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Memória Roda Viva

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Jaime Lerner

20/1/1992

Soluções originais, como o programa de separação do lixo e o corredor exclusivo de ônibus, implantadas em Curitiba (PR), poderiam resolver graves problemas urbanos, diz o então prefeito da cidade

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Jorge Escosteguy: Boa noite. O brasileiro costuma cultivar algumas unanimidades em relação a certas figuras públicas. São pessoas que, de certa forma, estão um pouco acima do bem e do mal. Raramente são criticadas e em geral são muito elogiadas. Formam unanimidades nacionais, por exemplo, o [cantor e compositor] Chico Buarque na música, o Antônio Ermírio de Moraes na área empresarial [empresário, engenheiro e industrial brasileiro, proprietário do grupo Votorantim. Foi candidato ao governo de São Paulo em 1986, mas ficou em segundo lugar]. Às vezes, essas unanimidades são passageiras e fica-se sem saber se elas eram baseadas em fatos objetivos, reais ou apenas mais uma ilusão do brasileiro, baseada em um bom trabalho de marketing político. No centro do Roda Viva esta noite está uma dessas unanimidades, o prefeito de Curitiba, Jaime Lerner. Jaime Lerner, na última pesquisa de opinião, apresentou 82% de ótimo e bom, 13% de regular, o que dá uma aceitação técnica de 95%. Ele é o entrevistado desta noite no Roda Viva. Jaime Lerner tem 54 anos, é casado, [tem] dois filhos, está na sua terceira gestão como prefeito de Curitiba. Foi nomeado em 1971, em 1979 e eleito em 1988. Numa campanha-relâmpago, de 12 dias, conseguiu se eleger. Ele é inovador em termos de urbanismo. Criou várias novidades em Curitiba, copiadas até por outras cidades, como o corredor exclusivo de ônibus. Curitiba hoje é considerada a cidade com maior índice de área verde por habitante: cinquenta metros quadrados por habitante. Ele tem idéias inovadoras nesse campo e acha, entre outras coisas, que o bonde é o transporte do futuro. Nós vamos discutir com Jaime Lerner esta noite, inclusive, essa questão do bonde. Para entrevistar Jaime Lerner, nós convidamos Augusto Nunes, diretor de redação do jornal Zero Hora; Carlos Alberto Sardenberg, editor do Jornal do Brasil em São Paulo; o jornalista Luiz Weis; Luiz Henrique Fruet, diretor de redação da revista Globo Ciência; Ibsen Spartacus, chefe de redação da sucursal em São Paulo do jornal O Globo; Nilson de Oliveira, editor-adjunto do caderno Cotidiano do jornal Folha de S.Paulo; Paulo Markun, jornalista e diretor da Agência Deadline, e Juca Kfouri, diretor editorial das revistas Playboy e Placar e comentarista esportivo da Rede Globo. Boa noite, prefeito.

Jaime Lerner: Boa noite.

Jorge Escosteguy: Dizem os seus adversários que o senhor, como prefeito, no fundo, exerce um trabalho de marketing, que o senhor ganha dinheiro mesmo é no intervalo das suas administrações, vendendo consultoria. O senhor diz, inclusive, ao Juca Kfouri na entrevista para a Playboy, que ganhou muito dinheiro dando consultoria, mas perdeu tudo. Perdeu como, na política, sendo prefeito? Como foi isso?

Jaime Lerner: Todas às vezes em que assumi a prefeitura, é evidente que tem que haver uma dose de renúncia, não só com o salário de prefeito, isso dá uma interrupção no trabalho profissional, no escritório em que venho desenvolvendo trabalho há alguns anos. Mas acho que eu jamais me queixei disso, gosto de administrar uma cidade, tenho prazer, curto isso e não acho que seja uma carga. O fato de não ter bons rendimentos e bons vencimentos durante quatro anos...  Acho que as gratificações que a gente tem fazendo as coisas  acontecerem não tem o que pague.

Augusto Nunes: Qual é o seu salário hoje, prefeito?

Jaime Lerner: Hoje, três milhões [o cruzeiro era a moeda corrente em 1992].

Augusto Nunes: Quanto o senhor ganharia se pudesse fazer trabalhos e consultoria?

Jaime Lerner: Depende, você sabe que trabalho de consultoria é um trabalho de risco, depende dos canos...

Augusto Nunes: No caso do senhor é um risco menor, não é?

Jaime Lerner: ...depende dos canos que a gente leva como profissional.

Luiz Weis: Prefeito, como todo ser humano, que é um fazedor de coisas, o senhor é um otimista. Eu gostaria de cutucar o seu otimismo em relação ao universo urbano, em relação às cidades. Me permita jogar alguns números. Em 1900, 10% da espécie humana, apenas 10%, apenas um em cada dez seres humanos morava em cidade. Daqui a nove anos, no ano 2000, metade da humanidade vai morar em cidades. Dessa metade da humanidade, algo como três em cada vinte pessoas, ou seja, 15% vão morar em 48 cidades com cinco milhões de habitantes ou mais. Para piorar as coisas, dessas 48 megalópoles 36 se localizam no Terceiro Mundo, entre elas, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, capitanedas por essa coisa inabitável chamada Cidade do México, do tamanho de um país, com 26 milhões de habitantes previstos. O economista Carlos Lessa, da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], chama essas cidades de "nações de miséria". E é cada vez maior o consenso, desde a pessoa comum que perde metade do seu dia indo e vindo, até os urbanistas, os teóricos, os sociólogos, de que aquela que foi a maior característica do modo de viver do século XX, a urbanização, esgotou-se. A grande cidade é a prova do fracasso daquilo que foi um grande sucesso e ela não tem saída. A grande cidade tem saída, prefeito?

Jaime Lerner: Tem saída. Acho que nós temos que pensar a grande cidade de outra maneira. Acho que nós temos que saber que nós vamos viver com multidões, é quase uma tecnologia para multidões. Não acho que nós tenhamos que ser pessimistas. Eu acho que existe uma coisa chamada "síndrome da tragédia" no Brasil. Os números são colocados como se fossem a grande tragédia e isso está estimulando até, uma certa imobilidade, inércia...

Luiz Weis: Mas, me permita, não é uma questão... não é "síndrome de tragédia" no Brasil. Esses números são, hoje, brandidos até pelos ecologistas, que consideram que o maior problema ecológico do mundo é a cidade.

Jaime Lerner: Pois é, verdade. Acho que só a ação local vai resolver o problema global. Em 1995, 98% dos problemas de meio ambiente, problemas globais de meio ambiente podem ser resolvidos na cidade. O que nos deixa bastante otimistas, porque se pode resolver o problema. Acho que se muitas cidades fizerem as coisas direito, se forem ambientalmente corretas daqui para frente, nós não vamos ter problemas de meio ambiente. Então acho... Eu só quero dizer o seguinte: uma coisa do problema de... Essa bomba demográfica que todo mundo esperava, ela não aconteceu por uma razão. Existe uma frase de um famoso microbiologista, tenho usado muito essa frase, que é do René Dubos [(1901-1982) microbiologista, ganhador do Prêmio Pulitzer, em 1969, pelo livro So human an animal (Um animal tão humano)]. Ele diz: “tendência não é destino”. No momento em que a sociedade detecta uma tendência não-desejável, ela mesmo começa a corrigir. Então, não acho que o fato de conviver com grandes populações... Agora, é necessário que haja adequação para trabalhar com esses números.

[...]: Como se faz isso, prefeito?

Jaime Lerner: Como se faz isso? Não tenho todas as respostas. Mas acho que um caminho importante é o seguinte: as cidades, as grandes cidades, as megacidades têm que ter, no mínimo, o seguinte: primeiro, o domínio do seu crescimento. Isso é possível, as cidades têm o instrumento para isso, podem estabelecer pelo planejamento o domínio do seu crescimento. Elas têm instrumento para isso...

Paulo Markun: Tem que mandar na especulação imobiliária, então?

Jaime Lerner: Então... também, mas a cidade tem que definir o que quer. O segundo ponto hoje é a escolha da tecnologia. Acho que o grande problema das cidades daqui para frente... Porque nós vamos encontrar tecnologias que, no caso do transporte, são tecnologias que exigem integração. Então, no caso do Rio, é a barca, o metrô, o trem de subúrbio, ônibus. Então, nós temos que ter uma tecnologia de integração. Já o problema de saneamento e esgoto tem que ser uma tecnologia de descentralização. Essa visão da cidade tem que começar. O terceiro ponto importante é aprender a conviver com o setor informal, porque senão nós estaremos nos iludindo, achando que estamos planejando a cidade, quando 40, 50% da população está no setor informal. São invasões, é o comércio ambulante. Então, nós temos que encontrar uma maneira de promover a integração do setor formal com o informal. Agora, tudo isso nós temos que começar a não ignorar e trabalhar nesse sentido. Acho que tem uma maneira, vocês vão dizer, o Luiz Weis vai dizer que é otimista. Se nós não podemos resolver o problema daqui para trás, é mais fácil resolver daqui para frente. Isso quer dizer o seguinte: daqui para frente as cidades têm que ser ambientalmente corretas. Daqui para frente as cidades terão que resolver os problemas sociais importantes, o problema da criança de rua, por exemplo. Daqui para frente as cidades terão que resolver as necessidades básicas da população. Nós temos que municipalizar as necessidades básicas...

Luiz Weis [interrompendo]: Prefeito, me permita, sem querer monopolizar esse debate, mas “vai ter que”, as cidades “vão ter que” e assim por diante... não é um desiderato que vai visitar cidades para fazer tudo isso. Cada vez mais, elas precisam de recursos. A grande cidade hoje, paradoxalmente, é cada vez mais a grande cidade pobre. As metrópoles americanas estão falidas.

Jaime Lerner: Nós nunca tivemos...

Luiz Weis: Não espere que Calcutá, Bombaim, Cairo e Cidade do México tenham recursos para atender a esses “vai ter que”.

Jaime Lerner: Só vou dar um exemplo. Nós nunca tivemos tanta dificuldade financeira como temos agora. E é a época em que nós estamos encontrando um maior número de soluções. A escassez é o caminho da criatividade...

[...]: E de onde elas vêm, prefeito?

Jaime Lerner: Vêm da necessidade de resolver o problema na escala que o problema se apresenta. Nós não podemos nos enganar, existe essa visão pontual da cidade. Acho que nós temos que encontrar o caminho para fazer esse gerenciamento da cidade. Hoje, o gerenciamento correto da cidade tem que resolver,  ao mesmo tempo, as necessidades que a população joga diariamente e as potencialidades que os responsáveis pela cidade têm por obrigação resolver. Se eu ficar na prefeitura de Curitiba 24 horas por dia, só atendendo a necessidades, vou trabalhar contra a minha cidade. Agora, se eu trabalhar só com as potencialidades, com os programas globais, aqueles que realmente atendem a um grande número, eu me afasto do povo. Então, hoje, gerenciar uma cidade é fazer esse balanceamento correto entre necessidades que a população coloca e as potencialidades que você tem por obrigação visualizar.

