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Memória Roda Viva

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Dulcídio Wanderley Boschilla

11/1/1988

O polêmico árbitro Dulcídio Wanderley Boschilla fala sobre os bastidores da arbitragem e dos dirigentes de futebol e de sua relação com a polícia durante o regime militar

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Augusto Nunes: Nosso entrevistado dessa noite é uma personagem muito conhecida do país do futebol, o nome dele é Dulcídio Wanderley Boschilla. Dulcídio Wanderley Boschilla é certamente um dos juizes de futebol mais competentes que já passaram pelo nosso país e é também uma figura bastante polêmica. Dulcídio já foi muito vaiado e muito aplaudido pelas torcidas brasileiras. Em 1982, Dulcídio se formou em direito, pretende advogar, tem planos também para fazer jornalismo, mas é basicamente um juiz de futebol. Tanto que ameaçou há algumas semanas se tornar gerente de futebol do Corinthians e acaba de avisar, há alguns dias em entrevista, que vai apitar também até dezembro, quando completa cinquenta anos de idade. Dulcídio Wanderley Boschilla vai falar sobre o mundo do futebol, vai falar sobre sua trajetória, vai falar sobre sua experiência, que decididamente não é pequena, enquanto estiver sentado ao centro dessa roda viva formada pelos seguintes entrevistadores: Juca Kfouri, diretor de grupo da revista Placar, Oldemário Touguinhó, repórter do Jornal do Brasil, do O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde e TV Record; Silvio Luiz, narrador esportivo e comentarista da TV Bandeirantes; Vital Bataglia, repórter especial do Jornal da Tarde. Ainda não temos conosco, mas está convidado, José Maria de Aquino, que é repórter especial do jornal O Estado de São Paulo; Flávio Adauto, comentarista esportivo da rádio Bandeirantes; Ailton Fernandes, repórter do Jornal da Tarde e Osmar Santos, diretor de esportes da Rádio Record, além de apresentador do programa Osmar Santos, na TV Manchete. Nós temos conosco convidados que integram o Sindicato de Árbitros do Estado de São Paulo, são os convidados da produção. Repito que as perguntas podem ser encaminhadas pelo telefone 252-6525. Dulcídio Wanderley Boschilla, todos os brasileiros, nós sabemos disso, se interessam bastante por futebol e têm interesse em escalar a Seleção, em escalar seus próprios times, agora tem também uma velha curiosidade que só há pouco tempo passou ser explorada com mais determinação pela imprensa, a meu ver, que é o problema da corrupção no futebol, há inclusive uma matéria de que nos lembramos todos da revista Placar, dirigida então pelo Juca Kfouri. A pergunta que eu faço a você é a seguinte: como é que se manifesta a corrupção no futebol, qual o preço de um juiz hoje? Pergunto se você já recebeu algum tipo de proposta, como reagiu a ela e se você sabe de algum caso envolvendo diretamente juizes de futebol em casos de corrupção.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Bom, a corrupção existe no futebol. Existe inclusive dentro da arbitragem, porque eu não digo da corrupção financeira, dinheiro, proventos em dinheiro, mas a corrupção política, a corrupção de favores, a corrupção de prestações de serviços dentro da arbitragem, isso existe e existe muito, não só em São Paulo como no Brasil de modo geral. E ela tem [uma] grande diferença, ela tem muitos altos e baixos. Por exemplo, antigamente, na época em que comecei, um pedaço de fumo, uma garrafa de pinga, um garrafão de vinho muitas vezes modificava o resultado de uma partida, e é verdade, eu sofri isso. Hoje é mais difícil, hoje a OTN aumentou... [Obrigações do Tesouro Nacional, indexador econômico utilizado na época, e que tinha a função de reajustar contratos de modo geral]

Augusto Nunes: Ficou mais caro.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Ficou mais caro e mais valorizado, então eu não culpo tanto a arbitragem de modo geral, mas eu culpo o árbitro em si, o homem. Porque o homem por ouvir dizer ou por falar ou por pedido muitas vezes o árbitro atende; agora, responder a você assim honestamente quais foram os casos seria para mim muito deselegante, porque eu não poderia provar, porque a corrupção ativa ou passiva ela envolve uma série de coisas que, quer queira quer não, dá uma diferença para você poder exemplificar ou poder dar a prova. Eu não posso provar que o sujeito levou dinheiro e trouxe um resultado, eu não posso provar que o sujeito fez alguma coisa que um dirigente pediu, mas você pode provar pela atitude que esse indivíduo tem, não posso nem taxar como árbitro de futebol, porque o árbitro teria que ser imparcial de modo geral, mas torcendo, mudando o resultado de um jogo. Eu fiz um jogo - só para exemplificar, [é] a hora da saudade - como bandeira em 1968 num jogo Sãomanuelense [contra] Paraguaçu Paulista. Ele se intitulava, não sei se era naquela época, talvez tenha até falecido, não sei, mas ele se intitulava major, o nome dele era Bezerra, junto com um representante que, antes de começar o jogo... - eu fui como bandeira e eu estava colocando minha meia, nunca me esqueço, estava colocando a meia - e diz o árbitro: “Olha, é o seguinte, o representante já vendeu o jogo por 250 cruzeiros e, sabendo disso, para o time da casa não tem impedimento.” Eu já iria começar - e essa foi minha primeira bandeira como profissional - e eu quase levantei e dei um cascudo na orelha do sujeito, mas o outro bandeira que estava do outro lado disse: “Dulcídio, calma, faça o seu trabalho.” E eu fui para o jogo e fiquei bandeirando o jogo. O time do Sãomanuelense era para perder de quatro ou cinco e ganhou de dois a zero. Eu estava naquele jogo. Aí ao final tivemos que ir até a sede do clube que era numa praça, e lá foi dada a grana. O dinheiro foi dado para o árbitro que veio e colocou no meu bolso 25 [enfático] cruzeiros. Eu quis tirar, e o bandeirinha pôs a mão e disse: “ [enfático] Não mexa, não mexa, porque se não você nunca mais funciona na Federação.”

Augusto Nunes: Era equivalente a quê, Dulcídio? Até uma ordem de grandeza, hoje seria o [equivalente a o] quê?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não sei.

Augusto Nunes: O que seria hoje?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não sei, não tem termo de comparação.

Augusto Nunes: Não dá não para mensurar?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Em comparação o dinheiro era muito baixo, muito pouco, muito pouco. Eu sei que...

[...]: Quanto você ganhava nessa época?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Ah, não me lembro, não me recordo, mas era muito pouco, era muito pouco.

[...]: Não lembra qual era o salário seu?

Dulcídio Wanderley Boschilla: O quê?

Osmar Santos: Era um salário seu?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Talvez, acho que era mais do que um salário meu, era mais do que um salário meu mensal.

Silvio Luiz: Era mais do que um garrafão de pinga?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Depois teve um garrafão de pinga, teve, espera aí.

Silvio Luiz: Mas era mais do que um garrafão de pinga?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Isso foi o começo, foi minha entrada, minha entrada dentro do futebol para ver como é que era a coisa.

Oldemário Touguinhó: Você devolveu depois o dinheiro ou guardou dentro do bolso?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Calma, calma, espera aí que eu chego lá. Devolvi em dose dupla, porque o Astolfi [José Astolfi, árbitro de futebol dos anos 1960] me obrigou a devolver, em dupla eu devolvi.

Augusto Nunes: Espera aí, vamos deixar o Dulcídio contar a história, dois minutos.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Aí eu saí de São Manuel... Não saí [não]. Puseram o dinheiro e eu digo: “eu mato esse cara, não, eu não mato”. Eu não tinha condução para voltar, aí o time de Sãomanuelense arranjou a perua do Sãomanuelense, com distintivo do Sãomanuelense na porta. O centro-avante que vinha dirigindo, vinha o representante na frente - esqueço o nome, senão eu falaria, esqueço o nome... -, vinha o árbitro no meio, e o bandeira atrás. Eu dizia assim: “vou dar um murro na cabeça desse árbitro”. Eu vim xingando esse árbitro, eu e o bandeira - não conhecia o cara. Nós paramos na sede, na casa do presidente, o representante desceu e pegou dois garrafões de vinho ou de pinga, eu não sei, colocou lá no banco da frente da Kombi e viemos de São Manuel de Kombi - oferecimento da casa. No dia seguinte eu fui no Zé Astolfi, que era na rua... - que rua era o Sindicato? Você que era... [aponta para o Silvio Luiz, refere-se ao fato de Silvio já ter trabalhado como árbitro]

[…]: Tava no esquema também. [risos]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Ele freqüentava. [dirigindo-se para o entrevistador de modo bem humorado] Você freqüentava, Silvio, pára disso, deixa de bobagem, isso é gozação.

Silvio Luiz: Mas eu estava nesse rolo todo?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Ele freqüentava [...] como nós freqüentávamos. Eu cheguei lá e o Astolfi era do Sindicato - não era Sindicato, era uma associação. Nós chegamos lá...

Augusto Nunes: Oldemário!

Dulcídio Wanderley Boschilla: ...e eu disse: “O negócio é o seguinte: olha, Astolfi, me puseram 25 cruzeiros no bolso de um jogo que foi feito cambalacho e está aqui o dinheiro e quero que você tome providência.” O Astolfi estava processando a Federação, e ele falou: “Senta aqui e faz uma carta.” Eu peguei e fiz uma carta [fez um gesto de datilografar com as mãos] dizendo que a tal hora um jogo assim, assim, assim, assim, assim... Contei tudo. E ele falou: “Agora você vai no correio - porque era ali pertinho - Sãomanuelense, São Manuel, e manda o dinheiro de volta.”. Peguei 25 cruzeiros, coloquei no envelope - quase não me lembro [como era] – comprido... Coloquei e dei 25 cruzeiros para as Casas André Luiz [uma associação beneficente ligada à fé espírita]. Fiz essa carta, e a carta foi anexada num processo que Astolfi moveu contra a Federação em 1968, 1969, pela moralização do futebol. Deve estar, se não jogaram fora, se não jogaram no lixo, deve estar lá até hoje esse negócio.

Silvio Luiz: Quem era o presidente da Federação nessa época?

Dulcio Wanderley Boschila: José Mendonça Falcão.

Flávio Adauto: Dulcídio, é o seguinte... Me permita, primeiro, por favor?

Augusto Nunes: Vai, Flávio.

Flávio Adauto: O seguinte: você começou falando em corrupção. Chegou ao conhecimento da imprensa, mais recentemente, envolvendo o Dulcídio, que você fora convidado para ser gerente do futebol do Corinthians. Em meios populares a informação era a seguinte: que você teria sido contratado em 1977, na final Corinthians e Ponte Preta, e só estaria assumindo agora no Parque São Jorge. Isso é o que correu e que eu ouvi o povo falar.

Dulcídio Wanderley Boschilla: O Osmar dá risada, mas [a existência do boato] é verdade.

[sobreposição de vozes]

Flávio Adauto: Quer dizer, você ficou contratado dez anos sem trabalhar.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Dez anos sem trabalhar, mas [...]

Augusto Nunes: Dulcídio, Dulcídio, Dulcídio! Um minutinho só. Inclusive, essa pergunta do Flávio Adauto pelo visto começa interessar os telespectadores, porque o Antonio Maria Ferreira, de Pirituba, já pergunta se você não acha - depois o Flávio vai completar -, se o senhor não acha que foi injusto ao apitar jogo Corinthians e Ponte Preta em 1977. O que o jogador Ruy Rey disse quando foi expulso [e] coisa assim. Essa é uma preocupação presente na cabeça dos torcedores.

Flávio Adauto: Eu completo.

Augusto Nunes: Flávio Adauto completa.

Flávio Adauto: Digamos que você estaria assumindo agora, após ter sido contratado em 1977. Você sentiu, ao não aceitar definitivamente o convite, que queriam o Dulcídio Wanderley Boschilla para fazer cambalachos a favor do Corinthians agora em 1988?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Bom, em primeiro lugar não me sujeito a esse tipo de coisa, fazer cambalacho. Eu não fiz em 23 anos de carreira em que eu tinha a faca e o queijo na mão para “cambalachar” adoidado... É verdade, existe gente “cambalachando” até hoje. Você sabe, você me conhece e eu o conheço. Você me disse: “O Ailton [Ailton Fernandes, um dos entrevistadores] me disse o seguinte: olha, eu tenho uma matéria aqui. Eu tenho um negócio de suborno, eu sei que eu tenho provas e não sei o quê, eu vou publicar.” E eu digo: “olha, cuidado que você não tem prova.” “Não, eu tenho.” “Então, se você tem prova, publica. Mas, se não tiver, não publica não, que você vai morrer com a gente.”

Flávio Adauto: E essa história de Corinthians e Ponte Preta?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Agora, Corinthians e Ponte Preta.

Flávio Adauto: E depois chegando aos dias de hoje.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não me sujeitaria em 1977 a fazer esse tipo de falcatrua, porque em 1974 apitei os três jogos finais Corinthians e Palmeiras, e todo mundo dizia que o Corinthians seria campeão, e Corinthians não o foi. Muito bem, em 1977 aconteceu... o primeiro jogo eu apitei, foi o gol de cara do Palhinha. [O primeiro jogo das finais de 1977 resultou em vitória do Corinthians por um a zero. Aos 14 minutos do primeiro tempo, o atacante Palhinha chuta ao gol, a bola bate no joelho do goleiro Carlos, e em seguida rebate no rosto do atacante] O segundo não fui eu quem apitei, foi o Romualdo [Romualdo Arppi Filho], e teve cusparada, peitada, safanão, cacetada, teve tudo no jogo. Na hora que ele colocou a bola... - quando o Corinthians marcou o gol - quando ele colocou a bola para dar o reinício do jogo, veio um jogador - o Dicá, se não me falha a memória - e chutou a bola para a torcida. Aí ele pegou outra bola, colocou, e ele chutou de novo. Se eu estou no jogo acaba o jogo ali, não tem mais jogo, não tem terceiro jogo, porque sai um monte de gente. Só que no terceiro jogo tentaram forçar uma barra, e eu não deixei. Se você me perguntar: “Eu ajudei o Corinthians indiretamente?” Ajudei, porque eu botei um jogador para fora que pediu talvez a expulsão. Porque ele chegou e me ofendeu por causa de um cartão amarelo, e disse um homérico palavrão que eu não posso dizer nem na televisão, na TV Educativa não posso dizer, mas...

Silvio Luiz: TV Educativa não, você não pode dizer esse palavrão que ele falou em nenhuma [emissora].

Dulcídio Wanderley Boschilla: É, mas aí que está... pois é, vontade [de dizer] eu tenho. Mas o problema maior é o seguinte: o cara me diz um negócio desse e o cartão [amarelo] caiu - está no tape - o cartão caiu da minha mão porque a vontade foi dar um murro no meio da orelha dele e fazer ele continuar jogando futebol. Mas como a lei não me permite esse tipo de coisa, de comportamento, eu digo “fora”. E falei: disse que a mãe dele era “santa” e uma série de coisas e tudo bem. Agora, se eu ajudei o Corinthians nesse tipo de coisa, nesse tipo de comportamento, eu tinha que salvar a minha arbitragem. Agora, acho uma injustiça quem possa pensar que 1977 teria alguma coisa a ver com 1988, ou como gerente de futebol do Corinthians.

Juca Kfouri: Agora, Dulcídio, por que você não aceitou?

Augusto Nunes: Juca, Juca! Dulcídio, por favor, essa pergunta do Juca é uma pergunta que foi feita, está gravada pelo próprio Vicente Matheus, presidente do Corinthians. Ele pede que você dê algumas explicações, que também são solicitadas pelo Juca Kfouri. Você pode acompanhar a pergunta por um desses monitores.

Vicente Matheus: [vídeo] Eu gostaria de saber qual foi o motivo que você não deu para o Corinthians, porque esperava contar com seu trabalho para o ano de 1988. Então eu gostaria que você responda aí, ao vivo - como você está aí [agora] na televisão -, por que não veio?

Juca Kfouri: Só complementar a pergunta do Vicente Matheus.

Augusto Nunes: Juca Kfouri.

Juca Kfouri: Você é uma pessoa que costuma falar a verdade. Está no Roda Viva da TV Cultura onde, com freqüência, pessoas que se sentam aqui abrem a alma. Eu sei de uma história rigorosamente fidedigna dando conta do seguinte: que no fim da conversa lhe disseram que queriam que você fizesse pelo Corinthians, nos bastidores da Federação, aquilo que se supõe no Corinthians que o Chimello faça pelo São Paulo. [José Eduardo Chimello, secretário do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Futebol nos anos 1970. Foi supervisor de futebol do São Paulo (clube) de 1981 a 1991, e depois tornou-se gerente de futebol de diversos clubes] Aí você disse: “A esse papel eu não me presto”. Foi isso?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Isso foi dito, em tom de brincadeira, [mas] foi. Eu aceitei como um tom de brincadeira, mas aceitei não como um negócio sério. Mas a maior preocupação minha - e [com] isso eu respondo ao Matheus, que é meu amigo - é a seguinte, Kfouri: quando fui convidado, e aceitei “de cara”, de momento, vários elementos que trabalham no Corinthians há vinte ou trinta anos, que se intitulam [aponta o dedo para o entrevistador enfaticamente] donos do Corinthians, já começaram a “levantar a saia” e a agitar o ambiente, para que o ambiente fosse não propício ao meu trabalho, antes de começar a coisa! Agora, um dos elementos, que trabalha lá há trinta anos, foi questionar a um dos diretores por que o meu salário... não se aventou hipóteses de salários, mas se publicou que o meu salário seria 150 mil cruzados por mês. Ele que trabalha lá há não sei quantos anos não ganhava nem isso; o cara foi tirar satisfações com um dos diretores. Quando se chega nesse tipo de comportamento antes de se conversar sobre qualquer tipo de coisa, automaticamente vou causar muito embaraço, não ao Corinthians de modo geral, mas à diretoria do Corinthians: ao Matheus, ao Sérgio e ao Paulo... E eu não quero, Kfouri... honestamente não quero, nunca quis causar embaraço a ninguém, porque seria uma falta de consideração muito grande eu ganhar 150, 200, 250 mil cruzados por mês e não exercer aquilo que eu pretendia exercer dentro do Corinthians. Agora, se tal pensamento passasse pela cabeça dos diretores de que eu pudesse servir de testa de ferro, como foi aventada a hipótese de que eu seria junto aos árbitros um testa de ferro contra eles, na qual todos os árbitros que iriam apitar um jogo do Corinthians eu iria num dia anterior almoçar com esses árbitros e conversar com eles para que eles fizessem alguma coisa em benefício do Corinthians... Eu não sou corintiano e todo mundo sabe disso, mas o Corinthians é muito grande para tanta “mediocridadezinha”.

