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Memória Roda Viva

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Orlando Villas Bôas

4/12/1987

O sertanista, de jeito simples e descontraído, relata sua experiência com os indígenas e fala sobre a criação do Parque do Xingu

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Antônio Carlos Ferreira: Boa noite. Nós estamos começando o programa Roda Viva desta noite, que é transmitido simultaneamente pela rádio Cultura AM de São Paulo e retransmitido pelas TVs educativas de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Bahia, Piauí e Espírito Santo. O nosso convidado desta noite é um brasileiro ilustre, muito ilustre: Orlando Villas Bôas - 73 anos, indigenista e sertanista, Orlando Villas Bôas tem o seu nome e os [nomes] dos seus irmãos Cláudio e Leonardo definitivamente gravados na história da proteção da vida e da cultura dos índios no Brasil. Foi nos anos 1940, na famosa expedição Roncador-Xingu, que Orlando Villas Bôas e seus irmãos saíram do conforto da cidade de São Paulo e se embrenharam nas matas desconhecidas do Brasil central. Aí começou a vocação indigenista e o trabalho de atração e de primeiros contatos com as tribos do alto Xingu. Os Juruna, em 1949, os Kaiabi, em 51, os Txucarramãe, em 53, os Suiá, em 59, os Txikão, em 64 e os Kranhacarore, em 73. Mas a obra mais famosa, mais marcante de Orlando Villas Bôas e de seus irmãos foi a criação da reserva indígena do Parque Nacional do Xingu, em 1961, que foi dirigida por Orlando durante 16 anos. Uma vida de aventura, de amor aos homens, de amor ao país, e a uma vida de sofrimentos. Este é Orlando Villas Bôas, que será o entrevistado desta noite e será entrevistado em Roda Viva por Murilo Carvalho, escritor e diretor executivo do Guia Rural da editora Abril; Mariano Marcos Terena, índio da tribo Terena, piloto de avião da Funai [Fundação Nacional do Índio] e assessor do governo do Distrito Federal na estruturação do Museu Nacional do Índio; Maureen Bisilliat, fotógrafa, cineasta, documentarista e autora de livros sobre o Xingu, em conjunto com os irmãos Villas Bôas; Sylvia Cayubi Novaes, antropóloga, escritora e professora do Departamento de Antropologia da USP e assessora do Centro de Trabalho Indigenista; Armando Figueiredo, jornalista da TV Cultura; Dagomir Marquezi, escritor e jornalista do Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo; Rubens Belfort Júnior, médico e professor da Escola Paulista de Medicina, o doutor Rubens Belfort trabalhou de 67 a 85 no Parque Nacional do Xingu e outras áreas indígenas; Fernando Granatto, jornalista da sucursal paulista do Jornal do Brasil; Ricardo Carvalho, jornalista e diretor da produtora Manduri. Assistem daqui do estúdio os convidados da produção de Roda Viva. Como este programa foi gravado, não está sendo transmitido ao vivo, não será possível receber perguntas de telespectadores por telefone, como fazemos normalmente. Orlando Villas Bôas, vou começar com a primeira pergunta, um pouco uma avaliação histórica, porque quando o senhor entrou pela primeira vez no sertão do Brasil não havia aqui no Brasil técnicas de atração de tribos isoladas, não havia dinheiro, não havia Funai e hoje esses recursos existem talvez não na medida do necessário, mas esses recursos existem. Indigenista virou até profissão. Por outro lado, nos anos 40, o Brasil civilizado quando muito chegava ali até o rio Araguaia, e hoje no interior do Brasil está quase todo totalmente ocupado, por estradas por fazendas. Qual a comparação que o senhor faria entre a situação do índio daquela época, dos anos 40, e da situação do índio hoje, 1987?

Orlando Villas Bôas: Em relação às invasões, a um avançamento das nossas frentes pioneiras, não se diferenciou muito e o processo continua sendo o mesmo: violência por parte daqueles que invadem a terra dos índios. Só que havia, naquela época, um resguardo muito grande, um grande número de índios, principalmente no Brasil central e na Amazônia, resguardado pelas grandes florestas, pelo rios de difícil navegação. Eles foram com o tempo facilmente vencidos através de um contato mais rápido, através de helicóptero, aviões, de barcos mais apropriados... Então nós vimos índios no Brasil central e na Amazônia, resguardados nos seus habitats por essas dificuldade todas de avançamento. E, entretanto, de um momento para outro, essas áreas foram todas facilmente violentadas e o índio, e suas aldeias, [ficaram] altamente vulneráveis, também, a esses avanços.

Antônio Carlos Ferreira: O senhor poderia dar algum exemplo de como era o Brasil em 1940? Acho que poucos brasileiros conhecem isso, sabem o que era o Brasil em 1940, quando o senhor partiu para lá.

Orlando Villas Bôas: Em 1940, as frentes de seringueiros [extratores da seiva dos seringais, em fazendas geralmente às margens de rios], no rio Xingu, no rio Iriri, no rio Iriri alto e no rio Iriri baixo, costumavam entrar nas aldeias indígenas e davam arsênico com farinha para fazer o índio desocupar a área. Nós vimos, assistimos, até muito pouco tempo [atrás], na década da 60, seringueiros de Mato Grosso metralhando índios nas aldeias de [índios] Cinta-larga em Aripuanã [município do estado de Mato Grosso, localizado na Amazônia]. Nós assistimos e foi feito um processo que foi encaminhado até o Serviço Nacional de Segurança, de pioneiros a mandado de seringalistas [seringueiros, donos de seringais], que pegavam índias, abriam, amarravam as pernas e cortavam de facão [faz gesto com a mão de corte na vertical], com fotografia, com relatório feito, e o que deu isso tudo?

Antônio Carlos Ferreira: Isso em que época?

Orlando Villas Bôas: E sabe o que aconteceu? Prenderam um coitado de um participante dessa coisa horrorosa que fizeram com os índios em Mato Grosso, que está na cadeia de Cuiabá até hoje, mas os responsáveis até hoje estão aí, tranqüilos e livres, usufruindo daquilo que eles fizeram.

Ricardo de Carvalho: Quem são os responsáveis, Orlando?

Orlando Villas Bôas: Seringalistas de Cuiabá. Naquela época se falava, deram até nomes. Os processos que correm hoje, que correram naquela época, no Serviço Nacional de Segurança, tem o nome de um por um.

Ricardo de Carvalho: Orlando, valeu a pena fazer tudo o que você fez?

Orlando Villas Bôas: Eu acho que valeu a pena, porque nós instituímos, instituímos não, seguimos três lemas, sendo que dois deles foram perfeitamente aceitos pelo próprio Marechal Rondon. Quer dizer, [1] não há lugar para o índio na sociedade brasileira de hoje, [2] o índio só sobrevive dentro de sua própria cultura, [3] já que o civilizado não pode levar nada de bom ao índio, pelo menos respeitemos sua família. Esses três lemas [são os] que nós procuramos instalar no Xingu, e naquelas áreas e nas áreas de outros índios, [em] que nós tivemos ação.

Ricardo de Carvalho: Agora, uma pergunta, nós, os urbanos, quando ouvimos falar dos índios é sempre de uma maneira muito romântica, de preservação da sua própria cultura, de preservação da sua própria vida, e eu... nós... Antônio Carlos Jobim, recentemente, fez uma música muito bonita “deixa o índio lá no seu canto”, não é verdade!? Pelo que se vê hoje, da situação dos índios no país, qual é a saída para o índio brasileiro?

Orlando Villas Bôas: A saída para o índio brasileiro... [seria] se nós déssemos a eles [os índios] as reservas [de] que eles necessitam, e deixássemos eles tranqüilos. O processo da aculturação pode levar a uma desorganização tribal. O nós teríamos que manter é os índios dentro de suas reservas; se possível, não é? Acontece que o próprio índio hoje está saindo, extravasando, essas coisa toda, levado por essa curiosidade desse mundo novo com o qual ele está tendo contato. Por isso é que nós achamos, e sempre defendemos, que o índio só sobrevive dentro da sua própria cultura. Você vê uma coisa, depois de quinhentos anos de contato com os índios em Itanhaém, da faixa litorânea aqui de São Paulo, por exemplo, Itanhaém, Peruíbe, essa coisa toda, eles calculam [que] de Paranaguá [no litoral do Paraná] até a Bahia, na época do descobrimento, devia ter perto de 60 a 70 mil índios. Hoje nós temos nesta faixa talvez uns mil e mil e poucos índios. Em contato com quem? Não são aculturados. Aculturação, que é muito difícil, só um antropólogo poderia fazer uma análise muito bem feita. O que acontece? Essa gente não participa nem da economia regional. Quando eles querem participar dessa economia, aqueles se escravizam, é o caiçara, que na escala econômica nossa ocupa o último degrau. Se esse mesmo processo nós levarmos para a Amazônia, nós vamos ver o índio escravizado pelo seringueiro, que é o miserável em comparação com o caiçara. Então o que acontece? Nós tínhamos cinco milhões de índios antes do descobrimento, temos hoje duzentos mil índios. Essa gente tem pego um milhão de índios por século, no contato com a sociedade européia.

Murilo de Carvalho: Orlando, aos 73 anos, um indigenista que cumpriu um papel. A sua profissão faliu? Não tem mais?

Orlando Villas Bôas: Não. Hoje... a nossa categoria de sertanista foi inaugurada no Dasp [Departamento Administrativo do Serviço Público, órgão governamental, extinto, que expedia e regulava a vida funcional do funcionalismo público federal] [com] três [inscritos] apenas: Cláudio, meu irmão, Leonardo [Villas Bôas, também irmão de Orlando] e eu. Na criação dessa carreira de sertanista dentro do Dasp ficou bem assentado de que com o nosso desaparecimento a carreira desaparecia, e isso aconteceu. Agora surgiu o sertanista da Funai, mas a Funai é CLT [Consolidação das Leis do Trabalho, refere-se à contratação de funcionários em regime não-especial]. A Funai é totalmente diferente dos quadros do funcionalismo público, mas a pessoa do sertanista dentro da Funai é muito bem definida, porque nós temos muitos índios ainda em contato e precisando [de nós] nas áreas de invasão, e a Funai precisa instituir uma maneira de defender essa gente. E um encarregado dos primeiros contatos, não só com a região mas com o índio, é o sertanista.

Murilo de Carvalho: Como é que eles se formam? Como é que nasce o sertanista?

Orlando Villas Bôas: Prática não existe. A Funai tentou, uma certa época, criar uma escola para sertanistas e... mas quem é que ia dar aula para isso? Não existe. Sertanista não pode ser profissão de coisa nenhuma.  Então o sujeito ser afeito com as coisas do sertão é profissão de alguém? Então o sertanista é muito melhor que nós todos.

Fernando Granatto: Orlando, como é que os irmãos Villas Bôas entraram nessa aventura sertanista? Como foi o começo disso?

Orlando Villas Bôas: Na década de 40, nós morávamos aqui em São Paulo. Mas nós éramos tipicamente de formação de interior, não há dúvida alguma. O dia em que a vinculação nossa com a cidade grande terminou, com o falecimento dos pais, nós resolvemos interiorizar novamente. Mas não teria graça nenhuma a gente voltar para Sorocabana [referência à cidade de Sorocaba, SP] de onde nós tínhamos chegado. Nós somos aqui [da região] de Sorocabana, Botucatu, Assis, essa coisa toda. Então nós resolvemos ir para o interior do Brasil. Naquela época, o rio Araguaia [rio brasileiro de mais de 2 mil km, que nasce na Serra das Araras (MT) e desmboca no rio Tocantins (TO)] era o limite da civilização e um pouco à frente, o Rio das Mortes [em Minas Gerais], era o limite do Brasil conhecido. Então nós fomos para o Araguaia. Coincidiu que, com a nossa ida para o Araguaia, aquela idéia que já vinha desde o começo do século no Brasil, da transferência da capital federal [do Rio de Janeiro] para o interior [Brasília] e a expansão para o interior do Brasil, a Marcha para o Oeste [processo de ocupação do Centro-Oeste do Brasil criado no governo de Getúlio Vargas], aconteceu. Aconteceu em virtude de um pronunciamento de um estadista europeu no tempo da guerra [Segunda Guerra Mundial (1939-1945)], se eu não me engano era até um estadista francês, que ele diz “Já que a tônica é da guerra e o espaço é vital, porque não ocupar os [espaços] brancos mostrados pela carta geográfica do Brasil com as populações excedentes da Europa?”. E o presidente da República nosso [Getúlio Vargas], então, resolveu criar uma expedição para entrar em contato com esses brancos das cartas geográficas.

Fernando Granato: Esse era o projeto...

Orlando Villas Bôas: Esse foi um projeto inicial. A incumbência foi entregue à Coordenação da Mobilização Econômica [órgão criado pelo governo federal para melhorar a coordenação do funcionamento da economia no contexto de emergência gerado pela entrada do Brasil na guerra], que era o ministro João Alberto [o tentente pernambucano João Aberto Lins de Barros (1897-1955) foi nomeado pelo presidente Getúlio Vargas como interventor do Brasil em 1930 e, à época da criação da Coordenação da Mobilização Econômica, foi o primeiro coordenador do órgão], e criada então a expedição Roncador-Xingu com esse objetivo. Mais tarde, um pouco depois, criou-se a Fundação Brasil Central, porque o João Alberto começou a sentir que os encargos da expedição eram muitos grandes. Então, criou-se a expedição Roncador-Xingu. Mas isso é uma coisa muito engraçada, porque isso é a história que vai contar. Os seus filhos, os seus netos vão aprender que o Brasil marchou para o oeste, por causa da Marcha para Oeste, à procura do conhecimento nessas áreas desertas e tudo isso. Mas há uma outra versão, e essa é a versão do povo.

Fernando Granato: [Interrompendo] Eu soube agora que até a televisão inglesa está querendo fazer...

Orlando Villas Bôas: ...essa versão do povo é muito mais engraçada. O Brasil marchou para o oeste porque o presidente da República [Getúlio Vargas] se indispôs com um auxiliar do [Palácio do] Catete [sede do poder executivo de 1897 a 1960, ano em que a capital federal transferiu-se do Rio de Janeiro para Brasília.]. [risos] Então arranjaram uma caçada de pato para esse sujeito e o Brasil marchou por causa da caçada de pato. E marchou. O fato é por isso que a gente tem que depositar uma fé muito grande neste país, porque desta caçada de pato, e no roteiro dessa expedição de que estamos falando, do Roncador-Xingu, nasceram hoje 42 cidades.

Antônio Carlos Ferreira: Agora, Orlando, nessa expedição, o objetivo inicial não era o contato com o índio, né? E acabou sendo por acaso um pouco o índio, o índio não estava nas prioridades dessa primeira expedição?

Orlando Villas Bôas: Não, não. A expedição, pelo contrário, a expedição tinha por objetivo marcar pontos ideais de futuros núcleos de povoamento. E e nós saímos com esse objetivo.

Antônio Carlos Ferreira: E no meio do caminho encontraram os índios?

Orlando Villas Bôas: Aliás, nós saímos, não.

Antônio Carlos Ferreira: [Interrompendo] Sabiam que iam encontrar muitos índios pelo caminho, Orlando?

Orlando Villas Bôas: Quando nós tentamos entrar na expedição não conseguimos. Não conseguimos porque o propósito dos organizadores era contratar gente afeita à coisas do sertão. Então, em vez de falar "Vou contratar só sertanejo", eles falavam "Vamos contratar só analfabetos", porque supunham que sertanejos e analfabetos eram a mesma coisa. Analfabeto e sertanejo [eram] uma coisa só. Nós só participamos dessa expedição porque fomos incluídos como analfabetos também, porque não tínhamos condições de ser incluídos. Eu fui trabalhar como auxiliar de pedreiro, no primeiro hotel feito em Aragarças [município goiano], Cláudio e Leonardo foram trabalhar na enxada, na abertura do primeiro campo de pouso. Uma dia nós fomos denunciados como alfabetizados. [risos]

[...]: Foi um crime na época. [risos]

Orlando Villas Bôas: [sorri] Foi um crime. Eu passei a ser o secretário da base; Cláudio, o chefe do departamento de pessoal; e Leonardo de almoxarifado. Mas nós aceitamos essa função burocrática com a promessa de que nós seguiríamos com a vanguarda da expedição. Isso tudo aconteceu nas margem rio Araguaia, onde hoje é a cidade de Aragarças.