Ibsen Spartacus: O senhor pode dar exemplo de como administrar diante dessa falta de recursos, encontrar uma solução?

Jaime Lerner: O lixo. O programa do lixo em Curitiba não nos custou um tostão a mais. E, no entanto, a cidade de Curitiba está oferecendo um exemplo para todas as cidades do mundo, inclusive do Primeiro Mundo, [sobre] como se resolver o problema do lixo.

[Sobreposição de vozes]

Luiz Weis: Mas há uma questão de escala, prefeito. Em Nova Iorque, a população produz toneladas de lixo por ano [a mais em relação] ao habitante de Curitiba. Não há como resolver o problema da maneira como o senhor falou. De uma cidade de um milhão e meio de habitantes, com uma renda per capita bastante inferior à de lá. Não acho que seja um exemplo, me desculpe, para qualquer cidade do mundo.

Jaime Lerner: Vocês não vão me tirar da discussão colocando Curitiba como um problema pequeno e diferente dos demais. Não é verdade. Curitiba é uma cidade diferente, porque ela se tornou diferente. E o problema da escala é uma questão de escala. Vou dar um exemplo, a separação do lixo não é um problema de escala, é um problema de comportamento da população...

Augusto Nunes [interrompendo]: Como o senhor resolveu? Desculpe, só para entender, porque o senhor está falando de uma solução para o problema do lixo e nós não sabemos como foi.

Jaime Lerner: Na realidade, a população toda faz a separação do lixo orgânico e do lixo reciclável. Isso é uma questão de conscientização da população. Por que muitas cidades do Primeiro Mundo não conseguem resolver? Porque eles querem fazer disso um ato voluntário. Já imaginou pegar o seu lixo e levar até um posto aonde você vai levar o seu lixo reciclável? Quem é que vai fazer isso?

Jorge Escosteguy: O senhor, de certa forma, deu uma recompensa. O senhor deu vale-transporte.

[...]: Como o senhor fez lá?

Jaime Lerner: Nós fizemos o seguinte. Primeira coisa:  tem que haver o serviço de coleta do lixo reciclável em casa. O que aconteceu foi uma coisa muito simples, é fazer a separação do lixo na casa de cada um. Transformar a casa de cada um numa usina de separação, em vez de comprar uma grande usina. O que nós fizemos foi descentralizar o problema. É ação de capilaridade, quer dizer, toda a população faz isso. Então, cada morador da cidade recebeu uma cartilha dos dias [da] coleta de lixo normal, o lixo orgânico e os dias em que passa o caminhão verde com o sino, que recolhe o lixo que não é lixo, o lixo reciclável. Qualquer cidade do mundo pode fazer isso. Agora, todo mundo quer fazer a coisa de maneira mais complicada. Conheço muita gente que vem, volta de viagem e me diz: “olha, eu estive na Holanda, o pessoal lá leva o vidro no posto de gasolina, entrega”. Mas quantos? Qual é o percentual da população que faz isso? Então, muitas cidades tentam sofisticar demais, é separar o vidro por cor, é ter uma coleta especial para papel, para vidro, para plástico e para metal. O que nós fizemos foi simplesmente isso, uma caixinha de papelão, cada um tem em casa, e separa o seu material, uma vez por semana vem o caminhão do lixo que não é lixo...

[Sobreposição de vozes]

Jorge Escosteguy: Desculpe, Weis, só um minutinho por favor.

Juca Kfouri: Tem uma campanha da [cerveja] Brahma no ar pregando mais ou menos a mesma coisa. O senhor diria que essa campanha, então, é inócua, a par de ser mais uma forma de conscientizar as pessoas, essa campanha não vai dar certo?

Jaime Lerner: Não conheço os detalhes da campanha da Brahma em relação à separação, não sei...

Juca Kfouri: É, basicamente parte desse princípio, separa uma coisa da outra...

Jaime Lerner: Acho que todo esforço no sentido da reciclagem é bom. Acho que o fato de ter a coleta em casa não diminui a importância de as crianças na escola levarem o seu material. Nós fizemos o câmbio verde que é outra... é a idéia de pegar... Quando há uma superprodução de produtos hortigranjeiros na região de Curitiba – vi isso na televisão– , havia uma superprodução de repolhos, cenouras e os produtores jogando fora o produto, porque não tinham preço. Isso não pode acontecer. O que nós fizemos? Fizemos um acordo com os produtores. Nós compramos e trocamos pelo lixo reciclável. Não gastamos um tostão a mais, por quê? Porque as crianças trazem, as pessoas trazem o lixo reciclável, nós vendemos o lixo reciclável e com esse dinheiro nós pagamos os produtores. Então, não sai um tostão. Não existe subsídio. E, na realidade, é uma quantidade imensa, isso faz parte do dia-a-dia da cidade. Cada vez que há uma superprodução, nós entramos com o câmbio verde. E sei que muitos de vocês vão dizer: “e a escala?” O comportamento de uma população não depende da escala. Vocês vão encontrar coisas difíceis de fazer numa cidade de  cem mil habitantes e coisas fáceis de fazer numa cidade de dez milhões de habitantes. A qualidade de vida de uma cidade não... Eu, às vezes... claro, nós lidamos com... Grande parte dessas cidades é do Terceiro Mundo. Mas, vejam bem, independente [mente] do problema de distribuição de renda, de pobreza – e nós estamos convivendo cada vez mais com o empobrecimento contínuo das nossas populações –... mas, apesar de tudo isso, dessa diferença entre as cidades do Primeiro Mundo e do Terceiro Mundo, na realidade grande parte das cidades do mundo tem os mesmos problemas, sejam do primeiro, sejam do Terceiro Mundo.

Luiz Weis: Sim. Tanto é que as cidades do Primeiro Mundo estão se "terceiromundizando".

Jaime Lerner: Sem dúvida, sem dúvida.

Jorge Escosteguy: Sardenberg.

Carlos Alberto Sardenberg: Na verdade, o senhor tocou numa questão que tem chamado a atenção de sociólogos, cientistas políticos, que é uma questão muito grave. É mais ou menos o seguinte: como pedir a colaboração dos cidadãos? A tese vigente é que, nas grandes cidades, em especial aqui em São Paulo, isso já aconteceu, quando, por exemplo, órgãos públicos como a Sabesp, [em relação à] água... eletricidade, pedem à população para economizar. Pedem que [se] faça uma economia voluntária. Acaba, muitas vezes, acontecendo o contrário. O sujeito diz assim: “olha, economize água, porque senão vai faltar”. As pessoas pensam, “bom, isso quer dizer que vai faltar água; vou armazenar água” e aí, o que acaba acontecendo? Falta água, certo? Então é uma... Bom, há toda uma teoria sociológica, toda uma teoria política em cima disso, aquela coisa de dilema do prisioneiro e as pessoas acabam se prejudicando, quer dizer, cada uma procurando ter uma vantagem pessoal acaba produzindo um desastre coletivo. A tese resulta em mais ou menos o seguinte: se você pedir uma colaboração das pessoas, elas não darão a colaboração. Elas vão agir, cada uma movida por seu interesse individual e o resultado [será] desastroso. Portanto, seria preciso forçar as pessoas de algum modo a colaborar. O senhor estava falando agora, comparando o programa do lixo, o senhor criticou alguns deles dizendo que são programas voluntários. O que pergunto ao senhor, com a sua experiência de tantos anos na prefeitura e lidando com esses assuntos, [é]: o senhor acha que há condições da população colaborar? Ou em que condições ela manda a cidade às favas e cuida dos seus próprios interesses?

Jaime Lerner: Vou lhe dizer em duas palavras: respeito e credibilidade. Quando a população se sente respeitada, ela assume uma co-responsabilidade pela cidade. No momento que o morador de uma cidade vai usar o sistema de transporte e vê que ele é bom, tem qualidade, ele se sente respeitado. Se ele vai usar o equipamento de saúde e for bom, não tem que esperar na fila, tem serviço durante 24 horas, ele se sente respeitado. Se os equipamentos de educação, se as escolas são boas, ele se sente respeitado. Quando um morador de uma cidade ou de um país se sente respeitado, ele assume co-responsabilidade. Então, isso vem da credibilidade que se tem ao colocar... Quando falei do problema do lixo, todo o serviço de separação do lixo é voluntário, ninguém é forçado a fazer. Na realidade, disse que não funciona se depender da pessoa levar até um ponto distante. Nós temos que facilitar essa vontade do morador. Então, a população cumpre quando ela se sente respeitada. Ela faz por isso...

Carlos Alberto Sardenberg [interrompendo]: Se ele não fizer a separação, tem algum tipo de punição ou leva o lixo assim mesmo?

Jaime Lerner: Não tem punição nenhuma, não tem multa. É incrível, que nós não temos nenhuma multa. Nós recolhemos o lixo  de qualquer maneira e hoje nós estamos chegando em níveis de 70% da população que faz o a separação do lixo.

Carlos Alberto Sardenberg: Existe em Curitiba o problema de destruição de equipamentos como há, por exemplo, aqui em São Paulo. Destroem-se escolas públicas, é...

Jaime Lerner [interrompendo]: Existia no começo. Mas, se o trabalho de recuperação é imediato, a população começa a também a respeitar. Eu me lembro de quando nós começamos o plantio de árvores em toda cidade. Nós tínhamos um trabalho de recuperação imediata, qualquer árvore derrubada por problemas de vandalismo, era feita a recuperação na hora. Então, o vândalo ia lá, derrubava a árvore, quebrava a árvore, no outro dia ele encontrava a mesma árvore de novo. Então, nós vencíamos o vândalo pelo cansaço. Mas não é só isso, acho que também a população, ela quando... É fácil de ver. No metrô, a conservação é boa. Quando há um equipamento da cidade que respeita o morador, ele também respeita.

[Sobreposição de vozes]

Luiz Weis: Prefeito, eu queria exercer o desagradável papel de advogado do diabo.

Jorge Escosteguy: Por favor, só um minutinho por favor. Você volta em seguida. Têm três pessoas [para perguntar] e você já fez duas perguntas. Antes de passar para o Nilson, o senhor falou duas vezes em transporte. Eu lhe faria uma pergunta em função desse cataclisma urbano, inclusive mencionado pelo Weis. O senhor declarou recentemente, acho que nessa mesma entrevista [refere-se à entrevista para a revista Playboy feita por Juca Kfouri], que o bonde é o transporte do futuro. Como é essa história de "o bonde é o transporte do futuro"?

Jaime Lerner: Bom, é o seguinte: nós não podemos [considerar esgostadas], não se esgotaram todas as soluções de superfície. Na realidade, se convencionou, alguém chegou e disse: “olha, toda cidade, para ter um bom transporte, tem que ter metrô. Toda cidade com mais de um milhão de habitantes tem que ter um metrô, porque senão não vai funcionar”. Conversa, porque isso é uma idéia recebida, nós temos um manual de idéias recebidas. Recebemos idéias, mas, às vezes, não pensamos...