Ailton Fernandes: Queriam colocar, pelo menos no banco de reserva, para você indiretamente...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Isso era uma situação sine qua non que eu não iria aceitar [enfático] nunca, porque quer queira, quer não, iria para a torcida do Corinthians. Do Palmeiras, do São Paulo, da Portuguesa, seria uma coação, quer queira, quer não. Para a torcida: “Está vendo, o cara não vai errar contra o Corinthians, porque o Dulcídio está lá.”

Oldemário Touguinhó: Dulcídio, é o seguinte: quando eu estava para vir para cá, antes de vir para cá eu passei na CBF [Confederação Brasileira de Futebol] para perguntar a algum membro da Cobraf [Confederação Brasileira de Arbitragem de Futebol] se tinha... “vou falar com o Dulcídio lá, me chamaram para um programa em São Paulo, [queria saber] se teria alguma coisa sobre o Dulcídio que pudesse talvez me dar subsídio para alguma coisa, para alguma pergunta.” Então eu vou dizer a você o que falou para mim um membro da Cobraf, que disse para mim o seguinte: “Olha, o que eu posso dizer para você [sobre o] Dulcídio é o seguinte: que ele vai continuar a trabalhar aqui no campeonato, porque ele não vai trabalhar mais no Corinthians, porque eu estou sabendo através dele - quer dizer, através do Dulcídio - que o Corinthians queria ele justamente para o que se está se debatendo aqui, ou seja, para você ser o chamado homem do “papo” com os árbitros”. E que você tinha dito para eles que essa função você não exerceria, e que você iria continuar na Cobraf. Então um membro da Cobraf disse para mim essa informação, a qual você passou para ele dizendo que eles [do Corinthians] queriam para você...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Mas ele não deu o complemento. Ele não deu o complemento [de] que eu disse isso porque era a voz corrente - e é a voz corrente até hoje. Não que cessou, mas é voz corrente de que eu seria um testa de ferro para dar prensa em árbitro de futebol. Isso eu nunca fiz isso... Não, já fiz sim, jaz fiz. Já dei prensa em árbitro de futebol, dei, ele sabe disso.

Augusto Nunes: Como é que foi essa prensa? Em seguida vamos ao assunto... [aponta para entrevistador]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu dou prensa porque fiquei sabendo que vários árbitros de futebol aqui de São Paulo iam pedir escala no segundo e terceiro andar. E eu ia para cima do árbitro, e fiz árbitro chorar dizendo que ele não era homem. Ele tinha que ser homem, ele tinha que esperar a escala porque não adianta correr no segundo e terceiro andar [da Federação] pedir escala e apitar e fazer besteira. Porque depois... Quando pede, todo mundo, todo árbitro de futebol - eles estão aqui, tem vários árbitros aqui e sabem disso - todo árbitro de futebol que, meu Deus do céu!, pede um favor a um dirigente fica devendo obrigações. Então isso existe e todo mundo quer se... A vaidade humana é tão grande dentro da arbitragem que o cara... Olha, eu vou te dizer uma coisa, chega a vender a mãe e não entregar.

Silvio Luiz: Alemão... [chama entrevistado pelo apelido]

Augusto Nunes: Só para relembrar: Luiz, e depois o Vital Bataglia.

Silvio Luiz: Só para relembrar no negócio de 1977, logo depois o Ruy Rey foi contratado pelo Corinthians, certo? Depois daquele campeonato, só para relembrar, e logo depois que você não aceitou o cargo no Corinthians, eu li em diversos jornais que o Corinthians estava tentando contratar o Chimello. Isso aí é só para vocês ficarem relembrando. Por que, já que o Oldemário falou da CBF, por que você nunca chegou a Fifa? [Fédération Internationale de Football Association / Associação Federação Internacional de Futebol] Eu sei de uma pessoa que prometeu a Fifa para você e não lhe entregou. Quer saber quem foi essa pessoa e por que você nunca chegou a Fifa?

Dulcídio Wanderley Boschilla: O falecido Álvaro Paes Leme [jornalista]. Um dia eu caí... porque o auxiliar do Paes Lemes era o Chimello. O secretário dele era o Chimello.

Silvio Luiz: Ele era secretário da Federação.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Era secretário da Federação, mas trabalhava lá com o Paes Leme. Isso há muito tempo atrás quando você nem tinha cabelo branco.

Silvio Luiz: É verdade.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Bom, o negócio é o seguinte: me cumprimentaram, apitei um jogo de futebol... E eu sempre me bati por isso, eu apitava futebol na época do presidente Zé Ermírio de Morais. [José Ermírio de Morais Filho, presidente da federação de 1970 a 1976)] Toda vez que eu aplicava um clássico de futebol eu era chamado pelo Paes Leme e me levavam na sala do Zé Ermírio de Morais e o Zé Ermírio dizia: “Olha, eu confio no seu trabalho...”. Eu saía e dizia assim: “Paes Leme, isso me enche o saco!” “Por quê?” “Porque isso, quer queira, quer não, é uma coação! [exaltado] Por que ele não me chama quando joga “Chiririca” contra “Balas Mistura”? [nomes fictícios de clubes] Por que ele não me chama quando jogam dois times pequenininhos lá no “Cafundó do Judas”? E ele vai me chamar quando é um clássico no Morumbi ou no Pacaembu. Eu não aceito isso!

Silvio Luiz: Então...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Aí ele diz assim: “Dulcídio, seu nome foi indicado para Fifa. Seu nome...” - depois de um jogo que eu fiz numa final de um campeonato.

Silvio Luiz: Depois de uma final São Paulo e Palmeiras.

Dulcídio Wanderley Boschilla: É, eu lá sei onde que foi, apitei tantas finais em minha vida!

Silvio Luiz: Você apitou quase todas as finais de campeonatos regionais no Brasil.

Dulcídio Wanderley Boschilla: “...É isso aí, o senhor é árbitro da Fifa.” Aí eu tive a infeliz idéia... - é uma justificativa. O cara me entrevistou. Fiz uma entrevista e o cara falou: “Dulcídio: o uso do cartão amarelo.” E eu falei: “eu sou contra.” “Mas por que você é contra?” “Porque eu acho que o cartão amarelo é uma acuação ilegal.” “Por quê?” “Porque eu falo português e eu digo: você está advertido, na outra eu o meto para fora.” Só que o cartão amarelo foi feito na Europa em 1970, porque os caras... uns falavam russo, outros falavam “baiano”, e não tinha jeito de conversar com o cara. Podia até falar russo, mas baiano o cara não falava. Muito bem, aconteceu o seguinte: como o brasileiro é que nem macaco, imita tudo, trouxeram o cartão amarelo para botar amarelo com amarelo [dois cartões amarelos resultam em cartão vermelho]. Muito bem, eu dei uma entrevista dizendo que eu era contra o uso do cartão, mas por força de lei eu uso.

[...]: É obrigado usar.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Fui chamado pela Federação e disseram: “O seu nome que ia de navio pra Fifa voltou, está voltando de lancha, porque seu nome já não está mais no caso da Fifa, você ficou uma semana na Fifa e já não está mais.” E então, tudo bem. E assim vem sucessivamente com os anos. Teve um ano, foi em 1977, em que eu tentei dar uma cacetada no Polozzi [ex-jogador de futebol] - que é meu amigo ainda -, e eu não consegui dar porque eu estava segurando a bola, e o cara veio para brigar comigo. Eu fui para cima dele de pontapé, a minha mão estava segurando a bola, só que eu não consegui acertar, porque dois policiais que estavam a paisana... Eu sei os nomes dos caras, mandaram até não envolver os caras, eram da Polícia Militar e pediram para não envolver os caras, porque os caras eram [...] e não sei o quê, e eu assumi e segurei o foguete, peguei 120 dias. Nessa oportunidade de 120 dias... Ficaram seis anos sem mandar ninguém para a Fifa, e quando eu peguei 120 dias mandaram dois de uma vez: “Olha, ele não pode ir, porque ele está...”. E eu vou lhe dizer uma outra passagem. Você se lembra do jogo Brasil e...

Silvio Luiz: Então, espera aí, só para engrenar a pergunta, foi o doutor José Ermínio de Morais que prometeu você para a Fifa?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não.

Silvio Luiz: Não foi ele então?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não. Foi o Paes Leme.

Silvio Luiz: Paes Leme.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Paes Leme. Paes Leme dizia que eu era um árbitro da Fifa e me cumprimentou e quase que estourou uma garrafa de champanhe, depois puseram ela de novo e guardaram na geladeira.

Vital Bataglia: Você está armado?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, não uso arma há três anos.

Silvio Luiz: Só quando ele [...]

Vital Bataglia: Há três anos, para sair um dia de Penápolis você teve que dar uns tiros lá.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Olha quem estava em cima, olha quem estava lá, quem estava em cima do puleiro lá! [apontando para uma pessoa da banca; Osmar Santos sorri]

Vital Bataglia: Mas você passou uma imagem de uma pessoa truculenta do tempo do “eu quebro e eu arrebento”. Então, para lembrar o telespectador que o conhece, você serviu ao Doi-Codi em 1972 e 1973. [Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna. Órgão de repressão política e inteligência do regime militar (1964 - 1985)]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, 1971 e 1972.

Vital Bataglia: 1971 e 1972.

Dulcídio Wanderley Boschilla: A época mais perigosa.

Vital Bataglia: Depois que você deserdou da PM [Polícia Militar], você foi preso junto com um elemento que naquela época era do Esquadrão da Morte, o Zé Guarda, e fez uma boa amizade com ele. Quem é o Dulcídio? É esse truculento do tempo “eu quebro e eu arrebento” ainda?

Augusto Nunes: Vital, Dulcídio, eu quero aproveitar essa pergunta do Vital para lembrar também uma preocupação de alguns telespectadores. O José Moreira, do Jardins [bairro nobre de São Paulo] – aí você dá uma resposta só - ele pergunta o seguinte: “Por quanto tempo...” - depois estas perguntas todas serão encaminhadas a você, cópias.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Tudo bem.

Augusto Nunes: “Por quanto tempo você trabalhou no Doi-Codi? Você se envergonha dessa época? Você se aproveitou dessa época para ser um trampolim para ser juiz de futebol?” Luiz Antonio, de Moema [bairro de São Paulo/SP]: “Eu gostaria que você falasse sobre sua convivência com órgãos de repressão na época da ditadura militar e queria confirmar, saber se é verdade que seu apelido na época da repressão era Capitão.” Queria que você respondesse.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Nem a cabo eu cheguei. O problema é o seguinte: eu trabalhei, não me envergonho de ter trabalhado. Quando terminou a Guarda Civil, em 1970, eu fui para a Polícia Militar. Eu não sabia nem marchar, aí me deram na Polícia Militar. Eu não peguei fuzil porque eu era sargento. Se eu fosse cabo eu estava perdido, [por]que iria carregar fuzil e fazer rastejamento e coisa que o valha. Eu fiquei na Polícia Militar e não tinha jeito, eu não me coadunava - aquele não-militar apitando futebol e a Polícia Militar. Porque o regime [disciplinar], antes da Guarda Civil chegar, o regime era muito rígido; depois amoleceu um pouco mais e tal e coisa, um regime mais suave do que 1970. E eu pedi para um amigo meu, que até hoje deve militar no exército: “Você não tem um lugar para me arranjar?” Porque aos políticos eu não podia pedir, porque se eu peço para um cara dentro da Federação ou ligada a qualquer clube eu fico com rabo preso e danço, então eu não peço. Eu sei que eu pedi para esse sujeito. “Eu vou lhe arranjar.” E quando eu vi deu minha transferência para o Doi-Codi, segundo exército, na Rua Tutóia [rua de São Paulo/SP], e eu fui para lá.

Osmar Santos: Você foi torturador?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Você está brincando? Olha bem para a minha cara.

Silvio Luiz: Ele quer saber o que você fazia no Doi-Codi.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu trabalhava, eu escrevia à máquina, eu escrevia à máquina, eu escrevia à máquina... Trabalhava das nove da manhã às onze, almoçava lá, e trabalhava das duas até às quatro, quatro e meia, cinco horas. Eu vou dizer muito sinceramente, a minha função era uma só: eu prestava contas quando se fazia uma viagem a qualquer lugar e vinha despesas de viagem e eu passava no ali no livro-caixa e dava baixa. [Era] eu quem controlava os gastos.

Oldemário Touguinhó: Você dava baixa também dos caras que “fechavam direto” ou não?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não sei se fechavam, porque eu nunca vi ninguém “fechar” ninguém.

Oldemário Touguinhó: É? Nunca viu?

Dulcídio Wanderley Boschilla: É, nunca vi ninguém “fechar” ninguém.

Oldemário Touguinhó: Você só dava baixa na despesa? [ri após pergunta]

Dulcídio Wanderley Boschilla: E se você me diz se tem cacetada e coisa que o valha, eu vi cacetada na Polícia Civil.

Osmar Santos: O que é “fechar direto”?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Fechar direto - ele já fez sinal -, que é dar tiro. [faz um gesto de com as mãos de exibir e atirar com uma arma]

Augusto Nunes: Agora, Dulcídio, você não testemunhou de forma alguma nenhum caso de tortura, nem viu, nem ouviu nada?

Dulcídio Wanderley Boschilla: [perempetório] Não. Se eu tivesse visto isto eu falaria. Porque de acordo... eu sou muito sincero, se existiram excessos da repressão, também existiram excessos da situação.

Juca Kfouri: Deixa eu só esclarecer uma coisa, Dulcídio, em relação a isso. Você trabalhava na parte da frente da delegacia da Rua Tutóia ou na parte do fundo?

Dulcídio Vanderley Boschila: Não, eu trabalhei na parte do lado de dentro [alguém ri ao fundo]. Eu não trabalhava na delegacia não, eu trabalhava fora do movimento.

Juca Kfouri: Você entrava por aquele “portãozão” do lado esquerdo?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Entrava com meu carro por aquele “portãozão” grande ali, e [o] guardava [lá].

Juca Kfouri: Você nunca ouviu “nego” berrando ali?

Dulcídio Wanderley Boschila: Eu nunca trabalhei. Se tivesse que fazer alguma coisa de modo geral... - e isso no passado também acontecia na polícia - ninguém dá um tapa no cara de dia.

[...]: De dia?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Para começar.

Silvio Luiz: Dá de noite. E você dá tapa de noite ou de dia? [risos, entrevistado sorri fazendo uma careta com a língua]

Augusto Nunes: Você sabia que havia tortura na época, Dulcídio?

Silvio Luiz: Dava de noite ou de dia?

Augusto Nunes: Silvio, só um momento. Você sabia que havia tortura naquela época?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Olha, eu vou te dizer uma coisa sincera.

Vital Bataglia: Agora o encostaram na parede.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Me encostaram na parede.

Osmar Santos: E você queria o quê, moleza?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Vocês...

Vital Bataglia: Fechava os olhos.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, aqui não tem nada disso, aqui não tem nada disso. O Vital Bataglia me conhece há muito tempo, tem gente que me conhece há muito anos e sabe da minha conduta. Se sabia que se cometiam excessos em vários estados, talvez em São Paulo, mas na mesma proporção... - vocês me dêem permissão agora, por favor, eu quero [falar] sem que interfiram.

Augusto Nunes: Claro.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Se fala muito com referencial excesso do lado do militarismo, mas nunca se disse nada a respeito do excesso do outro lado. Nunca se disse de tantos elementos que tombaram por serem policiais e defenderem um banco quando foram fazer expropriações de grana [refere-se a ações da resistência ao regime militar]. Eu perdi um amigo na rua Piratininga [rua de São Paulo/SP] que tomou um tiro na testa e quando estava caindo tomou outro no meio do “gogó”, porque ele estava fardado e viu um assalto e foi tentar defender um banco, aí tinha um Lamarca [Carlos Lamarca, lutou contra o regime militar em uma organização de guerrilha denominada Vanguarda Popular Revolucionária] e deu-lhe um tiro na testa e outro no “gogó” - na rua Piratininga, amigo meu. E ninguém diz isso, meu Deus! Na rua Lins de Vasconcelos [rua de São Paulo/SP], um ou dois caras fugindo numa viatura capotaram o carro e eles saíram correndo, entraram num fusca vermelho e abriram a porta e falaram para o cara: “Desce!” E era um soldado, era um sargento da PM fardado. [Faz uma onomatopéia de tiro] Péim! Deram um tiro nele e mataram o cara sentado no volante. O cara ia para casa. E nunca ninguém diz isso.

[...]: Mas com isso você quer justificar...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Espera aí, espera aí, espera aí! Não, não, não, eu estou falando. Agora não! Vocês só atacam, atacam, atacam. Eu não quero justificar nada! Se existiram excessos de um lado, existiram excessos do outro também, meu Deus, e nunca ninguém disse isso! Nunca ninguém disse isso! Tem uma coisa, um cara... Fizeram uma “caguetagem” na rua da Móoca [rua de São Paulo/SP], tinha um cara que ia comer todo sábado feijoada lá, e o cara está sendo procurado. Foram lá, pegaram o cara. O dono do restaurante, depois de um mês e pouco, foi metralhado seis horas da manhã quando ele foi abrir o empório dele lá, o restaurante. Agora você me pergunta: “Por que ele foi metralhado?” Porque alegavam que esse português, coitado, foi ele que caguetou. E o português estava em Lourdes [cidade da França] - em Lourdes! pagando uma promessa, e nunca ninguém publicou esse tipo de coisa. O que me revolta às vezes é esse tipo de comportamento.

