvação do povo judeu do extermínio na Pérsia [região histórica situada aproximadamente na localização do atual Irã]. Purim significa "lançar a sorte". Foi lançando a sorte que Hamã, o chefe do exército de Xerxes [c. 519 a.C. – c. 466 a.C., rei da Pérsia e também faraó egípcio, filho de Dario I], decidiu o dia e a hora que iria exterminar o povo judeu. Isso foi [há] cinco séculos antes de Cristo. No ano de 5761 [ocorre] o Purim do novo milênio, o primeiro Purim do novo milênio da era cristã. [No calendário hebreu, 5761 corresponde ao ano 2001 d.C.] Depois de ter passado a Segunda Guerra Mundial, o senhor acredita que o povo judeu esteja diante de uma nova ameaça? Existe essa nova ameaça pairando no ar, com grupos neonazistas surgindo aqui e ali. Existe, no conceito do senhor, uma ameaça de extermínio, como foi o Holocausto? Como foi na Pérsia?

Elie Wiesel: [suspira] Bem, lembre-se... Eu adoro o Purim. [sorri] É um feriado, principalmente para as crianças. Também porque é uma história para mulheres bonitas, e quando ouço sobre mulheres bonitas... Ester. E ela salvou seu povo. Qual é a história de Purim? Ao lermos o Livro de Ester, o primeiro capítulo não tem nada a ver com judeus. [O Livro de Ester é um dos livros que compõem a Torá, o livro sagrado dos judeus. A Torá também foi adotada pelos cristãos, sob o nome de Velho Testamento] É a história de um rei velho e idiota que pede à sua esposa que se dispa, que faça strip-tease para seus convidados, e ela se recusa. É uma história num quarto. E, de repente, surge Hamã. Não ouvimos falar dele, ele surge de repente. Sem motivo, ele odeia judeus, porque um judeu [Mordecai] recusou-se a reverenciá-lo. De onde veio isso? Mas uma coisa é clara. Não houve massacre. Os judeus foram salvos. [Hamã convence o rei persa Assuero – nome bíblico geralmente atribuído a Xerxes I – que extermine os judeus. Mordecai pede à rainha Ester que interceda junto a Assuero, denunciando Hamã. Hamã pede perdão à Ester caindo por sobre ela. Neste momento aparece Assuero, e manda enforcar Assuero por imaginar ter ocorrido um assédio]. Ainda assim, é uma história maravilhosa sobre Ele. O nome de Deus não aparece no Livro de Ester. Foi um milagre, nem um único judeu foi morto. E o nome de Deus não aparece. Talvez Deus não queira o crédito. Deus é muito humilde. Nós gostamos de assinar, Deus não precisa disso. [alguém ri contidamente] Mas o fato é que o nome de Deus não aparece. É possível pensar que haja uma nova tragédia? Mais uma vez sou ingênuo, mas espero ser lúcido. Sinto que, por muitos séculos, a história judia e a história correram paralelamente. E de tempos em tempos elas se chocaram. O único ponto de contato foi um choque. Com algumas exceções, [como durante] a Era Dourada na Espanha. [Durante o domínio árabe na Espanha (séculos X, XI e primeira metade do século XII), os judeus espanhóis alcançaram um período de riqueza cultural, impulsionados pela sofisticada cultura árabe que florescia na Espanha medieval] Agora acredito que seja a mesma história. O que acontece com um povo afeta todos. E o que acontecesse com o meu povo afetaria a humanidade. E eu diria que isso realmente ocorreu no século XX, mas as pessoas não perceberam. É impossível acreditar que seis milhões de homens, mulheres e crianças puderam morrer sem deixar uma cicatriz na memória de Deus e na alma da humanidade. Às vezes, é preciso mais do que uma geração para que o resultado apareça, para as conseqüências tornarem-se reais. Assim, eu acredito que essa é uma lição que deve ser lembrada. Nós não vivemos mais sozinhos, judeus ou não. O que aconteceu... Eu me envolvi em tantas dessas causas, em qualquer lugar do mundo, porque eu acredito que devemos aprender a ensinar aos nossos filhos, nossos alunos e leitores. Nunca abandone quem quer que seja, pois o que acontecer com ele ou com ela na verdade também acontece conosco.

Adhemar Altieri: O senhor esteve no Brasil na década de 1980 – nós até conversamos naquela época –, e o senhor demonstrava uma preocupação com o crescimento de movimentos que tem a ver com toda essa violência que o senhor está descrevendo do século todo; especificamente naquela época movimentos neonazistas. Isso [foi] no início da década de 1980, nem tínhamos internet, que hoje ajuda a propagar todo o tipo de ódio e visões, inclusive que negam o Holocausto e tudo mais. O senhor se preocupa com o mau uso dessa ferramenta, que tem tantos lados positivos, mas que hoje pode ajudar a propagar esse tipo de ponto de vista?

Elie Wiesel: [suspira] Claro que estou preocupado. Mas também preciso ser sincero. Sou de outra geração, não conheço bem a internet. Não sei usar um computador. Ainda escrevo meus livros à mão, com uma caneta. Meu filho, ele estudou, é formado em ciência da computação. Ele tenta me ensinar, mas sou um mau aluno, não entendo nada disso. [risos] Mas me mostraram o que há na internet. Meu Deus! Eu não conseguia acreditar! Houve uma conferência em Bolonha [cidade italiana], na universidade, há alguns meses, e sentei-me com Umberto Eco [filósofo e escritor], meu amigo – somos membros da mesma academia em Paris. E lhe fiz a seguinte pergunta, e a faço aqui: suponham que O Estado de S. Paulo publique um artigo escrito por um senhor Paulo, que mora na Rua Augusta, 16. E ele diz: "Meu vizinho, que mora ao lado, eu o conheço. Todos acham que ele é bom, mas não é. Ele é mentiroso e desonesto, sei que ele estuprou duas meninas". O que acontece se isso for publicado? O dono do jornal é preso, o editor é preso, e o jornalista é preso. Mas se for na internet, nada acontece. Qualquer um pode dizer qualquer coisa [enfático] na internet, veio para o mundo todo, e nada acontece. Há algo de errado aí. Meu filho uma vez me mostrou, ele me perguntou se eu sabia quantas "visitas", ou seja lá como se chame, havia sob meu nome. Milhares e milhares. E muitos deles vêm dos que negam o Holocausto. O que eles dizem sobre mim... Meu Deus! Não se pode fazer nada: liberdade de expressão. É o preço que pagamos. Ainda assim acredito que, de algum modo, algo deve ser feito no plano legal para impedir a propaganda do ódio. O que acontece agora, se sair na TV ou na internet, e um terceiro vizinho disser: “Ele é estuprador? Vamos pegá-lo na rua e espancá-lo”. Ele será preso, pois fez isso na rua. Então por que a pessoa responsável pelo ódio não é punida? Ou, ao menos, repreendida? Por isso, garanto, estou preocupado com isso.

Henry Sobel: Como o senhor explica ter emergido do Holocausto com fé em Deus, enquanto tantos outros perderam a fé?