Antônio Carlos Ferreira: Agora, você se assustaram um pouco com a quantidade de índios que encontraram nessa expedição?

Orlando Villas Bôas: Foi, aí o que aconteceu foi o seguinte: nós começamos... fizemos a primeira base em Xavantina, do outro lado do rio a gente enxergava o povo Xavante [povo indígena da família lingüística Jê, que habita a região entre o rio Culuene e o rio das Mortes (MT)]. Então o objetivo da expedição seria, nessa área Xavante, a gente estabelecer um ponto de ideal para a colonização. Foi quando nós mandamos, então, notícias para a retaguarda de que essa área considera em branco não era uma área desabitada, era habitada por uma outra gente, que tinha um direito muito maior do que nós, invasores. É claro, na época houve um levante muito grande, protesto de tudo quanto é lado, mas nós tivemos a felicidade de despertar o Marechal Rondon. E o Marechal Rondon se voltou então na defesa disso. A expedição então mudou seu objetivo. Em vez de ser destinada a abrir núcleos de povoamentos na direção de Manaus [faz o gesto com a mão apontando para sua frente], ela passou a estabelecer pontos ideais para a segurança de vôos, uma vez que todo contato aéreo brasileiro com o norte, por exemplo Miami, era pela faixa litorânea [traça um semicírculo com a mão]. E pelo Brasil Central [com a mão em uma linha reta], depois da linha estabelecida, economizaram-se seis horas de vôo desses aviões transcontinentais.

Dagomir Marquezi: Orlando, eu queria... as perguntas até agora estão bem históricas. Eu queria ir bem para o presente agora. É o seguinte, eu vi um advogado especialista em questões indígenas dizer que essa atual projeto de Constituinte, de Constituição, é o toque final na cultura indígena brasileira, de que ela vai acabar depois dessa Constituição. Inclusive coisas como colocar a soberania nacional acima de qualquer interesse dos índios mesmo. Então eu queria a sua opinião sobre o papel que vai ser reservado para os índios nessa Constituição.

Orlando Villas Bôas: Desde o momento em que nós vimos nos jornais que o índio deixou de ser uma etnia, de ser um povo de cultura diferente, e que vinha até aqueles dias regido por leis especiais, leis de exceção, sem o Estatuto do Índio [lei brasileira 6.001, em vigor a partir de 1973, que regula as relações do Estado e da sociedade com os povos indígenas. Segundo o Estatuto, os povos indígenas são relativamente capazes e devem ser tutelados por um órgão estatal (hoje, a Funai)], e passou a ser visto pela Constituinte como uma parcela de sociedade brasileira, junto com os homossexuais, junto com o preto, junto com o presidiário e junto com os deficientes... não é que sejam más as companhias. [risos] Acontece o seguinte, é que índio não pode ser considerado uma parcela da sociedade brasileira. É uma minoria étnica que tinha sido regida por leis especiais e essas leis especiais deveriam continuar, melhoradas [enfatiza], não pioradas, como eu acabei de receber, por exemplo, agora, um decreto que está saindo, em que se cria a colônia indígena, se diferencia o índio, como se tivesse alguém capaz de diferenciar uma aculturação de outra. Então, o índio [que é] aculturado de tal forma passa a ser colônia, o índio que não é aculturado de tal forma passa a ser [alocado] em áreas indígenas. Isso é uma loucura. Nós deveríamos é melhorar o Estatuto do Índio, mas manter, com relação ao índio, uma condição excepcional e especial dentro da legislação brasileira.

Dagomir Marquezi: Essa união de... essa classe, índios, homossexuais, presidiário. Que tipo de classe é esse? Qual é a classificação?

Orlando Villas Bôas: Não, a Constituinte, na questão... na parte das questões sociais o índio foi considerado na mesma faixa da parcela da sociedade brasileira como é [a do] presidiário (o presidiário também entrou na última hora), presidiários, os homossexuais, o negro e o deficiente físico.

Ricardo de Carvalho: Orlando, eu sei que você é o nosso entrevistado, e é uma honra muito grande, mas, Terena [dirigindo-se a Mariano Marcos Terena, também entrevistador do programa, índio Terena e importante liderança política], o que os índios vão fazer com essa história toda que o Orlando acabou de falar, da Constituinte? O que vão fazer? Eu gostaria de saber dele.

Orlando Villas Bôas: Saber dele? [Orlando ri]

Ricardo de Carvalho: É. Eu queria que ele me dissesse: o que os índios vão fazer?

Mariano Marcos Terena: Bem, em princípio eu queria dizer que nós temos uma consideração muito grande com o seu Orlando... é... existem críticas em todo trabalho... é... inclusive o trabalho pioneiro, porque eu analiso... eu conversei, conheci o senhor Orlando em 1980. E eu não conhecia ele, eu conhecia ele como vocês conhecem também, através do livro, porque eu estudei isso também para chegar no ponto [em] que eu cheguei. Eu não sabia o que era ser índio, né? E [em] uma viagem que fiz com ele, então, eu fui sentir que o trabalho dele não poderia ser jogado fora. O trabalho dos sertanistas, assim, naquela época, como disse... é... naquelas condições, daquela época, em 1940, e quando eu admitia para mim mesmo a condição do índio, então eu fui vendo, por exemplo, que a lei diz uma coisa, a Constituição diz uma coisa, mas a prática é outra. Então eu ficava com dó, por exemplo, daqueles índios grandes chefes, que eram autoridades dentro da sua aldeia, e que chegavam em Brasília e recebiam, por exemplo, uma camisa, cem cruzados para ir embora, uma passagem de ônibus, mas sem resolver o problema maior que eles tinham ido questionar em Brasília. Então nós estamos vivendo 1987, o ano da Constituinte. Nós também estávamos acreditando e esperançosos na Constituinte, mas nós estamos sentindo que o que vale ali dentro são os interesses, não da população brasileira...

Antônio Carlos Ferreira: Terena, desculpa interromper, vocês chegaram a ser consultados nessa Constituinte?

Mariano Marcos Terena: Sim, nós temos um movimento índio, que é uma maneira de a gente ter voz em alguns setores da sociedade, chamado “União das Nações Indígenas”. Porque o índio aqui no Brasil é considerado relativamente incapaz, então ele não pode ser...

Antônio Carlos Ferreira: [Interrompendo] Mas, de qualquer forma, vocês foram ouvidos?

Mariano Marcos Terena: É, nós fomos ouvidos, mas...

Antônio Carlos Ferreira: [Interrompenmdo] E o Orlando? Orlando, você foi ouvido, também?

Orlando Villas Boas: Não, eu fui convidado para participar de um depoimento no plenário, numa quinta-feira. Mas na quarta-feira eu recebi no rádio [o comunicado de] que [o depoimento]  tinha sido cancelado, porque não havia tempo de ser consultado o Ministério do Interior e a própria Funai.

Antônio Carlos Ferreira: Quer dizer, então, que a pessoa que tem mais experiência de contato com os índios da história do país não foi consultada nessa Constituinte?

Orlando Villas Bôas: Não, talvez não pudessem levar um subsídio muito fraco. Eles levaram coisas muito mais sérias, a presença dos índios assim, como o Marcos Terena... levou a problemas muito mais sérios na Constituinte. Não estamos acompanhando...

[Sobreposição de vozes]

Armando Figueiredo: ... como ponto principal, como proposta popular, a questão da presença de várias nações indígenas dentro do Brasil. O ministro da Justiça, Paulo Brossard, não gostou nada dessa proposta, disse que o Brasil não está em nada disso de admitir nações dentro do território brasileiro. Qual é a sua opinião sobre isso? O índio tem nações próprias dentro de uma nação maior chamada Brasil?

Orlando Villas Boas: [Interrompendo] Claro que sim.

Paulo Figueiredo: Ou isso está errado? Qual é o problema disso?

Orlando Villas Bôas: E como nação e como povo, ele deve ser respeitado, com todos os direitos que eles têm. Claro. Eu não sou partidário que se crie aqui uma República com hino nacional, isso sim. Um povo com soberania aqui dentro não. Não é preciso isso. Mas que o índio tem esses direitos tem. Tem, perfeitamente, de nação.

Sylvia Novaes: Qual seria essa nação então?

Orlando Villas Bôas: Como é?

Sylvia Novaes: Como é que seria essa nação indígena?

Orlando Villas Bôas: Eu digo essa conceituação de nação a um povo dono de uma cultura, dono de uma independência milenar.

Sylvia Novaes: Mas é uma coisa complicada, porque os índios são um povo que tem uma cultura própria, uma língua própria, um território específico, formas de governos que são próprias, costumes para julgar o comportamento das pessoas que são próprios deles. Eles efetivamente constituem nações!

Orlando Villas Bôas: Constituem nações.

Sylvia Novaes: Então, como não admitir o Brasil como um estado plurinacional?

Orlando Villas Bôas: Eu acho que aí nós criaríamos ao índio um direito que ia competir com o direito brasileiro.

Sylvia Novaes: Pois é, mas como sair desse impasse?

Orlando Villas Bôas: E por que modificar o Estado que vem acontecendo até agora?

Sylvia Novaes: Porque o Estado, até agora, o que ele mais precisa é de muitas mudanças.

Orlando Villas Bôas: A mudança que nós precisávamos era maior justiça dentro da própria lei 1.601 [referência à lei 6.001], não é? Que é o que vem a  ser o Estatuto do Índio. Melhorar o Estatuto do Índio, mas não tinha que quebrar essa condição do índio.

Ricardo de Carvalho: Há uma controversia entre os antropólogos sobre essa questão da nação indígena? Quer dizer, não se considera como um direito a nação indígena dentro do Estado brasileiro?

Orlando Villas Bôas: Eu acho que seria uma coisa formidável, principalmente se nós alertássemos os antropólogos. Os antropólogos como a classe, como aqueles que estão dedicados às questões indígenas, a levar isso para adiante e levar até a Constituinte. Mas não foi o que aconteceu não, porque o que nós assistimos, a Constituinte defendendo o direito do índio, foi feito pelo próprio índio [enfatiza].

Ricardo de Carvalho: E o que...

Sylvia Novaes: E não foi bem assim, uma série de emendas foram levadas pela Associação Brasileira de Antropologia [associação científica fundada nos anos 1950], pela UNI [União das Nações Indígenas, criada em 1980 e voltada para dar representatividade ao índio na Assembléia Constituinte], pelo Cimi [Conselho Indigenista Missionário, organismo cirado em 1972 e vinculado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), atua na articulação entre aldeias e povos ena pela garantia ao direito à diversidade cultural], várias emendas, várias propostas foram levadas à Constituinte.

Orlando Villas Boas: A do Cimi nós vimos pelo jornais a maneira como foi condenada.

Sylvia Novaes: Isso que eu queria saber. Qual é a sua posição com relação à campanha que [o jornal] O Estado de S. Paulo moveu contra o Cimi [Estadão x Cimi]?

Orlando Villas Bôas: Eu achei que a campanha do Estado de S. Paulo foi muito boa e muito oportuna.

Sylvia Novaes: Você acha?

Orlando Villas Bôas: E com bastante fundamento.

Sylvia Novaes: E por quê?

Fernando Granato: O que o senhor acha do Cimi?

Ricardo de Carvalho: Por que o senhor achou oportuna a campanha?

Orlando Villas Bôas: Eu achei oportuna [porque] foi um alerta tão grande que despertou não só a Constituinte como o próprio pronunciamento do senhor ministro da Justiça.

Ricardo de Carvalho: Por que você é contra o Cimi?

Orlando Villas Bôas: Hã?

[...]: O que você acha do Cimi?

[...]: O senhor é contra ao Cimi?

Orlando Villas Bôas: Não, eu não sou contra o Cimi. Eu acho que a política das missões religiosas, da mesma maneira que atuou o Cimi... porque eu participei de uma mesa redonda, enorme - não era nem redonda, era comprida - onde tinha o seu Padre Iasi, que era o secretário do Cimi, tinha mais uns três ou quatro, e a Funai então se dispôs naquela situação ao seguinte: "Olha, nós precisamos do auxílio de vocês. Vocês escolham as áreas indígenas e nós damos todos [enfatiza] os recursos, e todos [enfatiza] os recursos para vocês levarem avante uma política que seja aquela que vocês acham ideal e que seja de acordo com o Estatuto do Índio". [Ao que responderam:] "Não senhor. Nós não queremos isso. Absolutamente não! Nós queremos ser livres para fazer críticas. Não queremos encargo nenhum!”. Isso é muito fácil... isso é muito fácil. Existe uma missão, que está a encargo do Cimi, que é a missão Anchieta, lá no centro de Mato Grosso, em Aripuanã. Dá um pulinho lá, vão verificar.

Ricardo de Carvalho: Agora, hoje em dia você acha que a atuação do Cimi (hoje em dia que eu digo nesses últimos anos), a atuação do Cimi não é...

Orlando Villas Bôas: Provém de censura, de crítica, mais nada.

Ricardo de Carvalho: Mas e o trabalho dele, do Cimi, em relação aos índios, você condena?

Orlando Villas Bôas: Não, porque não tem ação efetiva contra o índio. Eu não vi ninguém... nenhum missionário do Cimi [...] para quem quer que seja. Vimos aquilo que saiu nos jornais.

Armando Figueredo: Só para recapitular, o que O Estado de S. Paulo disse, basicamente, é que o Cimi estava por trás da tentativa de se impedir a extração de recursos naturais em terras indígenas. Você concorda, então, com a extração de recursos naturais de terras indígena?

Orlando Villas Bôas: Eu não concordo. Eu não concordo. Nem o meu "concordo" poderia valer. O próprio índio achou, nos depoimentos que nós demos, que isso é irreversível. Qualquer exploração de minério em terra de índio, o índio deve ser consultado e participar, não como trabalhador - senão ninguém vai dar uma caneta na mão do índio, vai dar para ele uma enxada. Ele deve ser beneficiado pelo que se apurar. Porque se nós quisermos, por exemplo, levar para todos... não... que o ideal seria esse: não se tocar na terra do índio, nem no subsolo.

Sylvia Novaes: Como é que isso é viável, Orlando?

Orlando Villas Bôas: Bom.

Sylvia Novaes: O projeto Calha Norte [projeto lançado em 1985, durante o governo de José Sarney (o primeiro após o fim do período de regime militar), que previa a ocupação militar de uma faixa do território nacional situada ao Norte da Calha dos rios Solimões e Amazonas]....

Orlando Villas Bôas: Seria o ideal, mas não vai acontecer. É preferível então nós regulamentarmos agora do que instituir a invasão amanhã [enfatiza]. Porque se nós regulamentarmos agora de que a terra do índio é intocada o que vai acontecer? Eles vão continuar invadindo. Então é melhor regulamentar agora, que é exatamente o que os índios estão pleiteando.

Sylvia Novaes: Então, uma das propostas do projeto Calha Norte, você provavelmente está muito mais a para...

Orlando Villas Bôas: [Interrompendo] Eu não, exatamente não.

Sylvia Novaes: O que você tem? Um investimento brutal, de mais de dez milhões de OTNs [Obrigações do Tesouro Nacional, títulos da dívida pública criados à época do Plano Cruzado e emitidos de 1986 a 1989. A OTN antecedeu o BTN (Bônus do Tesouro Nacional), criado no Plano Verão] numa área enorme, onde estão cerca de sessenta mil índios, um quarto da população indígena brasileira, desses dez milhões e quinhentos mil e tantos OTNs que serão investidos lá, para os índios são destinados 1,5%.

[...]: Orlando, um minutinho só.

Orlando Villas Bôas: Não esqueça que lá é a área mais rica em minério que nós temos, no norte do país.