Augusto Nunes: Dulcídio, por favor, o Ailton está querendo fazer uma pergunta.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Fala.

Ailton Fernandes: Eu gostaria, aproveitando esse gancho para o telespectador ter mais uma visão da sua personalidade, vamos mostrar também um outro lado. Por exemplo, eu queria que você me falasse, Dulcídio: você é um árbitro durão que trabalhou no Doi-Codi, um árbitro que até tirou revólver, muitas vezes sacou de revólver no interior para sair vivo, para se posicionar em relação ao que estava acontecendo no campo de futebol. Você também, por outro lado, trabalhou numa escolinha, num [...] com crianças. Eu queria que você me falasse [sobre] isso mais uma vez.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Isso é mais recente. Você me dê só um minuto, isso é mais recente, esse é o outro lado da minha vida, isso é outra faceta da minha vida. Vou chegar lá. Você me conheceu nessa oportunidade, mas a gente tem muita coisa ainda para poder dizer e nessa uma hora e meia não vai dar. Voltando a você [aponta para Flávio Adauto], o que existe é o seguinte: eu gosto de voltar na coisa e explicar para não pairar dúvida.

[sobreposição de vozes]

Oldemário Touguinhó: Eu estou ouvindo com tanta atenção que eu estou até com pena do pessoal do Doi-Codi, coitados. [ri em seguida]

Augusto Nunes: Oldemário, um segundinho só. Inclusive...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu nunca tive pena de ninguém, não tenho pena de ninguém.

Augusto Nunes: Dulcídio, Dulcídio, Oldemário!

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu nunca tive pena de ninguém, mas nunca ninguém... Não é pena.

Augusto Nunes: Inclusive, Vital, vamos ouvir.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Aí já partiu um negócio de gozação! Se é gozação eu já vou gozar também! Pô!

Augusto Nunes: Dulcídio, não, inclusive, porque o assunto é bastante sério. Inclusive o Vital falou e ele fez uma menção ao Esquadrão da Morte. Se você quiser você pode até explicitar. Agora, eu queria que você incluísse isso na sua resposta para não deixar nada sem responder.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não tive nada a ver com o Esquadrão da Morte como colocado, eu nunca... Não me envolvo no meio disso, não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe.

Vital Bataglia: Quando você foi preso no Barro Branco... [academia de formação de policiais em São Paulo]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu fiquei junto com o Zé Guarda no mesmo alojamento, fiquei noventa e três dias preso.

Vital Bataglia: O Zé Guarda era um... [interrompido]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, eu fiquei fazendo um curso de aperfeiçoamento. Não fiquei preso.

[...]: Então, é essa a pergunta do Bataglia.

Vital Bataglia: Então você acabou fazendo amizade com o Zé Guarda?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Foi, é meu amigo. Já o conhecia quando ele trabalhava na Polícia Civil.

Vital Bataglia: Então você não teve nada a ver com o Esquadrão da Morte?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu? Só faltava me essa! Eu trabalhei na Rota [Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, é uma das modalidades do policiamento de choque em São Paulo], eu trabalhei no Dops [Departamento de Ordem Política e Social – órgão policial de repressão política e ideológica que operou durante o regime militar], trabalhei no Doi-Codi, e daí? Eu fiz muitas vezes... Me levantaram, meu apelido era Juiz... E agora tem outra coisa que vocês não sabem - não sei nem onde que está a câmera, ah, tá aqui [olha e aponta o dedo para a câmera]. O problema é o seguinte: descobriram um aparelho - [como] eles chamavam um apartamento -, chegaram lá, e se mataram ou se não mataram eu não sei, prenderam os caras. E me chamaram e disseram assim: “Vem cá!” Tinha uma pasta marrom, e me disseram assim: “Abre.”

[sobreposição de vozes]

Oldemário Touguinhó: [...]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Espera aí, espera aí! Eu abri... Eu era árbitro de futebol.

Oldemário Touguinhó: Nessa época quando lhe chamaram para você mostrar, você estava trabalhando aonde?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu trabalhava no Doi-Codi. Me chamaram e disseram assim: “Abre!” Eu abri, e na primeira página tinha minha fotografia de recorte de jornal e embaixo escrito: “Dulcídio Wanderley Boschilla, árbitro de futebol da Federação Paulista de Futebol” E embaixo: “torturador”; [com] um risquinho e em vermelho: “condenado à morte”. [entrevistado faz uma pausa] Os caras que mataram o tenente Mendes a coronhadas lá em Registro já tinham me julgado também como terrorista, e eu também iria “dançar” como o Otavinho do Rio de Janeiro - você é do Rio [Oldemário Touguinhó é carioca]. Estava numa cabine telefônica e chegaram com uma calibre doze e deram um tiro nas costas dele. [Octávio Gonçalves Moreira Júnior, delegado do Dops paulistano, assassinado em 1972 em visita ao Rio de Janeiro]

Oldemário Touguinhó: Qual Otavinho?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Otavinho, delegado do Rio. [entrevistado se enganou, pois o delegado estava baseado em São Paulo]

Augusto Nunes: Dulcídio, por favor. Você está apresentando casos que aconteceram envolvendo ações praticadas pelos terroristas.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Dos dois lados, todo mundo fez excesso.

Augusto Nunes: Eu lhe pergunto o seguinte: se a situação se repetisse hoje de alguma forma, você voltaria a trabalhar no Doi-Codi?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu trabalharia aonde os caras me mandassem trabalhar, porque eu tenho consciência do que fiz [peremptório] e eu nunca fiz nada que minha consciência hoje me pesasse e [que] amanhã eu não pudesse olhar para os meus filhos e meus netos. Eu nunca fiz nada! Eu nunca dei um tiro em ninguém, eu nunca pendurei ninguém. Eu já dei murro em muita gente, e digo isso mais uma vez: eu saía com a Rota e me avisavam pelo rádio: “Tem aqui uns três ou quatro traficantes de porta de escola”, e eu digo: “É comigo mesmo!” Antigamente era maconha, hoje é cocaína, já é mais evoluída a coisa. Eu pegava a viatura e ia para lá.

Vital Bataglia: Você foi inocente onde, Dulcídio?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não, eu fiz a minha obrigação.

Vital Bataglia: Então isso que eu queria saber. Na sua opinião é tudo... [interrompido]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não terminei de responder aqui, meu Deus!

Augusto Nunes: Então termina.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu saía, ia com a viatura, pegava o sujeito e dizia assim: “Você vai ter que brigar comigo! Você vai dizer onde é que está a sua maconha, vou arrebentá-lo no meio!” Arregaçava a manga... [faz um gesto simulando arregaçar as mangas de sua camisa] Não, a manga era curta... Partia para cima do sujeito e ele dizia assim: “Tá em tal lugar!” E ia para lá e tinha trinta quilos, 15 quilos, vinte quilos embaixo de uma cama, embaixo do guarda-roupa ou coisa que o valha. Então, isso eu fiz muito. Eu nunca prendi ninguém para dar paulada, eu nunca dei um tapa na orelha de um cara preso. Eu acho [isso] uma covardia. Agora, vi muita gente pendurada, porque acho que vagabundo... Eu já conheci um cara que disse assim, estava preso: “Você vai falar ou não?” “Não vou, doutor, só falo se me pendurar” E eu fiquei olhando: mas o quê que é isso?

Augusto Nunes: Mas, Dulcídio, você é uma pessoa que parece conviver com naturalidade com a violência. Você não é exatamente um pacifista e, por isso que você está dizendo, você vê isso acontecer e isso não o abala?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, não pelo contrário, a sua função aqui é uma e a função de policial é outra. A função de policial... Eu fui policial durante 28, 27 anos, e a função do policial não vê coisas bonitas.

Vital Bataglia: Dulcídio, é verdade que seu pai era muito violento com você? Chegou a dependurá-lo um dia descendo de um poço?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Meu pai? Eu apanhava de manhã, de tarde, de noite. Ele acordava e em homenagem me batia, é pau! [diz num tom conformado]

Vital Bataglia: Era isso que eu queria saber: você conheceu o doutor Augusto Nunes?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Criança que apanha, criança que apanha hoje, amanhã e depois, depois... Quando meu pai vinha falar comigo eu urinava nas calças: “ah, meu Deus do céu! Medo do meu pai, medo!” Mas nunca respeitei meu pai.

Osmar Santos: Tudo que você está dizendo...

Augusto Nunes: Osmar.

Osmar Santos: Tudo que foi feito, foi necessário na sua opinião?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não.

Osmar Santos: O Doi-Codi deveria ter existido?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não.

Osmar Santos: Também as torturas?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Também não. Nem torturas, nem mortes, nem assassinatos, nem sumiços, nem o diabo a quatro.

Osmar Santos: É uma coisa que você não quer ver repetir no Brasil?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu gostaria que nunca se repetisse.

Juca Kfouri: Dulcídio, você deu talvez uma pista para que a gente entenda a sua maneira de agir, o seu comportamento, a sua personalidade. O seu pai era tão violento que, ao se aproximar de você, você disse que você fazia xixi nas calças e que você, em função disso, pelo terror que foi sua infância, nos seus filhos você não bota a mão.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, que é isso! Um dia a minha filha, ela era pequenininha, estava ensinando o be-a-bá, e ela: “Ahn?” “Be-a-bá?” “Bá.” Em meia hora eu aprendi o be-a-bá. Eu não sabia o bê-á-bá e aprendi o bê-á-bá. Dei-lhe uns “catiripapos” [de] cinta, na parte que não dói. [risos] Olha, meu filho, cintada na cara dói, mas na parte baixa não dói, viu? Eu tomava no meio da cabeça, no meio da cara...

Augusto Nunes: Flávio... Antes da pergunta do Flávio eu queria que você descrevesse um pouco mais nitidamente como era essa sua relação com seu pai?

[sobreposição de vozes]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Meu pai tá vivo.

Vital Bataglia: Não, eu sei, mas foi verdade isso?

Dulcídio Wanderley Boschilla: O velho está vivo, eu não gosto dele. Se ele está me ouvindo ele sabe disso, eu não gosto dele. Respeito como meu pai, mas não gosto dele, porque pela educação que ele me deu eu teria que... é que minha mãe é muito boa, minha mãe é a imagem da Amélia. [Samba composto em 1941 por Mário Lago e cantado por Ataulfo Alves, faz referência a uma mulher dedicada ao marido e que não liga para os luxos da vida]

Oldemário Touguinhó: [rindo] E [se] não fosse, hein!

Dulcídio Wanderley Boschilla: Minha mãe é uma loucura. Minha mãe é muito boa. Minha mãe convive com meu pai...

Ailton Fernandes: Seu pai queria que você fosse árbitro de futebol?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Quem?

Ailton Fernandes: Seu pai.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu fiz foi uma briga com ele. Nós discutimos, eu briguei e eu disse assim: “Eu vou levar seu nome onde ninguém nunca levou na sua família.” E ele disse: “Só se você matar alguém e sair publicado no jornal.” Hoje...

Osmar Santos: Mas será que ele era culpado? Porque ele deve ter passado...

Oldemário Touguinhó: Ele gostaria que você fosse o quê?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Meu pai, meu pai...

Oldemário Touguinhó: Ele gostaria que você fosse o quê?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Talvez que vivesse na sarjeta, pedindo esmola, para ninguém me dar nenhum cigarro.

Oldemário Touguinhó: E por que essa raiva dele toda com você? O que você acha? Porque normalmente nenhum pai é assim, como não é você com seus filhos.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Normalmente, mas eu tenho um pai que é diferente dos outros.

Oldemário Touguinhó: Mas então você acha que foi por que razão? Por que razão?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não sei, talvez pelo temperamento dele, talvez pela maneira de ser.

Juca Kfouri: Mas você estava dando cintada na sua filha que não aprendia o bê-á-bá e não acabou.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Aprendeu.

Juca Kfouri: Na cintada.

Dulcídio Wanderley Boschilla: O be-a-bá, be-e-bé, bi-i-bi, be-o-bó, be-u-bu, e isso aí....

Juca Kfouri: Mas o método, mas o método do seu pai...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Mas uma! Uma [cintada] certa. O meu moleque está saindo comigo um dia: “Eu quero sorvete!” Eu: “não compro”. E quando eu olho meu moleque está plantando bananeira no chão, rolando pra lá, rolando pra cá. Ah, mas não tive dúvida, cinta de novo e [onomatopaico] “pá” , nunca mais ele se jogou no chão.

Silvio Luiz: Mas o cartão amarelo... Ele usava sempre o cartão amarelo que você nunca quis usar.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não adianta você... Pau no moleque hoje, pau no moleque amanhã, depois de amanhã se torna um sem-vergonha como eu fui. [Tinha] medo do pai, mas não respeito. Então eu prefiro, é o que eu digo sempre, eu prefiro que o cara não tenha medo, mas respeite. Por isso que no futebol ninguém me chama de senhor, me chamam de você e me respeitam... [interrompido]

[...]: [...]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, nada disso.

Juca Kfouri: Mas, Dulcídio, você não acha, honestamente, que a par de todas suas qualidades... Aliás o Augusto na abertura do programa fez uma homenagem que raros árbitros que sentarem aqui poderão ouvir: “Tido e havido como um dos mais competentes, mais sérios trabalhos do futebol brasileiro, mais honesto”, isso ninguém discute, né? Mas você não acha que você é exageradamente prepotente quando você atua no campo de futebol?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não. Não sou. Nunca botei o dedo na cara de um jogador! Eu sempre dizia assim: “Você sabia que a sua mãezinha não é santa? [moderador ri] Porque o que você fez aqui tinha que colocar para fora, o que você fez foi uma “cafagestagem.” “Ô, Dulcídio, desculpe.” Ou: “Dulcídio, pô, eu tive que matar a jogada.” “Então na outra eu vou lhe dar um revólver para você matar o cara.”

Juca Kfouri: Eu acho que você está com algum problema de memória.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não.

Juca Kfouri: Dulcídio, eu quero lembrar para você um lance...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Pode lembrar.

Juca Kfouri: Um lance, porque eu vi anteontem, acho que na própria TV Cultura.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Ontem.

Juca Kfouri: Exatamente, ontem, aqui na TV Cultura. Final Palmeiras e Inter de Limeira. [final do Campeonato Paulista de 1986]

Dulcídio Wanderley Boschila: Em cima do Éder. [atacante do Palmeiras]

Juca Kfouri: Em cima do Éder. Se não, [se] fosse comigo.

Dulcídio Wanderley Boschilla: É, é meu amigo...

Juca Kfouri: Não, depois...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Ah, bom, por isso que você nunca foi...

Juca Kfouri: E inclusive você não viu que eu estou pisando no pé dele, para ele não fugir.

Silvio Luiz: É, depende do jogador. [risos]

[...]: Fica amigo.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Ele é meu amigo, o de Minas Gerais. Ele é meu amigo. Só que aquela hora ele merecia; ele deu um safanão na cabeça do jogador e ele merecia expulsão. Eu não expulsei o jogador, fui pra cima dele e deixei ele em ponto de “traque” e ele continuou jogando.

Augusto Nunes: Silvio Luiz vai falar; depois, Flávio Adauto.

Silvio Luiz: Eu já estive lá aonde ele esteve. Se um time de futebol não quiser que você termine o jogo, você não termina. Eles o enchem tanto, provocam tanta confusão... Então o que ele faz? O Aragão [árbitro] é meu amigo, [mas] o Aragão é muito mais prepotente do que ele. Ele, pelo contrário, ele faz amizade e o dedo em riste às vezes não quer dizer nada.

Ailton Fernandes: Silvio, aproveitando esse gancho, o Dulcídio poderia lembrar um fato envolvendo o jogo Internacional e Paulista [pelo Campeonato Paulista de 1986] no final do jogo... esse jogo que provocou o rebaixamento do Paulista [para a segunda divisão], em Jundiaí. No final do jogo, como é que foi aquele episódio envolvendo Humberto, no “finzinho” do jogo? O time do Jundiaí perdendo o jogo e automaticamente sendo rebaixado?

Dulcídio Wanderley Boschilla: O Humberto, que é Atleta de Cristo! Haja Cristo, hein! O cara vem e me diz assim: “Me bota pra fora, me põe pra fora para melar essa desgraça - o Paulista”. Para melar! E eu digo: “Cafajeste, vai continuar jogando, com Cristo ou sem Cristo, mas vai continuar jogando.” Porque ele queria melar o jogo. Se eu fosse prepotente: “Fora você.” - ele não me xingou, mas [tiraria] fora. “Pelo amor de Deus, me põe pra fora, me põe pra fora...” - e me enchendo o saco.

Augusto Nunes: Flávio Adauto.

Flávio Adauto: Veja bem, são mais de vinte anos como árbitro. Competente pelo visto ninguém vai discutir e nem discordar. Agora, esse seu estilo um pouco truculento fez com que você agredisse dirigentes; se envolvesse nas mais incríveis confusões por esse estado afora; não chegasse à Fifa; tropeçasse no meio do caminho, se levantasse de novo; fosse acusado de ser subornado, ou não; acusado de corrupto... Um mundo de coisas aconteceram ao seu redor. Se você tivesse que começar apitar futebol outra vez, você seria o mesmo Dulcídio? Ou você, sendo considerado cabeça oca, em alguns momentos, acha que teria que ter mudado, Dulcídio?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não sei se eu daria para o “troço”, mas eu seria completamente diferente, porque... Aqui é um segredo – estou em final de carreira, posso falar isso.

Silvio Luiz: Você ia para Fifa.

Dulcídio Wanderley Boschilla: É isso que eu ia falar. Se eu fosse um vaselina, puxa-saco, subserviente, cumpridor de determinações - não são todos hein, eu não estou dizendo isso - mas se eu fosse isso, talvez eu tivesse apitado duas ou três Copas do Mundo. Como eu não me sujeito a esse tipo de comportamento e condeno meus amigos que o fazem... Condeno veementemente, todo mundo sabe disso, sou contra esse tipo de coisa. Cheguei no Narenão e disse assim pro Narenão: “você é sem vergonha, porque você pede escala no meio dos árbitros.” E falei: “e não adianta chorar, hein, não adianta chorar!”