Elie Wiesel: Se alguém se aproximar de mim e disser: "Eu era uma pessoa de fé, mas, depois do que vi em Auschwitz [campo de extermínio alemão], perdi minha fé", eu respeito totalmente essa pessoa. Se alguém disser: "Eu não tinha fé antes. Tinha fé na humanidade, não no criador da humanidade, mas agora que eu vi a queda da humanidade, eu acredito em Deus", também respeito essa pessoa. O que me incomoda é ver uma pessoa que não mudou, que diz: "Acreditava em Deus antes, acredito agora". Ou: "Eu não acreditava antes; continuo não acreditando". Então eu não sei o que dizer a essa pessoa, a não ser que isso significa que ela é insensível, até mesmo à dor de Deus. Meu destino... [suspira] Eu tenho uma formação muito religiosa. Quando jovem, na minha cidade natal, toda a minha vida lá, todos os meus anos, meus dias e minhas noites foram devotados a estudar apenas matérias religiosas: a Bíblia [refere-se neste caso tão somente ao "Velho testamento". Não há "Novo testamento" na Bíblia judaica], o Talmude [registro das discussões rabínicas sobre leis, ética, costumes e história judaica], os profetas, até mesmo o primeiro livro da Cabala [doutrina esotérica judaica] sobre misticismo. Era a minha paixão, era a minha existência. E eu não deixei de orar em Auschwitz. Meu pai estava comigo. E, de algum modo, um prisioneiro conseguiu comprar um par de filactérios pagando com algumas porções de pães a um prisioneiro polonês que os contrabandeara.  E nós acordávamos todas as manhãs, antes de todos, e vestíamos os filactérios. [São duas caixinhas de couro atadas a uma tira, nas quais está contido um pergaminho com os quatro trechos da Torá que regulamentam o uso dos filactérios] E as orações, quando penso nelas agora... [suspira] Como eu pude fazer aquelas orações ali? Uma delas dizia [inicia falando em hebraico, e depois passa a traduzir]: "Como estamos felizes... como é feliz o que nos cabe". Outra dizia [inicia novamente em hebraico, e depois traduz]: "Tu nos amaste com todo o amor do mundo". Meu Deus, dizer isso em Auschwitz? Mas eu disse.

Henry Sobel: Por quê?

Elie Wiesel: Por que eu disse ali? Provavelmente por causa do meu pai. E também porque era a única ligação que eu tinha com minha infância, com o mundo anterior. Depois veio a rebelião. Não de imediato. Quando cheguei à França, voltei a me tornar tão religioso quanto antes. A primeira coisa que fiz no lar para crianças para onde fui foi pedir que me dessem os tratados talmúdicos, que eu havia interrompido quando fui levado para Auschwitz. Eu queria retomar exatamente na mesma página na qual havia parado. E voltei a ser religioso. Somente mais tarde, quando comecei a estudar filosofia, que descobri as perguntas, e foi quando iniciei minha rebelião. E hoje, respondendo a ele, eu tenho fé, mas uma fé ferida, não é a mesma fé que eu tinha antes.

Moisés Rabinovich: Não é essa a mensagem do Purim, do carnaval judaico que começa amanhã: que não é a sorte lançada que decide, não é o destino, não é o acaso, mas é Deus?

Elie Wiesel: Sim, mas, no livro do Purim, Ester estava lá para intervir. Se não existisse Ester, talvez Hamã tivesse matado todos os judeus por causa de Mordecai, o [seu] tio – ou, de acordo com algumas fontes, seu marido. Para poder realizar aquilo, eles precisaram jejuar três dias e três noites. Por isso jejuamos hoje. Mas Deus é Deus. Mas isso não me libera de fazer o que devo fazer.

Paulo Markun: Elie Wiesel, nós vamos fazer um rápido intervalo, e o Roda Viva volta daqui a instantes. Até já.

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o escritor e prêmio Nobel da Paz de 1986, Elie Wiesel. Este programa está sendo gravado e, portanto, não permite a participação dos telespectadores. O senhor foi a pessoa que introduziu, ou que disseminou o termo Holocausto, para identificar o sofrimento do povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial. E, em diversas entrevistas, o senhor, mais recentemente, mencionou o desagrado em relação à banalização desse termo, e a utilização genérica dele. Eu sei que o senhor já explicou isso, mas, como é a primeira vez que o senhor está no Roda Viva, eu queria que o senhor explicasse aqui por que é que o senhor tem esse ponto de vista. O senhor acha que a palavra não funciona mais?

Elie Wiesel: Nunca funcionou. É muito simples, não acredito que haja palavras. Digo isso como escritor e como professor. Não há palavras. Dezenas de milhares de livros foram escritos. Talvez mais. Eu sinto que não disse o que eu realmente deveria ter dito. Tive um amigo em Paris, Piotr Rawicz. Ele veio da Ucrânia e escreveu um ótimo livro: Le sang du ciel, "O sangue do céu". Ele disse que, quando o terminou – é sobre a guerra – sentia o gosto de cinzas na boca. Eu tenho essa sensação sempre que escrevo sobre isso. E eu não tento... Eu escrevi quarenta livros. Poucos deles tratam dessa época. Eu comecei a usá-la porque eu trabalhava em um texto bíblico que tratava de Isaac. Que, claro, é muito especial, é o capítulo mais dramático da Bíblia. Kierkegaard [teólogo e filósofo dinamarquês, cuja obra é focada na temática existencialista sob o prisma religioso; entre seus temas estão a natureza da fé, a instituição da fé e a ética cristã] e tantos outros já escreveram sobre isso. O que Deus fez? Ele queria que Abraão oferecesse seu único filho [Isaac] – ele disse, e não era o único filho – em sacrifício. E a palavra usada é [korban = oferenda; ola = queimada] ola, que significa “oferenda queimada", e que em grego é holokaustos. Achei que era uma boa palavra para descrever o que passamos. Foi a destruição total. Nunca antes, na história da humanidade, havia acontecido algo assim, com a vítima desaparecendo totalmente. Eram queimadas, desapareciam totalmente. E isso pegou. E tudo virou holocausto. Vi num noticiário da TV, um comentarista esportivo comentava a derrota de determinado time: "Foi um holocausto". Houve um incêndio em algum lugar: "Foi um holocausto". Agora tudo é um holocausto. Eu parei de usar a palavra há muitos anos porque, em primeiro lugar, não gosto do desrespeito pela palavra. Eu respeito a linguagem, vivo com a linguagem. E também, uma vez iniciado o processo de banalização, ele pode ir longe. Por isso não estou satisfeito mas, na verdade, eu também não tenho outra palavra para aquilo. A única que poderia chegar perto, e porque tem uma certa ressonância, é em iídiche, ou hebraico: churban, que significa "a destruição".  Falamos da destruição [churban] do primeiro Templo [séc XI a.C – 586 a.C.], do segundo Templo [516 a.C – 70 d.C], mas mesmo essa palavra não é boa. Não há palavras. [Os primeiro e segundo Templo de Salomão foram os centros da atividade religiosa judaica, e estavam situados em Jerusalém. Destruídos respectivamente pelos babilônios e pelos romanos. Restou do segundo Templo apenas um muro que cercava o Templo, o qual é chamado de Muro das Lamentações]

Vicente Adorno: Eu queria voltar à questão da paz entre árabes e judeus. O senhor descreveu uma coisa que eu também vi e também me emocionou, que foi a chegada de Anwar Sadat a Jerusalém, e depois foi o encontro em Camp David de Yitzhak Rabin, Shimon Peres e Yasser Arafat. Curiosamente, Anwar Sadat foi assassinado, e depois Yitzhak Rabin também. O senhor acha que isso também justifica essa sua crença de que só educando as crianças será possível eliminar esse ódio? E, na geração presente, e talvez na próxima ainda, não será possível conviver com alguém, tanto do lado dos árabes, quanto do lado de Israel, que queira realmente a paz?

Elie Wiesel: Às vezes a história tem uma imaginação extraordinária. Certa vez, na Universidade de Boston [cidade estadunidense], eu dei um curso sobre o estudo comparativo da morte de grandes mestres. Comparei a morte de Moisés [maior profeta judeu] com a morte de Buda [líder espiritual e fundador do budismo], a de Jesus e a de Maomé [maior profeta islâmico e fundador do islamismo]. E gosto de lecionar com fervor. Para falar de mortes de cristãos, convidei um professor cristão. E a idéia era convidar alguém do islamismo. Mas o professor do islamismo não estava lá, então convidamos uma jovem que foi até lá, e ela era filha de Sadat. E ela tornou-se minha aluna. [entrevistado ri contidamente por um instante] A filha de Sadat passou a ser minha pupila, na minha classe. [suspira] Se Israel e Alemanha puderam fazer a paz, não acha que Israel pode fazer a paz – e fará a paz – com os palestinos? Afinal...