Paulo Markun: Mas dá dinheiro essa idéia para alguém, não é?

Jaime Lerner: Para alguém dá dinheiro.

Paulo Markun: Para quem vende tecnologia...

Jaime Lerner: Claro, sem dúvida. Agora, eu não sou contra o metrô. Não sou contra o metrô. Só acho que você não pode passar direto de um ônibus para um metrô. Você tem uma série... Não se esgotou tudo das soluções de superfície. Vejam...

Augusto Nunes: O bonde seria uma solução transitória.

Jaime Lerner: O bonde seria uma solução intermediária.

Augusto Nunes: Intermediária, depois se chegaria à transitória.

Jaime Lerner: Quem é que pode hoje pagar cem milhões de dólares por quilômetro?

Carlos Alberto Sardenberg: O senhor não acha que era preciso, inclusive, explicar o que é um bonde? Porque esse pessoal de 15, 16 anos não sabe o que é um bonde.

Jorge Escosteguy: O transporte do futuro deles...

[Sobreposição de vozes]

Carlos Alberto Sardenberg: É aquele que vai pelo trilho, pela rua.

Jaime Lerner: Vai no trilho.

Jorge Escosteguy: Elétrico, pelo menos, não o bonde puxado a tração animal.

Jaime Lerner: É a mesma coisa, vamos dizer, um pequeno raciocínio. É um metrô mais leve, bem mais leve, que circula na superfície, na rua.

Paulo Markun: Mas o que caracteriza o metrô [em relação ao] bonde? Ou... para o metrô de superfície é a velocidade e a aproximação entre um carro e outro, certo?

Jaime Lerner: É. Mas dá para fazer coisas incríveis com superfície. Por que dá para fazer? Porque, vejam, durante muito tempo os europeus trabalharam, os países do Primeiro Mundo sempre trabalharam no aperfeiçoamento do veículo. Porque é difícil para eles mexerem no itinerário, é difícil mexer nas condições de embarque, uma série de coisas – ou, pelo menos, não se pensou nisso –. Acho que no momento que se colocou o ônibus em canaleta exclusiva, em faixa – não é faixa pintada, mas numa faixa central exclusiva, separada fisicamente –, se deu um grande avanço. E nós começamos a ver coisas incríveis. Nós podemos chegar aos números de metrô. Hoje, só para dar uma idéia, nós estamos transportando 15 mil passageiros por hora numa só direção. Isso é número de metrô e estamos transportando com ônibus e com qualidade. Por que isso?  É fácil, eu dar um número [com] que qualquer pessoa que esteja assistindo a este programa vai entender de transporte urbano imediatamente. Um ônibus que anda numa rua normal, em vala comum, rua normal, ele transporta “x” número de passageiros por dia. Se esse mesmo ônibus andar num canal exclusivo, numa faixa exclusiva, ele transportará o dobro, duas vezes mais. Se for um ônibus articulado, aquele com a sanfona, ele transportará duas vezes e meia mais. Agora, se for um ônibus articulado e o embarque for no mesmo nível, quer dizer, o passageiro não tem que subir degrau e pagar antes de entrar no ônibus, então, ele aumenta para três vezes e meia mais. Então, quer dizer o seguinte: não se esgotou tudo em termos de operação de superfície. E por quê? Porque nós fomos obrigados a pensar durante anos que a única solução era o metrô, porque as grandes cidades do mundo tinham metrô: Londres, Paris, Moscou e Nova Iorque. Mas, claro, vai ser necessário, nós vamos ter em São Paulo cinco, seis linhas. O Rio também. Mas o importante é que o grande número de deslocamentos [será] na superfície por uma razão: é muito caro, para qualquer cidade do mundo, rica ou pobre, construir uma rede completa. Quem construiu rede completa? Londres, Paris, Moscou, Nova Iork, um pouco Barcelona, mas não é completo. Por que construíram? Porque eles construíram no começo do século, quando era mais barato trabalhar no subsolo. Hoje, fazer rede completa de transporte enterrado é caríssimo até para país rico. A cidade de São Francisco, que construiu um sistema magnífico que é o Bart [Bay Area Rapid Transit], levou 25 anos para construir o Bart. Washington, Miami fizeram uma linha, levou 15, dez anos. Ora, se nós podemos fazer um sistema que atenda a nossa população já em seis meses, por que nós temos que sacrificar uma geração? E, se o sucesso da operação de superfície levar a uma necessidade de veículo maior, tem o bonde. E, se o sucesso do bonde levar a necessidade de um veículo maior, aí tem o metrô.

Jorge Escosteguy: O Nilson tem uma pergunta. Por favor.

Nilson de Oliveira: Prefeito, o senhor falou que uma das preocupações do urbanista, do administrador da cidade é com esse lado informal da sociedade?

Jaime Lerner: Sim.

Nilson de Oliveira: No seu caso específico, como o senhor [está] lidando com a questão de invasão de terras? Inclusive o senhor mencionou aí que parece que, nos últimos tempos, tem ocorrido com uma freqüência maior em Curitiba por causa do fluxo migratório de pessoas que deixam o campo e vão à cidade em busca de teto, de oportunidade de emprego. E, inclusive, parece que, recentemente, o senhor teve um problema lá, ocuparam uma área extensa. Qual é a saída para isso? [Pois] parece que é um problema que se estende às grandes regiões do país, não é?

Jaime Lerner: Acho que...

Jorge Escosteguy [interrompendo]: Prefeito, desculpe. O telespectador Marcelo Ridente, aqui de São Paulo, telefonou fazendo uma pergunta semelhante. Perguntou, inclusive, se existe alguma política migratória em Curitiba?

Jaime Lerner: Bom, acho que nós temos que diferenciar a invasão que acontece por percolação, quer dizer, a população da cidade ficando cada vez mais pobre, então uma família em desespero invade uma área... [Existe] uma área abandonada, não cuidada, acabam invadindo essa área. Isso é essa ação, percolação, que vem com o empobrecimento da população. Isso é um tipo de invasão. Outra é a invasão organizada, feita por aproveitadores, sejam financeiros, [sejam] políticos. Bom, então, há que [se] distinguir os processos: o processo natural, que vem do empobrecimento, e o outro, [que] é um processo de oportunismo. No processo natural, acho que hoje nós temos que caminhar com a mesma velocidade do invasor. É o que nós estamos fazendo em Curitiba, quer dizer, nós temos áreas onde vamos fazer uma invasão oficial, organizada. Aqueles que estão na fila da Cohab [Companhia de Habitação Popular] entram na fila e entram nos programas normais de Cohab. Nós temos que fazer da construção a mais barata possível por autoconstrução, porque hoje a população de renda mais baixa não tem condição de assumir dois endividamentos: o do lote e o da construção. Então, é necessário que se dê alternativa o mais rápido possível. Acho que isso está se dando em muitas cidades brasileiras, nós temos que caminhar com rapidez. Agora, o grande problema foi a diminuição dos recursos de natureza social, a torneira social que tinha que ser colocada. Antes, nós tínhamos um banco social no país, que era o BNH [Banco Nacional da Habitação, criado em 1964 e extinto em 1986, era responsável pelo financiamento imobiliário. Suas funções foram substituídas pela Caixa Econômica Federal]. Certo ou errado, com problemas de administração, o fato é o seguinte: BNH era o banco social do país.

Juca Kfouri: Por falar em país, prefeito, o senhor costuma dizer que a cidade é um lugar de encontro. Como é que faz o país se encontrar?

Jaime Lerner: Olha, como meu campo é a cidade, tenho certeza de uma coisa: se todas as cidades fizessem o que muitas cidades como Curitiba e outras cidades estão fazendo, a metade do problema do país estaria resolvido. Quer dizer, se nós municipalizássemos a atenção às necessidades básicas da população, deixarmos que as cidades cuidem das necessidades básicas – moradia, transporte, saneamento, educação, saúde –, a dívida social do país já estaria saldada. Agora, para isso é necessário recursos. Com que recursos [se faz isso]?

Augusto Nunes: O Rio é uma cidade bem cuidada, prefeito?

Jaime Lerner: Como?

Augusto Nunes: Eu gostaria de que o senhor comentasse se considera o Rio uma cidade bem cuidada, já que é um prefeito do mesmo partido e que convive com o senhor [faz referência ao advogado Marcello Alencar, prefeito do Rio pelo PDT por duas vezes: 1983-1986 e 1989-1993].

Jaime Lerner: Houve um avanço considerável. É inegável que o Rio melhorou. É inegável. Agora, claro que, na escala de uma cidade como o Rio, as dificuldades são maiores, mas é inegável que o Rio melhorou. Agora, os recursos para isso... Não defendo nenhuma reforma tributária maior do que já foi feita. O que defendo é que o recurso do Fundo de Garantia [FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço], que vem do salário do trabalhador, tenha que ser aplicado onde o trabalhador mora. Aí muitos vão dizer: “bom, mas esse dinheiro vai ser investido cada vez mais nas regiões mais ricas e cada vez menos nas regiões mais pobres”. Não, a metade desses recursos, a outra metade seria para corrigir essas distorções regionais. Pois bem, esse dinheiro, que não é dado, que tem que ser retornado, são empréstimos, que eram colocados antigamente pelo BNH e correspondem ao verdadeiro fundo monetário nacional, de que as cidades poderiam dispor e aplicar. Então, o governo federal e o governo estadual poderiam ficar para as grandes estratégias, e não com atenção à moradia, transportes... Isso é um problema municipal.

Luiz Weis: Mas, prefeito, me permita, pensando no governo municipal... Existe, em relação às cidades, uma coisa extremamente perversa, que consiste no seguinte: vamos imaginar que a prefeitura de Curitiba jogue toda a semana na [loteria] Sena e durante um ano ganhe toda a semana o primeiro prêmio. Com isso, a prefeitura de Curitiba faz investimentos fantásticos em infra-estrutura: água e esgoto, saúde e educação. Moro em Rondônia e fico sabendo que Curitiba tem emprego, tem educação de graça, saúde de graça, transporte de graça, uma beleza! Vou para lá. Eu e mais dez milhões. Eu estouro as possibilidades de Curitiba, ou seja, não é que é quanto pior, melhor: é quanto melhor, pior.

Jaime Lerner: Não. Não. Não acredito nisso por uma coisa...

Jorge Escosteguy [interrompendo]: Essa questão é levantada também pelo Paulo Roberto Gonçalves, aqui de São Paulo. Ele pergunta se o senhor não tem medo, inclusive, de uma explosão demográfica em Curitiba com toda essa propaganda.