Vital Bataglia: A conseqüência de que você está falando foi o Armando Marques, depois daquele célebre jogo entre Palmeiras e São Paulo [com] gol do Leivinha? [Na final do Campeonato Paulista de 1971, Armando Marques anula o gol de Leivinha do Palmeiras, indicando que o atacante teria feito o gol usando sua mão. O São Paulo vence por um a zero e sagra-se campeão. No dia seguinte, jornais estampam foto que comprova claramente que o jogador não usou a mão].

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu fiquei três anos brigado com Armando, ele brigando comigo, porque no vestiário...

Vital Bataglia: Mas ele que interrompeu sua carreira?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, não... Tem um outro “lance” também que vocês não sabem - talvez ninguém saiba. Vocês se lembram Brasil e Seleção Paulista, uma das poucas vezes que uma Seleção Brasileira jogou contra uma seleção de um estado? [amistoso realizado em 16/06/1977] Foi aqui no Morumbi e eu bandeirei para o Wright. [José Roberto Wright, ex-árbitro] Cruzaram, alçaram uma bola na área da Seleção Brasileira e o Marinho Chargas [jogador da Seleção Brasileira] subiu e meteu um soco na bola - mas na minha cara! - meteu um soco na bola!

Flávio Adauto: Pênalti que o Cláudio Mineiro cobrou.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Espere aí, mas pênalti... Quando é pênalti, se o árbitro não vê o bandeira levanta e marca. Eu levantei a bandeira e a jogada prosseguiu - foi na área da Seleção Brasileira. Os jogadores na área da Seleção Paulista pararam e me apontaram, apontavam o Dulcídio e eu com a bandeira em pé. O Wright pegou a bola e nem veio falar comigo, chegou lá botou na [marca da] cal e... Nos vestiários eu vi muita conversa de “nego” que até hoje comanda a Fifa, não CBF, mas Fifa ou coisa que valha, não sei se administrador ou não sei o que faz na Fifa ou coisa que o valha, e dizia assim: “Você não é brasileiro!”

Juca Kfouri: Você está falando do Abílio? [Abílio de Almeida]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não estou falando nome nenhum, por enquanto eu não estou falando nome nenhum.

Juca Kfouri: Que é administrador lá na Fifa?

Dulcídio Wanderley Boschilla: [desconversando] Não, ainda está envolvido no negócio da Fifa. Dizia assim: “Você não é patriota! Onde se viu um bandeirinha dar pênalti contra a Seleção Brasileira, marcar pênalti?” E eu marquei. Em 1971 quando também [houve] o gol do Leivinha, eu corri pro meio do campo [indicando a validação do gol] - o gol foi de cabeça. Aí no vestiário perguntaram: “Por que você correu para o meio do campo?” “Eu corri porque o gol foi legítimo!” “Então você é um colega desleal.” Eu falei: “Ué?” Correr para o meio do campo, dar o gol - que foi - e quando eu vi estava aquele tumulto desgraçado. O Major Bonete estava no banco; depois corri eu, o [...] de Abreu e mais uns três ou quatro para cercar o Armando, porque o [...] pediu para o... Tinha um preparador físico do Palmeiras que parecia um guarda-roupa de casal, e pelo papo que eu estava vendo era para terminar o jogo, o cara correr e dar uma cacetada no Armando. Fui eu, entrou um monte de gente, e nós ficamos protegendo o Armando na saída. E isso pesa muito, com referência... - como ele diz, na minha cabeça oca. Eu prefiro... Quando chega a conversa nele e dizia o seguinte: “O negócio é o seguinte: precisa ajudar?”

Flávio Adauto: Dulcídio, é o seguinte: já chegaram para você e disseram “precisa ajudar” determinado time?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não terminei de falar.

Flávio Adauto: Então.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu digo: “Cuidado, que se terminar de falar vai levar uma porrada no meio da orelha.” “Não, mas você não entendeu.” “Eu tô entendendo perfeitamente.” Vou dizer o nome, era diretor do departamento de árbitros, Nelson Corban. Ele disse assim: “Dulcídio, esse time está classificado. Esse outro que você vai apitar não está. Esse que está classificado tem cinco, dez, quinze caras na torcida, o outro tem muito mais. Se errar, erre a favor desse que já está classificado.” Eu falei: “Não vou nesse jogo.” “Não, você não entendeu.” “Eu entendi.” - na arbitragem, “orra” se eu entendi. “Então, vai lá e apita o que você sabe.” “Aí tudo bem, aí tudo bem!” Eu fui, era o jogo Portuguesa e o Corinthians: cinco a zero para a Portuguesa, e era porque [...]

Oldemário Touguinhó: [interrompendo] Dulcídio, quem é o responsável pela arbitragem na Fifa, com respeito a toda América do Sul - principalmente aqui na América do Sul -, como tinha falado o Juca, é o Abílio de Almeida.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não sei quem é que comanda o negócio da Fifa.

Oldemário Touguinhó: Bem, eu sei. Nós sabemos aqui quem comanda e quem decide, quem indica e quem corta, ou quem diz que sim ou que não - mesmo [com] a [Confederação] Sul-americana toda levando representante, coisa e tal - o Abílio disse que não, [é] não. Você acha que o Abílio tem algum problema pessoal com você para nunca ter o defendido?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu nem conheço o Abílio. Eu não conheço o Abílio, nunca conversei com ele! Eu, a última vez que fui na CBF - fui outro dia que me deram uma medalhinha - me convidaram para ir para lá. Quem foi também? Eles foram também, lá de cima [aponta para o quadro de convidados do programa]. Eu fui. Cheguei no dia, e os caras foram numa quarta-feira ou quinta, no sábado, não sei. E ficaram lá e se divertiram. Cheguei duas horas antes de voltar, e aí eu fui. A última vez que eu fui lá, a última vez anterior a essa [a Confederação] se chamava CBD, e o Heleno Nunes era Presidente [1975 – 1980] da CBD – [irônico] faz pouco tempo...

Augusto Nunes: Dulcídio...

Silvio Luiz: Alemão, por que você nunca se ligou muito ao Sindicato de Árbitros?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Primeiro lugar, porque é uma classe muito desunida.

Silvio Luiz: Não, no sindicato. Que a classe é desunida você não precisa falar para mim, porque eu já conheço.

Dulcídio Wanderley Boschilla: O Sindicato é pior ainda!

Augusto Nunes: Dulcídio, só um segundo, aproveitando a pergunta do Silvio Luiz, tem uma pergunta que foi encaminhada pelo Euclides Zamperetti Fiori.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Zamperetti Fiori, um “xarope”.

Augusto Nunes: [rindo] Começou a responder [a pergunta]. Ele se apresenta como árbitro e diz o seguinte, que você estava sendo cogitado para a presidência do Sindicato, e você disse que os árbitros não o merecem. O que você quis dizer com isso?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu quis dizer que eles são muito desunidos. O Astolfi [José Astolfi] está querendo trazer a escala de árbitros para a porta da rua, como é que [se] chama? A [rua] Bororó, né? Vai morrer [gente], todo dia tem que ter um rabecão para tirar um cara de lá. Todo dia tem que ir um rabecão, polícia, porque vai ter um cara morto à faca, à tiro, mordida...

[...]: Isso se o Sindicato falar, não é Dulcídio?

Dulcídio Wanderlry Boschilla: Isso se o Sindicato fizer escala.

Ailton Fernandes: Mas você não acha que pelo menos nesse aspecto sai um pouco do âmbito da Federação?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Teria que sair, por obrigação teria que sair.

Ailton Fernandes: Diminuiria as pressões envolvendo os dirigentes?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Diminuiria não, não existiria pressão. Mas aí a pressão é de quem escala no Sindicato. Então tem que ser uma porta de ferro trancada, cinco cadeados, cada um com cadeado trancado. Na hora de sair escala não pode ficar ninguém na rua, porque se ficar “nego” vai atropelar o outro para poder pegar o lugar. É uma loucura.

Augusto Nunes: Dulcídio.

Osmar Santos: Chegando lá não tem nada disso.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Aí é diferente.

Augusto Nunes: Dulcídio...

Osmar Santos: Agora eu queria saber o seguinte: Dulcídio, por esse motivo que você não apitou a final do Campeonato Brasileiro? [O entrevistador refere-se na realidade à final do módulo verde, chamada de Copa União, disputada entre Flamengo e Internacional em 13/12/1987. O Campeonato Brasileiro de 1987 dividiu os clubes participantes em quatro módulos: verde, amarelo, azul e branco] Porque é a coisa mais estranha, pela primeira vez os dois clubes pediram [...]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Entraram em acordo. Mas como eu normalmente puxo o meu tapete...

Osmar Santos: Mas o que aconteceu?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu lá sei! Disseram que porque eu dei aquela entrevista na rádio eu não posso apitar a final, porque os clubes quiseram, mas pode ser que eu não queira e tal...

Oldemário Touguinhó: Eu posso dizer a você, estava aqui nas minhas perguntas, a pergunta é a seguinte: todo mundo no Rio achava que você seria o árbitro da final, porque de fato ninguém... Todos sabem aqui do meu temperamento, não sou de andar fazendo média, nem sou torcedor de juiz e nem de cartola. Acontece uma coisa: todo mundo achava no Rio que você seria o juiz da final, principalmente pelas suas boas atuações; e em segundo, pelo comportamento que você teve naquele jogo Flamengo e Vasco, em que a CBF mandou você apitar o jogo às 18:00 horas, e a Federação [carioca], junto lá com o Eurico Miranda, levou aquele árbitro Aloísio Felisberto para apitar o jogo, e você no peito disse que o jogo seria às 18:00 horas. Então eu tinha certeza absoluta de que a Cobraf - o João Elis Pires e o grupo dele - iria indicar você para apitar a final. Quando saiu a relação não estava o seu nome. Então eu vou dizer para você a conclusão que eu cheguei indo constantemente na CBF. Eles tiraram você para fazer média com o juiz que foi apitar a final, o Aragão, porque logo depois, dentro daquele tumulto todo, o Aragão teria que ir participar de um julgamento com respeito àquele caso do Bangu.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Do Bangu lá no [campo do] Sport. [O presidente do Bangu à época, Castor de Andrade, fora atingido por uma pedra, na partida válida pelo módulo amarelo entre Sport e Bangu]

Oldemário Touguinhó: Do Bangu contra o Sport, e o que aconteceu? Eles resolveram fortalecer o Aragão e eu perguntei também a um membro da Cobraf: “Por que o Dulcídio não apitou esse jogo, se era um juiz indicado?” “Porque não fomos nós que indicamos o juiz da final.” Então o juiz da final foi indicado pelo Nabi Abi Chedid. [Cartola, então vice-predisente da da CBF]

Augusto Nunes: Dulcídio, o que você acha disso?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu acho que isso daí é mais um “chapelote” que eu tomei, mais um chapéu que eu tomei dado pelo Nabi.

Augusto Nunes: Você tem uma pergunta para fazer e depois eu quero fazer, chamar uma pergunta do ex-jogador, ex-goleiro e hoje técnico, Émerson Leão.

Silvio Luiz: A pergunta conduzida é a seguinte: pegando a esteira do Touguinhó, teve muito “neguinho” da Fifa aí que fez jogo às 5:00 horas da tarde...

Dulcídio Wanderley Boschilla: [fala simultaneamente] No vestiário, espera aí, espera aí, dentro do vestiário...

Silvio Luiz: E que foi suspenso pela CBF, disse que não apitava mais. Depois o Grupo dos Treze, do seo Carlos Miguel Aidar [presidente do São Paulo e também do Clube dos Treze à época], foi lá e aliviou a barra.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Claro. Quem é que estava lá comigo? Quem estava lá comigo? [aponta para os convidados para verificar se havia alguém com ele naquele momento] Não estavam? Não. O negócio é o seguinte, no vestiário: “Se o senhor não fizer o jogo, [histriônico] o senhor não se preocupe, mas está tudo sob controle!” Quem fez o jogo? O Arnaldo. [Arnaldo César Coelho, árbitro de futebol à época] “Vai ser eliminado da Fifa, não apita mais futebol. Eu vou mandar esse cara... Esse cara vai apitar partida de treino lá em Tabatinga!”

Oldemário Touguinhó: Posso explicar também...

Dulcídio Wanderley Boschilla: [interrompendo] Espera um pouco, espera um pouquinho só. Eu falei: “Tá brincando...” Eu estava com um copo de Coca-cola e eu dei uma copada, [faz um gesto de arremesso] meti o copo na parede de tanta baboseira que eu ouvi. Sabe o que ia ser o Arnaldo? O Arnaldo ia ser coroinha da igreja da Penha.

Silvio Luiz: O caso da CBF, o negócio é o seguinte: o castigo que o Wright levou por ter dado aquele gol para o Cruzeiro foi ir para Buenos Aires apitar um jogo internacional. Isso foi um caso que... [pela última rodada da fase classificatória do módulo verde, o Cruzeiro fez um gol irregular no Santos, mas validado pelo árbitro José Roberto Wright]

Augusto Nunes: Um minuto só, Oldemário.

Oldemário Touguinhó: Só rapidinho, duas coisas nesses casos aqui. No caso do Arnaldo, a Comissão Brasileira de Arbitragem, o João Elis Filho, se dependesse dos assessores dele, o Arnaldo estaria afastado da competição. O Arnaldo não foi afastado da competição porque na CBF, como você sabe, existe um duplo comando. O Otávio Pinto Guimarães preferiu se unir ao Grupo [Clube] dos Treze. Então o Aidar [Carlos Miguel Aidar], junto com o Otávio Pinto Guimarães, conseguiu ou fez ele impor a Cobraf a voltar o Arnaldo César Coelho. Então ele voltou porque o Aidar, através do Otávio, fez o Arnaldo voltar para a arbitragem.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Mas é isso que eu estou dizendo! Quando o cara falou aquele monte de coisas, eu falei: “Brincadeira, não vai acontecer nada.” E eu disse: “Eu vou ser crucificado pelo seguinte: preso por ter cão, preso por não ter cão. Eu não faço jogo às cinco horas, e vou “dançar”.” E eu dancei, porque me disseram: “Olha, a despesa de viagem, a taxa, o percentual, você vai receber tudo...” [dirigindo-se para a bancada de convidados] Você recebeu?

[...]: Nada.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Nem eu.

Augusto Nunes: Nós estamos terminando a primeira parte do programa e eu queria pedir que você respondesse a pergunta que foi gravada com o técnico Emerson Leão.

Emerson Leão: [vídeo] Dulcídio, como fica sua cabeça após ter marcado alguma coisa que não existiu?

Augusto Nunes: Dulcídio, tem muita gente querendo saber o que você tem, qual é o teu problema com o Leão também - vários telespectadores.

Dulcídio Wanderley Boschilla: O meu problema com o Leão? Não, não existe, eu nunca... [interrompido]

Vital Bataglia: Vários pênaltis, por exemplo, Palmeiras e [...]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Foi, mas aí foi um jogo num sábado. O São Paulo jogou no Peru, se não me engano, pela Libertadores [de 1987]. Quando bateram os pênaltis lá - não sei quem foi que chutou -, o goleiro do Peru veio na pequena área. Ele veio e ficou na frente da bola, quer dizer, não tinha jeito de passar de jeito nenhum. Eu vi e comentei com um cara, [por]que eu estava assistindo pela televisão direto: “Ah, se no jogo de amanhã, se tiver, volta [a cobrança].” E eu dei azar que no outro jogo tinha... E eu já vinha de domingo, eu já vinha do sábado, do jogo que eu assisti do São Paulo. E falei, inclusive para o Miguel, que era o goleiro da Portuguesa: “Olha, tem o seguinte: hoje, se tiver pena [pênalti], e goleiro mexer, volta.” E não deu outra, deu pênalti. [quando ocorre a cobrança de pênalti o goleiro deve ficar sobre a linha do gol, não podendo projetar-se à frente antes da cobrança pelo batedor. Caso isto ocorra o árbitro deve ordenar uma nova cobrança]

[...]: A pergunta do Leão que você...

[sobreposição de vozes]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Agora, com referência à regra: a lei é muito rígida com referência ao erro do árbitro. Depois ele reconhece que errou. Se eu der um gol impedido... [interrompido]

Flávio Adauto: Não muda nada também.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Muda, é lógico que muda – pela lei teria que mudar. Se eu der um gol impedido e esse gol... Vi na televisão: slow motion, passa na televisão, e põe lá foto, sharp e não sei o quê. O árbitro de futebol agora tem que ser que nem cavalo de corrida: foto sharp, pára, segura [a imagem]...

Oldemário Touguinhó: Tira-teima... [recurso visual utilizado em televisão para ilustrar as posições dos jogadores no momento crucial da jogada sobre a qual possa pairar alguma dúvida em relação à arbitragem]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Também, agora tem até tira-teima. Então o que vai acontecer? O árbitro, olhando o jogo, ele põe no relatório: “Aos tantos minutos assim, assim, ele deu gol, assim, assim, assim. Mas vendo [que] o gol não foi válido, entrou por fora...”

Vital Bataglia: Erro de direito.

Dulcídio Wanderley Boschilla: A partida é anulada e o árbitro é sujeito à eliminação por reconhecer o erro. Aí, [dirige-se à câmera] senhores juristas, pelo amor de Deus, vamos mudar um pouco esse negócio, porque o árbitro tem o direito de errar e às vezes ele pode até reconhecer o erro. Talvez se dessem o direito do Wright de reconhecer o erro, sem a punição subseqüente...

Vital Bataglia: Aí foi um erro de fato, não foi de direito.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Se ele bota no relatório é um erro de direito, meu filho.

Vital Bataglia: Se bota no relatório.

Dulcídio Wanderley Boschilla: É isso que eu quero dizer, se botar no relatório.

Silvio Luiz: Mas teve árbitro que deu um gol de tiro de meta. Gol de tiro de meta... O zagueiro bateu e... Você lembra?

Dulcídio Wanderley Boschilla: [Bateu] para trás, aqui na rua Javari. Só que depois ele meteu no relatório que a bola tocou no goleiro. Passaram o tape duzentas vezes e não tocou.