Vicente Adorno: É uma necessidade, né? Curiosamente, ano passado [2000], quando houve o centenário do nascimento de Kurt Lewin [(1900-1950), compositor alemão de ascendência judia naturalizado estadunidense. Refugiou-se do nazismo], eu estava lendo a biografia dele, e essa biografia dele mostra como os judeus viviam bem na Alemanha até a década de 1930, até a ascensão do nazismo. Quer dizer, já houve inclusive essa atmosfera de compreensão, de tolerância, de bem viver entre credos diferentes e entre raças diferentes – inclusive boa parte da produção intelectual da Alemanha foi feita por judeus. Um dos escritores alemães, que escreve em alemão – aliás, que eu mais gosto –, é Franz Kafka, que eu estudei na universidade. O senhor também é um escritor judeu, mas que escreve em outra língua. Então será que essa convivência tem que se transmitir através de outras línguas, que não o árabe e o hebraico, por exemplo? O senhor escreve em francês e inglês, o Kafka escrevia em alemão; Saul Bellow [escritor judeu canadense] escreve em inglês. Entre judeus e árabes não haverá um dia alguém que possa falar diretamente de língua para língua também?

Elie Wiesel: Aceito o questionamento. O fundamento de que o ceticismo é muito profundo, triste. É possível haver essa simbiose sem precedentes, a não ser na era dourada entre judeus e alemães. As ligações eram tão fortes... Ou Viena. Os escritores eram judeus, Franz Werfel [poeta e dramaturgo austríaco], Stephan Zweig [escritor austríaco]... Houve grandes...

Vicente Adorno: Sigmund Freud...

Elie Wiesel: Sigmund Freud, exatamente. Toda essa grandeza da qual não se pode dissociar a contribuição judaica da cultura alemã ou austríaca. Ainda assim, como no Purim, de repente, aconteceu. Mas hoje não gostaria de fazer analogias, pois é muito perigoso. Assim como não podemos comparar seres humanos; cada ser humano é singular, único. Nunca houve um "você" antes [aponta para Vicente Adorno], e nunca mais haverá. Nunca. Por isso não gosto de comparar, e também não gosto de comparar pessoas por essa razão. Mas, ao mesmo tempo... Você deve saber que, em Israel, o "Campo da Paz" [conjunto dos israelenses que defendem soluções pacíficas para o conflito entre israelenses e palestinos] é liderado por intelectuais, por romancistas. A.B. Yehoshua [novelista, ensaísta e dramaturgo], David Grossman [escritor], Amos Oz [escritor]... E eles lutaram, lutaram muito, antes de 1993, pela paz. E eles tiveram todo o tempo para dialogar com os palestinos. E, ano passado, isso parou. Barak não perdeu por causa de Sharon. Perdeu porque o Campo da Paz foi destruído. Eu falei com eles. Falei diariamente com muitos esquerdistas, defensores da paz, eles não acreditaram. Eu disse: "Vocês não sabiam?" – "Porque, o quê aconteceu?". Na TV, víamos os rostos de jovens jogando coquetéis molotov [arma caseira incendiária], e eu li livros didáticos para crianças palestinas, publicados pela Autoridade Palestina em 2000, repletos de ódio contra Israel e contra os judeus. Eu disse: "Vocês não sabiam?". E eles não sabiam. E eles ficaram arrasados. Foi o Campo da Paz que abandonou Barak. E, no entanto, se conhece meu trabalho, minha expressão favorita é "mesmo assim". [risos] Sei que não tenho motivos para ser esperançoso, mesmo assim devo ser esperançoso.

Tulio Kahn: A minha primeira alegação tem a ver com a forma como o Holocausto tem sido ensinado para as novas gerações. Eu estive nos Estados Unidos pesquisando há alguns anos atrás, e encontrei pesquisas feitas pelo Instituto Gallup de opinião pública sobre o tema do Holocausto nos Estados Unidos e em vários outros países. E essas pesquisas trazem alguns dados muito preocupantes. Por exemplo: 28% dos americanos não sabiam o que significava o termo Holocausto; 22% dos entrevistados achava possível que o Holocausto nunca houvesse existido, e fosse uma mentira inventada pelos judeus; 38% dos entrevistados não sabiam o que eram Auschwitz, Bashal ou Treblinka [campos de extermínio]; finalmente – a lista poderia se estender –; 29% dos entrevistados diziam que o símbolo que os judeus usavam nos campos de concentração, ao invés de dizer a estrela de Davi, diziam que era a própria suástica, a cruz roxa. Enfim, [há] um nível de desconhecimento muito grande. E, mesmo nos Estados Unidos, onde a população é razoavelmente escolarizada, existe uma grande comunidade judaica, onde já se produziu muito na literatura, no cinema, sobre Segunda Guerra Mundial e sobre o Holocausto. Eu imagino quais seriam os resultados de uma pesquisa como essa, por exemplo, aqui no Brasil. Então alguma coisa, na forma como o Holocausto está sendo passado às novas gerações, não está sendo feita. Eu não sei também qual seria a forma melhor. Alguns de seus livros são mais biográficos, mais históricos, vamos dizer assim. Outros de seus livros são mais ficcionais. Há quem critique, inclusive, o meio ficcional como uma forma de comunicar o Holocausto, porque pode dar margem ao revisionismo histórico. [Há] até filmes recentes que tratam de uma forma humorística o Holocausto, e eu já vi sobreviventes que acham [isso] um sacrilégio; outros sobreviventes acham: "Bom, pelo menos é uma forma de difundir esse tipo de conhecimento" – eu estou falando do Trem da vida [França, 1998; direção de Radu Mihaileanu], da A vida é bela [Itália, 1997; direção de Roberto Benigni], até da A fuga das galinhas [Inglaterra, 2000; animação dirigida por Nick Park e Peter Lord], enfim. Qual é a forma, ou a melhor forma de se comunicar às futuras gerações sobre o Holocausto?

Elie Wiesel: Estou ciente da carência de educação, só não sabia que os números eram tão monstruosos. No início, quando comecei, eu publiquei meu livro, A noite. Ele foi publicado em iídiche, eu o escrevi em iídiche. Era um tributo sentimental ao idioma que foi o idioma dos judeus na Europa central, Polônia e Hungria. Depois, em francês, não conseguíamos encontrar uma editora. François Mauriac [romancista, dramaturgo e ensaísta francês] escreveu o prefácio. Ele escreveu pessoalmente aos editores, os maiores o rejeitaram. Diziam que o livro era triste demais, [enfático na frase] ninguém queria saber a respeito! Finalmente, foi publicado em 1958. Teve boas críticas, mas não vendeu. Depois não conseguíamos achar uma editora nos Estados Unidos. Todas as grandes editoras o rejeitaram. Uma pequena editora o publicou. Eles nos pagaram US$ 100 pelo livro. Em cinco anos, não vendeu a primeira edição, trinta mil cópias. As pessoas não queriam saber. Quando comecei a lecionar, não queria ensinar sobre o Holocausto. É muito pessoal, eu não sei como fazer, e prefiro ensinar filosofia – que é minha área, literatura, ciências humanas. Levaram dois anos para me convencer. Na época não havia, em nenhum lugar, cursos sobre o Holocausto. E eu lecionei na City College, em Nova Iorque [cidade estadunidense], na época uma faculdade de prestígio. E foi muito difícil. Tanto para os alunos quanto para mim. Como dar uma nota? Se a pessoa sabe onde fica Treblinka, ele ou ela tira um "A". É uma questão de fatos. E quanto à verdade? Depois de dois dias, o curso prosseguiu e, hoje, quase não há uma universidade ou faculdade que não ensine o Holocausto. Atualmente meu livro é lido em todos os colégios nos Estados Unidos. As pessoas deveriam saber, mas isso não basta. Como ensinar atualmente? Eu digo o que eu faria se ainda lecionasse. Eu levaria testemunhas para as salas de aula. Livros não bastam. Filmes... Eu pertenço a uma minoria. Não acho que ficção e não-ficção devem se misturar. Gosto de documentários. Documentários, sim. A ficção, de algum modo... Como alguém pode imaginar aquela realidade, se eu, que estive lá, não posso? Eu levaria sobreviventes. Ainda há alguns no Brasil. Ainda há. Deixem que falem às crianças, que digam: "Eu estive lá". Façam-se perguntas". É mais eficaz. E também é a última chance. Daqui a vinte anos, não sei se restará algum.