Antônio Carlos Ferreira: Orlando, só para esclarecer um pouco os nossos telespectadores, porque agora ficaram algumas siglas aí no ar. Primeiro, Cimi é Conselho Indigenista Missionário, portanto atuação da Igreja junto aos índios, e o projeto Calha Norte é um projeto de ocupação, do norte, da região Norte, do rio Amazonas e do rio Solimões. Agora, por favor, Orlando, qual é a posição do senhor em relação a ocupação dessa área?

Orlando Villas Bôas: A Calha Norte eu não estou bem a par desse trabalho porque isso aconteceu depois que eu saí da Funai e deixei de estar em Brasília. Mas um dos propósitos da Calha Norte era manter a fronteira viva brasileira. Agora, o que se sabe é que nós estamos dentro da área mais rica em minérios do Brasil. Está lá, na Calha Norte.

Antônio Carlos Ferreira: E se por acaso acha-se que uma quantidade grande de minério em uma área muito grande, ocupada por uma tribo de trinta índios, qual a posição do senhor em relação a isso?

Orlando Villas Bôas: O próprio índio levou essa solução...

Antônio Carlos Ferreira: E qual é a solução?

Orlando Villas Bôas: O índio participar em benefício da exploração dessa coisa, e ela deve ser feita exclusivamente pelo Estado e não por companhias particulares.

[Sobreposição de vozes] 

Orlando Villas Bôas: Pelo menos nos jornais deu isso, eu estou a par disso pelo jornais.

Mariano Marcos Terena: Sim, mas isso não foi aprovado pela Comissão de Sistematização.

Orlando Villas Bôas: Não?

Mariano Marcos Terena: Porque eles acham que deve ser aberto para qualquer empresa. Nós queríamos que ela fosse...

[Sobreposição de vozes]

Orlando Villas Bôas: Eu também acho, se tiver que ser, tem que ser pelo Estado.

Mariano Marcos Terena: E aí qualquer empresa pode entrar nas terras indígenas e fazer essa exploração.

Orlando Villas Bôas: Isso aí é um crime.

Armando Figueiredo: Orlando, e outro ponto que os índios defendiam é que a exploração de minérios em terras indígenas se restringisse ao casos de minérios estratégicos e raros em outras regiões, e esse critério parece que foi abandonado também. De repente, pode-se buscar areia também dentro do território deles.

Orlando Villas Bôas: Isso varia de índio para índio. Veja você, os Buruti têm o contato, que eles sabem, com a exploração de ouro [a referência parece ser à aldeia Buriti, no Mato Grosso do Sul] que é enorme, é imenso, da qual nem a Funai participa. Nem a Funai participa.

Rubens Belfort de Mattos Filho: Há vários séculos os índios no país são explorados, não é? A gente costuma dizer, com bastante razão - e várias são as áreas especialistas que comentam - como é variável e variado o número de gigolôs de índios neste país. O índio sempre aparece como um objetivo para alguém defender alguma coisa. Raramente é o índio que acaba sendo defendido. Então, o índio é um grande ponto de argumentação. Nesses quarenta anos, você trabalhando com índio, você já ouviu muitas críticas, nós já ouvimos e lemos críticas ao trabalho de todos, inclusive ao seu trabalho. O que fica nesses quarenta anos em termos de estratégia para tentar evitar o desaparecimento rápido do índio - se é que é inevitável esse desaparecimento? O que é que fica em quarenta anos, para estratégia a ser defendida?

Orlando Villas Bôas: Bom, o que seria se os índios tivessem as suas reservas e participassem, por exemplo, da economia regional, sem precisar de um desmembramento tribal. Por exemplo, no caso do Xingu, foi feita uma experiência. O Xingu foi uma experiência. Quarenta anos de contato, nós deixamos os índios nas mesmas condições que recebemos, compreende? E o índio...

Rubens Belfort de Mattos Filho: [Interrompendo] Mas no entanto o parque mudou, não é?

Orlando Villas Bôas: Ah... mudou.

Rubens Belfort de Mattos Filho: Quem começou a visitar o parque do Xingu na década de 1960 e voltou lá em 1970 dizia "Acabou o Xingu", quem começou em 1970 e voltou em 1980 diz "Acabou o Xingu"; e quem está começando agora, daqui a dez anos, [dirá:] "Acabou o Xingu". Mas o Xingu continua. O Xingu continua e os índios estão lá. Qual é a razão do sucesso? Você acha que o parque do Xingu deu para amortecer o impacto destruidor da civilização?

Orlando Villas Bôas: Não. Há poucos dias, eu recebi um recado de índio um chamado Aritana, do qual o Marcos [Terena] é muito amigo - que eu conheço e fui eu quem o criou - dizendo que estava totalmente triste porque os meninos não queriam mais dançar, que os meninos não queriam andar mais nus, nem queriam dançar mais e [nem] cantar as músicas indígenas.

Rubens Belfort de Mattos Filho: Isso dentro do Xingu?

Orlando Villas Bôas: Dentro do Xingu. Mas nem por isso... a unidade tribal continuou, a vida social da comunidade e o arcabouço cultural de toda a comunidade continuam da mesma forma.

Murilo de Carvalho: Orlando, não é um perigo também para as próprias nações indígenas tentar preservá-lo [o índio] como se ele estivesse num museu, como se a cultura indígena não devesse avançar de alguma forma?

Orlando Villas Bôas: É um outro aspecto. Há quem diga, como diz o professor Belfort [Rubens Belfort de Mattoos Filho, um dos entrevistadores do programa] - não é?, nós fomos muito censurados também - que nós estávamos fazendo um zoológico de gente. É um absurdo. É tanto que nós vimos o seguinte, que não havia aquilo que nós dissemos no início, não há lugar para o índio na sociedade brasileira de hoje. A única maneira de o índio sobreviver, até que tenha condições melhores, seria manter os índios em suas reservas. Mas manter [os índios] em suas reservas não de uma maneira drástica e proibitiva, de que ele não possa sair. É criar para eles condições para que eles tenham, em suas reservas, tudo aquilo de que eles precisam, que a tecnologia nossa pode levar.

Murilo de Carvalho: Nós estávamos falando aqui, agora há pouco, de mineração. Estávamos falando de mineração nas terras indígenas. Eu quero lembrar que o problema da mineração no Brasil não se refere só às terras indígenas. Se você, no quintal da sua casa, tiver acidentalmente ouro ou petróleo ou qualquer outra coisa dessa tipo, qualquer pessoa, qualquer empresa de mineração, pode requisitar esse direito. Quer dizer, na verdade o brasileiro não é dono nem do subsolo do quarto dele. Tudo isso é passível de exploração por qualquer empresa. Quer dizer, a gente está falando do índio, mas na verdade nós temos é que começar a mudar a sociedade brasileira para que as coisas combinem. Porque é impossível a violência de um lado da sociedade brasileira querer resolver uma outra coisa [de] que ela também é vítima. Então, na Constituinte, quando se colocou agora a questão do aculturamento do índio... de um lado, então "o índio aculturado é um índio escala um", "o índio desculturado é escala dois", quer dizer, começou a fazer essa divisão, é exatamente a mesma divisão da sociedade brasileira: é o pobre, é o preto, é o analfabeto, quer dizer, é o sujeito miserável. Esse sujeito tem uma lei especial para ele, a "lei do miserável". Então como é que faz? Quer dizer, não seria até então um bom negócio o índio se juntar com o preto, se juntar com as minorias, lutar por isso?

Orlando Villas Bôas: Só que o índio, nós estamos impondo isso. Essas diferenciações que você falou estão todas elas ligadas a funções econômicas, e o índio não tem esse problema. Nós é que estamos impondo essas divisões. Isso que eu falei no início, quem é que pode fazer um diferenciação, em traços de cultura ou limites de culturas, como diz aqui, os índios bem aculturados, mal aculturados, os índios não aculturados. Como assim?

[...]: O Amorin parece que queria...

Orlando Villas Bôas: O índio, no momento em que você faz a atração, o índio bravo, o índio arredio, no momento que você faz a atração e dá para ele um facão, ele deu um passo no sentido da aculturação. Mas isso não quer dizer que ele tenha desprezado toda a sua estrutura por causa do facão que ele recebeu. O que nós temos receio é do processo integrativo que viria depois. Mas nós temos esse receio diante do índio de cultura pura com o qual nós estávamos em contato, e vivendo com eles, vivendo o perigo que isso poderia acarretar na destruição do seu arcabouço cultural. Então nós tínhamos um receio muito grande do processo aculturativo que teria que culminar depois com o processo emanicipatório.

Ricardo de Carvalho: Orlando, eu tenho uma curiosidade, eu já li sobre isso, mas eu gostaria que você me contasse como é que é feita a atração? "Tem índio ali!", aí sai todo mundo correndo, aí vem flecha... como é?

Orlando Villas Bôas: A atração varia muito...

Ricardo de Carvalho: Como é que é? Alguma experiência que você viveu... você viveu diversas.

Orlando Villas Bôas: Aculturação [parece equivocar-se, querendo usar a palavra "atração"] é feita de acordo com a índole do índio. Por exemplo, os índios Jê são índios aguerridos que têm uma mobilidade muito grande, é um índio difícil de você...

Ricardo de Carvalho: Como é que se faz? Vai lá, deixa uma coisinha e volta?

Orlando Villas Bôas: Não, a gente vai nós lugares onde costumam freqüentar, deixa presente. É aquela fase que nós chamamos de namoro. Deixa o presente, eles tiram. Eles muitas vezes quebram tudo aquilo que a gente deixa, sinal de quel eles não querem contato.

Ricardo de Carvalho: E eles atacam vocês?

Orlando Villas Bôas: Atacam. Nós já fomos até aprisionados uma vez.

[...]: Ah, é?

Antônio Carlos Ferreira: Orlando, conta essa história para nós, por favor.

Orlando Villas Bôas: Ah...

[...]: Como é que foi isso?

Antônio Carlos Ferreira: Conta essa história e depois conta outra história, quando vocês aprisionaram o índio para mostrar o Parque do Xingu para ele. [risos] Essa história também é conhecida. Vamos contar as duas histórias agora. [risos]

Orlando Villas Bôas: Então, a primeira foi quando nós fomos aprisionados no contato com os índios Jê, os Txucarramãe, que quer dizer, na língua Juruna, homem que não tem arco [Jê é, na verdade, um tronco linguístico, sendo o Juruna uma língua derivada]. Na ocasião que nós tivemos contato com os índios Jê, eles não tinham não só arco, não tinham casa também. A casa deles girava em torno da mata: encontrava uma árvore grossa e a casa ia desviando [faz gesto sinuoso com a mão]. Cada família que chegava ia aumentando um pedaço da casa. Dormiam fazendo uma depressão no terreno e fazendo um travesseiro de terra. E ali eles dormiam, o fogo do lado. E assim as famílias, sucessivamente, viviam felizes, riam o dia inteirinho, cantavam o dia inteirinho. A única coisa diferente que nós introduzimos no contato com esses índios foi fazer com que eles deixassem de viver na margem de uma lagoa, muitas vezes com água já estragada, putrefata, que eles só tomavam água dali, e muitas vezes com um córrego excepcional de água cristalina correndo a cem metros de distância.

Ricardo de Carvalho: Aí prenderam vocês. Como é que foi?

Orlando Villas Bôas: Não. Aí nós... bom, quando prenderam foi no contato. Quando nós levamos presentes, nós levamos presentes só para os homens, porque não esperávamos que as mulheres chegassem. E as mulheres vieram, as mulheres vieram e começaram a pressionar os maridos, para que arranjassem presentes conosco. Eles sabiam que nós não tínhamos mais nada e começaram a rir. Elas então se zangaram e fugiram, saíram (depois nós contamos 228 mulheres). E os homens, então, ficaram e levaram toda a alimentação. E os homens então nos pegaram, numa ilhota em que nós estávamos, estava ali [fazendo gesto de contagem nos dedos] Cláudio; eu; Jorge Ferreira, da revista O Cruzeiro; Henri Ballot, fotógrafo; três índios Kaiabi; e dois índios Juruna, mas eles prenderam os dois Juruna e nós dois [refere-se ao irmão, Cláudio]. O Jorge Ferreira, nós deixamos tomando conta do acampamento na ilha, porque quando os índios começaram a gritar, nós atravessamos o rio e fomos lá, e eles diziam que as mulheres tinham fugido. Então nós mandamos os Juruna gritar, os Juruna gritaram, as mulheres voltaram. No dia seguinte, se repetiu a coisa, nós fomos e, quando nós chegamos no pedrá, eu fui agarrado, e eu gritei para o Cláudio: "Cláudio, os índios me agarraram!". E ele disse: "Eu já estou agarrado." [risos] Aí então eu falei "Olha o Paulo Haidê!". Paulo Haidê era um índio excepcional que tinha conosco lá, que era um verdadeiro atleta Juruna, uma beleza de índio. Então eu falei: "Ollha o Paulo Haidê", porque a nossa esperança era o Paulo Haidê. Ele disse: "Aí tem quatro Paulo Haidê." Aí nós arrastamos pela picada, por uma trilha, eu tentei... andar na trilha de braços dados não dá, eu já tinha tido uma fratura no joelho [toca o joelho com a mão]. Naquela mesma hora, eu caí de uma pedra que eles forçaram e eu caí de cima da pedra. Nos levaram até um quilômetro dentro da mata, havia uma roda assim de uns quatrocentos homens, todos pintados de preto, com uma borduna [arma indígena feita de madeira dura usada para dar bordoadas] na mão, e o fogo. E nos puseram na beira do fogo e disseram "Agora vocês chamam as mulheres." E então nós gritávamos "[fala em língua indígena]" [ou seja:] "Mulheres, venham cá, civilizado é bom."  "[outra frase na língua indígena]" "Podem vir que nós somos bons." Nada! [risos] Aí o fogo apagava e eu gritava "quã, quã, quã", porque eu não queria que ficasse escuro. [risos] Vinha um índio, assoprava o fogo, ficava tudo claro, mas havia entre eles um que gritava "Bacubi, bacubi [frase em língua indígena]" [que quer dizer:] "Mata, mata, que branco não presta." [risos]

Antônio Carlos Ferreira: Orlando, você entendeu a mensagem, que era para matar mesmo?

Orlando Villas Bôas: Ah, quem não entendeu?

Antônio Carlos Ferreira: Você achou que ia morrer? [risos] 

Orlando Villas Bôas: Quem não ia entender? Todo mundo levanta por isso, todo mundo...

Ricardo de Carvalho: Orlando, aí você resolveu apagar o fogo, "Apaga esse fogo logo!".

Orlando Villas Bôas: Não, aí o pior não é isso. Foi que a coisa foi ficando cada vez mais séria e o fogo tornou abaixar, e eu gritei para o índio "Quã, quã, quã.". Ele veio e, em vez de acender o fogo, ele deu um pontapé no fogo, deu um pontapé no fogo e ficou tudo escuro. Aí bacubi  passou a ser a palavra de todos eles. "Bacubi, bacubi, bacubi.". Nessa altura...

Ricardo de Carvalho: Que é o que mesmo?