[...]: Foi o irmão do presidente.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Ele mentiu para poder se salvar, se não seria um erro de direito, anularia a partida, mas ele mentiu.

Flávio Adauto: O que é ser árbitro para você, Dulcídio? De tudo isso que a gente está discutindo desde o começo?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Em primeiro lugar, ser árbitro é o seguinte: ser macho.

Flávio Adauto: Tem que ter cabeça.

[...]: Tipo Armando Marques. [risos]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Tem que ser macho, tem que ter coragem - espera dois minutos - tem que ter coragem, tem que ter discernimento daquilo que está marcando. Eu conheço muitos árbitros que são perfeitos, que marcam uma falta para lá, mas vem três ou quatro da equipe que sofreu a falta e o prensam, ele muda para cá. Então ele é um covarde que não pode nem passar na porta de um campo de futebol.

Ailton Fernandes: Dulcídio, [dirigindo-se a outro entrevistador] só um minutinho, só aproveitando esse gancho dele. Você falou em árbitro ser macho. Foi por isso que você, se achando como macho, deu seqüência naquele jogo do Flamengo e Atlético lá nas semi-finais da Copa União, quando o campo foi invadido?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu vou lhe dizer, não é porque sou eu não, mas naquele jogo lá até eu fiquei com medo.

Ailton Fernandes: O campo foi invadido. Agora, Dulcídio, e se você...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Você estava lá [a câmera foca Flávio Adauto], estava dentro do campo. Até eu fiquei com medo, pela conseqüência que poderia advir.

Ailton Fernandes: Dulcídio, quando houve a invasão o jogador do Flamengo foi atingido por um torcedor...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não só ele, como uns três ou quatro [...]

Ailton Fernandes: Porque naquele momento você não encerrou o jogo por falta de garantia [de segurança] e automaticamente os pontos passariam para o time visitante?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Aquele dois mil torcedores do Flamengo que estavam lá em cima seriam linchados a sangue frio - todo linchamento é à sangue-frio - mas ali seria com requintes de barbaridade. Sabe por quê? Flávio, você chegou cedo e eu também cheguei cedo. Eles foram massacrados antes do jogo, duas horas antes do jogo já foram massacrados, aquelas duas mil pessoas. Ao final do jogo todo mundo foi embora, só que ficaram do lado de fora esperando a torcida do Flamengo sair. Ninguém saiu. Duas e meia da manhã eu estou no alojamento do Mineirão e não dormia, tive que pegar um avião.

Juca Kfouri: Você não está racionalizando? Quer dizer, porque eu acho que tudo isso que você está falando faz o maior sentido. Agora, de fato isso ocorre a um árbitro dentro de campo? Quer dizer, naquele momento [...]

[sobreposição de vozes]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Mas eu tenho a percepção de sentir a loucura que está acontecendo, e eu disse para o policial - quem assistiu pela televisão [viu]: “Pelo amor de Deus, me ajudem a começar o jogo!”

Augusto Nunes: Dulcídio, nós vamos seguir essa conversa, só que eu preciso fazer o intervalo agora, e em seguida a gente retorna a esse tema. O programa Roda Viva com o árbitro de futebol Dulcídio Wanderley Boschilla volta já, já.

[intervalo]

Augusto Nunes: E aqui retomamos a nossa conversa com o árbitro Dulcídio Wanderley Boschilla, convidado do Roda Viva desta noite. No bloco anterior, pouco antes do encerramento, quando o Dulcídio defendia a tese de que é preciso sobretudo ser macho para apitar jogos de futebol, o Oldemário Touguinhó achou que alguma questão não estava muita bem esclarecida. Oldemário Touguinhó, do Jornal do Brasil.

Oldemário Touguinhó: Como você vê esse caso do machão? O Armando Marques, que nunca foi machão, todo mundo sabe disso, e foi considerado um dos grandes árbitros nossos. E, agora, lá no Rio de Janeiro estão lançando dois árbitros...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Gays.

Oldemário Touguinhó: ...que são sucesso na praia, na segunda divisão. Um deles se chama Margarida e o outro Ofélia.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Só posso, só posso...

Oldemário Touguinhó: Os dois foram defendidas...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Defendidas? Defendidas?

Oldemário Touguinhó: As duas estão sendo defendidas por toda a parte, por torcedor... Todo mundo acha que não tem influência nenhuma o gay apitar o jogo, ele tem que ser bom árbitro. Se ele é gay ou não é gay... Ele foi num programa que eu faço na televisão lá no Rio, lá no [programa] Camisa Nove, e ele explicou: “Eu sou gay depois que acaba o jogo. Na hora do jogo sou durão: errou, expulso. Quem já apitou e quem já trabalhou no jogo comigo sabe quem eu sou.” Como é que você está vendo essa situação?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Ainda bem que eu estou parando, meu Deus! Alá, o cara que está com o negócio no ouvido está plantando bananeira lá embaixo. [aponta para um funcionário da produção do programa] O problema é o seguinte, deixe-me só dizer uma coisa: existe um negócio muito sério dentro da arbitragem com referência ao Armando. Existem duas fases que eu conheço na arbitragem: uma antes do Armando e outra após o Armando Marques. Antes do Armando, o árbitro era... - hoje nós estamos voltando a esse tipo de coisa. O cara não se apresentava como árbitro de futebol. Pelo amor de Deus! Quando o cara quando se apresentava como árbitro de futebol o “nego” [faz um gestual de conferir seus pertences] contava os dedos, os anéis, o relógio, a carteira, porque o sinônimo de árbitro de futebol, antes do Armando, era rato! - não de igreja, [rato] de esgoto. O Armando veio e valorizou o profissional. O Armando dizia: “Quanto mais ladrões tiverem na arbitragem melhor para mim.” Armando dizia isso para quem quisesse ouvir. Então o Armando valorizou e muito a arbitragem. Agora, com referência a esse tipo de coisa...

Oldemário Touguinhó: Para mim foi o melhor juiz que eu vi apitar.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu vou lhe dizer uma coisa, o Armando era muito bom, o Armando era muito bom, árbitro excelente. Mas o Armando tinha [enfático] isso que ele falou...

[...]: Prepotência.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Isso que ele falou. O Armando punha o dedo em riste, chamava, afastava, chamava o jogador e vinha afastando. Hoje nos dias atuais quem fizer isso “dança”, quem hoje tentar a carreira e quiser imitar o Dulcídio, “dança”, porque são coisas completamente diferentes. Eu me espelhei num árbitro que você deve ter ouvido falar, Roberto Goicochea, que veio junto com Armando - um ano após o Armando. Ele apitou a copa do mundo de 1966, e em 1968 apitou futebol em São Paulo. Eu me espelhei muito nesse árbitro, porque esse cara era completamente o inverso do Armando, era um cara que vinha... [interrompido]

Osmar Santos: Três árbitros que você gosta atualmente no Brasil e três que você não gosta.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Quem não gosto é “uma pá” [muitos]; quem eu gosto: todos que trabalham comigo.

Oldemário Touguinhó: Eu quero que você me diga desses dois, o que você acha desses dois, o Ofélio e o Margarida?

Silvio Luiz: [...]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Primeiro lugar eu acho que cada um dá o que tem. [Oldemário Touguinhó ri]

Silvio Luiz: Alemão, e mulher apitando?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Em segundo lugar... - [dirigindo-se a Silvio Luiz] espera um pouco. Como hoje está tão difícil o cara ser homem, que me desculpem as meninas, mas hoje homem é artigo de luxo. Hoje homem é artigo de luxo, eu juro por Deus.

Flávio Adauto: Dulcídio, eu ainda prefiro mulher.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Mas homem hoje é artigo de luxo, não está tendo homem. Os caras estão indo para bi, para tri, para vi, para mi e para não sei o que lá. Homem que é bom de fato e de direito está em falta.

[...]: Você é preconceituoso, Dulcídio?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não, não tenho preconceito, mas se eu tivesse um filho [assim] já teria sido assassinado. Em outros casos não tenho preconceito nenhum.

Oldemário Touguinhó: Margarida não tem condições de apitar?

Augusto Nunes: Se fosse filho dele seria assassinado.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu estou falando em tom de gozação, porque eu não posso ir contra a natureza ou a cabeça do cara. Se eu tivesse um filho, se eu tivesse uma filha ou coisa que o valha que tivesse se desvirtuado na vida, eu pediria a Deus que me castigasse, mas que não fizesse isso com meus filhos.

Juca Kfouri: Dulcídio, você prefere ter um filho gay ou árbitro de futebol?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Nenhum dos dois.

Silvio Luiz: E mulher apitando futebol?

Augusto Nunes: Essa é a pergunta feita por vários telespectadores.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Mulher apitando futebol para futebol feminino, que teria de ser implantado no Brasil, como em todo o mundo. Eu não conheço a Europa, vocês conhecem, na Europa tem campeonatos europeus de futebol feminino.

Silvio Luiz: E aqui não dá certo?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não sei se dá.

Silvio Luiz: Você acha que dá certo?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Dá certo. Jogando futebol de mulher [...]

Silvio Luiz: Apitando jogo de homem, não?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não.

Silvio Luiz: Não, por quê?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Porque talvez nós não alcançamos o nível... - o jogador de futebol que está evoluindo muito – nós talvez não alcançamos o nível de respeito à mulher ditando uma regra num jogo de futebol. No calor do jogo o cara vai perder a cabeça e vai falar uma besteira para essa menina, para essa mulher, a mulher vai ter que tomar uma providência e aí dá o maior rolo.

Silvio Luiz: Mas você não acha que pelo fato de ser uma mulher apitando o jogo, o jogador vá respeitar mais? Ou seja, é uma senhora ou uma senhorita apitando, então eu já não vou com aquele ímpeto, como se fosse um homem? Porque em cima do Margarida ele vai, isso você pode ter certeza, mas numa mulher você não acha que...

Oldemário Touguinhó: Em cima do Margarida como, você quer dizer?

Silvio Luiz: Você entendeu o que estou falando. O negócio é o seguinte: você não acha que a mulher ia refrear um pouco a coisa?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Vou te contar, hein? É brincadeira... [voltando-se para Oldemário Touguinhó]

Silvio Luiz: Você acha que ia refrear?

Augusto Nunes: Dulcídio, responda, por favor.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu acho o seguinte: [enfático] nada, nada quando um jogador está com cabeça quente. Pode ser mulher, gay, homem, macho, pode ser o diabo...

Silvio Luiz: Não resolve?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não resolve. [apontando para alguém] Você disse ainda há pouco o que foi. Ninguém ouviu e vou repetir o que você disse: se eles quiserem bagunçar, nem se vierem 22 árbitros de futebol, cada um no seu cantinho, não conseguem levar.

Silvio Luiz: É verdade.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Então, quando o cara que bagunçar... Quando o cara quer jogar futebol, qualquer um... O camera man que está lá, nunca pegou um apito, vai lá e toca o jogo. O jogador pára e ele mesmo marca a falta.

Oldemário Touguinhó: Então não precisa ser machão.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Então não precisa ser machão, está certo, mas existe... [interrompido]

Vital Bataglia: Dulcídio, eu quero fazer uma pergunta para você agora absolutamente técnica para você agora. Para mim a decisão por pênalti entre Brasil e França na Copa do Mundo de 1986 foi irregular.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Regular?

Vital Bataglia: Irregular.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Para mim foi irregular também, mas só que constava lá que tinha que ser regular. Constava que numa portaria da International Board [comissão que dita as regras do esporte futebol] ou da...

[sobreposição de vozes]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Se eu estivesse apitando...

Vital Bataglia: Não foi cometido um erro de direito aí?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, tinha uma portaria, tinha uma portaria.

Vital Bataglia: Não existe portaria capaz de solucionar o erro de direito.

Silvio Luiz: Não era uma portaria, era uma interpretação.

Vital Bataglia: Eu vou dizer mais a vocês: naquele dia seguinte eu falei com membro da International Board que estava lá, que não me autoriza a usar a palavra dele, porque ele faz parte do conselho - todo mundo sabe quem é; [é] inclusive um filho de árbitro da Fifa – e ele também achou que era irregular.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu também achei.

Vital Bataglia: Todos acharam que era irregular, mas não mudaram a decisão porque não tiveram coragem.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Quando bate na trave morre, acabou o lance do pênalti. Bateu nas costas do jogador, mas disse que tinha […] [Na Copa de 86, após empate entre Brasil e França, a decisão foi para os pênaltis. O francês Bellone bateu e acertou a trave. Rebatendo, a bola atingiu as costas do goleiro Carlos e entrou. O gol foi validado]

Augusto Nunes: Dulcídio, o Flávio Adauto quer fazer uma pergunta.

Flávio Adauto: Essa pergunta técnica feita pelo Bataglia, a respeito do pênalti: a bola bateu na trave, tocou no goleiro e a bola entrou, aquela coisa toda... Aquelas origens, teria que ser invalidado o lance... Mas a minha pergunta é no outro caminho, Dulcídio. Você chegou a dizer há alguns meses atrás que estava pensando em ingressar na vida política, que iria procurar um partido para se filiar e sair candidato a vereador, provavelmente agora nesse ano de 1988 em São Paulo. Diga para a gente se isso ainda faz parte de seus projetos de vida, e que partido você escolheria neste momento.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Bom, em primeiro lugar eu sou apolítico.

Flávio Adauto: Mas disse que...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Disse. Falei e posso até confirmar a você que talvez eu pretenda fazer uma bagunça na minha vida, porque eu vou lhe dizer uma coisa: infelizmente, e isso é meu pensamento, nós estamos numa pseudo-democracia... [faz uma pausa]

[...]: Porque pseudo-democracia?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Porque já é uma bagunça.

Osmar Santos: Como assim? Me explica.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Explicar? Os caras ficam um ano, puxam até revólver para fazer uma Constituição. [a Constituição Federal de 1988 estava sendo elaborada à época da entrevista] Para antes poder resolver o problema do país, eles querem primeiro fazer a Constituição. Eu acho que isso é a maior besteira, o maior engana-trouxa que esses caras estão fazendo. Os caras ganham “x” por mês para discutirem, puxar revólver – [faz um gesto com a mão de atirar] se tivesse bala atirariam, para fazer uma Constituição que não vai refrescar nada e a vida vai continuar a mesma coisa.

Flávio Adauto: Que pessimismo, Alemão!

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu sou um pessimista por natureza, porque eu vou lhe dizer um negócio sincero: os mesmos que hoje estão no poder, são os mesmos que, se falar “Diretas Já”, dá briga. [dirigindo-se a Osmar Santos] Você freqüentou muito palanque. Tem muito cara bom lá, que [se] você fala para ele “Diretas Já”, ele briga com você. Osmar, é verdade. E quando se fala um negócio desse todo mundo arrepia. Porque quando o cara pega o poder, infelizmente, ele não quer largar mais. Quando se fala de reforma agrária... - eu não sou político e não sou demagogo também não.

Vital Bataglia: Mas você vai dizer se pretende ser.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Quando falaram em reforma agrária: “Vamos fazer, vamos fazer, vamos fazer...”, se pegassem todas as terras dos políticos do Brasil não ficaria ninguém sem terra para construir uma rocinha; se pegassem as terras da Igreja e começassem pela Igreja, que não precisa de terra, aí nós começaríamos com uma reforma agrária. Agora, falar besteira, patacoada que vai fazer, [irônico] eu me emociono com isso.

Augusto Nunes: Dulcídio, por falar em emoção, eu queria...

[...]: Você não respondeu a pergunta do Flávio se vai ser candidato.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu pretendo, talvez.

Augusto Nunes: Que partido?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Qual é o partido que vai ficar em cima do muro, que nem corre para lá e nem corre para cá?

Vital Bataglia: PT. [Partido dos Trabalhadores]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não posso pegar uma linha de frente por que os caras não vão nem me aceitar, porque eu sou bucha de canhão.

Osmar Santos: Dulcídio, você é de direita ou de esquerda? Como você se define?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não sou nem de esquerda, nem de direita, eu sou pelo certo. Eu dentro da arbitragem também fui pelo certo.

Osmar Santos: Por que a esquerda e a direita são erradas?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu fiquei uns dias no Guarujá, encontrei José Eduardo Chimello. Ele me chamou na praia e ele sempre diz - deve estar me ouvindo: “Dulcídio, quando você morrer eu vou por uma lápide no seu túmulo: aqui jaz um árbitro honesto. Morreu duro”.

[...]: [rindo] Morreu duro?

Dulcídio Wanderley Boschilla: [dirigindo-se para a câmera] Acabou de falar isso para mim.

[sobreposição de vozes]

Juca Kfouri: Você teve muito perto de morrer recentemente num acidente de carro.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Estive.

Juca Kfouri: Você preferia ter morrido?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não. Eu não prefiro nada. Eu não posso... [interrompido]

Augusto Nunes: [Oldemário Touguinhó fala ao fundo] Um minutinho, Oldemário, um minutinho e depois a gente volta. O que o Juca está lembrando é de um episódio muito importante e nós temos até algumas cenas do jogo São Paulo e Corinthians, que foi um pouco depois do acidente, vamos comentar e depois a gente retoma a esses temas. Eu não queria perder, não vamos perder a chance. [refere-se à final do Campeonato Paulista de 1987]

Juca Kfouri: Vamos amarrar isso.

Augusto Nunes: Por favor, Juca, vai entrar ali e você pode, inclusive, fazer a sua pergunta durante, [por]que vai entrar só com fundo, não há som. Você pode perguntar, Juca.