Arlene Clemesha: Tendo terminado a Segunda Guerra Mundial como sobrevivente do maior massacre da humanidade – para não usar o termo Shoah, ou Holocausto – vivido na França durante bastante tempo, depois escolhida a nacionalidade norte-americana e não ter imigrado para Israel, isso significa que o senhor acredita na possibilidade de integração social dos judeus hoje no mundo? Não seria também uma visão um pouco perigosa, logo antes da Segunda Guerra Mundial... ou logo antes, para ser mais precisa, da ascensão do nazismo? Os judeus também não estavam muito otimistas da sua integração social, e [então] vem o Holocausto? Como que se pode lidar com esse fator de dúvida entre a assimilação, integração social, luta pelos seus direitos lado a lado com todos os outros povos, ou a decisão de [dizer] “não”, de se separar e imigrar para Israel?

Elie Wiesel: [suspira] Você tem toda a razão. Antes daquele evento, éramos ingênuos. Acreditávamos que certas coisas não podiam ser feitas por pessoas civilizadas. E o inimigo usou essa ingenuidade. É a verdade. Se soubéssemos, na minha cidadezinha, o que acontecia, não teríamos ido para aquele lugar. Mas não sabíamos. Aqueles que sabiam não acreditavam. "Como assim?", diziam. "Alemanha? Com suas grandes universidades? Com sua grande cultura? Tornaram-se assassinos? Como é possível?". Até hoje eu não entendo. Eu, como professor, não entendo como alguém que faz doutorado em Heidelberg [cidade alemã] pôde se tornar líder de um comando da SS [abreviação de Schutzstaffel, organização paramilitar ligada ao partido nazista alemão], que massacrava crianças às centenas? Juro, não entendo. Mas aconteceu. Descobri, após a guerra, muitos anos após a guerra, que muitos dos líderes da SS tinham curso superior, freqüentemente universidades, tinham doutorados. Foi um dia triste para mim. Mas não acreditávamos, antes. Em 1945, quando Buchenwald foi liberado [o campo de concentração onde estava aprisionado o entrevistado], eu queria ir para a Palestina. Era o único lugar que eu conhecia, eu sabia o nome. Eu procurei... Eu conhecia meu pai, ao meu lado, eu verifiquei as listas de sobreviventes, não descobri ninguém, só mais tarde. "Para onde querem ir?". "Palestina". Mas os britânicos não nos queriam. Éramos quatrocentas crianças, adolescentes. O mais novo tinha seis anos. É o atual rabino-chefe de Israel, Lau. Queríamos ir para a Palestina, não pudemos. Fomos para a França. "Para onde querem ir?". "Qualquer lugar". Fomos para a França. Continuei sem uma pátria. Mais tarde eu poderia ter ido mas, na época, comecei a estudar e decidi que realmente pertencia, ainda, pelo menos, ao mundo da Diáspora, não a Israel. Fui a Israel como jornalista, em 1949. Fiquei algumas semanas, voltei, estudei... O que isso diz? Pode haver integração total? Queremos que haja integração total? Houve ocasiões em que lutamos pelo direito de ser iguais. Agora lutamos pelo direito de ser diferentes. Mas há um direito, voltando à sua abertura [refere-se a Markun], que eu nunca aceitarei: o direito de ser indiferente. Acredito que devemos permanecer do jeito que somos, trabalhar pela humanidade, a partir do nosso judaísmo, mas isso também vale para quem não é judeu. Um católico ou protestante deve dizer o mesmo. Ou budista ou [enfático] ateu, dou a eles o mesmo direito que dou a mim. É a partir do meu judaísmo que eu tento ajudar os outros, aqueles que não são judeus. O melhor que posso, como judeu.

Jaime Spitzcovsky: Mister Wiesel, nos últimos anos do século XX a humanidade testemunhou uma série de crises humanitárias como Haiti, Somália, Ruanda e, mais recentemente, dos Bálcãs [região situada no sudoeste da Europa, e que inclui em sua área os países que foram parte da extinta Iugoslávia, cuja dissolução fora acompanhada por inúmeros conflitos étnicos]. Esse período coincidiu com duas administrações norte-americanas, George Bush pai [presidente dos Estados Unidos (1989 – 1993)], e Bill Clinton [presidente dos Estados Unidos (1993 – 2001)], e o senhor foi particularmente próximo, ou é particularmente próximo ao Bill Clinton. Por exemplo, foi o enviado especial da Casa Branca [sede do poder executivo estadunidense] a Kosovo e aos Bálcãs. No entanto, eu queria ouvir do senhor uma crítica aos Estados Unidos. O que Washington deixou de fazer no sentido de evitar que essas crises e esses genocídios tivessem ocorrido?

Elie Wiesel: Também fui próximo do antecessor dele, George Bush, o pai. [suspira] Fui à Bósnia logo que as hostilidades começaram. Porque acredito, como testemunha... Vejo meu papel não como juiz, mas como testemunha. Eu fui à Bósnia, voltei, encontrei o presidente [George Bush, o pai] e disse: "Devemos intervir". Dizer para intervir é difícil para mim. Porque não sou inspirado por tanques, mas por crianças. Depois do que vi lá disse para intervirmos. Não fizemos isso. Ele disse que era um problema militar. Procurei o general Powell [Colin Powell, chefe das Forças Armadas (1990 – 1993), e posteriormente secretário de Estado estadunidense (2001 – 2005)]. Procurei todo mundo, [inclusive] Boutros-Ghali [Boutros Boutros-Ghali, egípcio, secretário-geral da ONU (1992 – 1996)]. Tentei de tudo, não consegui. Os americanos diziam: "É um problema europeu, por que os europeus não resolvem?". E os europeus: "Como resolver sem os Estados Unidos?". Enquanto isso, as pessoas eram mortas, ou iam para campos de concentração. Então Clinton tornou-se presidente. Eu não o conhecia. Na época, inauguramos um museu. E um museu sobre o Holocausto em Washington. Eu fui o responsável por ele, pois fui indicado por Carter [Jimmy Carter, presidente estadunidense (1977 – 1981)] – eu vi cinco presidentes [estadunidenses]. Falamos. Ele falou e eu falei, foi um dia muito especial. Transmissão ao vivo pela TV... No meio do meu discurso houve algo traumatizante, pois estava chovendo no dia, chovia muito. Eu havia trabalhado no meu discurso, pois sabia que seria para milhões de pessoas. Quando fui lê-lo, abri minha pasta, estava ensopada [risos]. Não consegui ler uma linha. Se já cheguei perto de ter um enfarto, foi naquele dia [mais risos]. Mas era o lugar errado para ter um infarto. Eu tinha duas opções: tentar lembrar o que escrevera ou esquecer tudo. Foi o que eu fiz, criei um novo discurso. No meio do discurso, eu me virei e disse: “Senhor presidente, estive em Sarajevo [capital da Bósnia-Herzegovina] há algumas semanas, e o que eu vi me tira o sono. Devemos fazer algo para acabar com a matança”. [suspira] Imediatamente depois, ele quis me ver a sós. “O que devemos fazer?". Eu disse: “Devemos intervir. Somos a nação mais poderosa do mundo, a única superpotência. Use isso!”. Ele se comprometeu. Disse que deveríamos esperar as eleições na Rússia, e finalmente ele interveio. Tarde. Acredito muito que somos responsáveis uns pelos outros.