Jaime Lerner: Não, não por uma razão. O que defendo é que isso aconteça em todas as cidades ao mesmo tempo, senão não tem sentido. Esse recurso, esse fundo de garantia, tinha que ser aplicado em todas as cidades ao mesmo tempo. A industrialização que tinha que acontecer em Curitiba já aconteceu. [Agora], vai acontecer em menor escala, tomara que aconteça em todo interior do estado. Então, não é isso. Nós temos que entender que isso tem que acontecer ao mesmo tempo em todas as cidades. Se vai haver recursos, vai haver em todas as cidades ao mesmo tempo. Agora, não dá mais para centralizar recursos... O Ministério da Ação Social que sai como o valor cem, que vai batendo pelas tabelas, quer dizer, o problema... Os municípios, as cidades... Nós temos que redescobrir as cidades. Quero dizer para vocês o seguinte: é o meu terceiro mandato. Fiz duas outras gestões à frente da prefeitura de Curitiba, mas é nessa terceira, nesse terceiro mandato que a gente está vendo o que uma cidade pode fazer para transformar um país. Quer dizer, cada cidade, a força que a cidade tem e o que se podia fazer... Nós temos que redescobrir a cidade. Não a cidade-Estado, como Atenas, não, mas redescobrir a cidade e resolver o problema.

Juca Kfouri: Essa questão que o Weis colocou, parece que em Curitiba especificamente essa onda separatista ganha muita força, adesivos [com os dizeres] “nasci no Brasil, mas sou sulista graças a Deus!”, ”brasileiro de nascimento, mas sulista graças a Deus!”.

Augusto Nunes: O senhor ainda não explicou. O senhor pode[ria] embutir também essa questão. O senhor não explicou se há uma política da prefeitura para a questão das migrações.

Jaime Lerner: Olha, o problema de migração não se resolve com a cidade em si, é um problema de país, é um problema de Estado. Agora, se alguém tem dúvida de que um estado como o Paraná, responsável por 25% das produções de grãos do país, com a terra que tem, com os pólos de desenvolvimento que tem, [com] mais de 25, trinta cidades com boa qualidade de vida, precisa ter migração? Eu acho que não. Com o tempo essas soluções vão se encontrar no sentido de evitar a migração. Agora, com tudo isso, com toda a atração que Curitiba poderia exercer, nós não tivemos o crescimento de Curitiba que se esperava. Nós esperávamos um milhão e seiscentos mil habitantes e o censo deu um milhão duzentos e oitenta, um milhão e trezentos mil. Então, na realidade... E esperava-se em São Paulo quanto? Deu nove milhões. No Rio quanto? Deu menos de cinco. Então, isso vai bater no seguinte ponto: outro dia veio um jornalista conversar comigo e ele esteve antes com o prefeito de Porto Alegre [na época, era Olívio Dutra (1989-1993)]. Ele chegou e disse assim: “Olha, o prefeito...” Era um jornalista de um jornal internacional e disse: “Olha, eu estive na prefeitura de Porto Alegre e me disseram que a população favelar é de 30, 40%”. Claro que não é, como a população favelar no Rio não é de dois milhões de habitantes. Então, se esgrimam com esses números e se coloca a tragédia para quê? É para dizer “bom, não deu para resolver, mas também é um tremendo de um problema”. Quer dizer, acho que nós temos que começar a decompor esse problema. E, se nós não podemos resolver todos os problemas da cidade, vamos resolver daqui para frente. É muito mais fácil resolver daqui para frente.

Juca Kfouri: Essa questão do separatismo ficou como?

Jaime Lerner: Olha, acho que isso é um ou outro fanático que se empolgou pela sedução dos países da Europa Oriental e está louco para criar o seu país.

Paulo Markun: Se separar, o senhor não vai ser o [Bóris] Yeltsin? [primeiro presidente da Rússia, em 1991, depois do fim da União Soviética].

Jaime Lerner: Não, não vou ser. Outra coisa, na realidade essa visão... O que aconteceu na Europa Oriental é uma coisa também que tem que ser analisada. Na verdade, existe uma frustração em todo o mundo em relação ao poder central. Então, como poucos países descobriram que é na cidade que vão se resolver os problemas de frustrações, eles acabam criando um outro país, que vai ter os mesmos problemas das cidades. Vão ficar frustrados de novo. Claro que eles têm outros problemas de minorias étnicas, é um problema muito mais complicado, não estou minimizando esses problemas. Mas, na realidade, o que está acontecendo no mundo... Acho que vai haver uma grande revolução, que é a revolução do poder local, porque está mais perto. O mundo cresce cada vez mais e o que está mais perto? A cidade. A sociedade e a cidade. E é isso que nós vamos ter que encontrar soluções, porque se nós formos esperar... Vocês esperam alguma solução do poder central? Não espero mais, vou fazer a minha revolução, a minha transformação.

Jorge Escosteguy: O Fruet, por favor, tem uma pergunta, prefeito.

Luiz Henrique Fruet: Prefeito, eu queria voltar um pouquinho. O senhor falou, ainda há pouco, que está gostando desse terceiro mandato na prefeitura de Curitiba. O senhor está vendo como é bom governar, é mais gratificante no que nas duas primeiras. Eu pergunto [se isso tem relação com o fato de que] nas duas primeiras [gestões] o senhor foi prefeito nomeado no tempo da ditadura e agora foi eleito.

Jaime Lerner: Também, também.

Luiz Henrique Fruet: Quais são essas diferenças? Como é esse relacionamento?

Jaime Lerner: Quem é que falou que a gente é demissível em latim? No primeiro mandato e no segundo mandato, eu podia ser... Nós sabíamos que nós tínhamos semanas, era comum nós sabermos... Olha, pode ser que... Um governador uma vez chegou para mim e disse: “olha, eu gostaria de que você continuasse na prefeitura e até gosto..."

Paulo Markun [interrompendo]: Que governador, prefeito?

Jaime Lerner: Foi o governador, aliás, um grande brasileiro, Pedro Viriato Parigot de Souza, era vice-governador e assumiu o governo do estado. E ele me disse uma vez: “Eu gostaria de que você continuasse, mas as forças políticas podem pedir a sua saída”. Então, nós tocávamos a prefeitura sabendo que uma semana depois a gente podia ser demitido.

[...]: Agora o senhor tem quatro anos.

Jaime Lerner: Não é só isso, é legitimidade. Acho que a legitimidade é o fundamental.

Jorge Escosteguy: Prefeito, a respeito dessa questão levantada pelo Fruet, de o senhor ter sido nomeado, o João Alves, aqui de São Paulo, telespectador, telefonou perguntando se o senhor já foi muito patrulhado por ter sido prefeito nomeado do PDS [Partido Democrático Social, herdeiro da Arena - que deu suporte ao regime militar - e pai do PP, Partido Progressista].

Jaime Lerner: Fui patrulhado, mas acho que a credibilidade... Acho que dificilmente alguém pode colocar algum questionamento sobre a minha atuação na prefeitura nos dois mandatos, em relação à minha posição [acerca dos] problemas nacionais.

Jorge Escosteguy: E, ainda no rastro dessa questão, o Eduardo Costa, de Jundiaí, telefonou perguntando por que o senhor ainda cultiva a posição do PDT [Partido Democrático Trabalhista]? E o Jaime de Souza Matos, aqui de São Paulo, pergunta: “Como o senhor se definiria, afinal, politicamente, principalmente nessa coisa de PDS, PDT?”

Jaime Lerner: Olha, acho que só fiz uma mudança de partido. Estou no PDT há oito anos. Entrei no PDT numa época em que o PDT do Paraná não tinha nem 1% e me sinto muito bem. Acho que o PDT não é o único partido que representa a social democracia no país, [mas] é o partido que pode encontrar algumas saídas. Agora, não acho que seja só um problema de partido. Acho que nós temos um problema sério, que é a falta de credibilidade da classe política no país. Não adianta propor pactos, nova agenda, se não existe credibilidade, se a população não se sente respeitada. Então, que pacto pode ser colocado? Todo mundo vai se sentir responsável por isso? Ninguém.

Jorge Escosteguy: Weis, por favor.

Luiz Weis: Prefeito, o senhor falou novamente em população se sentir respeitada. Eu já estava querendo pegar o primeiro bonde que passasse para me referir a resposta que o senhor deu à pergunta do Sardenberg sobre os interesses gerais e os interesses particulares no destino das cidades. E eu tentei dizer aquela hora, que ia, mais uma vez infelizmente, fazer o papel de advogado do diabo. O senhor disse o seguinte: “sempre que o cidadão se sente respeitado, ele age de acordo com os melhores interesses coletivos.” O senhor citou especificamente a questão do transporte, uma cidade que tem o transporte limpo, que funciona, acessível, etc. Ele se comportará racionalmente tendo em vista o bem comum. Desculpe, prefeito, mas no dia 16 de dezembro, agora, Londres registrou os piores índices de poluição do ar desde que se mede poluição do ar na cidade. Londres, as pessoas se sentem respeitadas, segundo o seu raciocínio, e não há dúvida que o transporte funcione e etc. E, de novo, se caiu naquela questão, tem que tirar automóvel, que vai, incidentalmente, me remeter à outra grande questão do destino das cidades, que é o carro particular, o transporte individual. Pois bem, imediatamente se diz: “olha, novos apelos que são reiterados de tempos em tempos”. Qual foi a resposta, segundo sondagem? Não. As pessoas querem ter, mesmo numa cidade que funciona, mesmo que ela é responsável e tal. Sem falar no que acontece em Los Angeles, onde toda a tentativa de solidarizar o transporte dançou. De modo de que a idéia da profecia que se cumpre por si mesma “vai piorar, eu vou tratar de me salvar”, e aí piora mesmo, continua em vigência.

Jaime Lerner: Não. Continuo discordando pelo seguinte: se há alguma reação hoje em Londres, é porque a população não se sente satisfeita. Ela quer alguma coisa a mais. E outra: na realidade, os sistemas de transportes enterrados resolveram durante um bom tempo. Existe uma boa necessidade de deslocamento em superfície, e o que está acontecendo no mundo inteiro é o retorno à solução de superfície. Tenho absoluta certeza de dizer que, se forem colocadas mais alternativas, as pessoas usam menos o carro, usam mesmo. Em Nova Iorque, a população usa mais o metrô. E não é um metrô de qualidade! Usa o táxi. E, se tiver um transporte de superfície, vai usar o transporte de superfície. E, falando em Nova Iorque, a cidade de Nova Iorque está interessada nos sistemas de tubos de embarque de Curitiba. E no dia 15 de abril vai iniciar uma operação...

[...] [interrompendo]: Experimental.

Jaime Lerner: Experimental, de uma linha com os tubos...

Luiz Weis: Ouvindo o senhor dizer, parece que é relativamente fácil a cidade se livrar daquele que é certamente o seu pior câncer, que e o transporte individual.

Jaime Lerner: Não. Quero dizer uma coisa: dá a impressão que a gente transforma todos os problemas em coisas fáceis. Mas  quero dizer o seguinte: as coisas na cidade são menos complexas do que aqueles que nos vendem a complexidade em que querem fazer parecer acreditar. Na realidade, o que nós temos que ter em relação à cidade é o compromisso com a simplicidade e não querer todas as respostas. Nós vamos acabar encontrando as respostas se nós começarmos. Vou dar um exemplo: quando nós começamos a montar aqueles tubos de embarque para o ônibus...