Juca Kfouri: [a tela exibe cenas do jogo] Às vésperas desse jogo, ao final do campeonato você sofreu um acidente, no qual morreu sua mulher. Você se recuperou em tempo recorde e foi apitar o jogo. Nos meus quase vinte anos de imprensa foi a primeira vez que eu vi um árbitro de futebol entrar em campo com as duas torcidas gritando o nome desse árbitro em coro. Esse foi um grande momento da sua carreira?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Esse foi o maior momento da minha vida. Vem a parte que todo mundo diz que eu sou truculento ou coisa que valha. Enfim, a parte sentimental, a parte humana, a parte do Dulcídio que faz uma capa... Vocês dizem que eu sou truculento, que eu sou violento, e eu nunca bati, nunca dei tiro. Já tenho 14 ou 15 inquéritos por agressão, briga de rua, quando o cara chegava em mim e dizia: “Eu sou mais [...] do que você.”. E eu digo: “Não é, tem que provar.” E vou para cima dele para provar. Vou lhe dizer uma coisa, para mim foi a coisa mais linda, mais maravilhosa que me aconteceu durante toda a minha existência. Não porque eu era árbitro de futebol, [mas] porque é um reconhecimento pelo meu trabalho e o respeito que os jogadores inclusive tiveram pela tragédia que aconteceu comigo.

Augusto Nunes: Enquanto apitava, você pensava no acidente?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, porque quando o Danielzinho participou... O Danielzinho estava no desastre, ele era um dos bandeiras e ele estava no banco de trás. Quando nós entravamos [no campo] eu disse assim a ele... Antes tocaram uma música que a Berenice gostava e tal, coisa que o valha, por uma emissora.

Augusto Nunes: Berenice era o nome da sua mulher?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Isso. E eu... Começou a correr lágrimas e eu estava muito emocionado. Eu disse ao Danielzinho quando nós entrávamos: “Daniel, daqui pra frente acabou o problema. Nós vamos para o jogo e eu vou jantar eles.” [confirmando com o próprio, que estava na bancada de convidados] Não foi bem assim? Não. “Eu vou morder o calcanhar deles.”

Silvio Luiz: Qual é a sua religião?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não sou católico.

Silvio Luiz: Tá bom, o que você é? Budista, espírita, o que você é?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não sou budista, eu fui criado na religião evangélica, minha mãe é evangélica. Eu tenho uma religião própria, eu acredito em Deus. Nada se move, nada se faz sem a vontade de Deus.

Augusto Nunes: Desculpe, Dulcídio. Nesse momento você sofreu um desmaio, foi isso? [câmera mostra imagens finais do jogo, o entrevistado aparece sendo carregado por policiais e pessoas que estavam no campo]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não. Eu treinei a física, eu fiquei... O Rafael está aqui, eu sou amigo do Rafael há muito tempo. Eu não tenho irmão, mas se tivesse irmão o Rafael seria meu irmão. Se não fosse o Rafael, os filhos, a esposa que me deram uma força, eu acho que teria sucumbido, porque enquanto eu fazia a física, a ginástica para me recuperar, eu fiquei na casa dele, e várias noites eu acordei engasgado por saliva e saia pelo corredor correndo por causa da pancada que tomei no tórax. Eu ia fazer física e voltava com dor e uma costela fissurada, uma fissura de costela. Quem teve problema de costela sabe que isso dói muito. Ao terminar o jogo um cidadão vem e me abraça por trás: “Parabéns pela arbitragem!” e levanta 95 quilos em cima da costela fissurada.

Augusto Nunes: Então foi dor mesmo.

Dulcídio Vanderlei Boschila: Foi dor! Foi dor [a ponto] de falar para o doutor Marco... Porque eu estava abraçado ao doutor Marco Aurélio [Marco Aurélio Cunha, à época médico do São Paulo] e com o Bebeto, que perdeu o filho no ano passado com 23 anos de idade por um ataque cardíaco. Nós estávamos abraçados e eles: “Você venceu e eu também venci, nós vencemos”; aí vem um cara e me aperta. A dor que eu sentia era tão grande que eu dizia: “Eu quero deitar, eu quero sentar, eu quero minha mãe, eu quero tudo.” Só que o doutor Marco Aurélio disse: “Leva para o vestiário”. Aí no embalo me pegaram no colo, só que quando me pegaram para carregar um infeliz vem e me abraça em cima da costela.

Augusto Nunes: Foi isso.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Aí me levaram para o vestiário. Eu tomei uma injeção lá que me dói até hoje.

Augusto Nunes: Dulcídio, um minutinho só, Silvio, desculpe. A Berenice era a sua segunda mulher? Eram dois casamentos?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Era minha segunda mulher.

Augusto Nunes: A Sandra Boschilla é...?

Dulcídio Wanderley Boschilla: A Sandra é minha filha.

Augusto Nunes: Ela telefona e faz essa pergunta: “Como é que você vê o seu relacionamento com a família e o que você pretende fazer da sua vida de hoje em diante? Você se arrepende de alguma coisa já feita na sua vida?”

Dulcídio Wanderley Boschilla: É lógico, todo mundo se arrepende. Se ela estiver me ouvindo, um abraço, estou com saudades. Ela se lembra muito... Todo mundo diz do caráter do Dulcídio, da violência do Dulcídio. Outro dia ela estava me recordando: ela se lembra de pequena que eu sentei num quartinho do fundo de casa e fiquei fazendo uma saia branca plissada para ela. É brincadeira? E eu não sou margarida não, viu? Você aí do Rio. [aponta para Oldemário Touguinhó] É que minha mulher não sabia fazer e eu vi, eu copiei da outra e comecei a fazer. Fiz uma sainha para ela - tinha uns dois anos, uns dois anos e pouco -, uma saia de três ou quatro pensas. Eu sei fazer, sei fazer comida e não sou gay não.

Augusto Nunes: Silvio, desculpe, eu tinha interrompido o Silvio que ia perguntar...

Silvio Luiz: Você sabe que eu ia perguntar uma coisa para você que esqueci, né, Alemão?

[sobreposição de vozes]

Augusto Nunes: Por favor, ele só vai acabar de responder e vai o Oldemário. Responde, é que ele não respondeu à Sandra, é verdade.

Silvio Luiz: Eu sei o que é.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não respondi, então respondo o seguinte...

Juca Kfouri: Quantos anos que ela tem?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Vinte e oito, dois filhos. Eu tenho dois netos.

Silvio Luiz: Você não está pintando o cabelo não, né? [entrevistado gesticula negativamente com a cabeça]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Muitas coisas que eu fiz eu me arrependo, e muitas coisas que não fiz eu também me arrependo. O relacionamento que eu tenho com o meu filho Ricardo e com minha filha Sandra, ele é de um amor muito grande, só que dentro do amor daquele que eu tenho. Eu acho que todo mundo tem o direito de viver de acordo com a sua sã consciência, e eu estou vivendo hoje um momento talvez triste da minha vida ou magnífica, eu não sei, é uma diferença muito grande. Primeiro porque eu consegui com cinqüenta anos de idade chegar até aqui, e estou participando dessa Roda Viva, e estou sendo franco com vocês e estou tendo o carinho de vocês com algumas referências minhas - eu pensei que vocês fossem me massacrar aqui. Então eu digo a você o seguinte, Sandra: Deus me deu mais um pouco de tempo de vida para tentar endireitar as coisas que estejam erradas com referência à minha família e tentar conseguir um pouco de felicidade que eu nunca tive e tentar ganhar um pouco de amor, um pouco de carinho, um pouco de afeto, porque a minha vida foi feita de luta, de briga, de discussão. Eu fui massacrado por uma coletividade, eu fui massacrado pela vida, eu fui massacrado por família, fui massacrado pelo mundo de modo geral e consegui sobreviver, e isso para mim é muito importante. Eu quero viver a minha vida, eu quero ter um pouco de felicidade. Eu fui feliz, eu tive felicidades momentâneas e, para mim, eu com cinqüenta anos de idade, momentos que passaram foram muitos e momentos de tristezas foram muito maiores do que momentos de alegria. Eu posso me vangloriar disso, eu venci. Eu venci com todas as tragédias e as pedras que Deus me colocou eu consegui vencer. Graças a Deus eu venci.

Silvio Luiz: Alemão, qual é o único dirigente que sobra nesse futebol brasileiro?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Nenhum deles.

Silvio Luiz: Nenhum? Nem com os quais você já teve a oportunidade de dialogar, de participar, de trabalhar?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Dirigente de futebol é passageiro.

Silvio Luiz: Não, estou dizendo, qual é um que você reputa dizer...?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu cito nome de vários. Eu iria cometer injustiça em dizer o nome de um ou dois. José Ermírio de Morais, como presidente da Federação; Alfredo Metidieri, como presidente da Federação [entre 1976 - 1979], que não se envolveram, que deixaram... No passado...

[sobreposição de vozes]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não... Desculpe-me falar um negócio, mas é muito sincero e isso vai do coração. Depois que envolveram política no meio do futebol, você não pode confiar mais no dirigente. Porque o dirigente político pede favores, depois ele te dá favores, ele te dá uma série... Não político com cargo político eletivo ou coisa que o valha, mas o cara que quer uma projeção, um cara que quer fazer uma coisa, o cara que é aquele vaselina que quer uma promoção, que quer uma série de coisas, esse cara pede para você auxiliar, pede para você fazer uma coisa...

Vital Bataglia: Essa política a que você se refere é uma coisa importante dentro do futebol. Eu fiz a pergunta sobre a decisão que eliminou o Brasil da Copa de 1986 exatamente nisso. Foi durante essa Copa que o jogador Sócrates, que é um rapaz que via um pouco mais longe que os demais, ele disse que a Copa do Mundo tinha se transformado num fato econômico e tinha superado o acontecimento esportivo. Hoje na Argentina está sendo julgado o coordenador da Copa do Mundo de 1978 por corrupção, e o doutor João Havelange [presidente da Fifa (1974 – 1998)] está lá como testemunha. Então você acha que nesse nível de poder, nisso que o Sócrates falou sobre o acontecimento econômico que se transformou a Copa do Mundo, nós podemos incluir também o doutor João Havelange dentro de todo esse processo de corrupção?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu nunca conversei com doutor João Havelange e eu não posso lhe dizer com referência à Copa do Mundo. Eu digo São Paulo, eu posso dizer com referência a São Paulo. Eu não vou ao Rio de Janeiro, não vou a Santa Catarina, não vou ao Paraná, eu digo São Paulo. Todo sujeito que se propõe a fazer alguma coisa com referência ao esporte e se envolve politicamente nesse meio, automaticamente ele deixa em detrimento o futebol, o esporte - não só futebol, como boxe, como tênis, como beisebol, basquetebol, voleibol, uma série... Eu acho que, [se] os nossos governantes estão preocupados em fazer a nossa Constituição, eu acho que no ano 2040 eles terminam a Constituição, porque infelizmente eu vou dizer uma coisa para vocês e eu assino embaixo: no Brasil não é só a política que põe em detrimento o próprio futebol, o próprio esporte. Somos nós mesmos, porque nós, a nossa índole, a nossa educação, ela é péssima. O nosso berço é muito péssimo.

Flávio Adauto: Você aceitaria ser dirigente de árbitros de futebol, por exemplo?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu acho que não ficaria um mês. Eles de modo geral gostariam. Os dirigentes não gostariam.

Augusto Nunes: Dulcídio, o que se pode fazer para acabar com a corrupção no futebol? O que você faria se você tivesse poderes para isso?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não só no futebol, teria que acabar com a corrupção [enfático] no país.

Juca Kfouri: Eu queria lhe perguntar uma coisa.

Dulcídio Wanderley Boschilla: É você politizando a criança... [interrompido]

Juca Kfouri: Queria lhe perguntar uma coisa, porque aí você engata essa. Você falou de dirigentes, de esquemas e tal. Aquela experiência de anos atrás, da Democracia Corintiana - que era representada, ao nível do dirigente, com Adílson Monteiro Alves - era uma coisa diferente como relacionamento na arbitragem, ou não?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Desgraça de Democracia Corintiana que o cara vai, no jogo, na concentração da arbitragem!

Juca Kfouri: Eu não quero que você julgue a Democracia Corintiana, mas eu estou dizendo em relação a arbitragem.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não tem nada a ver a arbitragem com a Democracia Corintiana.

Juca Kfouri: Eu pergunto: o Adílson Monteiro Alves era um dirigente do mesmo tipo dos que já eram ou dos que são?

Dulcídio Wanderley Boschilla: O Adílson Monteiro Alves era o mesmo dirigente dos que eram e dos que são.

Juca Kfouri: Não mudou nada, você quer dizer?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não mudou, tanto que ele fez a Democracia, virou candidato, foi eleito com uma votação maciça, e pergunta para ele do Corinthians, da Democracia Corintiana? Não tem Democracia Corintiana. Qualquer democracia, a nossa democracia, a nossa aqui hoje, a nossa democracia do país, é uma democracia meio assim, meio lusco-fusco. É verdade, por quê? Porque não existe a sua democracia. Eu vou e invado a sua democracia.

Juca Kfouri: Aí eu lhe dou um murro.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, por isso mesmo. Nós não estamos convivendo com a democracia, porque se você tem um terreno que você vai querer construir com sacrifício, que você comprou em Sapopemba [bairro de São Paulo], o cara vai lá faz uma casa dele e diz que é dele. Que maldita democracia é esta?

Juca Kfouri: Tá bom, Dulcídio, então é aquela coisa, a democracia termina onde começa a do outro?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Essa é a minha democracia, que você vive bem com você e com os vizinhos. Agora, o que eu acho – [aponta para o entrevistador] continuando o negócio dele – que a corrupção ela só termina quando nós politizarmos nossas crianças. Tem que ser feito alguma coisa... Porque eu já cansei de ver propaganda na televisão: quando os caras são candidatos beijam criança suja, e depois o cara lava a boca com detergente, põe detergente com querosene, gasolina. Eu já vi tanta gente beijar criança em época de eleição, e depois que é eleito não beija nem a mãe da criança, porque a mãe já é mãe.

Oldemário Touguinhó: Dulcídio, é uma pergunta que eu tinha feito, e ela ficou no meio do caminho, porque você foi responder... Me preocupo pelo seguinte: recentemente a CBF, o Otávio mais o Nabi - porque o Otávio eu não conhecia - colocou esse Chimello como o homem forte do futebol. Eu peguei os jornais daqui de São Paulo para acompanhar alguma coisa sobre o Chimello - uma bela matéria do Luciano, que é da Folha -, e eu me surpreendi com as declarações dele dizendo que o futebol tem que ser malandro, que ele estava acostumado a fazer jogada com árbitros e tal. Então se o Nabi colocou esse homem dentro da CBF, ele vai querer fazer dentro da CBF o mesmo caminho. Eu queria que você me definisse... - até chegar no Rio poder fazer o melhor julgamento sobre isso. Você disse que ele iria colocar lá [na lápide] para você: “Dulcídio, aqui um juiz, um árbitro que morreu duro.” Se você tivesse que colocar [uma lápide] para ele, como é que você colocaria no Chimello?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Aqui jaz um dirigente, um gerente de futebol vivo.[Oldemário ri]

Osmar Santos: Dulcídio, você fala muito de corrupção e que o país está muito perdido nisso, mas tem algum político que você acredita que não seja corrupto e que você gosta desses políticos que estão aí?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Olha, eu vou te dizer uma coisa, com raríssimas exceções...

Osmar Santos: Quem são? Quem você gosta?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, eu não cito nomes, com raríssimas exceções... Isso é um ranço de antes de 1964.

Osmar Santos: De antes?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Porque tem o seguinte, isso... O nosso país - eu particularmente, me dá licença [dirigindo-se ao mediador] -, o nosso país é um feudo. Quem tem padrinho tem tudo, quem não tem padrinho, dança! [enfático]

Osmar Santos: Então você não gosta de ninguém da política, é isso? Ou você gosta de alguém?

Silvio Luiz: A pergunta que ele [Osmar Santos] está fazendo é essa: você votaria nele?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu votaria nele. Só que tem o seguinte: entrou, dançou. Se o Flávio [aponta para Flávio Adauto] tivesse sido eleito - é meu amigo particular, que freqüentou a minha casa - nunca mais apareceria na minha casa. É o ambiente, rapaz, é o ambiente!

Silvio Luiz: Se o Osmar fosse candidato, você votava nele? Se ele fosse candidato, você votaria nele?

Osmar Santos: Não é o meu objetivo.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Votaria! Votaria nele.

Silvio Luiz: Tá vendo? Flávio, pode tirar sarro...

Osmar Santos: Eu queria...

Flávio Adauto: Ele quer dizer que tem que ter alguém.

Osmar Santos: Com quem você se simpatiza, para a gente saber politicamente como você anda, o que você gosta, que partido...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Posso lhe dizer?

Osmar Santos: Fale duas ou três pessoas que você gosta na política.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Na política?

Osmar Santos: É, na política, se você votaria neles se tivesse eleição.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Em primeiro lugar eu vou lhe dizer um negócio.

Silvio Luiz: Em quem você votou? Em quem que você votou para governador?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Antonio Ermírio. [Antônio Ermírio de Morais, empresário industrial e candidato derrotado a governador de São Paulo nas eleições de 1986 pelo Partido Trabalhista Brasileiro - PTB]

Vital Bataglia: Para prefeito?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Jânio. [Jânio Quadros, político de orientação populista de direita (1927 – 1992). Foi prefeito de São Paulo (1953 – 1954; 1986 – 1989), governador de São Paulo (1955 - 1959) e presidente do Brasil por breve período (1961), renunciando no mesmo ano]

Silvio Luiz: Você já tem o caminho político dele.

Vital Bataglia: Você tem o perfil do janista. [risos – o eleitor janista típico adotava um discurso rígido contra a improbidade administrativa, a corrupção e os "maus costumes"]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Você está falando besteira, porque ele [Jânio Quadros à época era prefeito de São Paulo] está fazendo muita “papagaiada”, mas olhe, São Paulo está linda! Você passa naquela Rua Assembléia, onde tem esses caras da...

Juca Kfouri: Sempre que ele viaja, melhora. Ele vive viajando, tá uma beleza a cidade!

Dulcídio Wanderley Boschilla: A polícia tinha medo de entrar na Rua Assembléia à noite, quando dava briga, confusão... Tinha medo. Hoje lá...

Osmar Santos: O centro de São Paulo está melhor. Agora, a periferia realmente não deve estar melhor, porque o Jânio só trabalha realmente para a camada mais rica né, e não pensa no povo. Mas o Juca defende ele.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Tem cara que não trabalha para ninguém! Tem cara que não trabalha para ninguém!