Jaime Spitzcovsky: Você vê algum papel para a Organização das Nações Unidas [ONU], no sentido de prevenir crises humanitárias, como as que a gente testemunhou recentemente?

Elie Wiesel: Sim, especialmente hoje. O secretário-geral Kofi Annan [ganense, secretário-geral da ONU (1997 – 2007)], que eu conheço bem, é um homem muito bom. É um dos melhores secretários-gerais que a ONU já teve. E ele realmente se envolve, é comprometido, é um humanista. Mas a ONU só é forte se seus membros lhe derem força. Sem as grandes potências, o que a ONU pode fazer? Assim, devemos trabalhar em Washington, devemos trabalhar aqui em Brasília, devemos trabalhar nos nossos governos. Mas devemos... Vejam Ruanda. Ruanda pesa em mim. Porque poderíamos ter impedido a matança de seiscentas a oitocentas mil pessoas! Vou contar outro fato. O presidente [Bill Clinton] me convidou, em 1999, para ir à Casa Branca dar uma "Palestra do Milênio". Eu decidi falar sobre a indiferença. Havia transmissão ao vivo, convidados... O presidente estava lá, [além de] Hillary [Hillary Clinton, primeira-dama] [e] membros do gabinete. Quando eu terminei, a platéia pôde fazer perguntas. Uma mulher levantou-se e disse: "Sou de Ruanda. Professor Wiesel, o que me pode dizer sobre Ruanda?". Eu me voltei para o presidente e disse: "O senhor deve responder essa pergunta, não eu". Ele enrubesceu. Mas ele foi sincero. Ele disse: "Tem razão. Poderíamos ter evitado o massacre. Não evitamos. Eu fui a Ruanda para me desculpar, em meu nome e em nome dos Estados Unidos, mas eu prometo, publicamente, que não acontecerá de novo". Aconteceu. Sabia que no Sudão, nos últimos dez anos, mais de dois milhões de pessoas foram massacradas? Mais de dois milhões. E o que fazemos? Deixamos que o massacre continue. Quando penso no que podemos fazer e não fazemos, fico muito triste.

Jaime Spitzcovsky: Por que essa indiferença em relação ao Sudão? Por que é o Sudão?

Elie Wiesel: Porque eu não sei. Dizem que é uma guerra civil. Guerra civil! O mesmo pode ser dito de qualquer guerra. Quando lutamos pelos dissidentes e pelos direitos humanos na Rússia, diziam para nós: "Por que faz isso? Não pode interferir, é problema doméstico". É verdade. É um princípio básico para todo país eles quererem manter seus direitos às questões domésticas. Mas chega um momento em que não há questão doméstica. Foi isso que Bernard Kouchner, da França, [médico, político e ativista dos direitos humanos] introduziu no direito das nações: Le droit d'ingerence – o direito de interferir. Quando são cometidas grandes violações dos direitos humanos, [enfático] temos o direito, e eu digo, o dever de interferir. E não interferimos. Mas não estou na política.

Paulo Markun: Senhor Wiesel, nós vamos fazer mais um rápido intervalo, e voltamos em instantes. Até já.

Paulo Markun: Bem, nós estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o escritor e prêmio Nobel da Paz Elie Wiesel – prêmio Nobel de 1986. O programa está sendo gravado e, portanto, não permite a participação dos telespectadores. Senhor Wiesel, eu sou um descendente de árabes, mas como muitos brasileiros sequer sei de que região exatamente vieram os meus ancestrais. Essa é uma característica de boa parte dos imigrantes que vieram para o Brasil: eles acabaram perdendo os laços com o passado. Não é o caso da comunidade judaica, evidentemente, que mantém isso muito fortemente. O senhor acredita que esse passado das várias comunidades étnicas é algo que deva ser preservado, ou a gente vive em um mundo hoje globalizado e realmente essas raízes não têm muito sentido? Em outras palavras, o senhor acredita que essa força das etnias e essas diferenças entre os vários povos são fator de progresso para a humanidade, ou é algo que a gente deveria deixar de lado em função de uma idéia maior – de que todos somos exatamente iguais? O senhor até falou a questão dos iguais e dos diferentes.

Elie Wiesel: Claro que sou a favor de se manter um elo vivo com o passado. O que seria a cultura sem o passado? O que seria a civilização sem o passado? O que seria da história sem o passado? Se eu não me lembrasse de Platão [filósofo grego], Moisés ou Jeremias [dois dos livros da Torá tem autoria atribuída a este profeta, o Livro de Jeremias e as Lamentações], o que eu seria? O que faria aqui? Você não me convidaria. Mas acho que é muito importante, instrutivo e recompensador ter um elo com o passado. Só de imaginar que sou descendente de pessoas que há quatro mil anos participaram do primeiro movimento de libertação nacional, para libertar-se da escravidão... Isso me dá um sentido de pertinência, e isso ocorre com qualquer comunidade. Se eu fosse brasileiro, o que eu faria é usar grande parte do orçamento federal para ajudar essas pequenas comunidades a redescobrirem seu passado. Porque é a particularidade da comunidade que torna possível sua universalidade. Essa é a beleza. Quanto mais judeu eu sou, mais universal eu sou. Quanto mais alemão Goethe [(1749-1832), escritor, autor da mais notória versão de Fausto] era, mais universal era. Falou em Bellow, ele também é judeu. Também ganhou o Nobel e é meu colega, lecionamos na mesma universidade. Ele escreve sempre sobre temas judaicos, mas a universalidade dele transparece. O que eu diria sobre o Brasil é que o que eu sei sobre o país é algo que me agrada. Não há racismo aqui, há uma grande mistura de raças e origens étnicas que é ótima. Ninguém diz que é superior ou inferior. Não se deve ser inferior a qualquer um. Eu buscaria o passado. Iria atrás. Mas o passado não deve ser uma parede, deve ser uma janela, uma porta aberta; não deve ser um punho, mas uma mão [faz os gestos de punho e mão estendida, respectivamente]. Quando o regente conduz [faz o gesto concomitantemente], ele oferece a música ao violinista ou ao violoncelista. O escritor oferece suas palavras ao leitor. E eu ofereceria meu passado àqueles que têm seu próprio passado. E, juntos, temos o efeito globalizador da moralidade.

Moisés Rabinovich: Um de seus últimos livros – ou talvez o último, eu não tenho certeza – tem um título inspirado por uma frase do rei Salomão [rei de Israel (1009 – 922 a.C.) e personagem bíblico]: "Todos os rios correm para o mar, e o mar nunca está cheio". O senhor cortou essa frase ao meio, o título ficou sendo: E o mar nunca está cheio. O que o senhor quis dizer com isso? O mar algum dia deve encher com todos os rios sendo despejados nele, ou é só a beleza da frase do rei Salomão?

Elie Wiesel: São memórias. Eu escrevo muito pouco sobre mim mesmo. Eu escrevi A noite e alguns ensaios, mas não sobre mim. Então, em determinado momento – estou ficando velho – decidi que deveria fazer uma avaliação. Em hebraico dizemos [fala em hebraico], que significa "examinar minha alma". O que fiz da minha vida? E adoro o rei Salomão. Adoro o Eclesiastes [um dos livros da Torá, e cuja autoria é atribuída ao rei Salomão]. Dividi minhas memórias em duas partes. O primeiro livro chama-se All rivers run to the sea [Todos os rios correm para o mar], e o segundo chama-se And the sea is never full [E o mar nunca está cheio]. O mar de lembranças, de experiências, o mar de engajamentos nunca está cheio. Não podemos dizer a última palavra até que seja a última palavra. Assim eu disse: "Mais. Mais ondas. Mais água" [gesticula com a mão fazendo gestos lentos simulando o movimento de batida de uma onda].

Moisés Rabinovich: Memórias.

Elie Wiesel: Sim. Exatamente.