Augusto Nunes [interrompendo]: Como é o sistema? Muita gente não conhece, não sabe, prefeito. Como funciona, sucintamente?

Jaime Lerner: ...são tubos onde o passageiro entra, paga antes de entrar no ônibus e tem uma qualidade de operação como se fosse o metrô. Quer dizer, a passagem já está paga, quando o ônibus encosta as portas [estas] se abrem automaticamente, com musiquinha e tudo, mesma coisa que um metrô, e a velocidade embarque desembarque é muito grande. Pois bem, então, quando se queria implantar isso, o pessoal já começou a pensar: “bom, e o deficiente físico?” Aí nós começamos [a pensar]: como se vai fazer? Não é tão fácil quanto o presidente fazer as pessoas subirem a rampa, para nós é muito mais difícil, ainda mais o deficiente físico fazer subir a rampa. Então, começou: para subir um metro, nós precisamos de uma rampa de dez metros, aí começaram a surgir soluções de estrutura de dez metros. E quem é que vai puxar o deficiente físico para... Então, começou a complicar. Aí nós dissemos: “olha, vamos implantar o tubo como está, esses tubos de embarque. E a solução para o deficiente físico, nós vamos acabar encontrando”. Foi assim, implantamos, logo em seguida colocamos uma equipe pesquisando a solução e saiu uma solução limpa, enxuta, que é um elevadorzinho, uma coisa fantástica. O deficiente físico se integra ao sistema normal. Quer dizer, não tem um veículo especial para o deficiente, ele se integra ao sistema normal. Então, na realidade, e mais uma vez, eu quero insistir, as coisas não são simples, à simplicidade, a gente chega depois de muito tempo. São necessários 17 anos de operação no sistema de transporte para começar a ver as coisas simples. Agora, na realidade, a grande dificuldade está nas cidades, principalmente as grandes cidades aceitarem soluções simples. Porque aí vem o sujeito e diz assim: “Ah, mas se é tão simples assim, por que eu não pensei antes?” Isso mexe com o ego e ele realmente não quer usar uma solução simples, porque ele quer usar uma solução complicada, porque se não acontecer, ele vai dizer: “olha, também não deu. Mas era um problema com tantos e tantos dados, tão complicado assim”. Na realidade, o processo de transformação de uma cidade é assim, por aproximação sucessiva.

Jorge Escosteguy: Nós voltaremos em seguida a esse assunto. O Roda Viva precisa fazer um rápido intervalo e volta daqui a pouco entrevistando hoje o prefeito de Curitiba, Jaime Lerner. Até já.

[intervalo]

Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva, que hoje entrevista o prefeito de Curitiba, Jaime Lerner. Prefeito, no primeiro bloco, a gente passou um pouco ao lado da questão política. Pergunt[amos] um pouco, o Fruet falou da sua administração em Curitiba, primeiro como nomeado, depois como prefeito eleito. O senhor disse que agora é que é bom, como prefeito eleito. E há vários telespectadores aqui preocupados com seu destino político. Então, para ter idéia, o Benedito Abraão, de São Paulo; o Evaldo Rocha, também de São Paulo; Sabine Hidalgo, de São Paulo; Carlos Alberto da Silva, de Assis; Adalberto Marcondes, de São Paulo e Alencar Araújo de São Paulo. Eles querem saber se o senhor não sente vontade de administrar uma cidade como São Paulo ou se os seus projetos, a sua administração em Curitiba serviriam também para São Paulo. Há outros telespectadores que vão mais longe, o José Francisco Guedes, de São Paulo; João Paulo Bares, de Americana; Roberto Silva Neto, aqui de São Paulo; Alcir Boleta, de Guarulhos e Cláudia Grinenberg, de São Paulo perguntam se o senhor gostaria ou tem alguma possibilidade do senhor se candidatar a presidente da República?

Jaime Lerner: [Risos] Bom, eu...

Jorge Escosteguy: Em suma, qual é o seu projeto político?

Jaime Lerner: Não tenho projeto político.

Augusto Nunes: O telespectador mais interessado nessa resposta é o engenheiro Leonel Brizola.

Jorge Escosteguy: Aliás, depois, tenho até uma pergunta para fazer ao senhor a respeito do Brizola, lembrou bem o Augusto. Aqui no Roda Viva, há um mês mais ou menos, o governador Leonel Brizola jurou de “pés juntos” que jamais se candidatará à Presidência da República. Eu gostaria de saber se o senhor acredita nisso.

[Risos]

Jaime Lerner: Primeira resposta. Nunca escondi...  Não sou um tipo de pessoa que vai dizer:“eu sou soldado do partido”. Não vou entrar nessa. Nunca escondi que gostaria de ser prefeito, tentar uma prefeitura, uma administração de uma cidade maior. Por quê? Não é pela idade, mas... vaidade um pouquinho, mas é por essa eterna discussão que a gente tem, que a vida toda me coloca: “ah, mas Curitiba deu certo, porque é uma cidade menor”. É uma cidade com quase dois milhões de habitantes, não é tão... Então, procurando minimizar o que se pode fazer numa cidade e dizendo que isso só pode acontecer numa cidade menor, numa cidade de porte médio. Na realidade, eu tenho absoluta certeza que qualquer cidade, não importa o tamanho, pode ser uma Curitiba. Tem que haver vontade política e coragem. E outra coisa, eu não acho que em Curitiba - eu já disse isso numa entrevista - nós temos uma equipe de iluminados. Simplesmente nós vencemos a barreira da inércia, fazendo. Larga[mos] o discurso e [fizemos] o discurso  acontecer. Então, tenho vontade de ser prefeito de São Paulo ou do Rio, gostaria. Bom, mas isso não se faz assim. Tenho minhas obrigações com a minha cidade, se falou numa época...

Jorge Escosteguy: Que já estão terminando, já estão...

Jaime Lerner: ...É, está terminando. Mas existe uma coisa chamada domicílio eleitoral que impossibilita um projeto político dessa natureza. Pelo menos agora, a não ser que haja uma mudança da lei eleitoral, não da lei, haja uma mudança na Constituição, porque a lei só pode se aplicada um ano depois. Então, eu gostaria, gostaria muito.

Paulo Markun: Prefeito, essa coisa...

Jorge Escosteguy [interrompendo]: Desculpe, desculpe. Só um minutinho, Markun, por favor, porque ele está num bom caminho, ele está dizendo onde é que ele quer chegar.

Jaime Lerner: Então, acho que esse é o projeto político imediato. Bom, não é possível, porque eu tenho que completar o meu mandato. Então, existe um caminho próximo, que é talvez administrar 320 cidades, que é o governo do estado do Paraná. É uma perspectiva. Mas como essas perspectivas estão mais distantes, eu simplesmente estou na minha perspectiva imediata, que é esse ano. Gostaria de administrar uma cidade...

Juca Kfouri: Diante dessa promessa do governador Brizola de que ele não quer ser mais candidato à Presidência, o senhor seria um bom candidato à Presidência pelo PDT?

Jaime Lerner: Não, sempre defendi...

Jorge Escosteguy: Primeiro, pergunto se o senhor acredita nisso.

Jaime Lerner: Não acredito, mas também acho que...

Carlos Alberto Sardenberg: Não acredita?

Jaime Lerner: Não. Acho que ele será candidato, pelo menos se depender da nossa vontade.

[Risos]

Juca Kfouri: Então quer dizer que o senhor quer que um mentiroso seja presidente do Brasil?

[Risos]

Jaime Lerner: Não. Não.

[Sobreposição de vozes]

Jorge Escosteguy:Aceita finalmente a indicação?

Jaime Lerner: Acho que essa colocação... porque é muito cedo e também não é construtivo para ele se lançar em candidaturas tão cedo assim. Nós temos um compromisso com a governabilidade do país. Ninguém está se lançando a candidato a presidente. Acho que o governador Brizola tem essa responsabilidade...

Jorge Escosteguy: Mas ele lançou a não-candidatura.

Jaime Lerner: Mas acho que, pela liderança dele, é tão natural isso. Pela maturidade, pela experiência que tem. Eu acho que nada mais justo para quem tem o passado como ele tem.

Augusto Nunes: Prefeito, a propósito, as suas idéias eu acho particularmente muito modernas. O senhor acha moderno um político como o governador Leonel Brizola?

Jaime Lerner: Acho moderno quando ele coloca como prioridade absoluta a criança. Coloca e faz acontecer. Então, acho isso moderno. Não existe nada mais moderno do que o compromisso com a criança e com o meio ambiente.

Jorge Escosteguy: O senhor diria que o Collor [Fernando Collor de Mello, primeiro presidente da República por eleição direta após a ditadura militar, ficou no governo de 1990 a 1992 quando sofreu um impeachment], nesse sentido, é moderno com o Ciac [Centro Integrado de Atenção à Criança]?

Jaime Lerner: Não está fazendo acontecer na escala que nós esperávamos. Não adiante fazer um Ciac ali e outro acolá, não é isso. Nós temos que pensar numa escala. O país ainda vive a época das soluções de problemas pontuais. Eu vou dizer uma coisa...

Juca Kfouri: Por falar em Ciac, prefeito, o senhor já comprou bicicleta na Loja do Pedro ou não [suposto escândalo Ministério da Saúde 1991]?

Jaime Lerner: [risos] Não, porque não sei andar de bicicleta.

Jorge Escosteguy: O senhor conhece o Pedro?

Jaime Lerner: Conheço. Todos em Curitiba conhecem a Loja do Pedro. Bom... E por sinal, os fundos da Loja do Pedro dão para a ciclovia.

[Risos]

Jorge Escosteguy: Ele nunca foi lhe oferecer bicicletas para Curitiba?

Jaime Lerner: Bom, mas o que eu gostaria de dizer é o seguinte, que...

Jorge Escosteguy [interrompendo]: O senhor falava da modernidade do senador Leonel Brizola.

Jaime Lerner: É. Soluções pontuais. Um dos segredos de Curitiba é isso. Para cada problema, nós temos um roteiro completo. Bom, ruim, mas é um roteiro completo. A gente tem a segurança que estamos vendo o problema de grande número da população. Então, quando nós começamos transporte, é todo um roteiro completo. A criança tem todo um roteiro completo, começa com a mãe, creche, os Centros de Educação Integral, que é o nosso Ciec, o PIA, Programa de Integração da Infância e da Adolescência, a linha do ofício. Quer dizer, todos os problemas da cidade e os problemas com que nós lidamos têm um roteiro completo. E eu acho que isso num país... as pessoas não captam o problema de escala. Na realidade, chega algum político, algum administrador, lança um programa, ele se diverte com o lançamento. Mas a escala, qual é o percentual da população que vai ser atendido com esse projeto? Isso que é fundamental. Quando nós [fizemos] a compra do lixo nas favelas de Curitiba, o assunto, evidente, ganhou notícia na primeira semana. Quem faz a troca do lixo por vale-transporte? Para estimular as áreas de difícil acesso, para as pessoas trazerem o lixo e não jogarem o lixo nos fundos de vale, para não haver contaminação nos fundos de vale. Quando isso aconteceu, eu disse para a nossa equipe: “olha, agora que está começando o projeto. E nós vamos ter que adotar essa sistemática e fazer acontecer toda a semana”. O Ibsen esteve lá, acompanhou uma das trocas de lixo por vale-transporte. É toda a sexta-feira ou quase toda a sexta-feira, nós temos um programa de troca do lixo por vale-transporte. Então, esse programa hoje atende 52 associações, são 120 mil pessoas. O que eu quero dizer é o seguinte: tudo tem que ter uma escala do grande número da população, senão nós nos iludimos. Senão toda solução...