Osmar Santos: Mas ele está bem, está mais viajando de que trabalhando.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Pára com isso...

Augusto Nunes: O Osmar considera respondida a pergunta?

Osmar Santos: Não. Eu queria os nomes e ele não falou.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, eu não vou dizer o nome de três ou quatro. Eu acho que não tem, viu?

Osmar Santos: Não tem?

Augusto Nunes: Um minutinho só. Juca Kfouri.

Juca Kfouri: Uma coisa que está me pressionando é a seguinte: eu vinha vindo para cá, com meu filho no carro - que está ali [aponta para o menino na bancada] - e aí ele disse assim: “Você vai entrevistar Dulcídio?” “É.” “Não sei não, pai, o Dulcídio me dá a impressão de que ele não gosta de nada, de que nada está bom para ele, e ele sempre fala como se tudo estivesse ruim.” E há minutos atrás você se disse um pessimista. Essa é a sua visão de mundo... Quer dizer, não é de Brasil, é de mundo?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Kfouri, não é de mundo... Quem só tomou cacetada vai pensar em carinho? Quando?

Juca Kfouri: Mas você teve o carinho de cem mil pessoas na decisão do Campeonato Paulista.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Mas se eu tivesse cometidos erros crassos naquele jogo, ao final eu sairia com o camburão da polícia...

Vital Bataglia: Dulcídio, o José Astolfi, presidente [...]

[sobreposição de vozes]

Vital Bataglia: ...disse que há uma relação enorme de árbitros corruptos. [Disse] que um ex-diretor do departamento, Oscar Scolfaro [ex-árbitro], manipulou para obter resultados durante toda a disputa do campeonato.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Se o Scolfaro fez isso, primeiro tem que prender o Scolfaro.

Vital Bataglia: Mas a pergunta que eu quero fazer é a seguinte: você está nessa lista?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu? Você está brincando, se eu estiver é besteira da grossa, porque nunca estive nesse negócio de corrupção.

Flávio Adauto: Dulcídio, você não se preocupa quando ele faz esse tipo de pergunta sobre corrupção, se você é cidadão...?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Mas eu não estou nem aí! Espere aí, dois minutos, tenho que falar [sobre] isso, senão vai dar confusão. Um dia discutiram, o presidente [da Federação Paulista] Eduardo José Farah contra o Felipe Sheik. Discutiram no ar de uma emissora, por telefone, e o Felipe disse assim: “num jogo lá em Marília que jogou o Zina...”

Vital Bataglia: Então eu vou falar um negócio para você.

Dulcídio Wanderley Boschilla: “...o árbitro levou 600 paus.”

Vital Bataglia: Você sabe por que eu estou fazendo essa pergunta para você? Porque você recebeu uma proposta de corrupção para apitar um jogo em Natal e mandaram um cheque de 400 mil cruzeiros, na época. Vou lhe dizer o nome das pessoas que estavam envolvidas: o Todé [Francisco Monteiro], que é um empresário de futebol...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não estava.

Vital Bataglia: Mandou 300 mil cruzados pelos resultados...

Dulcídio Wanderley Boschilla: É conversa mole, não era ele não.

Vital Bataglia: ...e 100 mil à Marlene, que era uma funcionária da Federação...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não era ele não, não era ele não.

Vital Bataglia: Eu quero saber: o dinheiro foi depositado na sua conta? O dinheiro chegou a ser depositado?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não.

Vital Bataglia: Não chegou a ser depositado?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Pára com isso, você sabia que era uma ponte. Eu entrei... Você sabia...

Augusto Nunes: O que aconteceu, Dulcídio?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Ele está perguntando por palhaçada, papagaiada.

Vital Bataglia: Papagaiada o quê? O que aconteceu com o dinheiro?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu apitei o jogo do São Paulo, a final do campeonato...

Vital Bataglia: Aconteceu isso, ou não?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Espera aí. Era o capitão Valdir, que era o presidente da... O Zé Eduardo [José Eduardo Chimello], que trabalhava na Federação... Aconteceu, é claro que aconteceu. Eu me envolvi, e disse para os caras: “Vou me envolver num negócio...”

Vital Bataglia: Eu quero que você me esclareça.

Dulcídio Wanderley Boschilla: E vai ter corrupção, tem suborno.

Vital Bataglia: Mas o dinheiro foi depositado na sua conta.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não foi, foi na conta da Marlene. A Marlene deu um cheque dela, tirou 100 pau e deu um cheque dela colocado num maço de cigarro. Eu estava com... tinha até testemunha. Aí chegou a polícia... Eu entrei no esquema e todo mundo da Federação sabia.

Flávio Adauto: Tá bom... [irônico]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Todo mundo sabia, porque eu iria nunca apitar futebol lá. Eu estava apitando o final do campeonato aqui.

Osmar Santos: Você queria descobrir...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu queria saber se tinha mesmo cambalacho.

Vital Bataglia: Então conta como é que fizeram.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Vou entrar [no esquema], porque o cara chegou e disse assim: “Olha, tem um jogo lá [em Natal], falei teu nome e tal, e você vai e o time do cara precisa ganhar...” Eu fiquei olhando. Falei: “não acredito. [Falando isso] para mim?”

Silvio Luiz: Logo a Marlene.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu falei: “ah, tudo bem, legal. Eu entro nessa e tal...” Subi direto e falei para o capitão: “capitão Valdir, é o seguinte, surgiu um negócio aí e eu vou entrar no meio do rolo, o senhor avisa todo mundo da Federação que eu vou entrar no rolo e vai ter cambalacho. Só que não me mande [para] lá, eu vou ficar no campeonato aqui, vou apitar a final aqui.” E por telefone [faz um gesto com a mão direita como se segurasse um telefone], ele falando com o cara. O cara de lá me pedindo [para apitar], e ele dizia não. Eu dizia [sussurrando]: “eu posso! diga a ele que eu vou”. E o carinha dizia assim: “Ele vai sim, pode deixar que ele vai e tal”. No jogo que teve lá eu não fui porque eu estava aqui na final. Então esse jogo... [faz um gesto com as mãos de assunto encerrado] Teve um outro jogo dos dois mesmos times para ver quem é que iria disputar o campeonato nacional. Aí ela me disse: “Olha, mas tem um jogo agora domingo. Dá para você ir?” E eu disse: “dá.” “Quanto é?” Eu digo: “300 mil cruzados eu acho que dá. Eu vou falar 300 paus. Trezentos paus tá bom, dá.” Subi e falei: “ Trezentos paus”, ainda o Zé Eduardo disse assim: “Barato hein”.

Vital Bataglia: Quem disse?

Dulcídio Wanderley Boschilla: O Zé Eduardo Chimello. [risos]

Augusto Nunes: Prossiga, continue.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Ele falou que eu era... na gozação disse que eu era barato.

Augusto Nunes: É uma brincadeira.

Silvio Luiz: O São Paulo trabalha bem, hein?

Augusto Nunes: A taxa dele tava bem...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Bom, eu sei que o cara... Tinha que ser na sexta-feira à tarde. Eu avisei todo mundo: “se eu pegar o cheque...” E na sexta-feira a mulher do quarto andar me dá o cheque. Eu peguei o cheque e desci para o terceiro [andar] que nem um louco. Joguei em cima da mesa dele: “eu não falei para vocês que têm corrupção?” Pá![onomatopaico] Joguei em cima da mesa.

Vital Bataglia: Então você já sabia.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Na [mesma] hora o telefone: “chama a polícia!” [entrevistado passa a gestualizar bastante usando um tom na voz de deboche] A polícia prende todo mundo! Isso seis horas da tarde! A polícia pegou o cheque e: “Corre no banco e desconta!” [risos] Foram no banco e descontaram, tiraram o dinheiro seis horas da tarde. Tiraram, vieram lá e levaram todo mundo para o Dops. O Dops! Até eu fui para o Dops. Até a menina que estava comigo também foi, testemunha e tal. [faz um gesto como se estivesse datilografando algo] Vamos e tal e não sei o quê e vamos, vem aqui e assina e tal e não sei o quê lá... Que ano eu estou?

Silvio Luiz: 1988. Tem alguém preso, Dulcídio?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não.

Vital Bataglia: E o dinheiro?

Dulcídio Wanderley Boschilla: [responde explosivamente, divertindo-se com a situação] É isso que eu ia lhe perguntar! E o dinheiro?! [muitos risos]

Augusto Nunes: Um minuto só.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Com juros e correção monetária! Eu não fui, mas o cara deu para mim, era meu, pô! Com juro e correção monetária, uma nota! [risos]

Augusto Nunes: Dulcídio, só para chegar ao último capitulo: esse dinheiro foi retirado por quem? Pela polícia?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Pela polícia.

Augusto Nunes: Aí foi levado ao banco?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu acho que a polícia deve ter um fundo.

Vital Bataglia: Foi anexado ao inquérito.

Augusto Nunes: Anexado ao inquérito.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Mas o inquérito... O Dops acabou, foi para o Dops e o Dops acabou, e cadê o dinheiro?

Juca Kfouri: Deve estar numa pasta lá numa gaveta.

[...]: [...]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Nada, nada! Não deu suborno porque eu não fui lá. O suborno não existe quando não se consuma, então não tem condições.

Ailton Fernandes: Agora, Dulcídio, em 1977...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Em 1977 levaram dois vinhos...

Ailton Fernandes: Corinthians e Ponte Preta.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Você pare com essa história, o cara está fazendo um livro.

Ailton Fernandes: Aonde está o dinheiro de 1977?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Em 1977 levaram nas minhas costas dois milhões de cruzeiros!

Flávio Adauto: Agora, vamos contar isso daí.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Agora, deixe-me falar o nome dos três. Um está no Rio de Janeiro, freqüenta a CBF...

Augusto Nunes: Dulcídio.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu vou falar o nome...

Augusto Nunes: Não, o Flávio...

[sobreposição de vozes]

Augusto Nunes: Dulcídio, aqui é o seguinte: nós estamos interrompendo o Dulcídio e quem está assistindo não está entendendo a história. Que história foi essa que o Flávio Adauto está querendo...

Dulcídio Wanderley Boschilla: [...]

Flávio Adauto: Só um minutinho, Alemão, para a gente colocar as coisas nos devidos lugares. A história que correu é de que dirigentes teriam recebido do presidente do Corinthians, Vicente Matheus, dois milhões de cruzeiros na época, ou de um dirigente do Corinthians.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Era para mim.

Flávio Adauto:Para comprar o árbitro Dulcídio Wanderley Boschilla. Você deve ter sabido dessa história. Ninguém chegou até você com esses dois milhões de cruzeiros. O que aconteceu?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Bom, na quinta-feira foram me procurar... Primeiro o Márcio Papa [ex-dirigente do Palmeiras] para saber meu endereço. Márcio Papa pulou fora, não sei, ele era da CBF.

Silvio Luiz: Rede Globo...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Em segundo lugar foram procurar na Federação José Ferreira Pinto Filho, no segundo andar.

Silvio Luiz: Aí bateu na trave.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Chegaram e disseram assim: “O endereço do Dulcídio.” Ele disse: “Se eu der endereço para vocês, ele mata vocês lá. Não vão que vocês morrem. E para preservar a vida de vocês eu não vou dar o endereço dele.” E eu estava na Federação. Ninguém me viu, ninguém me achou, coisa que o valha, mas eles tinham dois milhões de cruzeiros numa sacola, mala, não sei que diabo tinha lá, para mim...

Vital Bataglia: Para ter-se uma idéia correspondia à renda do jogo, mais ou menos, era uma...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Era uma loucura, era uma loucura. Eu teria uma mansão nos quintos dos infernos...

Flávio Adauto: Então completa e diz para a gente o que você tem hoje?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Consegui, com muito favor, estou devendo 300 paus para um cara e ele me disse que posso pagar quando puder. Aquele cara me deu uma força desgraçada [aponta para um dos que estão na bancada], e hoje eu consegui comprar um “apartamentozinho” nos Jardins. [bairro nobre de São Paulo]

Silvio Luiz: Mas o dinheiro, aliás...

Augusto Nunes: Mas segue com a história.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Nos Jardins.

Silvio Luiz: Segue com a história, Alemão.

Augusto Nunes: Segue com a história.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Jardim da Luz. [bairro situado na cidade de Embu, periferia da região metropolitana de São Paulo]

Oldemário Touguinhó: Mas aí, como é que foi?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Aí, espera. Passou o jogo, teve o jogo e correu tudo bem, graças a Deus eu fiz o meu jogo, fiz meu trabalho, minha obrigação, botei pra fora... - como botei para fora em 1975 o Muricy, Portuguesa e São Paulo, com 15 minutos [de jogo]. [Muricy Ramalho, ex-jogador do São Paulo e desde 1993 técnico de futebol] Bom, eu sei que na semana seguinte o José Ferreira me chama e diz assim “Vem cá, senta aqui” - no segundo andar – “...três caras ou dois caras vieram aqui procurar seu endereço e eu não dei, porque se eu desse seu endereço eu sei o que você faria”. Eu estava esperando os caras... Eu tinha uma seringueira na porta de casa, enorme, e tinha duas algemas. Ia amarrar os caras tudo abraçados na seringueira e chamar a polícia e imprensa e um monte de coisa, mas como os caras não apareceram... Quando me falaram isso eu encontrei o Matheus no segundo andar - e a imprensa está sabendo. Eu disse assim na frente de todo mundo: “presidente, se o senhor deu dinheiro para alguém, vá buscar, porque esse dinheiro não veio e nunca virá às minhas mãos.”

Vital Bataglia: Isso foi depois do jogo?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Uma semana depois. Eu tenho o nome dos três. Não vou falar porque ele pode me processar, e o cara que deu o dinheiro nunca vai assinar atestado de burrice.

Augusto Nunes: Vai até o fim, Dulcídio. Um minutinho, Oldemário.

Oldemário Touguinhó: Que ele está dizendo os três nomes, e falou que nos três nomes tem um que está no Rio e que no Rio trabalha em um clube de futebol. Então eu posso dizer para você, no Rio de Janeiro só tem uma pessoa de São Paulo.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Dizem que trabalha num time de futebol...

Oldemário Touguinhó: Só tem uma pessoa de São Paulo que trabalha no Rio de Janeiro, que trabalha no Flamengo. É o Aloísio Santos, que era do Corinthians.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Me falaram...

Oldemário Touguinhó: O único que eu sei de São Paulo que está lá, eu não sei também se ele participou de nada. A respeito daqui de São Paulo que trabalha no Rio de Janeiro, pelo que eu conheço, é o diretor do Flamengo.

Augusto Nunes: Continua, Dulcídio.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não posso em hipótese alguma provar, para citar nomes. Eu sei o nome dos três que racharam, partiram a grana como irmãos...

Silvio Luiz: Dá uma dízima periódica, 666666.

Dulcídio Wanderley Boschilla: E dividiram, fizeram um bom proveito, eu tenho certeza absoluta. E eu não posso...

Flávio Adauto: Você foi vendido sem saber.

Augusto Nunes: Quantos árbitros são...?

Flávio Adauto: E o que você tem na vida hoje depois de vinte anos apitando futebol?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Um apartamento no Jardim da Luz que eu consegui, na área do Jardins.

[...]: Você conseguiu? Eu pensei que era brincadeira.

Augusto Nunes: Dulcídio, o Osmar está perguntando.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Os bacanas dizem que moram nos Jardins e eu moro na área do Jardim, da Luz.

Osmar Santos: Dulcídio, qual era o objetivo do dinheiro desta história aí, era para fazer o quê?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Aquele jogo era muito complicado, o jogo do Corinthians e Ponte, na quinta-feira... Era o seguinte, deixa eu lhe falar...

Silvio Luiz: Vinte anos.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Vinte não, é 23 [o Corinthians estava, em 1977, há 23 anos sem ganhar títulos, o que no jargão do futebol é chamado de “fila”. Por esta razão o título de 1977 é especialmente lembrado pelos torcedores corintianos]. Vinte anos foi em 1974 [Quando o Corinthians foi derrotado pelo Palmeiras nas finais do Campeonato Paulista, prolongando a fila] e pode falar o que você quiser que disso eu “manjo”... Vou fazer um livro também, porque o que vai sair de cacetadas, que Nossa Senhora! Isso não vai ser um livro, vai ser um conto pornográfico... Quando à tarde eu fui levado no batalhão de choque...

Flávio Adauto: Você não foi ao Palácio dos Bandeirantes [sede do poder executivo paulista] também?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Que, você está ficando... E eles têm peito para me chamar no Palácio para falar sobre jogo de futebol? Já não cuidavam do estado e agora vão querer dar palpite em jogo de futebol? Cada um cuida da sua.

Flávio Adauto: Na ocasião, na época?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, você está ficando louco. O que fizeram? Me levaram para o shopping e disseram o seguinte: “Tem um esquema, estamos sabendo que vão colocar um caminhão ou um ônibus num transformador, que se o Corinthians tiver perdendo o jogo eles vão dar marchar ré, vão dar de frente nesse poste, [e] que vai acabar a luz. O esquema que nós estamos ouvindo é esse, então vai ser colocado um gerador atrás do gol de entrada e quando, se por alguma hipótese terminar a luz, todo mundo corre e se junta no meio do campo e a Polícia Militar vai fazer um cordão de isolamento para proteger o árbitro e os jogadores”. Tudo bem. O esquema era esse. Então o esquema era um jogo maluco, doido, mais do que maluco. Mas sabe o que me assusta mais? Agora vou falar um negócio sincero. Eu apitei o primeiro jogo e não teve nada; no segundo jogo... Porque me falaram na Federação: “Primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto, sétimo, oitavo, nono jogo se tiver: a final é sua, todas as finais.” Chegou na sexta-feira, eu vou na Federação, e não sou eu quem está escalado.

[...]: [...]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, eu perdi uma garrafa de champanhe.

Vital Bataglia: E quem é que foi escalado?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Calma, calma, espera aí, deixa eu terminar o quê aconteceu.