Henry Sobel: Professor Wiesel, eu gostaria de voltar à religião. O senhor falou há pouco sobre uma fé ferida depois de Auschwitz. Como se manifesta uma fé ferida hoje?

Elie Wiesel: Eu usei essa expressão... Sempre dou um crédito, é uma paráfrase do rabino de Kotsk [Menahem Mendel (1787-1859), rabino da cidade de Kotsk, Polônia]. Era um grande mestre hassídico [estudioso da Cabala], o rabi de Kotsk. Abraham Joshua Heschel [rabino estadunidense (1907 – 1972)] fez teologia e o chamou de “o Kierkegaard do hassidismo”. Ele disse: "Nenhum coração é tão cheio quanto um coração partido". E foi isso que eu disse sobre a fé: nenhuma fé é tão completa quanto uma fé partida, uma fé ferida. Acho que uma fé ferida está sempre exigindo, sempre questionando, sempre pedindo mais. Saber mais, entender mais, mais compaixão, mais respostas de Deus, e mais orações para Deus. Sempre mais. Se alguém estiver sempre em um estado de fé total, essa pessoa não quer mais nada...

Vicente Adorno: Isso aí inclui o direito de protestar contra Deus, que o senhor também falou que deveria existir?

Elie Wiesel: Sempre faço isso [risos]. Posso não ser mais convidado, mas Ele pensa o mesmo de mim.

Henry Sobel: Lembro-me de uma frase do professor Wiesel que se tornou conhecida no mundo inteiro: "Um judeu pode estar com Deus ou contra Deus, mais jamais sem Deus".

Elie Wiesel: Eu sempre faço isso. Até escrevi uma peça chamada O julgamento de Deus, na qual Deus é julgado. Mas eu me encaixo em uma tradição: a tradição judaica permite que eu fique contra Deus. Abraão ficou, Moisés, Jeremias, o movimento hassídico está, os mestres talmúdicos... Está repleto de protestos contra Deus.

Vicente Adorno: Até mesmo Jesus na cruz disse: "Eloi, Eloi, lamá sabactâni?" – por que me abandonaste?

Elie Wiesel: São palavras proféticas dos Salmos, não só dele. Mas para ele acho que não é um protesto. É uma espécie de lamentação: "Por que me abandonaste?". Mas nós protestamos. Os cristãos não entendem. "Como? Ficar contra Deus? Quem é você?". Tem razão, quem sou eu? Mas podemos dizer a Deus: "O que está fazendo?" – desde que seja em nome de outro, não em meu nome. Abraão foi Abraão porque protestou em nome de Sodoma. [Sodoma, segundo o relato bíblico, foi uma cidade destruída por Deus, juntamente com Gomorra, devido à imoralidade imperante. Abraão, que sabia da destruição iminente, protesta em favor dos justos que ali viviam] Jó não era judeu porque protestava em causa própria. [Jó é despojado de seus bens e saúde, e passa a questionar os atos de Deus] Se eu disser a Deus: "Por que faz isso comigo?", estou errado. Mas se eu disser: "Por que faz isso com aquelas crianças?", acho que estou certo.

Moisés Rabinovich: Só uma coisinha. Dizem que em Jerusalém a ligação com Deus é local... [faz uma metáfora bem humorada em relação ao fato de haver uma diferenciação entre ligações telefônicas locais e à distância. Seguem-se risos]

Tulio Kahn: Professor Wiesel, a minha questão tem a ver novamente com a questão da educação. Em vários de seus escritos e intervenções ressaltam a importância da educação para superar o ódio e o racismo. No entanto, nós temos esse paradoxo, também mencionado aqui. Por exemplo, o surgimento do nazismo em uma das nações mais civilizadas e educadas da sua época, inclusive com participantes com doutorado na Universidade de Heidelberg. Portanto, isso de certa forma mostra que a educação racionalista, ou tecnológica – essa que é dada nas escolas, nas universidades – não é suficiente para superar esse tipo de preconceito, porque ela não atua... Vamos dizer que ela não dissolve os mecanismos psíquicos que promovem o ódio. Eu acho que o filósofo Theodor Adorno tem um texto excelente sobre isso, que é o Educação depois de Auschwitz, e de como é necessário você mudar a educação das pessoas por uma educação que desse menos atenção à obediência e à disciplina. Ele reparava muito isso nos camponeses que eram guardas do campo de concentração, como eles tinham o respeito cego pela autoridade e não questionavam nada. E uma educação sim que promovesse o julgamento moral independente, a auto-reflexão crítica. Infelizmente, não é isso que a gente vê. As nossas universidades – acho que em todo o mundo – produzem hoje analfabetos morais, a gente pode usar essa expressão. Eu não vejo, não só nas universidades, como em nenhuma outra fonte, nem nos partidos políticos, nem mesmo nas religiões, na família, muito menos no meio de comunicação, enfim, nenhum lugar de onde pode estar vindo essa auto-reflexão crítica, essa formação moral autônoma e independente. Eu gostaria de saber de onde então que essa formação poderia estar vindo, já que da educação formal certamente ela não vem.

Elie Wiesel: Sim, mas a educação também precisa de educadores. Precisamos de educadores para educar os educadores. Sinto que precisamos de dimensão moral. Por exemplo, faculdades de medicina, de engenharia, arquitetura, jornalismo. De algum modo, faltam conceitos morais, éticos. Acho que deve ser obrigatório o estudo da ética. É a principal coisa. Ao mesmo tempo devemos celebrar a vida. Eu disse antes que, no nazismo, havia o culto da morte. Devemos celebrar a vida. Eu digo, como escritor, que se pegarmos todos os livros do mundo que tratam da vida, e os colocarmos em um prato da balança e, no outro, uma vida humana, qualquer uma, essa vida humana é mais importante, pesa mais que todos os livros sobre a vida. E é isso que devemos ensinar aos nossos filhos, alunos, adultos, médicos, arquitetos. Não tenho o direito de denegrir a vida. Se eu fizer isso, é uma ofensa a Deus e a sua criação.

Adhemar Altieri: Senhor Wiesel, eu quero aproveitar, antes que encerre o nosso tempo, retomar e fazer mais uma perguntinha sobre a atual corrente do Oriente Médio. O senhor disse no início do programa que o Barak falhou. Eu acho que existe outra interpretação. O Barak também chegou mais perto da paz do que qualquer outro, e o que a gente viu se pareceu muito com uma rotina antiga no Oriente Médio: [de] que quando se chega perto da paz, quando os lados dialogam e chegam perto, o elemento radical surge e põe tudo a perder. E foi o que aconteceu mais uma vez no Oriente Médio; dessa vez, com uma revirada dentro de Israel, que botou Ariel Sharon no poder pelo voto. E eu queria perguntar: uma pessoa como o senhor, com a sua experiência de vida, com a sua observação, sua dedicação aos direitos humanos, não fica nem um pouco incomodado de ver Ariel Sharon eleito em Israel pelo voto das pessoas, posto no poder?

Elie Wiesel: Não, e digo por quê. Ninguém pode explicar para mim por que Arafat não aceitou as concessões de Barak. Elas eram tão abrangentes... Eu estava junto à delegação americana. Eu ouvi comentarem... e pode acreditar, eles ficaram chocados. Disseram: "O que está fazendo? Está indo longe demais". E ele [Yasser Arafat] disse: "Não". Por isso o Campo da Paz em Israel ficou arrasado. Não entendo. O que ele conseguiu! Ele conseguiu um Estado palestino imediato; 99% – disseram 95%, mas foi mais – de todos os territórios; um lugar em Jerusalém; a volta de 150 mil refugiados; compensação para os outros. E ele recusou. O que isso significa? Estou dizendo algo que me dói muito dizer. Eu queria que aquele processo desse certo. Não tenho certeza se Arafat quer a paz. Acho que ele não quer Israel. Se for esse o caso, o que podemos fazer? Por isso acredito que devemos começar a trabalhar sob outro ângulo. Acho que o Sharon de antes das eleições não é o mesmo Sharon de depois das eleições. Veja Begin [Menachem Begin, primeiro-ministro de Israel (1977 – 1983)]. Begin era linha-dura. Linha-dura. Foi ele que entregou o Sinai. Sadat não esperava que Begin entregasse o Sinai tão rápido. Mas ele entregou. Acho que este é o momento de esperança. Camus [Albert Camus, escritor e filósofo] tem uma frase maravilhosa. Ele disse: "Quando não há esperança, devemos inventar esperança". Ele falava da felicidade. Quando não há felicidade, devemos inventá-la. Para mim, no momento esperança é mais importante que felicidade. Devemos inventar a esperança. Agarrarmo-nos a ela. E trabalhar nela, e com ela. Do contrário, é terrível demais imaginar o que acontecerá.