Jorge Escosteguy: Antes de passar para o Markun – desculpe, Markun –, só [quero] lembrar ao telespectador João Batista de Souza, que ligou aqui de São Paulo, que o prefeito Jaime Lerner já falou da questão do movimento separatista. Por favor, Markun.

Paulo Markun: O senhor, numa entrevista para a revista Isto É, logo depois que o senhor foi eleito, citava uma definição do Lima Barreto [(1881-1922) escritor carioca, pré-modernista, considerado o pioneiro do romance social, autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha e Triste fim de Policarpo Quaresma, entre outros] que não sei  por que me lembrou o governador Leonel Brizola. O senhor dizia o seguinte: segundo Lima Barreto, ele tinha muito receio do grande protetor, porque o grande protetor pode ser o grande tirano. O senhor não acha que o sistema de governo do governado Brizola, centralizador, é um risco?

Jaime Lerner: Não acho que o governador Brizola tenha essa característica. Trabalhei com ele. Tenho uma relação de oito anos e o que existe em relação ao governador Brizola é que ele acompanha a fundo os projetos, quer dizer, ele tem aquela visão de acompanhar a fundo. Não é qualquer empresa de economia mista que realmente tenha delegação e realmente começa acontecer. Ele vai a fundo em cada problema. É o problema de educação, é o problema da moradia, enfim...

Paulo Markun: É o estilo do senhor também?

Jaime Lerner: Não, tenho um estilo diferente. Eu jamais diria...

Luiz Weis: O senhor diria que não é só uma questão de ir a fundo. O senhor não diria que o governador Brizola se caracteriza por [possuir] uma personalidade autoritária?

Jaime Lerner: Não. Não é autoritária. Ele é uma pessoa com uma personalidade muito forte. E, é evidente, com o carisma que ele tem, tem que ter uma personalidade muito forte. Mas eu trabalhei lá como coordenador do Projeto Rio ano 2000. Minha relação com o governador Brizola era recente, não participava da equipe que o acompanhou durante anos no Rio Grande e, no entanto, eu tive total delegação no trabalho que eu estava fazendo.

Ibsen Spartacus: Algum desses projetos foram levado a diante?

Jaime Lerner: O projeto mais importante que nós desenvolvemos foi na área de transporte. Naquela época, o governo do estado [era] questionado [pelo] governo federal. Então, não havia financiamento para a frota, não havia solução para metrô. Quer dizer, não se pode montar um sistema de transporte sem veículos. Então, o plano está lá, eu assino até hoje, gostaria que ele acontecesse, eu tenho convicção pessoal de que é um projeto que pode ser implantado imediatamente e é barato e pode acontecer.

Carlos Alberto Sardenberg: Mas não [estão] implantando?

Jaime Lerner: Não. Estão implantando outros projetos. Estamos no início de uma gestão, agora. É recente. Acho que até a implantação desses tubos de embarque que... No fundo, essa solução transforma o ônibus num metrô, num verdadeiro metrô de superfície, embora se use esse nome, se usou em Porto Alegre o metrô de superfície, no fim é um trem de subúrbio. No Recife também, uma linha de trens de subúrbio se usa como metrô de superfície. Bom, não vou ficar na discussão semântica do assunto. Mas, na realidade, acho que até a implantação do sistema de Curitiba, agora, vai ajudar as soluções de transporte no Rio. Até porque isso confirma...

Augusto Nunes: Só quero aproveitar a chance para explicar que não foi do senhor a idéia da ciclovia no Leblon, não é?

Jaime Lerner: Não. Não é o projeto que eu faria, embora ache que a ciclovia na Lagoa seja uma excelente solução. Mas a solução adotada em Ipanema, Leblon, Copacabana não é a solução que eu faria. Isso também não tira o mérito da gestão do prefeito Marcelo Allencar. É um prefeito que recuperou financeiramente a cidade do Rio de Janeiro.

Jorge Escosteguy: Prefeito, o Spartacus tem uma pergunta e em seguida o Sardenberg.

Ibsen Spartacus: Prefeito, o senhor fala de administrar uma capital e fala em ser governador. O senhor não tem gosto pelo jogo político legislativo, o jogo de bastidores ou o senhor trabalha apenas com a hipótese de ser um administrador de cidade?

Jaime Lerner: Não tenho gosto pelo jogo legislativo. Não tenho...

Jorge Escosteguy: Por quê?

Jaime Lerner: Porque é o seguinte: sou uma pessoa angustiada. Eu não tenho paciência para... Não tenho. Não tenho esse temperamento. Embora tenha excelentes lideranças políticas que são excelentes congressistas, não é o meu campo.

Paulo Markun: O senhor é um presidencialista?

Jaime Lerner: Olha, hoje sou um presidencialista. Na hora que o processo político se depurar um pouco, se sedimentar e nós tivermos partidos mais sedimentados, eu poderia ser um parlamentarista. Mas hoje... É só ver o Congresso, não é? O  que acontece hoje em relação ao Congresso, não é difícil imaginar por que não se pode ser parlamentarista. Agora, acredito que mais um processo, mais uma eleição, os partidos mais sedimentados, por que não? Sou presidencialista hoje.

Jorge Escosteguy: Sardenberg, por favor.

Carlos Alberto Sardenberg: Eu queria introduzir uma questão que é a seguinte: quem paga as cidades? A questão dos impostos. Nós temos hoje impostos federais, estaduais e municipais. O governo estadual interfere nas cidades, o governo federal interfere nas cidades e a prefeitura também. Eu queria saber se o senhor tem alguma idéia de como seria, em termos ideais, a cobrança dos impostos. Quem cobraria e quem gastaria esse dinheiro? Quer dizer, transportar uma pessoa de um lugar para outro custa dinheiro. Quer dizer, ou se faz tarifa zero ou se cobra o valor do sujeito ou se cobra da empresa que vai se beneficiar desse trânsito etc. Eu queria saber se o senhor tem uma idéia de como se cobram os impostos e como se financia uma prefeitura.

Jorge Escosteguy [interrompendo]: Prefeito, só pegando uma carona, o telespectador Jefferson Kiss telefonou perguntando a sua opinião sobre a tarifa zero.

Jaime Lerner: Sim, vou dizer. Olha, acho que tudo reside na capacidade contributiva da população. Não adianta se montar a maior instrumentação tributária, se a população não pode pagar. Então, primeira coisa, atualização de tudo o que existe em termos do que é tributável para que haja uma tributação justa. Hoje, por exemplo, em Curitiba nós estamos isentando metade dos contribuintes do IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano], estamos isentando metade dos contribuintes.

Carlos Alberto Sardenberg: E cobrando mais caro...

Jaime Lerner: E cobrando mais caro de terreno vazio, empresas, terrenos ociosos, empresas. Estamos procurando ver quem pode pagar. Se bem que hoje isso tem que ser feito com muito cuidado. Nunca fui favorável a não se cobrar imposto. Acho que todos têm que pagar. Mas o problema é o seguinte: cobrar um imposto de quem não pode pagar, de uma taxa mínima que não paga nem a impressão do carnê, não vale a pena. E você vai ter que contratar um número de funcionários tão grande para operar uma renda mínima. Pela mesma razão, hoje nós estamos diminuindo todo tipo de tributo... Na realidade, nós queremos facilitar a vida das pessoas. Então, se nós estamos cobrando a mais das empresas, em compensação, nós estamos eliminando toda a burocracia. Aquela história de um imposto para a pessoa montar a empresa, para depois... Alguém que fechar uma empresa, hoje, numa prefeitura brasileira... é uma parada! É uma complicação. Hoje nós não cobramos nada disso, porque isso não representa grande coisa. Então, na realidade, o que nós precisamos ter... E, olha, todas as cidades brasileiras estão se defendendo com esses tributos, imposto sobre a propriedade [IPTU], o ICM [Imposto Sobre Circulação de Mercadorias] e o Imposto Sobre Serviço [ISS]. Existe uma realidade: nós caminhamos para um processo recessivo. Isso vai reduzir a nossa arrecadação. Agora, como a nossa administração não é só orçamentária, porque tenho visto isso em muitas cidades, Nova Iorque... tem muitas cidades no mundo que adotam uma administração multitária, orçamentária. Isso quer dizer o seguinte: quando há uma recessão, eles cortam 25% de um programa. Não dá, isso não dá. De repente, uma cidade não pode deixar de investir em moradia, em transporte, mas eles fazem isso com a maior tranqüilidade. Isso não é gestão urbana. Não é gestão da cidade. Então, acho que, mesmo com os recursos escassos, as cidades estão dando uma resposta. Hoje, há falta de credibilidade em relação à classe política brasileira que está no poder central e no Congresso, não nas prefeituras. Em alguns estados também. Não nas prefeituras...

Carlos Alberto Sardenberg: Mas de onde o senhor tira o dinheiro? Quem o senhor vai buscar lá, tirar do bolso de quem?

Jaime Lerner: Na realidade as soluções... Vou dar um exemplo: transporte.

Carlos Alberto Sardenberg: A tarifa zero por exemplo.

Jaime Lerner: A tarifa zero não acho uma boa solução, porque na realidade... Talvez em um balneário pode-se usar uma solução tarifa zero. Numa cidade pequena, tudo bem. Agora, em uma cidade grande, o que vai acontecer? Primeiro, o sistema vai ser usado em dobro. Vai ter que se comprar frota em dobro... tudo de graça não funciona. Isso vai ser superdimensionado. [Vão] usar sem ser pela necessidade. Então, vai ter uma demanda excessiva, uma necessidade de investimentos brutais, por quê?  Porque o imposto vai cobrir. De onde vai sair? Vai sair das mesmas pessoas. Agora, [é] claro que a tarifa zero vai beneficiar, aparentemente, a população de renda mais baixa. Mas é também ilusório, porque hoje nós temos o vale-transporte. Nós temos outros instrumentos e podemos cada vez mais trabalhar no sentido de tornar a tarifa mais acessível. Só vou dar um exemplo. Hoje, o sistema de transporte de Curitiba [possui] uma tarifa de trezentos cruzeiros e o morador de Curitiba usa vários percursos com uma tarifa só, quer dizer, a integração não é paga. Como 40% da população usa a integração, isso significa que a nossa tarifa custa 40% mais barato que os trezentos cruzeiros, ou seja, 180 cruzeiros, por uma qualidade de sistema que nós temos. Qualquer pessoa que visite Curitiba ou use o sistema sabe que isso não paga. O que existe é uma qualidade, uma qualidade de gerenciamento e de operação...