Silvio Luiz: Ele já falou.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu falei assim: “presidente, deram 'mancada' mais uma vez comigo. Falaram que eu iria no primeiro, segundo, terceiro jogo.” “Dulcídio, você é árbitro do terceiro jogo.” E eu falei: “como? Não vai ter terceiro jogo! Como é que vai decidir...”

Silvio Luiz: Quem era o presidente?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Alfredo Metidieri. “Como é que pode saber, como é que pode saber que vai ter terceiro jogo?” “Tenho certeza absoluta que vai ter o terceiro jogo: vale uma garrafa de uísque.” E eu falei: “vale uma garrafa de uísque.” E eu peguei e fui para o sítio em Campo Limpo Paulista, lá na Figueira Branca, assisti pela televisão a Ponte um a zero, e eu falei: “meu Deus, será que eu vou para o terceiro jogo mesmo? Não acredito.” Daí fui para piscina, saí de perto da televisão. Daí a pouco, [faz uma onomatopéia] péééiii! Foguete daqui, foguete dali, eu não quis nem saber. Daí a pouco deu o segundo gol e saiu aquele mundaréu de gente na sala de televisão e todo mundo correndo: “Você vai para o terceiro jogo, você vai para o terceiro jogo!” Eu digo: “meu Deus do céu!”

Flávio Adauto: Era carta marcada?

Dulcídio Wanderley Boschilla: O cara é Mandraque? O cara é Mandraque? Porque foi na porta da Federação, no saguão e me disse assim: “Você é árbitro do terceiro jogo.” Se foi coincidência ou não, mas isso foi dito.

Vital Bataglia: Estava o preservando.

Oldemário Touguinhó: Agora, Dulcídio, depois [que] você passou por essas histórias todas e essa confusão que você diz que existe até hoje, o que fez você ser árbitro de futebol?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Uma briga com meu pai.

Oldemário Touguinhó: O que foi?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Uma briga com meu pai. Meu pai. Eu briguei com meu pai, eu discuti com ele, e eu falei pra ele: “eu quero levar o seu nome onde nunca ninguém conseguiu levar.” Aí ele falou: “Só se você matar alguém e sair na Última Hora.” Lembra do jornal Última Hora? Na Última Hora tem o outro no meio...

Vital Bataglia: Na Prestes Maia.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Prestes Maia perto do viaduto Santa Efigênia.

Vital Bataglia: Muito bem.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Aí eu falei assim: “eu vou levar seu nome onde ninguém nunca levou.” Consegui levar. Passaram-se os anos e eu fui jogar futebol. Aliás, eu jogava bem, diziam que jogava muito bem.

Vital Bataglia: Você é São Paulino, né?

Dulcídio Wanderley Boschilla: E o presidente do meu time, o Anaí [do bairro] de Santana, era o Marcelino Arruda, [cujo qual] era bandeirinha da Federação e trabalhava com o Armando [Armando Marques]. E falou assim: “Por que você não faz o curso de árbitro de futebol? Você apita aqui no segundo quadro e joga no primeiro quadro, então você sabe apitar, você tem noção da coisa.” Eu não sabia que [o futebol] tinha 17 regras, eu não sabia nada disso. Mas fui lá e me apresentei na Federação. Vim na Federação, era o último dia de inscrição, peguei o Sergio Bustamante, se não me engano era o Bustamante, pedi para ele se podia entregar no outro dia e ele disse que poderia. No outro dia eu entreguei a documentação e fiz o curso de árbitro, mas a minha gana era tentar fazer com que meu pai engolisse as patacoadas que ele me falou há muito tempo atrás. Ele dizia que queria me ver na sarjeta, e que se ele passasse não me daria nenhum cigarro.

Augusto Nunes: Dulcídio.

Vital Bataglia: E uma coisa que você não contou, que é uma coisa muito importante.

Augusto Nunes: Diga, Vital.

Vital Bataglia: Porque você contou tudo desse jogo, mas não contou o crime.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Que crime?

Vital Bataglia: Até hoje o Ruy Rey não sabe explicar.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não posso, eu falei agora a pouco, se eu falar, sai do ar. Ele me xingou, falou um palavrão desgraçado na minha frente.

Vital Bataglia: É uma coisa que até hoje ele não admite.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu, com cartão amarelo disse assim...

Vital Bataglia: Depois de tantos anos.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Passa o tape! Ele dá um soco na bola, ele dá um toque na bola - a bola que vai para a área do Corinthians. Ele dá um toque na bola para enganar um jogador do Corinthians e eu apito. Ele conseguiu [passar], e ele continuou correndo e todo mundo parou. O Ademir dá um tranco nele dentro da área, mas já estava parada a jogada a vinte metros atrás, [por]que era toque dele. O Ademir dá um tranco nele na área que ele levanta vôo. Ele continuou jogando e o cara veio e deu um tranco nele - jogo de decisão. O cara caiu de joelhos e virou para mim e começou: “Você vai roubar, nosso time não ganha aqui” – porque desde os cinco minutos ele começou assim. Cheguei para o Wanderlei [jogador da Ponte Preta] e falei: “Xará, avisa esse cara...”

Silvio Luiz: A arma do crime.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Avisa esse cara que eu vou botar esse cara para fora, ele está me enchendo o saco - cinco minutos de jogo. [o programa começa a exibir o tape do jogo] Aí o Wanderlei disse assim...

Augusto Nunes: Dulcídio, nós estamos apresentando o lance que você fala aí.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Você vê que já está parado o lance lá e ele vira o pé e aí ele começa. Já foi o toque, e aí ele começa, ele começa, olha. [O tape mostra o jogador Ruy Rey levantando-se do tranco e se dirigindo furioso em direção ao árbitro, e gesticulando com os braços]

Vital Bataglia: Ele estava drogado?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não sei. E ele vem, ele vem.

[...]: Cartão amarelo.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Olha, caiu [Dulcídio exibe o cartão amarelo e em seguida o cartão vermelho para o jogador. Ao puxar o cartão vermelho cai de sua mão o cartão amarelo]. Sabe, a minha vontade era outra. A minha vontade... Aí ele começa de novo, ele vem para cima [logo após ser expulso]. Eu viro as costas e ele vem para cima.

Silvio Luiz: Você estava querendo, olha o crime aí.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Vocês viram quando ele sofreu aquele tranco. A jogada estava parada a vinte metros atrás, [por]que ele deu um toque na bola.

Silvio Luiz: [Ruy Rey] Foi contratado pelo Corinthians no ano seguinte.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Então, você está vendo? Eu não vi isso aí.

Augusto Nunes: Eu acho que o caso está esclarecido.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não estou sabendo do que aconteceu, estou dizendo que isso daí foi em 1977 e eu me lembro disso hoje, como se fosse hoje.

Augusto Nunes: Está esclarecido.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Aí ele disse assim para mim, quando eu levanto o cartão [amarelo] ele fala uma besteira muito grande, não posso dizer. O cartão [amarelo] cai, porque eu tiro outro [o vermelho] e digo: “vá você!” Porque ali ou eu apito futebol [com] ele comandando o jogo, ou eu comando o jogo.

Vital Bataglia: Então, pela segunda e última vez: o Ruy Rey estava drogado? Você sentiu isso?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu não posso acusar.

[sobreposição de vozes]

Flávio Adauto: Jogador drogado, olhos esbugalhados...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Tenho sim, tenho indício ao presidente da Federação. Eu peguei essas finais de segunda divisão, a intermediária, e o presidente da Federação... Fui lá, ele é testemunha, está aí. Disse o seguinte: “será que não dá para o senhor, mesmo não fazendo, mas soltar que vai ser feito exame de dopping? Porque eu estou vendo “nego” correr mais de que as pernas. Tem “nego” batendo escanteio e correndo de cabeça para cabecear, não é brincadeira. E nesse interior de São Paulo...

Flávio Adauto: É solto então?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, não é, mas não posso dizer em dopping ou alguma coisa. Eu acho que é preparo físico. Com um sol de 40 graus...

Silvio Luiz: O nego baba, ele baba? Fica branquinho aqui? Os olhos dele ficam desse tamanho?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu lá sei se ele baba - ...não dá, o cara corre muito. A bola está parada e o cara está correndo sozinho em volta da bola para cobrar a falta, pára com isso.

Augusto Nunes: Dulcídio, você disse no começo do programa que alguns dirigentes aí costumam presentear os árbitros em espécie, um presente aqui e ali. E no Natal... Os jornalistas chamam esse tipo de presente de jabaculê, você deve saber. No Natal você recebe muitas garrafas de uísque, caixas de Natal, presentes, presentes de dirigentes? Deixa eu explicar, eu não tô levantando nenhuma especulação, são presentes que lhe mandam...

Dulcídio Wanderley Boschilla: Nos vestiários nossos em várias cidades tem pacote de café.

[...]: Maçã.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Maçã... Antes do jogo tem lugar que é garrafãozinho de pinga que fica antes do jogo lá e que os caras levam. Mas tem muitos lugares que eles deixam... Por exemplo, o árbitro está fazendo o jogo - está fazendo o jogo! - [se] o time está perdendo eles abrem a porta, pegam os garrafões e levam tudo embora, somem com tudo.

Silvio Luiz: Fecham a água?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Isso acontece normalmente, e ele sabe disso [aponta para alguém], é verdade.

Augusto Nunes: Se lhe mandam um presente desse, como é que você reage?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, eu não reajo, eu acho que é normal. Eu acho que é normal, acho normal o seguinte: o cara que dá alguma coisa, uma faca, uma faquinha, um brinde de uma faca, o cara que presenteia com maçã, com pera ou coisa que o valha. Mas o cara tecer tecer comentários referentes ao jogo antes do jogo... Porque o tratamento mudou muito, Silvio.

Silvio Luiz: Mudou, né?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Os caras andam tratando muito melhor. Antigamente o árbitro roubava lâmpada do vestiário, antes de 1968. Era verdade.

Silvio Luiz: Era verdade.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Os caras pegavam o trem, indo viajando de trem, no vagão-restaurante, e desciam na estação de madrugada bêbados. O guarda tinha que ajudá-los a descer, porque o cara não conseguia descer, o árbitro do jogo.

Silvio Luiz: Ia dentro de um mamão.

Dulcídio Wanderley Boschilla: E a melancia? Teve a história de uma melancia...

Silvio Luiz: Um mamão.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Os caras... está pensando que é brincadeira?, mas fiquei sabendo de uma melancia.

Silvio Luiz: Deixa na caixa d’água. [faz uma referência indireta e jocosa ao então dirigente da Federação Carioca de Futebol, Eduardo Vianna, conhecido como “Caixa D´Água”]

Dulcídio Wanderley Boschilla: Melancia. Deram a melancia para o cara, mas estava recheada e o cara deu um picote para ver se estava boa a melancia. Só que “ocou” e meteu a grana lá dentro. E o cara pegou o trem e veio com a melancia. Aconteceu isso em São Paulo. [risos]

[...]: Com dinheiro dentro?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Com dinheiro dentro da melancia, e veio com a melancia. Aí deu vontade dele ir no banheiro e deixou a melancia no banco. O outro, o sacana do bandeirinha, disse: “Esse cara vai ficar sem melancia!” Jogou pela janela. E o cara queria pular junto. Quando o cara voltou ele queria pular junto, queria pular de cabeça. [risos] Vocês dão risada...

Silvio Luiz: Eu conheço a do mamão.

Dulcídio Wanderley Boschilla: O cara queria morrer, meu.

Silvio Luiz: Eu conheço a do mamão, o mamão estava pingando...

Dulcídio Wanderley Boschilla: O cara quis morrer.

[...]: Foi o Astolfi que jogou.

Dulcídio Wanderley Boschilla: O Astolfi que jogou, disse que o Astolfi que jogou.

Oldemário Touguinhó: [...] na outra estação!

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, desceu e pegou o trem de volta. Trocou a área e desceu. Isso acontecia, porque os caras davam dinheiro em espécie. Um dia eu estava conversando com o presidente [de 1982 a 1987] da Federação [Paulista de Futebol], José Maria Marin.

[...]: Qual?

Dulcídio Wanderley Boschilla: José Maria Marin. Estava com ele e nós estávamos batendo papo e tal e eu digo: “eu não aceito esse negócio do cara levar isso, o cara levar isso e nego levar isso.” “É, Dulcídio, mas eu acho que o cara, pô, se o cara ganhou presente...” Eu falei: “presidente, pelo amor de Deus, nem pensa nisso.”

[...]: Um apartamento aqui, outro ali.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, eu nem tô dizendo isso, com referência ao árbitro em si. Que apartamento, rapaz! Nem se o cara tem peito de... o árbitro de futebol é cinco pau, cinco mil cruzeiros, mil cruzados.

Juca Kfouri: Eu estou fazendo referência à pessoa com quem você conversava.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não, não.

Juca Kfouri: Com quem você conversava, que é dono do melhor apartamento de São Paulo, isso é normal.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Melhor o quê?

Juca Kfouri: Melhor apartamento. O ex-presidente José Maria Marin, com todo respeito, mora... - sabidamente, até já houve uma matéria, informação - num edifício que tem os melhores apartamentos de São Paulo. Agora, como você sabe, o ex-presidente José Maria Marin é um advogado com banca estabelecida em São Paulo, vive disso há muitos anos. Então daí não estranhar que ele veja com tanta naturalidade esse tipo de presente, uma troca aqui e um favor ali, é a vida.

Vital Bataglia: Mas já que você falou de dirigentes, falou de seus companheiros, e a imprensa? Dá para atirar a primeira pedra ou vai afinar?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Pois é, eu atiro a primeira pedra. Se eu vou para o Corinthians acaba a mamata de “nego” receber grana no Corinthians, viu malandro?

Juca Kfouri: Nomes, nomes, nomes, Dulcídio!

Dulcídio Wanderley Boschilla: Não sei, queria saber.

Augusto Nunes: Tem jornalistas que estabelecem relações desonestas com dirigentes, juízes?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Primeira informação que eu tive no Corinthians, que tem jornalista que vai lá e recebe do Corinthians a grana.

Juca Kfouri: Cite nomes, Dulcídio.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Mas o cara não me falou o nome, só se for o bispo. O bispo foi lá e recebe em nome do jornalista.

[...]: Mas aí você generaliza a classe inteira.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Foi a informação que eu recebi, e se eu estivesse lá...

[...]: Você acreditou na informação?

Dulcídio Wanderley Boschilla: Eu acredito na informação em termos.

Vital Bataglia: Qual o seu relacionamento com a imprensa?

Juca Kfouri: Dulcídio, deixe-me só pegar isso um pouco mais, porque certas coisas...

[sobreposição de vozes]

Augusto Nunes: Eu só pediria aos convidados aqui, por favor, para não estabelecerem conversas paralelas, [por]que confunde muito aqui, e o Juca refaz a sua pergunta.

Juca Kfouri: Por mais críticas que você tenha a fazer com relação a imprensa, e eu acho que a imprensa tem que ser tão criticada quanto são os políticos, quanto são os árbitros. A imprensa deve ser criticada. Quero te dar um exemplo de forma de agir minha. Quando o Placar [revista esportiva] fez a denúncia da máfia da loteria esportiva... [esquema de manipulação de resultados da loteria esportiva, denunciado em 1982]

Augusto Nunes: Que é a última pergunta, por favor, estamos no fim do programa.

Juca Kfouri: A Placar citou 125 nomes. Os árbitros são esses: foi Luiz Carlos Felix, o senhor não sei das quantas... Os jogadores são esses: Fulano, Beltrano, Cicrano e tralalalalá... Os dirigentes são esses: assim, assim, assado... E deu todo o buchicho que deu. Eu ouvi do Zico [ex-jogador de futebol de renome mundial, fez carreira no Flamengo do Rio de Janeiro, sendo campeão mundial em 1981], que então era presidente do Sindicato dos Jogadores do Rio: “Você devia ter feito a denúncia, mas não ter dado os nomes. Isso devia ter ficado para uma fase posterior.” E eu me lembro de ter respondido a ele o seguinte: “se eu tivesse feito isso, eu colocaria todos os jogadores do Brasil sob suspeição. Ao fazer a denúncia nos termos em que ela foi feita, estão sob suspeição esses dois árbitros, esses trinta dirigentes, esses 15 jogadores e pararara.” E então, por isso que eu digo - aqui tem sete jornalistas. O telespectador há de achar que eu posso ser um deles.

Silvio Luiz: Oito.

Juca Kfouri: Oito jornalistas.

Dulcídio Wanderley Boschilla: Aí você está defendendo a classe, pelo seguinte...

Juca Kfouri: Não, não estou defendendo a classe, eu quero nome.

Dulcídio Wanderley Boschila: Não, nome não. A carapuça não serve para você, como não serve para o Flávio Adauto, como não serve para vocês de um modo geral. Mas você sabe, como existem dentro da arbitragem vigaristas de marca maior, existem no jornalismo vigaristas de marca maior. Vocês, melhor de que eu, devem saber os nomes. Eu juro por Deus que não sei o nome, eu não sei. Se soubesse aqui diria: “foi fulano que me disse que fulano passa no cofre do Corinthians e pega a grana”. Então uma coisa eu lhe digo: como existe gente que não presta na arbitragem, existe gente que não presta no meio dos jornalistas também. Então eu não estou defendo aqui a classe dos árbitros como um todo, eu defendo a classe dos árbitros até certo ponto, porque tem gente que não merece ser defendida.

Augusto Nunes: Dulcídio, infelizmente nós temos que encerrar o nosso programa, poderíamos prosseguir por mais que duas horas - já estamos há duas horas no ar. E eu queria agradecer a presença dos nossos entrevistadores; registrar que este programa foi acompanhado pelos cartoons do Negreiros, aqui conosco; e queria agradecer também a presença do árbitro Dulcídio Wanderley Boschilla, que esteve conversando conosco, como eu registrava há pouco, há quase duas horas. Muito obrigado pela suas respostas e pela paciência que você enfrentou aqui esta roda viva. O programa Roda Viva volta na próxima segunda-feira às 9:25h da noite. Boa noite.

[Dulcídio Wanderley Boschilla faleceu em São Paulo no dia 14 de maio de 1998, aos 59 anos, vítima de um câncer alojado entre o rim e a coluna]

 

 

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