Arlene Clemesha: Entre os praticamente cerca de quarenta livros que o senhor já escreveu, quais o senhor indicaria para quem nunca leu nenhum livro seu? – [para quem] vive no Brasil, não é judeu, [e] gostaria de conhecer a sua obra. E, considerando que esse público lesse em inglês e francês, quais livros o senhor indicaria?

Elie Wiesel: Se for para você, eu envio um. [risos]

Arlene Clemesha: Eu tenho vários [livros] para autografar aqui [comigo].

[...]: Eu também.

Elie Wiesel: Será um prazer [autografá-los]. Não sei quais livros foram traduzidos no Brasil, alguns deles foram. Eu tentei de tudo. Escrevi romances, testemunhos, uma cantata, teatro... Tentei todos os gêneros, pois achava que tínhamos que achar uma nova linguagem. A linguagem falhou. Eu tinha que inventar uma nova, e estou tentando. Claro que um livro especial é A noite, o primeiro. Não teria escrito os outros, se não fosse pelo primeiro. Depois escrevi um romance cujo nome em francês é La ville de la chance [A cidade do destino]. Em inglês a tradução não é boa: The town beyond the wall [A cidade além da muralha]. Depois escrevi As portas da floresta; depois Testamento de um poeta judeu assassinado, sobre o fracasso do comunismo. Mas, se alguém quer me conhecer um pouco, eu diria que o primeiro seria A noite.

Jaime Spitzcovsky: O senhor tem sido muito crítico em relação ao líder palestino Yasser Arafat. Em várias de suas entrevistas o senhor tem destacado o fato dele ter recusado as concessões oferecidas por Ehud Barak em Camp David. Eu estive em Israel em janeiro, e alguns integrantes da equipe de Ehud Barak diziam que eles evitavam ao máximo criticar Yasser Arafat porque, de qualquer forma, Yasser Arafat era o único interlocutor do lado palestino, e que, portanto, do ponto de vista de Israel, era importante não demonizá-lo porque era o único interlocutor. O que o senhor acha dessa lógica?

Elie Wiesel: Pode acreditar, eu sempre evitei criticá-lo, até que ele rejeitou as concessões de Barak. Então aconteceu o pior. Vou todos os anos à Conferência de Davos... [fórum anual na cidade de Davos, Suíça, que reúne donos de multinacionais e chefes e lideranças de Estado, entre outras pessoas conhecidas internacionalmente]. Não por causa da economia – não entendo nada de economia –, vou pela cultura, mas vou lá há nove ou dez anos. Eu estava lá quando Arafat e Peres mais uma vez subiram ao palanque e falaram. Peres começou elogiando Arafat, falando sobre a paz... Depois Arafat, a partir de um texto escrito, [enfático] fez o mais cruel, o mais odioso discurso que já ouvi em Davos ou em qualquer lugar. [suspira] Eu passei mal. Faltavam poucos dias para a eleição. Se ele queria eleger Sharon, conseguiu com aquele discurso. O que ele disse! [muito enfático] Repetidas, repetidas, repetidas, repetidas vezes, como se tivesse um punhal na mão [faz um gesto de mão segurando um punhal]. Como posso confiar nele? Não posso. Ao mesmo tempo, sou contra a demonização. Mas sinto que os palestinos realmente precisam achar... Há líderes em torno dele. Acho que deve surgir um novo homem. A menos que ele mude, o que é possível. Tudo é possível. Gostaria que ele mudasse, que dissesse: "Desculpe, o discurso estava errado, alguém o escreveu para mim". Qualquer coisa, é possível. É preciso acontecer algo para afastar essa impressão horrível de inevitabilidade dada por ele em Davos. Não dá para imaginar! Havia israelenses lá, todos de esquerda. Todos! E saíram de lá dizendo que estava acabado. O processo fora encerrado. Tom Friedman, que sempre escreve a favor dos palestinos no New York Times [jornal estadunidense], disse: "Terminou. Acabou". Por isso receio que Arafat não seja um homem de esperança agora, como eu gostaria que fosse.

Jaime Spitzcovisky: O senhor tem medo de um período pós-Arafat, uma vez que o líder palestino já tem setenta e tantos anos, e tem uma saúde bastante debilitada? Vai melhorar ou vai piorar?

Elie Wiesel: Espero que sim. Ouço falar que há pessoas mais moderadas em torno dele que entenderão que ele não estava certo. Torço por isso.

Moisés Rabinovich: Friedman diz que Arafat, de tanto esperar o ideal, sempre perdeu o possível. É o que novamente aconteceu.

Henry Sobel: Professor Wiesel, o presidente da República, o doutor Fernando Henrique Cardoso [presidente da República (1995 – 2003)], em 1997, criou uma comissão especial de apuração de patrimônios nazistas neste país. Muitas pessoas criticaram a decisão do presidente da República, alegando que um país onde há tanta miséria e pobreza não é uma prioridade, muito pelo contrário. Recuperar bens confiscados, visando uma restituição material, não cabe no Brasil. O senhor acha que estes empenhos bem intencionados promovem um anti-semitismo num país, por exemplo, como o nosso?

Elie Wiesel: Anti-semitas não precisam de motivos para odiarem judeus. Eles odeiam sem [haver] judeus, em raças em que não há judeus eles os odeiam. Odeiam judeus porque são ricos ou porque são pobres, odeiam judeus porque são cosmopolitas ou porque são nacionalistas. Anti-semitas odeiam judeus. Não temo isso no Brasil. Eu, por outro lado, diria que uma prioridade moral é sempre uma prioridade. E estudar o passado e corrigir injustiças do passado é uma prioridade moral. Não significa que os pobres devam sofrer por conta disso. Os pobres devem ter sempre prioridade. Mas somos pessoas inteligentes, o Brasil é um país inteligente, e podemos ter mais de uma prioridade na agenda. Eu diria que há duas, e as duas são importantes.

Paulo Markun: Os dados dos últimos meses são dados do Washington Post [jornal estadunidense], publicados hoje no jornal O Estado de S. Paulo: o número de mortos nesse conflito no Oriente Médio é de 342 palestinos, 65 judeus israelenses e 13 árabes israelenses. E o Washington Post apresenta esses números como uma demonstração do poderio de Israel, que é muito maior do que o dos jovens árabes, que se revoltam e que promovem há meses a Intifada [revolta popular civil palestina contra a ocupação do exército israelense em seus territórios. Este movimento referido pelo entrevistado é conhecido como a Segunda Intifada, e ocorre desde 2000]. Essa diferença de poder não funciona na direção da paz?

Elie Wiesel: Israel é uma nação, uma nação organizada. Os palestinos ainda não são, espero que um dia sejam – do modo correto, em condições pacíficas. Toda pessoa que morre é uma fonte de tristeza... Deve ser, de qualquer lado – especialmente crianças. Ver uma criança morrer... Perdemos a fala, só podemos chorar. Mas então por que tantas crianças feridas? O que elas fazem na linha de frente? Por que estão lá? Crianças devem ser protegidas pelos adultos. Elas estão sendo usadas como escudo dos adultos. Há algo errado lá. Espero, de todo o coração, que a violência – que já se prolonga há tanto tempo – chegue ao fim, que pare dos dois lados. Já basta. Não sei expressar o que significa para nós e para eles, os israelenses, que têm crianças diante deles jogando pedras ou coquetéis molotov. E os homens armados estão atrás das crianças, protegidos por elas. Já basta. Por que mais israelenses? Porque há mais israelenses lá e porque é uma nação. Como combater individualmente crianças ou terroristas? Eu não sei. Eles também não sabem. Esse é o problema.