Carlos Alberto Sardenberg: É da prefeitura ou é empresa privada?

Jaime Lerner: A prefeitura gerencia o sistema. Acho que essa solução considero ideal. A prefeitura gerencia o sistema, define a tarifa, define o itinerário, define o sistema. Os empresários operam os veículos, seja ônibus, seja bonde ou o que quer que seja. Na realidade, por quê? Porque as prefeituras não podem fazer investimentos. Elas não têm recursos para comprar veículos. Imagine a cidade de São Paulo comprar oito mil ônibus, dez mil ônibus.

Carlos Alberto Sardenberg: O senhor acha que a prefeitura devia vender a CMTC aqui [Companhia Municipal de Transportes Coletivos. Foi extinta na gestão de Paulo Maluf (1993-1997)] ?

Jaime Lerner: Não, não acho. Acho que hoje as coisas que estão... O que nós temos que sempre gerenciar é procurar transformar daqui para frente. Acho que municipalizar o sistema, fazer o gerenciamento através da prefeitura é bom, nós não precisamos investir pelos empresários. Eles podem operar melhor os ônibus, desde que a gente controle o custo, desde que a gente controle a operação.

Jorge Escosteguy: O senhor está falando em transporte coletivo e o senhor falou há pouco nos projetos que têm que ser implantados com o seu roteiro completo. Aí telefonou o Nilson Oliveira, aqui de São Paulo, sobre o roteiro completo dos transportes em Curitiba, ele disse que realmente é um transporte moderno, mas esse roteiro inclui, inclusive, muito atropelamento, ele disse que é a capital com um dos maiores índices de atropelamento...

Jaime Lerner: Ou com a melhor estatística.

Jorge Escosteguy: E o Argemiro Pissoli, de Itapecerica, atribui ao senhor a idéia do corredor da morte, segundo ele, da Nove de Julho, aqui em São Paulo. O que o senhor diz sobre isso?

Jaime Lerner: Nenhuma... ah, não, nenhuma das minhas idéias com relação ao problema de transporte tem alguma coisa a ver com o corredor da Nove de Julho. Primeiro, as operações, pistas exclusivas, corredores de transporte, são operações civilizadas, que operam direito e podem operar bem em qualquer cidade do mundo. Não é isso que está na Nove de Julho.

Jorge Escosteguy: Qual é o defeito em São Paulo, na Nove de Julho?

Jaime Lerner: Olha, acho que é muito difícil e seria até muito leviano chegar e dizer: “olha, tal cidade não funciona!” Não faz parte do meu comportamento ético...

Jorge Escosteguy: Mas o senhor disse que não tem nada a ver. Não tem nada a ver por quê?

Jaime Lerner: Não tem nada a ver, porque não é uma operação de corredor a Nove de Julho. Não é uma operação de corredor, [pois] colocaram os veículos, não é isso. Como em muitas cidades que fizeram a solução de Curitiba, não é essa a solução. E se...

[Sobreposição de vozes]

Jaime Lerner: Não é bom. Não é bom, não opera bem.

Juca Kfouri: Mas Curitiba é campeã em atropelamentos nesses corredores?

Jaime Lerner: Não. O que acontece é o seguinte: na realidade, nós não temos idéia do que seja estatística de acidentes nas cidades brasileiras. Se vocês olharem...

Jorge Escosteguy [interrompendo]: O senhor acha que em Curitiba a estatística funciona melhor para apurar os atropelamentos?

Jaime Lerner: Talvez seja isso. Não. Também quero dizer que nós temos um problema sério porque, ao mesmo tempo em que o trânsito flui melhor, lidamos com uma cultura de acesso ao automóvel recente em que o sujeito que é dono do automóvel não tem os mesmos cuidados que nas cidades que tem mais tradição do uso do veículo. Isso não é só campanha de educação que vai resolver. Na realidade, as facilidades de circulação da cidade exigem um motorista, vamos dizer, que dê menos importância ao automóvel, mas isso não vai se fazer em um ou dois ou três, quatro anos. Isso vem com tempo. Agora, enquanto isso, todo o planejamento, todos os recursos são colocados no sentido de diminuir o número de acidentes. E tem diminuído.

Jorge Escosteguy: O Fruet e o Weis, por favor.

Luiz Henrique Fruet: Prefeito, o senhor foi eleito numa campanha relâmpago de doze dias e as pesquisas de opinião têm dado altos índices [de aprovação] à sua gestão. Eu gostaria de saber se o senhor faz o que quer em Curitiba. Qual é o seu relacionamento com a Câmara de vereadores, o senhor tem maioria ou não tem? E como o senhor enfrenta isso? Algum projeto essencial que o senhor queira implantar está sendo recusado?

Jaime Lerner: Olha, o que acontece é o seguinte: o meu partido tem cinco vereadores e nós temos 33 vereadores na Câmara. Dos cinco, às vezes dois rateiam. [Risos] Então é necessário muita negociação, muita negociação...

Jorge Escosteguy: Rateiam por quê?

Luiz Weis: Atividade de que, por sinal, o senhor não gosta muito não, não é? Pelo que o senhor declarou agora há pouco...

Jaime Lerner: Não, não sou político no sentido politiqueiro, mas sou jeitoso. [risos] Então é o seguinte. Não se pode ter unanimidade...

Jorge Escosteguy: Rateiam em que sentido, vamos dizer assim?

Jaime Lerner: É porque existem brigas internas no partido. Todo partido tem. Bom, então o que nós fazemos é uma negociação com todos os vereadores. Isso exige muita paciência, muita determinação, muita transparência e muito respeito. Eu jamais procuro fazer da Câmara, vamos dizer, transformar a Câmara na antítese da gestão pública. Sempre procuro fazer as coisas com alguma parceria com a Câmara. Quando se dá o espaço político aos vereadores, eles dão a resposta. Então, tenho tido sorte com esse diálogo, não quer dizer que amanhã... Hoje nós vamos entrar num processo eleitoral, pode acontecer uma ruptura dessa condição que nós temos hoje. E faz parte.

Luiz Henrique Fruet: Mas o senhor tem algum projeto que o senhor considera muito importante, recusado, preso...

Jaime Lerner: Todos os projetos são difíceis de conduzir, todos. Há que se ter muita determinação, todos os projetos. Olha, nós conduzimos a aprovação do projeto bonde em Curitiba, que é a próxima etapa e depende de recursos. Foi um projeto de negociação, discussão, debate em toda cidade de mais de um, quase dois anos e continua sendo questionado. Acho o seguinte: administrar uma cidade não é um processo de unanimidade. Nós vamos ter, eu tenho... Imagine. A partir do dia que eu expliquei as minhas filhas o que é ser... Um dia uma filha minha me perguntou: “pai o que é fascista?”. Aí eu expliquei: “olha, fascista é isso”, dei a minha explicação. A partir daí tive que negociar tudo na minha casa.

[Risos]

Juca Kfouri: Por falar em fascismo...

Jorge Escosteguy: Alguma vez foi chamado de fascista, não?

Juca Kfouri: Por falar nisso...

Jaime Lerner: Não, sempre me comportei...

Juca Kfouri: Como o senhor está encarando essa nova onda do pensamento nacional, que seria o "marxismo lernerlista", que seria uma simbiose entre as idéias do Burle Marx [Roberto Burle Marx (1909-1994)] e as suas?

Jaime Lerner: Não, isso foi uma brincadeira de alguns jornalistas que, em função da receptividade... existem correntes de apoio ao que acontece em Curitiba. Então, como algumas coisas são na área de paisagem urbana, surgiu essa definição, "marxismo lernerlista", mas isso é mais uma brincadeira.

Augusto Nunes: Prefeito, qual é a sua receita para reduzir a taxa de corrupção na administração municipal? Como o senhor faz para evitar licitações irregulares, por exemplo?

Jaime Lerner: Transparência.

Jorge Escosteguy: O senhor enfrentou muita corrupção em Curitiba?

Jaime Lerner: Quando há transparência, custo... apertar no custo, transparência. Acho que esse é o segredo e administrar o que se tem. Então, nunca tive problema dessa natureza e nunca tive esse tipo de acusação, mesmo pelos meus adversários mais ferrenhos – e olha que eu os tenho!.

Augusto Nunes: Não me refiro à figura do senhor. Nos escalões...

Jaime Lerner: Não, eu sei, mas nos escalões... Não sou uma pessoa de dar murro na mesa, não faz parte do meu temperamento, mas existe aquela coisa chamada força moral. Se tenho uma equipe que me acompanha há vinte, 25 anos, é necessário que eles correspondam a isso. E tenho, conheço, é uma equipe que me acompanha há muito tempo. Isso não quer dizer que em toda a prefeitura não se detecte um ou outro caso de malandragem. Quando detectado, se tomam as providências. Mas acho o seguinte: as pessoas sabem quando a gestão é séria. Ninguém encosta na administração da cidade com... porque você sabe que a administração de uma cidade tem interesses, desde a aprovação de projetos, desde construção... Ora, mas ninguém vai encostar, propondo liberação de recurso em outras áreas, lobbies, isso não vai acontecer na cidade de Curitiba. Agora, nós não estamos livres de detectar, em alguns casos acontece. Nós lidamos com um universo de vinte mil funcionários. Porque é evidente que vai acontecer, mas eu acho que existe essa força moral. Tem uma equipe que nos acompanha há tanto tempo, que acho que... [Mas] não quer dizer que a gente está livre.

Jorge Escosteguy: O Luiz Weis tem uma pergunta. Em seguida, Ibsen.

Luiz Weis: O senhor reitera frequentemente “vamos olhar para frente, vamos olhar daqui para frente”. O senhor reitera que tanto faz administrar Bombaim ou Curitiba, desde que haja vontade política e coragem. Eu queria juntar essas duas coisas com a questão do dinheiro. Olhando daqui para frente, há uma unanimidade que a grande cidade, como já foi dito, será cada vez mais uma grande cidade empobrecida, ou seja, cada vez menos as prefeituras disporão de recursos para atender às demandas cada vez maiores. Ou seja, a distância entre o que se tem e o que se precisa fazer vai aumentar. A prefeitura corre atrás, [mas] está condenada. A prefeitura de Nova Iorque, como do México ou de São Paulo, [vão] correr cada vez mais atrás do prejuízo. Isso me parece [ser] mais substantivo, o senhor me permite, do que falar em coragem e vontade política, que são ingredientes necessários e subjetivos. Qual é a alternativa? Extorquir cada vez mais da minoria cada vez menor, que poderá pagar, isto é, aumentar o IPTU 300% acima da inflação?