Orlando Villas Bôas: Quer dizer "mata, mata". Nessa altura, o Cláudio, meu irmão, estava agarrado no Paulo Haidê, porque o Paulo Haidê, percebendo que ele estava em perigo de vida, já queria abrir uma brecha, pegar uma borduna daquela e ninguém iria encostar nele que ele sairia ileso. Mas e nós? Então o Cláudio estava agarrado com ele. Quando a coisa estava nesse pé, o índio gritou "[frase em língua indígena]", quer dizer "uma velha, uma velha, uma velha". Então houve um silêncio enorme, porque entre índio Jê - o Terena sabe disso - a mulher tem uma força extraordinária, principalmente as índias idosas. Quando ele gritou "uma velha, uma velha" todos, em silêncio, acenderam um fogo, mostraram um vulto. Eu cheguei lá, peguei, trouxe a velhinha, ela vinha mascando uma série de coisas, passava na mão e passava no rosto, e o índio Jê primitivo, puro - não os de hoje, mas os daquela época - não punham saliva fora. Saliva é medicamentosa. Eles põem na mão e passam no corpo. Então ela estava me beneficiando, pondo toda saliva possível, que é da mascação, na mão e me passava no rosto. Mas eu a trouxe até perto do fogo, prometi em português, inglês, francês e todas línguas possíveis - menos em Txucarramãe, que eu não sabia falar quase nada - e ela começou a gritar e as mulheres chegaram. Chegaram bravas, 228 mulheres feras! Falando macio... que engraçado, a índia Txucarramãe, a índia Jê, ela não é um tipo de beleza, mas ela tem um voz de uma suavidade fantástica. Mas com aquela suavidade, elas estavam bravas demais. E os homens então começaram a dizer que estavam com fome. Então elas mandaram buscar banana, quer dizer, folhas de banana. Os homens correram para mata, trouxeram folhas de banana, e ali foi feita então uma passarela de sanduíche, sanduíches desse tamanho assim [dimensiona com as mãos distantes], uma piranha entre bijus. E aquilo foi posto ali... nesse momento, as mulheres, as mais mulheres que chegaram, mandaram que duas delas nos levassem de volta para o porto.

Ricardo de Carvalho: Quer dizer, vocês estavam salvos ali?

Orlando Villas Bôas: Ali nós estávamos salvos, mas elas mandaram que nos levassem para o porto. E as duas mulheres saíram quase que "pescociando", até o porto. Quando nós chegamos no porto, nós ouvimos uma gritaria lá dentro da mata. Eu falei "o que será que houve?". E as mulheres empurraram a gente para as canoas, nós saímos. Aí fomos acampar do outro lado do rio, ali o rio tem 1600 metros de largura. Ficamos lá e, de madrugada, sem fazer fogo (para eles não saberem onde é que a gente estava), saímos de madrugada, fomos embora. Seis meses depois eu voltei, trazendo presentes só para mulheres. Aí ficamos sabendo que as mulheres, quando elas calculavam que nós havíamos chegado no rio, elas sapatearam em cima dos sanduíches [faz gesto de vai-vém com as mãos] e não deixaram os homens comer... [risos]

Antônio Carlos Ferreira: Orlando, agora conta a história de que quando vocês tiveram que seqüestrar um chefe índio, para falar por partes.

Orlando Villas Bôas: Foi nessa mesma aldeia. Era um índio Kretire [também conhecidos por Metuktire ou Kayapó]. Nós tínhamos tido primeiro contato. O primeiro contato com esses índios, nós ficamos assim, a quatro metros de distância, durante duas horas, sem fazer um [enfatiza] gesto brusco. E eles, uns trinta índios, na nossa frente. A gente pegava um facão, jogava, ele tirava o facão. Ele vinha dar a flecha para gente e a gente, para mostrar que era sabido, mandava ele virar, ele virava a ponta para o outro lado e dava com a pena... E nós estávamos com o barco no porto. E aí nós tivemos uma idéia: vamos levar um índio desse aqui. E convidamos o Kretire para subir no barco, e o Kretire subiu, nós demos uma volta...

Antônio Carlos Ferreira: Barco a motor?

Orlando Villas Bôas: Motor. Ele achou uma delícia. [desenhando linhas circulares com os dedos] Demos a segunda volta. Ele já ficou um pouco desconfiado, porque a volta foi maior. Na terceira volta nós começamos a subir o rio, aí ele começou a chorar e a cantar, e os índios na margem também respondiam o choro e o canto. É uma cena belíssima, né? Mas a nossa intenção era muito boa e deu resultado, porque nós o levamos até o porto mais próximo, que foi Diauarum naquela época. Conseguimos depois um monte de presentes. Fizemos, depois, com que ele trouxesse tudo isso de volta. Nós tivemos sorte.

Armando Figueiredo: Orlando, você falou agora pouco, na questão da saliva, dessa questão da farmacologia do índio. O que o branco tem a aprender na medicina indígena?

Orlando Villas Bôas: A medicina indígena, do índio da cultura pura, é medicina mágica. É aquela defumação, não é? E... eles usam, por exemplo, algumas ervas, usam algumas raízes, mas não são para males assim graves assim..., [são usadas] para [enumerando com os dedos] vomitório, para colírio, disenteria, dor de cabeça, para tudo isso o índio tem remédio na mata. Agora, quando a coisa complica, com o mal nosso, que o índio vai indo assim para uma pneumonia (não é?), o índio já sabe que não... Quando... na ocasião que surgiu o primeiro caso de pneumonia no Xingu, quando nós estávamos lá, era uma índia que se chamava Keveso, os índios já estavam pintando a Keveso para ser enterrada. Ela já estava praticamente morta. Para o índio já estava morta. Estavam pintando, já estavam amarrando a rede, e nós estávamos empenhados em arranjar um pouco de penicilina - naquele tempo a penicilina era de duas em duas horas - e chegou um [avião] teco-teco e trouxe a penicilina. E nós temos bem a lembrança de que nós demos a primeira injeção, na segunda injeção ela sentou. Aí foi uma loucura. O índio, nos casos de corte de dedo, dor de dente, qualquer coisinha, ele queria a penicilina.

Antônio Carlos Ferreira: Agora, Orlando, conta para nós como é que é essa história do chá anticoncepcional que as mulheres lá do Xingu usam e que funciona, até agora parece...

Orlando Villas Bôas: Usam, usam. Nós mandamos para cá e eles disseram que não. Mas lá nós vimos, praticamente, que sim. Não só elas usavam como as vezes interrompiam muitas vezes. Tinha uma índia lá, que não queria ter um filho e tomou esse chá. Aí, dez, cinco ou seis anos depois, ela resolveu ter o filho, tomou outro chá e teve filho.

Antônio Carlos Ferreira: E o índio faz controle populacional?

Orlando Villas Bôas: Faz... Não, não faz controle. O tipo da vida que o índio leva, o desgaste que a mulher sofre pelos partos, faz com que sua vida fértil seja muito curta. A mulher não vai além de três filhos. Agora não. Agora, depois que nós começamos a ir lá no Xingu, principalmente, criar um tipo de assistência totalmente diferente, ímpar - não existe em outras comunidades indígenas no Brasil... hoje, por exemplo, dentro do aspecto da medicina preventiva o Xingu está acima de qualquer bairro daqui de São Paulo, aqui da grande São Paulo. Basta dizer que [em] Xavantina nós contávamos, assim, três, quatro, cinco casos de poliomielite, todo ano. [Em] Alagarças ganhava um pouco, eram oito, dez casos. O Xingu nunca teve um caso [levanta o dedo indicador], por causa da medicina preventiva.

Antônio Carlos Ferreira: Mas quantos índios vivem hoje no Parque do Xingu?

Orlando Villas Bôas: Hoje, uns 4200 índios.

Antônio Carlos Ferreira: E quantos índios existem hoje no Brasil? O senhor falou, no começo, duzentos mil?

Orlando Villas Bôas: Duzentos mil.

Antônio Carlos Ferreira: Duzentos mil.

Antônio Carlos Ferreira: Agora, em que área... o senhor falou também no começo do programa que era preciso criar novas áreas. Quantas áreas seriam necessárias? O senhor acredita, assim...

Orlando Villas Bôas: [Interrompendo] Bom, nós temos 176 postos no Brasil. Existem três parques. Um, que funciona, é o do Xingu, o [parque] da ilha Bananal foi abandonado, e o dos Tirió também foi abondando. E outro, que seria um grande parque, seria [...]. Esse não foi nem foi instituído, porque o Ministério da Agricultura não deixou. Mas o que funciona bem - mais ou menos hoje - ainda é o Parque Nacional, o Xingu.

Ricardo de Carvalho: Orlando, tem muito índio ainda sem contato com o branco no Brasil?

Orlando Villas Bôas: Muito. Dentro do Parque Nacional do Xingu...

[...]: [interrompendo] Quanto o senhor imagina?

Orlando Villas Bôas: Dentro da área do Parque Nacional do Xingu ainda existem duas nações, que nós sabemos, conhecemos, e que nunca viram brancos.

Ricardo de Carvalho: Que coisa! É uma coisa fantástica isso de imaginar que....

Orlando Villas Bôas: [interrompendo] Chama-se... e ainda tem o nome de [fala em língua índígena], quer dizer "os homens alegres".

Ricardo de Carvalho: E são alegres porque não viram os brancos ainda? [risos]

Orlando Villas Bôas: Não. Estão sempre rindo, não sei se é porque nunca viram o branco [risos] ou se é porque nunca foram molestados por ninguém, nunca foram molestados.

Ricardo de Carvalho: E esses índios, é fatal que eles sejam contatados, esses índios todos?

Orlando Villas Bôas: Não, porque até hoje nós não contamos aonde eles estão.

Ricardo de Carvalho: Ah, é?

Orlando Villas Bôas: É. Eles estão em um determinado ponto onde os limites do parque estão distantes e nenhuma ameaça de invasão existe, porque a área do parque continua sendo respeitada, embora... [de repente] isso é um absurdo! Isso é um absurdo, um crime que aconteceu, existe no Supremo Tribunal [Federal], diversas [enfatiza] causas... porque aqui em São Paulo, principalmente São Paulo, instituiu-se aqui uma verdadeira máfia de donos de terras de índio, que eles não têm o interesse em tomar posse da terra que eles requereram. É desapropriação e o governo paga uma indenização pesada. Um dia desses eu tive notícias, pelos jornais, que o Supremo Tribunal determinou que se pagasse a um determinado cidadão uma verdadeira fortuna de uma terra - que eu não sei o por quê, se foi mal defendida pela Funai, se a jurídica da Funai dormiu no ponto - o fato é que se pagou uma verdadeira fortuna por uma terra, que é só fazer um levantamento e ir lá e ver que é uma terra milenar do índio [indignado].

Ricardo de Carvalho: Agora, você sabe aonde eles estão e não conta para ninguém, é isso?

Orlando Villas Bõas: Não. Essa que eu estou dizendo é outra coisa.

Ricardo de Carvalho: Não, não, eu estou dizendo aquelas duas que estão no...

Orlando Villas Bôas: Ah, essas duas é outra coisa. Não contei que é para não inventar que um... um herói qualquer resolva fazer um furo etnológico (não é?), ao invés de ser jornalístico, e chega lá vai, vai...

Armando Figueiredo: [Interrompendo] Como é que o sertanista convive com essa contradição da profissão, que é saber que, ao mesmo tempo em que ele é a pessoa que está fazendo contato para tentar salvar, às vezes uma determinada tribo isolada, e sabendo que esse contato, às vezes pode servir para apressar a desagregação da tribo?

Orlando Villas Bôas: Mas eu... isso nenhum sertanista consciente faz. E nem a própria Funai também. O sertanista só entra em contato com o índio que está sendo ameaçado, índio ameaçado. Em áreas não ameaçadas é uma loucura. Esses índios que nós fizemos a atração, esses índios estavam na frente, das frentes... estavam na... barrando as frentes pioneiras. De qualquer forma, o índio Krenhakore, o índio Krenhakore, quando nós fizemos a atração deles... hoje nós estávamos conversando lá fora... ele morava em torno do rio Peixoto de Azevedo. O rio Peixoto de Azevedo era um rio bem canalizado, com sessenta metros de largura, em alguns pontos oitenta metros, cem metros, mas sinuoso, porque a área é muito plana. Hoje, o rio Peixoto de Azevedo tem quatrocentos metros de largura e é um mar de lama, porque tem sessenta mil homens tirando ouro e diamante de lá. Descaracterizaram o rio, acabaram com o rio, acabaram com tudo, não é? Então, esses índios Krenhakore, por exemplo, viviam uma vida tranqüila, pacata, alegre. Nós fizemos a atração deles por quê? Porque estão sendo ameaçados por essa invasão; e nós, assim mesmo, fizemos a atração deles porque a [rodovia] Cuiabá-Santerém passou em cima [enfatiza e desce o braço no ar, como se fosse uma guilhotina] da aldeia do índio.

Armando Figueiredo: Quantos eram os Krenhakore antes do contato e quantos são hoje?

Orlando Villas Bôas: Eram 170, nós fizemos a atração, entregamos, e... porque nós fomos convocados a fazer a atração, e fora da nossa área. E um ano depois, aqueles que foram para lá não conseguiram resistir à invasão e nós tivemos que chegar correndo e conseguir tirar... tiramos noventa.

Antônio Carlos Ferreira: Orlando, dos 170 só noventa sobreviveram?

Orlando Villas Bôas: Hoje não, hoje tem mais. Hoje tem uns 120 no Xingu.

Armando Figueiredo: No Xingu, porque nasceram outros.

Orlando Villas Bôas: É, porque nasceram.

Antônio Carlos Ferreira: Agora, Orlando, é exatamente por causa dessas coisas que, no momento, vocês não estão interessados em abrir essas duas tribos que estão isoladas?

Orlando Villas Bôas: Não. Eu acho que essas que estão isoladas... porque nós estamos convencidos que o índio, levando a vida dele, esteja muito mais feliz do que no contato com o mundo civilizado.

Antônio Carlos Ferreira: Orlando, o que existe de verdade nessa história de uma tribo anã ali no Xingu?

Orlando Villas Bôas: Todos dos índios, desde os Kalapalo, os primeiros com quem nós entramos em contato, falavam de uma tribo de anões. Mas passamos de tribo em tribo e todas elas recebiam um nome, Camitzoze aqui e Taiuri lá e, no fim, não encontramos coisa nenhuma.

Antônio Carlos Ferreira: Mas o senhor acredita que exista ou não?

Orlando Villas Bôas: [Continuando] Encontramos os índios Tixkão, que não chegam a ser pigmeus, mas são os índios mais baixos que nós encontramos. O chefe, o chefe Tixkão, tinha 1m46 de altura, mas era um dos índios mais bravos que nós encontramos também, não é? Mas não tivemos...

Dagomir Marquezi: O que o senhor acha dessa idéia dos nossos dirigentes militares de se fazer um campo de testes de bomba atômica na Serra do Cachimbo? [No local, no sul do Pará, militares planejavam realizar testes secretos. Em 1990 foram encerradas essas atividades no local, restando apenas um campo militar.]

Orlando Villas Bôas: Isso é a pior coisa do mundo! A Serra do Cachimbo... mas por que Serra do Cachimbo? Por que não faz no quartel general? [risos] Não é? Isso é uma loucura. Por quê?

Dagomir Marquezi: Quantos índios têm lá na região?

Orlando Villas Bôas: Mas mesmo que não tivesse índio. E a natureza? [risos] Mas tem índio lá. [risos]

[...]: Orlando...

Orlando Villas Bôas: Tem índios desconhecidos, tem índios Jê. Foram... com o avanço da seringa, e agora com a mineração, é uma coisa brutal. Você vê, o rio Peixoto de Azevedo hoje tem sessenta mil homens, garimpando, não é? O rio Peixoto de Azevedo, eu estava contando o negócio do rio do Ouro, o Peixoto de Azevedo... Quer você ver uma coisa, o Peixoto de Azevedo, quando nós estávamos fazendo a atração dos índios Krenhakore estavam, o Cláudio, eu, o índio Txikão, um Juruna, Kaiabi e eu. E tinha chegado um avião. E o pessoal do avião vinha vindo, um teco-teco, até pilotado por um piloto que ainda hoje está lá na Funai, o comandante Custódio. Eles vinham vindo. Nisso, um índio chega do rio e diz assim ”Paí", e trouxe uma pedra, e disse "Olha que pedra bonita”. Toda a pedra parece diamante, mas diamante não se parece com pedra nenhuma - isto é uma coisa da boca de todo garimpeiro. E ele me traz um diamante lindo, deste tamanho [aproxima o polegar e o indicador de uma das mãos], um diamantão, uma beleza de diamante. Eu gritei para o Cláudio, falei "Cláudio, venha ver que diamante lindo!". E o pessoal do avião ouviu e veio correndo. Vieram, dois deles vieram correndo dizendo "Deixa eu ver, deixa eu ver!". Aí falei: "É brincadeira!" e “pchi" [faz gesto de descarte], joguei na mata. Com uma dor no coração, mas joguei na mata. [risos]

[...]: E perdeu-se essa pedra?