Paulo Markun: Nesse seu pronunciamento freqüente sobre a questão da indiferença me leva a pensar na seguinte questão. Muitas vezes para nós seria mais fácil, aparentemente, se comover com situações e dramas de milhares, de centenas de milhares, ou milhões de pessoas distantes, e que a mídia traz para a casa da gente através da televisão, do que eventualmente de questões sociais e injustiças e dramas muito mais próximos de nós, mas que não tem essa dimensão numérica. O senhor acha que há uma relação entre a indiferença... Ela age de modo distinto, de acordo com a distância que a gente está do problema?

Elie Wiesel: Normalmente é diferente. Somos mais tocados por uma pessoa aqui do que por pessoas distantes. Há um ditado talmúdico maravilhoso [recita primeiramente em hebraico, e depois traduz]: "Os pobres do seu povo devem ter prioridade". Porque você os vê, eles o tocam mais. O problema está realmente na TV. Eu me lembro da Guerra do Vietnã [conflito entre Estados Unidos e a porção comunista do território vietnamita (1959 –1975)]. Um dia decidiram transmitir ao vivo, da frente de batalha, do Vietnã. E nos Estados Unidos é sempre às 18:30h ou 19h, durante o jantar. A primeira vez que mostraram, ao vivo, um soldado estadunidense matando ou sendo morto, eu parei de comer. Como poderia comer com isso acontecendo? Mas, um mês depois, eu continuava comendo. Eu me acostumei. E esse é o problema: como sensibilizar o espectador, sem torná-lo indiferente? Eu vejo pedintes nas ruas. Em Nova Iorque há muitos... mãos abertas. Sei que as pessoas dizem que eles querem dinheiro para comprar bebidas ou drogas. Mas como não dar 25 centavos, ou um dólar? Ele está lá, tem um rosto. Em outras palavras, as injustiças em casa devem ter, no mínimo, a mesma prioridade, talvez prioridade maior do que as injustiças distantes. Pois, aqui, você pode ajudar. Você não pode ajudar todo mundo, mas pode ajudar uma pessoa por vez.

Jaime Spitzcovsky: Mister Wiesel, o senhor recentemente publicou um texto no New York Times se posicionando contrário à divisão de Jerusalém, cuja parte oriental é reivindicada pelos palestinos. Eu gostaria de lhe perguntar, na sua opinião, como deve ser a relação dos judeus da Diáspora com o processo político israelense? – lembrando apenas que, Yasser Arafat, quando negociava Jerusalém, dizia que estava fazendo em nome de mais de um bilhão de muçulmanos. Portanto, como é que deve ser essa relação dos judeus da Diáspora com a política israelense?

Elie Wiesel: Eu não falo como um político. Nunca me envolvi em política, nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar – especialmente política israelense. Não quero me envolver com política israelense. Falo como judeu, com minhas lembranças, minha sensibilidade, com minhas peças... É assim que eu vejo Jerusalém. Para mim, Jerusalém é uma cidade que conheci antes de conhecer a mim mesmo. Antes de conhecer minha cidade, Sighet [cidade romena], eu conhecia Jerusalém, conhecia cada rua de lá. Pronunciei o nome Jerusalém antes de pronunciar o nome da minha cidade. Por isso eu disse que Jerusalém não é apenas a capital de Israel, do povo de Israel, mas do povo da Diáspora também. E quero que todos na região entendam, mesmo os palestinos devem entender. Eles nunca falaram sobre Jerusalém. Fui correspondente na ONU por muitos anos, e me lembro de ouvir o presidente da OLP [Organização para Libertação da Palestina], Ahmed Qurei e todos os árabes. Nunca falaram de Jerusalém. É um fenômeno recente. Começaram a falar de Jerusalém há dez ou 15 anos. Quando Sadat foi a Jerusalém, ele foi para a Mesquita de Al-Aqsa. Ele voltou o rosto para Meca! – é a cidade sagrada deles. Eu entendo que os islamitas têm seu lugar em Jerusalém, como os cristãos têm. E acho que deve ser encontrado um modo, e será encontrado um modo para dar-lhes sua soberania. Para mostrar que eles estão lá, que têm um passado, que têm uma memória, devem estar lá. Mas a política deve ser excluída das negociações em Jerusalém ou sobre Jerusalém.

Moisés Rabinovich: Um dia entrevistando o [...], em Jerusalém, sobre o futuro da cidade, sobre negociações de paz, ele me explicou que tinham acabado de fazer uma união da rede de esgotos. Então ele me disse que, quando uma cidade faz isso, ela jamais poderá ser dividida. Agora Barak concedeu certa autonomia aos palestinos na última etapa das negociações em Camp David sobre Jerusalém. O senhor acha que uma negociação de paz, para que ela seja concluída com êxito, passa pela divisão de Jerusalém? Porque o que nós chamamos de Jerushalain, eles chamam de Al Quds...

Elie Wiesel: Se eu achasse que eles querem apenas o território, eu pensaria muito. Mas acho que não é isso que querem, eles sempre querem algo mais. Barak estava certo ao dar mais que autonomia, e Arafat rejeitou. Vou dizer o que eu quero – sugeri aos estadunidenses, eles não aceitaram: um período de vinte anos de latência. Em psiquiatria chamamos de período de latência. Esperar, esfriar. Por vinte anos, nada deve ser feito. Apenas aproximar as pessoas, por vinte anos, trabalhar em relações pessoais. E os filhos deles então estarão mais bem-equipados, após terem feito essas amizades, para lidar com esse assunto dramático, difícil, como nenhum outro já fez.

Moisés Rabinovich: E a posição do Vaticano, que prevê uma internacionalização de Jerusalém? [entrevistado balança a cabeça negativamente] Porque Jerusalém é muçulmana, é judaica e também tem a Via Sacra e o Monte das Oliveiras ao fundo [locais sagrados para o cristianismo]. Os cristãos têm uma palavra?

Elie Wiesel: Meu caro, é tarde demais para isso. Quando o Estado [de Israel] nasceu, e a ONU adotou o plano de partição – e Jerusalém devia ser considerada em separado –, a primeira e única nação do mundo a reconhecer um Estado árabe em sua parte da Palestina foi Israel. No discurso de Ben Gurion [primeiro-ministro israelense (1948 – 1952)] eles [os israelenses] o reconhecem. Estavam dispostos a aceitar tudo pela paz, mas [os árabes] quiseram a guerra [a chamada Guerra de Independência de Israel].

Paulo Markun: Senhor Wiesel, nosso tempo está acabando, e esse aqui é o programa de entrevistas mais longo e o mais antigo da televisão brasileira. Estamos há 15 anos com esse programa, e ele tem uma hora e meia, o que para a televisão é um tempo significativo. De todo modo, quando passam por esse centro do Roda Viva pessoas como o senhor, e se discutem temas como o que foi discutido essa noite, me dá sempre a sensação que nós estamos tentando mudar o endereço do mar com um pequeno balde, às vezes com um cálice, mas ainda dá tempo para a gente colocar mais um último cálice, que seria o seguinte: eu queria, se o senhor pudesse resumir o que o senhor pensa da vida em uma única palavra, que ficasse na cabeça das pessoas depois dessa hora e meia de conversa, que palavra seria essa?

Elie Wiesel: Esperança.

Paulo Markun: Muito obrigado pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. Nós voltamos na próxima segunda-feira, esperamos, sempre às 10:30 da noite. Uma boa noite e uma ótima semana, e até lá.

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