Jaime Lerner: Quero dizer o seguinte: uma das coisas que defendo nas cidades é o "daqui para frente". Veja bem, o daqui para frente quer dizer: daqui para frente, as cidades têm que ser ambientalmente corretas. Isto significa: a cidade tem que desperdiçar o mínimo e poupar o máximo. Existe todo um roteiro de coisas que precisam ser feitas para isso: não gastar energia, consumir menos combustível, porque isso endivida o país... Vocês sabem que, quando se liga o chuveiro elétrico aqui em São Paulo, no final da tarde se gasta o equivalente a duas turbinas de Itaipu? Não sou contra o banho, não é isso, mas existem outras maneiras de se aquecer água que não custe tão caro assim, que não custe tão caro para o país. Desperdiça-se água tratada, quer dizer, nós somos [pobres] e alguém já disse uma vez que não existe como um país pobre para desperdiçar. Era um francês, que uma vez disse: “olha, país pobre é o que melhor sabe desperdiçar”. Então, daqui para frente, a cidade tem que ser ambientalmente correta. Daqui para frente, nós não temos o direito de deixar crescerem os problemas. Por isso é que é difícil administrar uma grande cidade: quanto maior for, maiores os problemas, se nós começarmos a tentar resolver... É a mesma coisa com a previdência. Tentar resolver a previdência no país tem que ser daqui para frente. Depois de resolver daqui para frente, aí acho que vai se encontrar um caminho daqui para trás, senão nós vamos acumular erros...

Luiz Weis: No meu ponto, prefeito, me permita, que daqui para frente vai ficar cada vez mais difícil pelos motivos expostos, pelo empobrecimento.

Jaime Lerner: Tem que existir uma estratégia de acompanhar isso e diminuir a velocidade de crescimento dos problemas. Tem que existir isso. Isso é fundamental, senão as cidades não sobreviverão. Então, essa é uma estratégia possível. Na área do meio ambiente, eu posso dizer, é perfeitamente possível. Uma cidade que tem um bom sistema de transporte pode economizar 20, 25% de combustível em relação à outra cidade. Uma cidade que separa o lixo, economiza energia, minério, economiza. Se adotar essas sistemáticas... Problema da criança de rua, nós não vamos resolver todos os problemas de gangues no país, mas, se adotarmos uma posição de que daqui para frente nós não podemos deixar aumentar o problema, isso é fundamental.

Carlos Alberto Sardenberg: Para dar um exemplo, em vez de começar um programa de limpeza do rio... no caso do rio Tiête, o senhor acha que em vez de gastar um dinheirão com isso seria mais conveniente adotar programas que não poluíssem mais a mesma coisa?

Jaime Lerner: Exatamente. Vou dar um exemplo, quando nós trabalhamos no projeto Rio ano 2000 existia o problema de despoluir [algumas] lagoas na baixada, em Jacarepaguá. Sei que o que eu vou dizer pode parecer ingênuo, mas é verdade. Alguém já dizia, o Molière [(1622-1673) dramaturgo francês que fez de suas comédias uma grande crítica aos costumes de seu tempo] já dizia: “digo sempre a mesma coisa, porque é sempre a mesma coisa” [fala da peça Dom Juan (1665)]. Na realidade, se nós não podemos tratar o problema de poluição da Baía de Guanabara ou da baixada de Jacarepaguá, que é um problema grave, grande, por que a gente não faz o seguinte: daqui para frente, todos os rios que vão contribuir para [poluição] da Baía da Guanabara ou Jacarepaguá, que é outro problema, a lagoa de Jacarepaguá, enfim, todos os rios que vão contribuir não [podem] contribuir mais [para] não complicar o problema. Então, pode ser que não se resolva o problema, mas daqui para frente nós não vamos ampliar o problema. Sei que é difícil esse raciocínio...

Juca Kfouri: Mas e aí? Para onde [vai] aquilo que polui hoje todos esses rios?

Jaime Lerner: Se nós não aumentarmos o problema, isso vai ser um infinitésimo em relação ao problema da poluição geral. Tudo que as cidades têm que fazer é não aumentar o problema. Olha, vou dar um exemplo de aumento do problema. Nós não podemos, não há recursos no país para resolver os problemas de esgoto, mas não é só no Brasil, em todas as cidades do mundo, fazer redes de esgoto como se fazia. Adotamos uma tecnologia...

Paulo Markun: O senhor é a favor da coleta seletiva.

Jaime Lerner: [risos] Seria o cabrito a melhor solução, mas sou a favor de se descentralizar o problema. Isso quer dizer, as grandes cidades não [terão] mais dinheiro para fazer verdadeiros metrôs de esgoto. Então, nós temos que descentralizar o problema. Isso significa que, daqui para frente, as coisas se resolverão o quanto antes, por casa, por bacia hidrográfica, por quarteirão. Agora, tudo depende das condições do solo, cada região vai determinar uma solução. Agora nós não temos direito de centralizar o problema, porque não vamos ter o dinheiro. No máximo vamos ter o dinheiro para resolver 14, 15, 20% da população. Então ou as cidades, daqui para frente, começam a entender que têm que mudar a tecnologia em relação ao problema de saneamento, ou nós não vamos resolver o problema de esgoto.

Luiz Weis: Mas como a gente materializa esse "ter que"? Estou observando, quase começando a contar o número de vezes que o senhor usa “ter que”. Tudo bem...

Jaime Lerner: É consciência. É consciência.

Luiz Weis: Qual é o pulo do gato?

Jaime Lerner: Se a cidade se conscientiza de que isso é necessário, ela vai fazer.

Augusto Nunes: Eu queria pedir um exemplo, prefeito. O senhor citou um exemplo de como fazer com a coleta de esgotos em favelas usando escadarias. Queria que o senhor explicasse para gente como é isso.

Jaime Lerner: Isso é um projeto. Essa solução foi um projeto que nós fizemos quando trabalhamos em Caracas, 1975/76, nas favelas. O problema é o seguinte, toda vez que se pretendia levar infra-estrutura em morro, existia aquela mentalidade: mexer na terra, enterrar tubulação. Bom, quando você vai enterrar tubulação, mexe no terreno natural, é desmoronamento, soterramentos. Quer dizer, o bom senso manda que não se deve mexer muito em terreno, em elevações. Então, a idéia foi fazer o seguinte: nós temos a escadaria em toda a favela, era levar água e luz da maneira mais simples, entrar pela janela, pelo telhado, levar pelo corrimão, pelo corrimão da escadaria.

Augusto Nunes: Foi feito isso?

Jaime Lerner: Bom, não foi feito. Mas foi adotado no Recife. A solução [foi] um pouco diferente em alguns morros na época, quando nós fizemos o projeto lá no Recife. Bom, mas a idéia é que se leve a infra-estrutura e o esgoto pelos corrimões da escadaria. Não vai poder se mexer com o terreno num morro, é pela própria escadaria, pelo canto da escadaria. Bom, [mas] muitos vão dizer: “não aconteceu”. As coisas são assim na vida da gente, nem todas as idéias acontecem e nós não podemos ter a prepotência de querer que todas as idéias aconteçam. Mas uma idéia vai servir para alguém, porque nós temos a obrigação de pôr as idéias para fora. Alguém vai fazer melhor, não é? O problema de migração... nós propusemos há dez anos as comunidades “rurbanas”, rurais e urbanas. Era uma proposta de reforma agrária viável, não era um slogan, era uma proposta. Essa é a idéia, alguém vai fazer melhor. E nós executamos uma comunidade "rurbana" procurando mostrar um exemplo, dar o exemplo de como essas comunidades poderiam ser viáveis, no sentido de evitar a velocidade das migrações para as cidades.

Paulo Markun: Prefeito.

Jaime Lerner: Bom, se isso resolveu ou não... Nós fizemos. Alguém vai fazer melhor. Como nós propusemos agora, quando o governo Collor assumiu, numa das audiências que tive com a ministra da Ação Social, ex-ministra, levei um projeto muito simples: o valor único para moradia de interesse social. Pode parecer uma coisa complicada, [mas] é o seguinte: toda a moradia de interesse social teria um valor. Isso significa que, nas grandes cidades, vamos dizer que sejam dois milhões de cruzeiros ou nas grandes cidades esse valor serviria para o lote urbanizado, não mais do que isso. E nós não queremos mais do que isto: o financiamento do material de construção para iniciar a casa. Bom, esse mesmo dinheiro, esses mesmos dois milhões serviriam nas pequenas e médias cidades para construir uma pequena casa, quer dizer, o lote mais uma casa. E, na área rural, serviria para lotes imensos e uma casa. Então o que aconteceria? A indústria da construção civil que se dedica à habitação de interesse social sairia das grandes cidades e iria para as cidades de porte médio e pequenas, gerando empregos. E nós teríamos um refluxo, uma diminuição da velocidade. É uma medida simples, tenho certeza de que isso pode funcionar. Agora, eu levei... na época, a ministra, tenho até as minhas dúvidas se ela entendeu.

Jorge Escosteguy: Prefeito, nosso tempo está se esgotando. O Markun tem uma última pergunta para o senhor, por favor.

Paulo Markun: A pergunta é a seguinte: o senhor demonstrou aí ser tão jeitoso, que o senhor chegou ao final do programa sem falar uma palavra sobre o governo do presidente Collor. Eu queria que o senhor descrevesse como o senhor acha que o governo está? E quais são suas relações com ele?

Jaime Lerner: Ah, tenho a obrigação de dizer que hoje a frustração que acontece no país em relação ao governo é muito grande. Frustra, tira a credibilidade. Acho que a população brasileira hoje vê escoar a sua esperança, então não tenho relações. Sei que o presidente tem se manifestado de maneira respeitosa às coisas que acontecem em Curitiba, mas isso não me dá a obrigação de ter uma visão, uma crítica favorável. Mas acho uma coisa: todos nós temos um compromisso com a governabilidade do país. Se as coisas até agora não funcionaram, acho que todas as lideranças políticas, todos os partidos sabem que é muito importante – e ninguém torce para o pior – que se restitua a credibilidade e se dêem condições de governabilidade a este país. Se nós pudermos contribuir para isso, por que não?

Jorge Escosteguy: Nesse sentido, para encerrar, o presidente da República e o governador do Rio de Janeiro têm se tratado também com muito respeito, para dizer o mínimo. Como o senhor encara esse tratamento respeitoso?

Jaime Lerner: Acho que existe um entendimento administrativo do governador Brizola, essa é minha interpretação. Evidente[mente], tanto o presidente da República quanto o governador Brizola têm se pronunciado sobre isso. Agora, existe uma obrigação de todos nós, como falei, com a governabilidade. Nós temos responsabilidade com as nossas populações. Então, essa relação tem que existir. Agora, não existe pacto...Quer dizer, um bom entendimento administrativo. Para se falar em pacto político... Acho que está muito claro que não existe: existe um bom entendimento administrativo.

Jorge Escosteguy: Nós agradecemos então a presença, esta noite, aqui no Roda Viva, do prefeito de Curitiba, Jaime Lerner. Agradecemos também aos companheiros jornalistas e aos telespectadores, lembrando que as perguntas que não puderam ser feitas ao vivo serão entregues ao prefeito de Curitiba após o programa. O Roda Viva fica por aqui e volta na próxima segunda-feira às nove da noite. Até lá e uma boa noite a todos.

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