Orlando Villas Bôas: Perdeu-se a pedra. Mas porque o receio que a gente tinha, e que era bastante razoável, é que se a notícia corresse o rio seria invadido, porque nós tínhamos, pouco abaixo da foz do rio Peixoto de Azevedo, perto de cinco mil homens naquela época, cinco mil homens [enfatiza e mostra a mão espalmada] esperando abrir o rio para eles invadirem.

Antônio Carlos Ferreira: Agora, no intervalo, Orlando, você estava nos dizendo aqui que existe um rio cheio de ouro lá e que você sabe a existência...

Orlando Villas Bôas: Não, é uma notícia, é uma, uma... [coçando a cabeça, embaraçado]

Antônio Carlos Ferreira: Eu digo isso, não só pela curiosidade, embora a curiosidade seja muito grande, mas também porque o Parque [Nacional do Xingu] pode correr um sério risco.

Orlando Villas Bôas: Pode, pode...

[...]: O duro é [conseguir] jogar o rio na mata [referência à solução dada por Orlando quando jogou a pedra de diamante na mata]. [risos]

Orlando Villas Bôas: Que coisa engraçada. Certa feita... nós fazíamos uma vigilância muito grande, com relação à invasão da área do Parque [Nacional do Xingu]. Uma ocasião os índios vieram correndo, dizendo que tinha... apareceram oito homens no rio Ronuro, nos limites do parque. Eu reuni lá dez índios, fomos lá, trouxemos os 12 homens que estavam lá, trouxemos para o parque, falei assim: "Agora vocês jogam, põem as armas aqui. E aqui vocês jogam todas as pedras que vocês tiverem no bolso, tudo aqui." Então eles vinham com os embornais e foram jogando, jogando, encheram, assim, uma lata de querosene de pedras. Mas eu não entendo nada de pedra, principalmente semi-preciosa. Peguei aquelas pedras todas e jóquei em duas ou três gavetas que tinham lá, e larguei as pedras lá. E tinha umas pedras muito engraçadas, muito bonitas, e os meninos índios vinham e pediam para brincar, e ficavam brincando com aquilo, brincado, brincando. Mais tarde, um dia chega lá um cidadão que entendia daquilo, eu abro a gaveta, ele vê uma pedra e diz: “Que beleza de esmeralda, heim!". Eu falei "que esmeralda?". Ele falou "Isso aí é esmeralda."  Eu falei "isso aqui?, eu tinha uma desse tamanho aqui." [mostra com a dimensão com as mãos] [e ele disse:] "Pois é, então, era um emburrado de esmeralda que você tinha aí.". Que é dentro da área. Quer dizer, se uma notícia dessa corre, não há quem segura a invasão. Hoje está mais difícil, porque o índio está muito bem instruído a esse respeito. O índio hoje no Xingu... antigamente nós fazíamos a vigilância da área, hoje é o próprio índio que faz, e ele não permite mesmo a invasão.

Armando Figueiredo: Orlando, mesmo assim, só na Amazônia tem pelo menos trinta mil garimpeiros, segundo os órgãos oficiais, dentro de terras indígenas. O que fazer com essa gente toda?

Orlando Villas Bôas: Ah... isso aí é um problema que a Funai não tem condição de resolver, também não.

Armando Figueiredo: Se você pudesse atuar, o que você recomendaria?

Orlando Villas Bôas: Eu recomendaria... um processo assim meio drástico, né? São trinta mil garimpeiros... arranjar trinta e um mil índios não dá, não é? [sorri]

Antônio Carlos Ferreira: Orlando, você falou agora em processo meio drástico, e agora há pouco nós discutimos o que fazer com a bomba atômica lá no meio da mata. Qual é o papel dos militares em toda essa questão indígena? Foi uma papel positivo, negativo, como é que o senhor avalia?

Orlando Villas Bôas: No Ministério da Aeronáutica foi muito.

Antônio Carlos Ferreira: Como?

Orlando Villas Bôas: No Ministério da Aeronáutica foi uma coisa extraordinária. Em toda a área brasileira, porque no Brasil o processo de avançamento nosso foi totalmente diferente de outros países. Em todo lugar, primeiro vem a tropa; depois vem o carroção, o carro de boi] o caminhão; e depois, com o requinte de progresso, o avião. O Brasil foi desbravado pelo avião. O nosso cabloco [miscigenado de branco com índio] no Acre conheceu o avião, conheceu o avião antes de outra coisa qualquer. O nosso índio lá conheceu o avião antes do burro [antes de conhecer o burro], antes do cachorro, antes do gado, antes de qualquer coisa. No Araguaia, trem, era trem de cozinha, mas já conheciam o avião a jato. Quer dizer, o papel dos militares no pós-guerra, do pós-guerra até agora (até agora não, que agora enriqueceu um bocadinho), mas aquele entusiasmo que tinham, até mais ou menos uns 20 anos atrás, era uma coisa extraordinária, principalmente a aeronáutica. E o exército, nós conseguimos levar também para lá... treinamento na selva. Hoje existe esse treinamento na selva na Amazônia, mas o ponto de partida foi o Xingu, com uns cadetes de Agulhas Negras que fizeram. Essa gente prestou um serviço muito bom, prestou um serviço muito bom.

Antônio Carlos Ferreira: Agora, Orlando, só uma questãozinha que eu gostaria de lembrar também, era um pouco a avaliação, que foi uma pergunta que o Ricardo [de Carvalho] fez no começo, mas que eu acho que ainda não ficou bem respondida. Que avaliação que o senhor recebe em troca de quarenta anos de serviço junto aos índios, aonde o senhor pegou 220 acessos de malária, com todas essas dificuldades, o que o senhor recebe, assim, qual é avaliação que o senhor tem de retorno? A sua avaliação, do senhor mesmo, da sociedade, do governo? Por exemplo.

Orlando Villas Bôas: É que nós...

Ricardo de Carvalho: [Interrompendo] Só complementando, Orlando, você fez alguma coisa que não faria?

Orlando Villas Bôas: Não, acho que não, porque o que... pouco antes, quarenta anos atrás, o índio... a impressão que a sociedade brasileira tinha do índio é que era um sujeito que andava pela mata, tirando, destruindo, fazendo miséria. O índio como povo, como sociedade organizada, foi conhecido mais tarde. O próprio... essas palavras são do próprio Marechal Rondom. Foi ele que nos disse, porque aquele índio, que o próprio Marechal Rondom encontrou nas linhas telegráficas, nos murões, com aquelas missões, missões salesianas, todas essas coisas, tudo bem. O índio de cultura pura, o índio na força da sua vivência, é coisa de uns quarenta anos para cá, trinta, trinta e poucos anos para cá. Então, a sociedade brasileira recebeu aqui uma coisa muito, magnificamente bem, magnificamente bem. E nós precisamos fazer com que essa impressão não se dilua, não desapareça, porque o que vem mantendo esse respeito que se está tendo pelo o índio é exatamente isso.

Antônio Carlos Ferreira: Mas, Orlando, eu ainda queria voltar à parte inicial da minha pergunta, que é exatamente que tipo de reconhecimento que o senhor recebeu do governo, da sociedade? Por exemplo, só para exemplificar, porque aqui no Brasil, às vezes, os ilustres brasileiros são, às vezes, mais reconhecidos fora do que aqui dentro, né? E para citar um exemplo daqui dos últimos dias é a história, por exemplo, do filme. Nós sabemos que a BBC [emissora de televisão inglesa] está querendo fazer um filme sobre o Brasil Central, centrada na vida dos irmão Villas Bôas. Inclusive, o interessante dessa história toda é que o papel-título, o papel principal do filme, que seria de Orlando Villas Bôas, seria feito por Marlon Brando [(1924-2004), prestigiado ator estadunidense que, na sua juventude, foi símbolo sexual em todo o mundo], e Anthony Quinn [Antonio Rudolfo Oaxaca Quinn (1917-2001), ator nascido no México e naturalizado estadunidense] faria o papel de Cláudio, do seu irmão Cláudio. Que história é essa, e se isso realmente representa, além disso, o reconhecimento externo e não o reconhecimento interno do país?

Orlando Villas Bôas: Nós tivemos uma compensação muito grande. Quando chega um determinado tempo, em que nós começamos a achar  que deveríamos ser substituídos por gente mais moça, porque precisava ser andejo dentro de uma área indígena, nós pedimos aposentadoria, nossa aposentadoria veio e prevalece até hoje: seis salários mínimos.

Antônio Carlos Ferreira: Seis salários mínimos.

Orlando Villas Bôas: Seis salários mínimos. Eu ganho do governo 12 mil cruzeiros por mês. Pois bem, o governador Paulo Egídio [governador do estado de São Paulo de 1975 a 1979, empossado pelo regime militar] achou que aquilo era um absurdo e resolveu me dar uma pensão pelo estado. Eu fiquei contente com isso, e deu uma pensão. Essa pensão chama-se CB14. A CB14... duas vezes CB14. Então veio a CB14, no começo pouquinho, depois foi melhorando, melhorando, aí entra o governo Paulo, do Marin [José Maria Marin (1932-), vice-governador que assumiu o governo de São Paulo quando o então governador Paulo Maluf renunciou para candidatar-se a deputado federal, em 1982], “puf”, ela acabou, a CB14 caiu. Aí entrou o governo do Maluf [Paulo Salim Maluf (1931-) foi deputado federal por São Paulo de 1983 a 1987], “puf”, acabou CB14! Agora entrou o Quércia [Orestes Quércia (1938-) governou São Paulo de 1987 a 1991] e eu estou com um salário mínimo.

Antônio Carlos Ferreira: Agora, o senhor esteve com o governador Quércia, reclamando disso, esteve ou não?

Orlando Villas Bôas: Não, não estive não. Ameacei. Eu pedi uma audiência, mas ele não deu. Ele não deu audiência.

[...]: Arruma uns índios e leva junto lá. [risos]

Orlando Villas Bôas: Hã!?

Armando Figueiredo: De todo esse tempo no sertão, qual é a maior dificuldade para viver dentro do mato, Orlando?

Orlando Villas Bôas: Saúde. A única coisa que o sertão exige é saúde. É saúde, porque qualquer um tem um ponto fraco. Olha, de nós três, Leonardo, Cláudio e eu, o Leonardo é o mais forte. Leonardo é exuberante, extrovertido, briguento, mas tinha uma lesãozinha, um pequeno reumatismo, quando ele viu “puf”, aflorou no coração, lá se foi o Leonardo, com toda a sua exuberância. Morreu o Leonardo. O Cláudio, agora, curtindo esses seis salários mínimos e a pensão de um salário mínimo, está com uma blastomicose de pulmão, adquirida na mata, que estourou agora depois de dez anos, que... cuja origem é exatamente desses cavaleiros que andam pela mata tirando esse matinho e pondo na boca [faz o gesto de pegar e mascar]. Pegou uma blastomicose, está irreversível, [ele] está curtindo o salário com todo o rigor, com um tratamento em cima, com assistência grande, os médicos da Paulista, o doutor Lacaz do Hospital das Clínicas... agora, ele está sobrevivendo.

Armando Figueiredo: E a questão da solidão, no meio do mato, como é isso?

Orlando Villas Bôas: A solidão... é essa coisa que nós chamamos de melancolia do sertão, amoque, que fosse uma coisa meio poética, isso é uma verdade, isso é uma realidade. Nós tivemos a sorte que a nossa experiência, quer dizer, a nossa ambientação vai sendo feita gradativamente. De maneira que quando nós chegamos ao fim eu conseguia ver a cara do Cláudio durante o dia inteirinho sem precisar falar com ele. Agora, pessoas que nós conseguimos levar daqui de avião, para dentro [enfatiza] do Xingu, porque [era] necessitada a presença do sujeito, muitas vezes como auxiliar que a gente estava querendo criar, aquilo não resistia...

Antônio Carlos Ferreira: Orlando, eu queria agora fazer mais uma pergunta, um pouco política, e eu gostaria de também que depois o Terena repondesse a essa pergunta. O que o senhor acha do índio político, o índio que se candidata, vai ao Congresso? Por exemplo, eu sei que o senhor conheceu o Juruna [Mário Juruna] quando o Juruna era um selvagem sem nenhuma civilização.

Orlando Villas Bôas: Eu acho... isso foi uma pergunta formidável. Eu acho que isso é uma conquista formidável. Eu acho que... hoje está muito na moda falar em espaço, né? É um espaço conquistado com uma coisa fantástica. Eu só acho, isso eu digo francamente, eu só acho que foi uma pena [enfatiza] nós perdemos esse espaço com o Juruna.

[...]: Por quê?

Orlando Villas Bôas: Nós devíamos ter lá um Terena, nós deveríamos ter lá esse outro... esse outro Krenak que anda por aí, então... Mas não fez nada! Não é que ele é mau, não. É um índio autêntico, uma beleza de sujeito, tudo isso, mas não estava preparado para essa função. Não estava preparado. Ele não tinha escolaridade... Só pelo fato de ser índio? Precisava ser um índio com escolaridade, para chegar lá, realmente gritar a favor do índio. Mas não conseguiu fazer nada disso.

Antônio Carlos Ferreira: Terena, qual é a sua opinião? Acho que você inclusive tentou se candidatar, mas não conseguiu. Como é que foi essa história?

Orlando Villas Bôas: Mas foi culpa dele, porque se ele se candidatasse por São Paulo ele iria, mas não veio.

Armando Figueiredo: Chegou a se candidatar e não se elegeu, é isso?

[...]: Você se candidatou por que estado?

Mariano Marcos Terena: Por Brasília. E realmente não é possível, porque o nível de competição no meio político... você tem que ter dinheiro para ganhar. Infelizmente, as pessoas mais conscientes a respeito da política partidária, daquilo que se vai possivelmente desempenhar dentro do Congresso, são poucas pessoas que têm essa capacitação, né? Então a experiência que a gente teve... nós tínhamos oito candidatos em todo o Brasil e nenhum foi eleito, inclusive o próprio Juruna também não conseguiu.

Antônio Carlos Ferreira: Quem teve o maior número de votos?

Mariano Marcos Terena: Fui eu.

Antônio Carlos Ferreira: Quantos votos?

Mariano Marcos Terena: Cinco mil votos, em Brasília.

[...]: Precisava de...?

Mariano Marcos Terena: Precisava...

[...]: [Interrompendo] Quem se elegeu tinha quantos?

Mariano Marcos Terena: Como?

Antônio Carlos Ferreira: [Qual era] O mínimo [de votos] que precisava [para ser eleito]?

Mariano Marcos Terena: Dependia do partido, né? Eu saí pelo PDT [Partido Democrático Trabalhista], que foi o único partido que me acolheu sem aqueles requisitos partidários da época. E lá em Brasília eu precisava de pelo menos de 25 mil votos. Então... mas eu acho que cinco mil votos ninguém tirava de mim ali, porque foram as pessoas, como eu disse, que tinham noção da questão indígena no Brasil. Não da minha pessoa, mas da necessidade que nós tínhamos de ter representantes porque, por exemplo, a Constituinte, eu acredito que ela está incompleta, porque ela tem negro, tem mulher, tem o branco - né? -, mas não tem o primeiro povo do nosso país, que são os índios.

Antônio Carlos Ferreira: Agora, eu gostaria que o Orlando comentasse um pouco isso, porque você disse agora, respondendo a essa pergunta, que é importante, que seria uma conquista...

[...] : Seria, claro.

Antônio Carlos Ferreira: ... nós temos índios... mas ao mesmo tempo, eu já li algumas coisas suas dizendo que o índio não tem muita liderança também. Ele mesmo não é esse o...

Orlando Villas Bôas: Liderança, no sentido que nós achamos aqui. Isso é da questão da organização da família do índio. A criatura é uma identidade dentro da família, não tem nada que ver um com o outro, nada que ver um com o outro. Nos índios que já estão com uma experiência civilizada, por exemplo, no caso dos índios Terena, que estão há cinqüenta anos em contato com a sociedade brasileira, a função do chefe da aldeia já é diferente da função do chefe de aldeia, de uma aldeia de cultura pura. Lá o chefe da aldeia de cultura pura, ele não é um chefe social da comunidade, um chefe cultural da comunidade, ele é um conselheiro da comunidade, ele não tem autoridade sobre ninguém. Isso são dados muito bonitos, que a gente nota nos índios de cultura própria, da independência da criatura dentro da comunidade. O ponto mais alto é a criança. A distribuição do trabalho e a maneira de ver o mundo, do homem e da mulher, completamente, não tem nada que ver um com o outro, de tal forma... você que ver uma coisa? Entrando numa maloca [habitação índígena que aloja diversas famílias], tem um arco no chão. Você chega e pergunta para a mulher "de quem é esse arco?" e ela diz "[fala em língua indígena]", quer dizer, "É do meu marido". "Mas, por que você o deixou ficar no chão?" [ao que a índia responde:] "Não sei se ele gosta.". "Por que você não levanta o arco?". "Não sei se ele quer que eu levante, quem sabe se ele gosta que o arco fique no chão?". Não tem perigo, você passa, encontra uma peneira e pergunta para uma índia "O que é isso aqui?". "É da minha mulher". "Por que você não levanta a peneira?". "Não sei se ela quer que eu levante, quem sabe ela quer que fique assim?"

Antônio Carlos Ferreira: Nós já falamos aqui....

Orlando Villas Bôas: [interrompendo] Então, essa coisa, essa independência que diferencia muito nos índios que, na medida em que vão vivendo em contato com a civilização, vão pegando certos traços nossos também.

Antôni o Carlos Ferreira: Nós já falamos aqui do que os índios trouxeram, do ponto de vista medicinal e tudo. Do ponto de vista psicológico, espiritual, qual seria a melhor coisa que nós poderíamos herdar dos índios? Melhor característica.

Orlando Villas Bôas: Na faixa brasileira, aquela que herdou mais, ultimamente, com os índios é nossa faixa nordestina. Alguns traços, por exemplo, da coisa do índio, você encontra terrivelmente no nordestino. Primeiro, por exemplo, indio Jê, [fala em língua indígena], [que quer dizer] alma, alma dele. Se você pegar uma lanterna e acender na cara de um índio [faz o gesto correspondente], de um índio Jê ele fica totalmente ofendido, [porque] você está roubando a alma dele. Se você acender uma lanterna no rosto do nordestino [repete o gesto], daquele nordestino do interior do Nordeste, você está roubando a alma dele também. A mesma coisa que diz o índio. O homem em uma aldeia indígena, na distribuição de trabalho, o homem não varre a casa, não carrega a água. O nordestino, quando nós fizemos a nossa expedição, que nós tínhamos dezoito nordestinos conosco - mas o nordestino do interior [enfatiza] do Nordeste -, uma gente fantástica... O mais pacífico deles tinha [cometido] oito mortes, um tinha 15, 16, 17, o velho Piauí tinha 28, mas era uma gente fabulosa [enfatiza] para a gente trabalhar.  Pois bem, a grande luta nossa, no momento em que nós partimos com a expedição para a mata, foi arranjar um cozinheiro. Por quê? Porque cozinheiro é trabalho de mulher. Aí, com muito custo, nós convencemos um cozinheiro. Ele disse: "Tá bom, eu vou fazer cozinha, mas só com uma coisa." "O que é?". "[Tem que ser] Na beira do rio, para não carregar água.". E foi fazer cozinha na beira d'água, porque aí não precisava carregar água. Isso é um traço tipicamente indígena. Outra coisa, por exemplo, que é tipicamente indígena: o índio não invenciona uma história, ele não conta piada, ele não tem nada de engraçado, ele tem uma presença de espírito formidável que o nordestino herdou dele. Você diz assim, bom, mas então o nordestino pega uma viola e canta durante 72 horas sem parar. Mas ele não é capaz de fazer uma piada. Eu nunca vi uma piada nascida no Nordeste. [risos] Piada é carioca. Mas em compensação, o carioca não faz um verso. Só sabe contar piada.

Armando Figueiredo: Você disse há pouco, Orlando, que a criança é a ponto central da aldeia.

Orlando Villas Bôas: O ponto central de aldeia.

Armando Figueiredo: Explica melhor isso, qual é o valor da criança na sociedade indígena?

Orlando Villas Bôas: O valor da criança é essa coisa que nós chamamos de pedagogia moderna, de que a liberdade sem medo é o processo mais natural e melhor, isso é milenar entre o índio. A criança é dona da comunidade, é o respeitado. A criança e o velho. Houve até quem dissesse que os índios de algumas aldeias costumam sacrificar o velho, ou seja, à medida que o índio vai envelhecendo tem o perigo de virar onça, então mata o velho. Coisa nenhuma! O velho é uma pessoa adorada na comunidade.

Rubens Belfort de Mattos Filho: Orlando, e as crianças no Xingu, estão muito bem, né? Pouca gente sabe que você ajudou a moldar e a manter, mesmo depois da sua aposentadoria, um programa exemplar de medicina e saúde entre índios, programa esse que é válido e é exemplar para o mundo inteiro. Você manteve isso, você interessou várias gerações de médicos no Brasil para os problemas do índio, para a nossa realidade interna. Apesar disso, nos últimos anos, também esse aspecto do Parque Nacional do Xingu vem sendo invadido. Por que tantas pessoas se interessam em tentar mudar o que existe de bom no Xingu e não tentam reproduzir o que foi feito lá, ou fazer diferente e melhor, em outras áreas do país?

Orlando Villas Bôas: Nesse particular, eu tinha até acabado de falar aqui, não sei quem falou, é gente que se promove da força do índio. Nós tínhamos um convênio, por exemplo, com a Escola Paulista de Medicina. A escola passou lá e nós tínhamos índios doentes. Ela veio, “pá!”, e fizemos um convênio. E esse convênio era assinado pelo diretor do Parque, que era eu na época, e o diretor da medicina preventiva aqui. E foi dando resultado, foi dando resultado. Hoje é assinado pelo ministro e pelo diretor da escola. O negócio melhorou. Mas foi desenvolvido um trabalho de assistência aos nossos índios, principalmente no campo da medicina preventiva, ideal. Foi formidável, como eu já disse. Lá nesse aspecto o índio do Xungu está mais bem atendido do que qualquer [morador de um] bairro daqui da periferia da grande São Paulo. Então era uma coisa extraordinária. Agora, de repente, surge, depois de uma experiência de vinte anos de trabalho da Escola Paulista, com os portões e os leitos do hospital São Paulo abertos aos índios, com intervenções cirúrgicas [do tipo] mais difícil possível - são feitas lá. O índio... a Escola Paulista... o estado de São Paulo chegou a dar 1800 dias-leito por ano para o Xingu. Agora surge um grupo de médicos franceses, com o bolso cheio de dinheiro, prometendo para o índio mundos e fundos. Chega lá e diz "Olha, eu vou construir aqui um hospital". "Mas por que hospital no Xingu?", pergunta o médico tarimbado da Escola Paulista. "Por que um hospital aqui?". Não precisa de um hospital. A dinâmica de um hospital é uma coisa complicadíssima. Então ficam eles prometendo: “Não, você vai ser coordenador não sei de quê. Vai ganhar tanto. Você vai ganhar tanto. [...] ". Por que fazer uma coisa dessas? E outros grupos também de médicos nossos aqui, que sabem que não podem, absolutamente, e nem têm condição de desenvolver a assistência que até hoje vem sendo desenvolvida. É uma pena uma coisa dessas. E a Funai fica naquela balança. Não sabe se continua com a coisa quase que tradicional da [Escola] Paulista, viu? "Um surto no Xingu!" - sai daqui cinco ou seis médicos, largam tudo consultório, largam tudo e vai todo mundo para o Xingu.

Murilo de Carvalho: Orlando, você falou na Funai. E a Funai, presta?

Orlando Villas Bôas: A Funai, não vou dizer presta ou não presta. Não é questão de Funai. A Funai tem umas dificuldades incríveis, não é? Agora não estou sabendo mais porque não estou... né? Sempre teve uma paupérrima... como é? Dos seus... como é?

[...]: Subvenção.

Orlando Villas Bôas: [Falta de] Recursos, subvenção, recursos. Varia muito de presidente para presidente. Cada presidente que chega inova uma determinada coisa, não é? Agora, por exemplo, pelos decretos que nós estamos vendo aí, estão inventando aí colônia indígena, recreio indígena, área indígena, uma porção de coisas. Diferenciação de índios, de aculturação de índios, uma porção de coisas. Eu não acredito que seja mal intencionado. E eu acho que é um desconhecimento total e uma falta de uma política indigenista, que nós não temos.

Murilo de Carvalho: Na verdade, então, a Funai é um órgão, um organismo que acaba sendo um instrumento, dentro da política nacional, como um apoio a qualquer política que [se] vai fazer.

Orlando Villas Bôas: Mas não pode deixar de existir, porque o índio é tutelado do Estado, e para exercer essa tutela existe a Funai.

Murilo de Carvalho: Mas não existem profissionais que possam dirigir a Funai, independente do tipo de governo que esteve no poder?

Orlando Villas Bôas: Isso aí que você viu.

[...]: Seu Orlando.

Orlando Villas Bôas: Caminhar nesse sentido.

Rubens Belfort de Mattos Filho: A Funai ainda tem muito militar aposentado trabalhando lá?

Orlando Villas Bôas: Não.

Rubens Belfort de Mattos Filho: Tinha uma época que era regra, né?

Orlando Villas Bôas: É, aí tinha demais.

Fernando Granato: Orlando, o que você acha da tutela do governo sobre os índios? Você não acha que ela beneficia mais os tuteladores do que os tutelados?

Orlando Villas Bôas: Em certo ponto, em questão da tutela, nesta época, por exemplo, de invasão de terra, em algumas áreas eleaprevaleceu, porque o índio não é dono da terra, ele tem usufruto da terra, não é? Agora, o que precisa é institucionalizar a coisa melhor. Eu havia proposto até que toda a questão de terra tivesse um fórum especial. E que a terra, como é uma terra da União, ela fosse defendida pela Procuradoria Geral da República e não por uma consultoria jurídica do próprio órgão, que é uma função... sujeito... que você pega uma coisa: a questão da terra. Você pega um escritório de advocacia aqui, esses grandes [enfatiza] advogados: Leonardo não sei de quê, Seu Buzait, o Seu Reale, qualquer... esses grandes escritórios. Vão defender a terra do seu constituinte [contratante do advogado] e a Funai vai defender a terra do índio - põe dois, três rapazinhos lá, [que] podem ser muito bons, mas estão longe de entrar num páreo com essa gente. Então o que acontece? [exaltado] Vai para o Supremo Tribunal e toma na cabeça! Agora, é como eu disse, a Funai pagou agora, se eu não me engano, parece que 22 milhões de cruzados [enfatiza].

Mariano Marcos Terena: Pois é, Seu Orlando, baseado nessa análise que o senhor fez, eu quero fazer uma pergunta como índio. Pela experiência que o senhor teve, por exemplo, pela realidade que nós estamos vivendo agora, em 1987, a gente corre para o executivo essa análise que senhor fez via Funai. Inclusive, não sei se o senhor sabe, a Funai mesmo está promovendo contratos com empresas de madeiras e mineração. Então ela mesma está incentivando isso daí. Então, isso a gente vai correr para o Congresso Nacional, que está fazendo a Carta Magna [Constituição]. Também a gente não tem espaço lá dentro. Então, para onde que nós vamos correr? Porque o senhor tem uma experiência vivida algum tempo atrás, de sertanista. Então eu queria perguntar para o senhor como que é que o senhor vê o futuro do índio, por exemplo. Com toda essa papelada, esses critérios que estão sendo adotados em cima da gente, para onde que vamos correr? Porque, será que não é hora, por exemplo, de o índio se especializar no branco?

Orlando Villas Bôas: É claro que sim, por isso que eu apontei. Claro que tem que ser essa, não tem outra saída. Mas...

[...]: O que quer dizer isso, se especializar no branco?

Mariano Marcos Terena: Não, porque tem muita gente que é especialista no índio, né?

[Risos]

Ricardo de Carvalho: Como é que seria isso? O índio se especializar no branco?

Orlando Villas Bôas: Esse é um problema muito difícil, nas condições de hoje, [de] ser solucionado, viu? Muito difícil. Precisaria que a coisa viesse de cima para baixo, não é?

Rubens Belfort de Mattos Filho: Você ainda acha que o lugar da Funai não é no Ministério do Interior?

Orlando Villas Bôas: Eu acho que o lugar da Funai seria no gabinete do presidente da República.

Rubens Belfort de Mattos Filho: Você continua defendendo essa tese?

Orlando Villas Bôas: É claro!

Antônio Carlos Ferreira: Por quê? Isso daria mais força?

Orlando Villas Bôas: Porque o Ministério do Interior, ele é comprometido com uma série de interesses outros, não é? E o gabinete, supõe-se sempre que o presidente tem que ser mais isento de todas essas pressões. Seria dentro, junto com a Presidência da República.

Rubens Belfort de Mattos Filho: Essa tese é antiga, né, Orlando?

Orlando Villas Bôas: É antiga.

Rubens Belfort de Mattos Filho: Você defende isso desde 1964.

Orlando Villas Bôas: Essa tese aí, essa tese de que a terra do índio deve ser defendida pela Procuradoria Geral da República, não é? É uma coisa lógica que deveria ser... Não... entretanto não....

Murilo de Carvalho: E a idéia de que se crie um Ministério do Índio, no qual o ministro sempre fosse um índio, como... É ilusão? Você acha que é possível que, na medida em que a União das Nações Indígenas, por exemplo, se organizasse e pudesse ter...?

Orlando Villas Bôas: A União das Nações Índígenas. Eu acho que essa é uma sociedade que foi formada, um esforço incrível que faz essa gente para conseguir ser ouvida, mas há aqueles que dizem assim "Mas como é que nós podemos conciliar as nações indígenas, que é o primeiro passo para a auto-determinação, mantendo a tutela?".

Ricardo de Carvalho: Orlando, Orlando.

[...]: Aliás essa questão...

Orlando Villas Bôas: Como é que você pode se auto-determinar sendo tutelado?

Ricardo de Carvalho: Orlando, responde à pergunta do Terena. Para onde eles vão correr?

Orlando Villas Bôas: Hã?

Ricardo de Carvalho: O Terena perguntou "Para onde é que nós, índios,..."

Orlando Villas Bôas: [interrompendo] Vão correr para o mato. [risos] Vão pro mato e arranjar uma borduna, meu filho. Não tem remédio, não. [risos].

Antônio Carlos Ferreira: Você acha que borduna lá na Constituinte vai funcionar? O que os índios podem fazer agora na Constituinte, que está na sua fase final? Borduna, por exemplo, lá funciona?

Orlando Villas Bôas: O que eles fizeram, o esforço que essa gente fez, viu, ia indo muito bem, diz que agora degringolou tudo. A gente não acompanha aqui da cidade, a gente não... distante de Brasília, a gente não acompanha as coisas que estão acontecendo lá dentro, não é? Mas o que ele acaba de dizer, que no substitutivo agora rodou tudo, né?

Mariano Marcos Terena: Rodou tudo.

Orlando Villas Bôas: E se agarrar com o Centrão?

Mariano Marcos Terena: Com o Centrão?

Orlando Villas Bôas: É.

[...]: O Centrão é a maioria agora, né?

Orlando Villas Bôas: É, o Centrão é maioria. Só que está no Centrão... existe um cidadão, que é o maior anti-índio do mundo...

[...]: Anti-índio?

Orlando Villas Bôas: Ele se declarou uma época dizendo assim que...

[...]: Quem é?

Orlando Villas Bôas: Não digo o nome, não.

[Risos]

[...]: Diga a frase que a gente diz o nome.

Orlando Villas Bôas: "Índio é na bala."

Ricardo de Carvalho: Índio é o quê?

Orlando Villas Bôas: "Índio é na bala." É o dono do Centrão. Não dá, não é?

Ricardo de Carvalho: Pode fazer um sorteio para tentar descobrir o nome, mas tudo bem.

Mariano Marcos Terena: Porque nós estamos vendo que do jeito que está sendo conduzida..., como o senhor disse, não existe uma política indigenista no Brasil nesse governo da Nova República [período posterior ao fim do regime militar]. Não existe. Se o senhor quiser um plano de saúde, não existe;  plano educacional, não existe; plano de desenvolvimento comunitário, não existe; muito menos plano de demarcação das terras indígenas. Então, eu me lembrei daquilo que o senhor disse, da tribo que começou a evitar filhos. Então nós estamos chegando a um impasse de dizer assim ao Raoni. “Raoni, nós temos que juntar forças aí", para a gente... ou a gente [vai] morrer junto, culturalmente, fisicamente... Ou a gente tentar sobreviver junto, que dizer, juntando as nações indígenas. O que o senhor acha que seria bom, por exemplo, assim, a gente pegar a nossa roupa, nosso documento que não tem valor nenhum dentro da aldeia, e jogar fora isso daí?

Orlando Villas Bôas: Não, você não pode abandonar o espaço conquistado.

Mariano Marcos Terena: Pois é, mas se a sociedade brasileira....

Orlando Villas Bôas: Vocês têm que se preocupar com o espaço. Têm que continuar lutando.

Mariano Marcos Terena: Pois é, mas se a sociedade brasileira...

Orlando Villas Bôas: Mas tem que continuar lutando, mas tem que continuar lutando.

Mariano marcos Terena: Se a sociedade de 130 milhões de pessoas não assimila isso, como é que faria?

Orlando Villas Bôas: Mas se você fizer isso, puser fora seus documentos, suas roupas e voltar para aldeia, aí vocês estão mais rapidamente destruídos, porque aí é um espaço que vocês conquistaram, e que esse espaço deve ser... deve continuar lutando. Mas deve haver alguma coisa... passada esta fase negra que nós estamos passando, difícil, onde se tem muita liberdade mas não se tem autoridade, e de repente [talvez] possa surgir alguma coisa. Nós estamos num país sem ordem. Nós estamos num país sem ordem, com muita liberdade, mas sem ordem. Quem sabe se isto aqui pode entrar no eixo amanhã ou depois? Porque desse jeito que está, não vai continuar mais.

Mariano Marcos Terena: Porque o senhor falou que a Funai poderia estar ligada à Presidência da República mas, não sei se o senhor sabe, todas as decisões partem do Conselho de Segurança Nacional e [esse Conselho] vê o índio como um risco à soberania nacional. Então, que soberania é essa?

Orlando Villas Bôas: Isso é um absurdo, um mau gosto, uma coisa incrível uma coisa dessa.

Mariano Marcos Terena: A gente fica com saudades do Rondon, né?

Orlando Villas Bôas: Pois é, veja você. Está desaparecendo o Rondon, desapareceu...

Antônio Carlos Ferreira: [interrompendo] Agora, Orlando, só um minutinho. A Sylvia já está umas duas vezes... [sobreposição de vozes] desculpe, a Sylvia já está perguntando...

Sylvia Novaes: Isso que você está dizendo aí, que é um absurdo, que os índios são uma ameaça à soberania nacional, eu também concordo que é um absurdo, mas isso faz parte da campanha do Estadão [jornal O Estado de S. Paulo] que você tinha acabado de dizer que era muito oportuna. Primeiro lugar, esse é o grande alvo da campanha do [jornal OEstado de S. Paulo. É dizer que os índios são ameaça à soberania nacional, que por trás do time...

Orlando Villas Bôas: [interrompendo] Não, não disseram não que o índio é uma ameaça, não. O Estadão não falou isso.

Sylvia Novaes: A primeira grande manchete...

Orlando Villas Bôas: [interrompendo] Não, a primeira grande manchete foi dizer que....

Sylvia Novaes: [continuando]... foi "Conspiração nacional".

Orlando Villas Bôas: Mas não é o índio que está conspirando. Estão conspirando nas costas do índio.

Sylvia Novaes: E usando...

Orlando Villas Bôas: Estão usando o índio pra isso...

Sylvia Novaes: ... usando os índios como um argumento.

Orlando Villas Bôas: O índio não está conspirando coisa nenhuma. Eles estão desarvorados, isso que é a verdade.

Sylvia Novaes: Mas, por outro lado, acho que uma questão que está ligada à essa é que você parece oscilar entre, por um lado, aquilo que você chama de índio de cultura pura - que eu não sei muito bem que índios seriam esses...

Orlando Villas Bôas: São índios de contato muito pouco com a civilização, que vivem na força da cultura deles.

Sylvia Novaes: ... e que você valoriza muito.

Orlando Villas Bôas: Valorizo, claro.

Sylvia Novaes: E, por outro lado, você atribui também um valor enorme aos índios que têm seus documentos, que têm suas roupas, que são escolarizados...

Orlando Villas Bôas: Claro, claro...

Sylvia Novaes: ... que conquistaram seu espaço.

Orlando Villas Bôas: Porque esses chegaram ao seu tempo. Esse índio que eu estou falando é o índio que teve contato ontem. O índio desse cavalheiro que está aqui [dirige-se a Mariano Marcos Terena], desse moço que está aqui [mostra o Terena com a mão],  dá-se em cem anos de contato com a civilização. Esse já tem uma outra [enfatiza] perspectiva.

Sylvia Novaes: Mas eu acho que a...

Orlando Villas Bôas: [interrompendo] E a beleza desse índio aqui é que eles continuam ainda com a mesma unidade tribal, mas já vendo o mundo de uma maneira diferente de um índio como aqueles xinguanos que nem sabem que nós existimos, que nem sabem que nós existimos.

Sylvia Novaes: Então, mas por outro lado você tem índios, como os Bororo, por exemplo, que você também conhece, com trezentos anos de contato com a sociedade regional, e que mantêm todas aquelas características que você citou, do chamado índio puro.

Orlando Villas Bôas: Pois é, com todas essas características, mas eram cinco mil e agora são cinqüenta.

Sylvia Novaes: Não, não são cinqüenta, são mil. Enfim...

Orlando Villas Bôas: E quantos índios existiam no [...], quando o padre [...] fez a atração?

Sylvia Novaes: Quantos índios havia quando eles fizeram a atração? Eu não sei, eles estão sempre andando para cima e para baixo.

Orlando Villas Bôas: Segundo a informação dele eram são doze mil índios, depois eles nos contaram isso em português claro, está registrado no depoimento do doutor Noel Nutels [(1913-1973), médico ucraniano e judeu que se naturalizou brasileiro. Foi médico da primeira expedição Roncador-Xingu, em 1943. Nutels dirigiu o Serviço de Proteção ao Índio], dizendo assim "Veio um irmãozinho tuberculosozinho e morreram oitocentos "Bororinhos"".

[Risos]

Rubens Belfort de Mattos Filho: Orlando, índio dá ibope. Índio dá ibope aqui, dá ibope no Rio, dá ibope na televisão. Na Europa, então, nem se fala, né? Mas existe preconceito contra o índio no interior do país? Existe preconceito contra o índio nos territórios?

Orlando Villas Bôas: Existe no interior, nas áreas de litígio...

Rubens Belfort de Mattos Filho: [interrompendo] Você acha que esse preconceito...

Orlando Villas Bôas: [continuando] ... nas áreas de litígio. Para uma criatura que culturalmente está muito abaixo do índio, nem tem termo de comparação.

Rubens Belfort de Mattos Filho: Você acha que esse preconceito regional local influi também em Brasília?

Orlando Villas Bôas: Não, não influi não. Pode influir assim, um...

Rubens Balfort de Mattos Filho: Quer dizer que esse sujeito que fala que "Índio é na bala", esse índio...

Orlando Villas Bôas: Um outro deputado, por exemplo, do Acre... e que tem um eleitorado que é anti-índio.

Rubens Belfort de Mattos Filho: Mas isso é excepcional.

Armando Figueiredo: Por que o índio se elege no Rio de Janeiro e não se elege em Mato Grosso, por exemplo? É o caso do Juruna, que nasceu e viveu lá nasceu lá [mas tornou-se deputado pelo Rio de Janeiro].

Orlando Villas Bôas: Porque lá tem discriminação contra ele, lá tem discriminação.

Ricardo de Carvalho: Orlando, conta essa história da tribo que não queria mais ter filhos. O que é isso, hein?

Orlando Villas Bôas: O [índio] Txikão. Quando nós fizemos a atração do Txikão, eles estavam em luta com os índios Meinaku, com os índios Yawalapiti, com os índios [...]. Mas eles perceberam que, contato conosco, que seria a salvação deles, porque os Txikão acabariam sendo destroçados. Então nós trouxemos os Txikão para dentro da nossa aldeia, no nosso posto. Pusemos morando junto conosco, há duzentos metros de distância. Fizeram a casa tipicamente deles, a vida deles, só que debaixo de nosso olhos para evitar o ataque dos outros índios. Mas eles não acreditaram no que nós estávamos fazendo, eles também ficaram na [...]. "O Orlando e o Cláudio estão jogando do lado deles ou do nosso lado? Será que nos trouxeram aqui para sermos massacrados?" Então, para evitar que isso aconteça, houve um determinação, uma conversa entre eles, e as mulheres deixaram de ter crianças durante seis anos. Quando eles viram que não tinha mais perigo, na hora de sair do Xingu eu peguei e disse “agora vocês mudem para Yawalapiti”. E eles mudaram para Yawalapiti. Hoje está se proliferando que é uma maravilha.

Ricardo de Carvalho: Que outro tipo de defesa que os índios têm contra essas ameaças? Que tipos de defesa os índios utilizam?... Quer dizer, não ter filhos porque poderiam ser massacrados, então não adiantava ter.

Orlando Villas Bôas: Não é que... quando ele diz assim "Ter filho porque poderia ser massacrado" não é por medo que matasse o filho. [É por] Não poder fugir.

Ricardo de Carvalho: Ah, não podiam fugir. E eles utilizam outro tipo de defesa contra o branco, esses tipos de defesa, vamos chamar, culturais, assim?

Orlando Villas Bôas: Não, mas aí já não é contra o branco.

Ricardo de Carvalho: É, eu sei, mas contra os brancos, as nações, as várias tribos utilizam defesas contra os brancos, desse tipo, assim?

Orlando Villas Bôas: Não, não, não... porque esses índios que estavam [...] geralmente eles se internavam na mata, né? Faziam aldeias bem no interior. E no caso do Txikão não, no caso do Txikçao não tinha remédio mais, porque eles estavam fora da área do Parque, bem na periferia do Parque. E a área dele estava sendo praticamente invadida, que era o rio Jatobá.

Dagomir Marquezi: Eu queria abrir um intervalo na questão indígena aí. Você que é especialista em contatos, eu queria que você falasse um pouco dos contatos seus, dos seus irmãos, com discos voadores.

Orlando Villas Boas: Bom, eu nunca vi. Nos índios xinguanos, isso é muito corriqueiro entre eles. Eles falam, e não é que eles dizem "disco voador". Os índios Kaiabi, por exemplo... que veio falar comigo, ele contava o fato como se fosse um troço corriqueiro. Ele diz: "Eu saí da minha casa, assim, na altura desta árvore parou um objeto" - ele mostrou uma garrafa e disse: “É igual a essa garrafa [Orlando faz gesto com as mãos mostrando o formato da garrafa], saía luz de lá de dentro, eram uns homens tudo muito barbudo, mas só que o fio o fio de barba era muito groso, tinha um... ". Eu falei "quantos?". Pelo que ele falou [eram] mais ou menos uns oito, e que estavam assim há uns 15 metros acima da... da... e que o cachorro e a mulher gritavam muito. Gritavam. Então esse objeto saiu e foi para cima do rancho, e continuou rancho claro, e a mulher continuou ficando desesperada, então o disco, aquela coisa, foi embora. A reclamação dele: "Faça o favor, fala para eles que eu não vou na casa deles. Por que ele vem na minha casa?"

[Risos]

Orlando Villas Boas: Não é invenção. É história. Porque ele estava indignado com a coisa.

Ricardo de Carvalho: Aconteceu no Xingu, mesmo?

Orlando Villas Bôas: No Xingu. Agora, os outros índios viam. Os índios xinguanos viam. Os Kamaiurá, isso era corriqueiro nas aldeias deles, era corriqueiro nas aldeias deles. Agora, eu não vi.

Ricardo de Carvalho: Quantas línguas indígenas você fala, Orlando? Você fala cada...

Orlando Villas Bôas: Não, eu cheguei a falar mais ou menos, depois fui abandonando, abandonando e não me lembro mais nada, né? Mas dá para entender umas partes, assim, dá.

Antônio Carlos Ferreira: Orlando, eu gostaria que você respondesse uma pergunta da Maureen Bisilliat, que é uma fotógrafa que registrou o rosto aí do índio brasileiro de uma maneira magnífica, que está aqui calada, não teve nenhuma pergunta, mas nós não podemos passar em branco. Maureen, por favor.

Maureen Bisilliat: Orlando, você falou muito da criança, a criança indígena, e você também muitas vezes tem mencionado a criança brasileira e mundial em geral. Eu sei que você está escrevendo livros para crianças sobre tudo, a importância que tem isso, para mostrar realmente a realidade do índio, a sua maneira de pensar. Eu queria saber primeiro sobre esses livros e depois se você algum dia vocês pensaram, os irmãos [Villas Bôas], de escrever as lembranças, as recordações, a história toda?

Orlando Villas Boas: Essa questão, Maureen, tem o seguinte: eu sou muito solicitado para fazer palestra em escola - hoje eu não estou fazendo mais porque velhinho assim já não agüento -, mas fazer em grupo escolar, em jardim da infância e nos níveis de outras séries, fiz e faço ainda muita palestra. E vejo que o nosso menino até... adolescente até 15, 16 anos, ele tem uma impressão totalmente diferente do índio. Ele ainda tem mais ou menos aquela [impressão] que eu tinha quando menino, [de] que o índio é um bicho que andava pela mata matando, destruindo, pondo fogo, fazendo o diabo. Então nós resolvemos fazer um livro para esse tipo... até essa faixa de idade. E fizemos o livro. Chama–se Os contos do tamonho, quer dizer, os contos do avô. Então nós falamos desde o contato na aldeia, e vai indo, vai indo, vai indo até chegar na última palavra do livrinho, chama [...] [palavra da língua indígena]. É a noção que o índio tem de uma outra dimensão, quer dizer, a coisa vai... e para fazer com que o adolescente realmente lesse o livro, porque se vier uma página preta ninguém lê, nós produzimos o livro, desde a primeira até a última página, em diálogo.

Dagomir Marquezi: Essa visão deturpada dos índios tem a ver com os filmes de faroeste?

Orlando Villas Bôas: Não, porque quando eu era moleque eu não via filme de faroeste nenhum, coisa nenhuma, morava...

Dagomir Marquezi: Mas os adolescentes...

Orlando Villas Bôas: [...] Aí, esse livrinho. Aí resolvemos fazer... nós começamos a ver que os velhos [indígenas], principalmente os avós, os tamonhos, contam para as crianças as histórias como nós contamos para os nossos filhos. A mesma coisa. A história do reizinho, do rei, do índio com a onça. E nós passamos isso tudo para a historinha [do livro], exatamente como nós ouvimos os índios contar. Mas isso aí, sabe, é uma faixa de mercado muito difícil de atingir, mas foi um primeiro esforço que a gente fez. Agora quanto ao livro grande...

Antônio Carlos Ferreira: O das memórias.

Orlando Villas Bôas: Das memórias. As memórias, nós temos assim, mais ou menos, oitenta centímetros de documentos [mostra uma altura com a mão]. Agora, ainda esses últimos dias, eu li quinhentos rádios, porque nós estamos selecionando aqueles que devem constar desse livro.

Antônio Carlos Ferreira: Rádios como?

Orlando Villas Bôas: Rádios, que a gente fazia.

Antônio Carlos Ferreira: Repassavam. Mensagens.

Orlando Villas Bôas: É, mensagens. E havia uma divergência, eu e os meus dois irmãos. Eu queria que nós três fizéssemos o livro. Os dois queriam que uma outra pessoa fizesse o livro. E estávamos nessa briga, vai e vem, vai e não vai, e guardando a documentação. Aí nós tivemos uma proposta de uma pessoa altamente conceituada, participando de uma organização conceituadíssima também na França - aliás esteve no Brasil há pouco dias -  [... ] é o nome dele, não é?. E ele veio fazer a seguinte proposta: "Olha, você me entrega todas os originais, e nós vamos escrever o livro.".

Antônio Carlos Ferreira: Mas um estrangeiro fazer a....

Orlando Villas Bôas: Não, eles vão pegar todos as originais.

Antônio Carlos Ferreira: Não, não é meio estranho? Que dizer, não digo, nada de preconceito, mas não seria...

Orlando Villas Bôas: Não, não seria não, eu acho que...

Antônio Carlos Ferreira: Acho que á mesma questão do filme.

Maureen Bisilliat: Não seria da cabeça de vocês, não?

Orlando Villas Bôas: Nós íamos dar todas as informações, dar todos os documentos, dar tudo.

Antônio Carlos Ferreira: É que eu fico meio assustado, Orlando, é que o livro tem que ser feito por um francês, o filme tem que ser feito pelos ingleses. Aí eu volto àquela pergunta que você não respondeu: qual é o reconhecimento que vocês têm aqui dentro pelo trabalho que vocês fizeram?

Orlando Villas Bôas: Vocês [se] lembram do nome de alguém aqui que se interessasse em fazer uma coisa dessas? Não interessa.

[...]: O quê? Deve ter mais ou menos...

Ricardo de Carvalho: Aqui tem quatro. Aqui nessa roda, Orlando, com certeza!

Maureen Bisilliat: Mas Orlando, eu acho que a idéia do [...] é justamente, achar uma pessoa aqui que...

Orlando Villas Bôas: [interrompendo] Ah é, a idéia dele é essa...

Maureen Bassilliat: [continuando] ... que estimula, que seja catalisador...

Orlando Villas Bôas: Esse detalhe, essa foi a primeira conversa. Ele disse que ia encontrar na França um escritor que fosse brasileiro e que falasse muito bem o português e o francês, para vir para cá para fazer. Depois disso ele já mandou dizer que estava difícil, que iria procurar aqui no Brasil. Mas estou vendo que aqui também vai ser muito difícil. Então estou continuando a coordenar e aí vamos ver se dentro de uns trinta dias não tivermos uma resposta definitiva nós mesmos vamos fazer.

Antônio Carlos Ferreira: E o filme vai sair mesmo?

Orlando Villas Bôas: O filme, está tudo na proposta. Nada preto no branco.

Antônio Carlos Ferreira: Marlon Brando, não aceitou?

Orlando Villas Bôas: Marlon Brando parece que aceitou. Diz que estava muito gordo e emagreceu um pouco [risos], né? Mas eu já brilhei ao lado dele no pedaço de jornal aí, né [Orlando mostra a palma de uma das mãos e sorri]? [risos] Aliás, eu até fiquei muito contente porque eu estou muito mais bonito do que ele. [risos].

Antônio Carlos Ferreira: O senhor está mais bem conservado do que o Marlon Brando. Ele precisa pegar algumas mordidas de mosquito ali no interior.

Sylvia Novaes: Malária, talvez.

Orlando Villas Bôas: Ah, ele fez umas exigências fantásticas.  O negócio com ele tem umas exigências fantásticas. Parece-me que - não sei se é o povo que falou ou se é ele mesmo que mandou dizer - que precisa de um apartamento no Xingu, encarpetado, [com] um cozinheiro especial e geladeira. [risos] E um reservado também só para ele.

Rubens Belfort de Mattos Filho: Mas esse acho que não foi o primeiro que pediu uma coisa assim no Xingu...

Orlando Villas Bôas: E que as filmagens fora da aldeia têm que ser [de] no máximo oito horas. Porque de oito horas poderia existir alguma exigência que ele não faria.

Antônio Carlos Ferreira: Agora, o senhor acha que ele vai fazer bem papel de Orlando Villas Bôas, ou não?

Orlando Villas Boas: Aquele faz qualquer papel, né? Ele foi melhor do que eu. [risos] Você sabe aquele negócio do Charles Chaplin, né? Fizeram um concurso para ver, para ver o sujeito que mais se parecesse com o Charles Chaplin. Ele achou graça, entrou e tirou o terceiro lugar. Eu não vou competir com Marlon Brando.

Maureen Bisilliat: E aquele francês, que foi lá uns anos atrás, escreveu um livro terrível, não sei se Inferno Verde [Com o mesmo título, há um livro de contos que se passa na Amazônia, datado de 1908, escrito por Alberto Rangel], ficou três dias no Xingu.

Orlando Villas Boas: Lucien Bodard, Lucien Bodard. Aquilo foi terrível. Eu aparecia no livro dele como Orlando Villas Bôas [que] mais parece um contrabandista mexicano. [risos]. [O massacre dos índios foi publicado em 1969. Este parece ser o livro a que se referem o entrevistado e a entrevistadora.]

Armando Figueiredo: O Antônio Callado, no Quarup [narra a história do padre Nando, que deseja criar na Amazônia um novo paraíso. A palavra quarup é o nome dado ao ritual indígena de celebração dos mortos, que inclui uma grande festa de homenagens, com bebida, comida e alegria.] também fala do senhor. Ele fala que a expedição Roncador-Xingu descobriu o centro geodésico do Brasil, e que o centro do Brasil seria um grande formigueiro. É verdade isso?

Orlando Villas Bôas: Verdade.

Armando Figueiredo: Mas que tamanho de formigueiro, maior do que isso aqui?

Antônio Carlos Ferreira: Então a saúva estava acabando com o Brasil mesmo? [risos]

Orlando Villas Bôas: Nós tivemos uma solicitação do marechal Rondon para estabelecer o ponto do centro geográfico do Brasil, porque o Rondon estabeleceu o [centro geográfico] da América do Sul, mas por sorte do Rondon caiu naquela praça de Cuiabá. E o serviço cartográfico do exército nos deu então um levantamento minuciosíssimo, e nós saímos da beira do rio Xingu medindo de dez em dez metros. Andamos dezessete mil e oitocentos metros e saímos no ponto. Agora, no ponto, saímos debaixo de um jatobá monstruoso [abre os braços para dar a dimensão], em cima dum formigueiro que eu não tinha visto tamanho ainda. Tá lá.

Armando Figueiredo: E saiu todo mundo correndo pelo...

Orlando Villas Boas: Não, para pôr o barco lá foi uma loucura. Cada um... era castigo, cada um entrava e dava três batidas...

Ricardo de Carvalho: Isso no código indígena quer dizer o quê? [O que quer dizer o fato de] Que o centro geodésico é um formigueiro, heim?

Orlando Villas Bôas: Será que o resto...

[Risos]

Antônio Carlos Ferreira: Agora, Orlando, conta para nós também uma outra história de um cientista que não conseguiu chegar no Xingu, que foi o Jacques Cousteau [(1910-1997) mergulhador, militar e documentarista francês. Notabilizou-se por seus filmes sobre a vida marinha]. Parece que houve também um desentendimento?

Orlando Villas Bôas: Ah, o Jacques Cousteau. Eu recebi um telefonema dele da França, que terminada a sua expedição no Amazonas ele queria vir no Brasil Central. Porque o Jacques Cousteau, a tônica do Jacques Cousteau é "terra, homem, água". A força da água na sobrevivência da criatura. E como ele tinha notícia de que no Xingu existia uma coisa muito interessante nas lagoas - a lagoa de Miraré por exemplo, inclusive estavam tirando lá cerâmica de mais de dois mil anos - Cousteau ficou muito interessado naquilo. E numa coisa que o Xingu tem, e que nenhum pesquisador ainda deu bola neste país, chama-se as valetas. São... hoje nós temos assim, os sinais de valetas, na extensão de uns quatro quilômetros, que começa no espigão e vem até a água. Mas nós temos duas no Xingu que ainda estão vivas. Elas têm seis metros de profundidade, e vê-se que aquela terra foi removida, porque existe aquele beiço na valeta. Tem árvores enormes, tem seis metros de profundidade e quatro quilômetros de extensão. Cousteau ficou desesperado para fazer uma pesquisa sobre isso. Então seria o seguinte: ou desmatar em torno da valeta, jogar cal e fotografar, ou então fazer um estudo sobre aquilo, ou pelo menos ele ia financiar isso aí. Mas o que aconteceu é que houve uma porção de gente com inveja do Cousteau, de ter distinguido a gente com um convite. E essa gente foi no Xingu e convenceu os índios a cobrar duzentos milhões do Cousteau. Então ele desistiu da idéia e não foi...

Armando Figueiredo: Mas para que serviriam essas valetas, em sua opinião?

Orlando Villas Bôas: Aquilo deveria ter sido o seguinte... a gente encontra, essa coisa formidável, que você encontra na lenda do índio uma explicação para essas valetas. A lenda diz assim: “E quando vierem os ventos gelados de cima, façam valetas e dentro delas se abriguem”. Então, o que era preciso fazer, o que é preciso fazer? A primeira coisa, abrir riscos nessas valetas. Elas têm seis metros, [então a primeira coisa a ser feita é] abrir um risco de dez metros se for preciso, para ver se encontra carvão, ou alguma criança, ou mesmo gente que tenha sido sepultada dentro da valeta. Porque se os índios moravam, chegaram a morar dentro dessa valeta, é claro que eles sepultavam ali dentro também. Mas nada foi estudado, pelo contrário. De tanto eu insistir que o Museu Nacional mandou uma arqueóloga para lá. A arqueóloga chegou na quinta-feira e foi embora no sábado, porque precisava viajar para Paris. Fazer arqueologia em vinte e quatro horas é uma coisa fantástica, era formidável. [risos] Ela chegou e disse que essas valetas, todas elas, são de águas pluviais. Os índios disseram “Plu... o quê? O que é isso?” [risos] "Pluviais", [respondeu a arqueóloga], "água de chuva". Eles morreram de rir. Essa moça está louca! Então choveu aqui, em todo lugar, do mesmo jeitinho? São vinte e oito valetas.

Antônio Carlos Ferreira: Agora, aproveitando ainda essa história de gente de fora que chega ali no Xingu, como é que foi a história do cineasta francês que queria fazer um filme de ficção com o Raoni, com o chefe Raoni?

Orlando Villas Bôas: Não, fez.

Antônio Carlos Ferreira: Ele fez?

Orlando Villas Bôas: Ele fez, O Raoni  é o nome do filme. Eles quiseram até concorrer ao...

Antônio Carlos Ferreira: Mas o filme era de ficção antes e foi mudado depois para documentário?

Orlando Villas Bôas: Não, não. Ele quis fazer um filme-documentário, mas ele não foi muito feliz. Esse filme, eles quiseram concorrer ao Oscar com esse filme, e Marlon Brando ia defender esse filme no Oscar. Aí passaram o filme no Ministério do Interior e eu fui assistir. Você foi assistir? [pergunta a Mariano Marcos Terena]. Estava o Adreazza, estava o ministro Adreazza [Mário Andreazza (1918-1988). Ministro dos Transportes durante o regime militar, responsável por obras como a Transamazônica. Foi também ministro do Interior], e eu fui assistir também, porque eu fui convidado. Encerrado o filme, eu achei uma loucura o filme, não gostei. Está por aí passando, eu não sei de alguém que tenha gostado, eu não gostei do filme. E eu fui convidado nesse... aí, no dia seguinte, nessa segunda-feira, isso aconteceu no sábado, na segunda-feira eu deveria ir para Hollywood, junto com os produtores do filme, levando o filme para concorrer ao Oscar. Eu falei "eu não vou, porque eu vim de São Paulo, não estou preparado para isso, não trouxe nem roupa". Aí o ministro disse “Prepara aí, arranja roupa aí para o moço.”. Mas eu falei "não tenho passaporte". Ele falou “Manda um passaporte para ele.” [risos] Aí eu fui abrigado a falar “ministro, eu não vou porque esse filme é uma droga!" [risos] Aí ficaram bravos comigo etc, ficaram zangados. E o Marlon Brando também não apareceu, e o filme não foi concorrido e tirou em penúltimo lugar, porque não tinha o último. [risos]

Ricardo de Carvalho: Orlando, qual é o seu próximo passo como sertanista?

Orlando Villas Boas: [...] como sertanista?

Ricardo de Carvalho: O seu próximo passo como sertanista.

Orlando Villas Boas: Eu agora sou um sertanista gordo que vive na cidade. De vez em quando faço, assim, uma penetração no Trianon [Parque Trianon, oficialmente chamado Parque Tenente Siqueira Campos, inaugurado em São Paulo em 1892.].

[Risos]

Ricardo de Carvalho: É um Parque.

Orlando Villas Bôas: É o meu parque. Mas o meu primeiro passo agora é o seguinte: para fazer esse livrinho que nós vamos fazer, nós temos a necessidade fazer um registro que é imprescindível, que é correr todas essas quarentas cidades que nasceram da nossa expedição, sendo que uma delas, que é essa Alta Floresta, está agora com 130 mil habitantes. Essa cidade foi fundada em 1973 e eu estive [lá] com meu irmão Cláudio em 1949, correndo atrás dos índios Apiaká. Teve uma história muito engraçada com relação a esse lugar, porque eu fui representar o Ministério do Interior numa espécie de simpósio que fizeram na Água Branca [bairro de São Paulo], na Água Branca não, na Secretaria da Agricultura, lá na "água fria", e o congresso era todo ao estilo [do] índio. Todo ao estilo índio porque era feito pelos pecuaristas da Amazônia. E o índio é um estorvo ao boi. Então matar, arrancar uma tripa, pôr um caboclo em cima de uma égua, pastoreando quinhentas vacas. Aí começou um ataque danado contra os índios. Ataque, ataque, ataque, ataque. E eu participando da mesa também. Quando chegou uma determinada hora, levantou um sujeito, pegou um pedacinho de pau, abriu um mapa enorme [mostra a dimensão com as mãos] e disse: “Aqui, meu senhores, 15 anos atrás, completamente sem recursos, apenas com um aviãozinho lá esperando na água, passando... começamos a estudar, fazendo aqui uma cidade.” Aí eu peguei e falei “o senhor me empresta esse porretinho?" Ele emprestou e falei: "aqui, meus senhores, 25 anos antes desse mocinho deixar o avião dentro d'água, eu comi coco atrás dos índios Apiaká. Para quê? Para que os índios que nós não encontramos, felizmente, todos os senhores viessem aqui, fizessem essa cidade e ficassem os senhores todos [enfatiza] ricos.

Armando Figueiredo: O que o senhor acha dos incentivos fiscais?

Orlando Villas Bôas: Aí deram assim um "zumzumzum" de hostilidade no auditório. Mas tinha um velhinho sentado assim numa fileira, que eu não consegui saber quem era porque a coisa tumultuou logo em seguida, o velhinho levantou e disse “Muito bem, gostei do que o senhor falou.”. Aí todo mundo aplaudiu. [risos] Foi uma coisa importante para mim. [risos]

Antônio Carlos Ferreira: Orlando, nós estamos terminando já o nosso programa e eu gostaria de encerrar com uma última pergunta.

Orlando Villas Bôas: Pois não.

Antônio Carlos Ferreira: Aqui, na cidade, ainda o senhor sente muitas saudades lá da vida do sertão ou a vida mole aqui da cidade já... ?

Orlando Villas Boas: [interrompendo] Não, não. Demais. Aqui eu trabalho muito mais, sou mais aborrecido do que lá. Eu tenho saudades não só na mata, do peixe, da alimentação, ouviu? Os índios são muito carinhosos com a gente. Eu recebo constantemente recado, pois um dia desses, eu repito, o Aritana mandou me dizer "Paí, estou muito triste porque os meninos aqui não querem dançar e nem querem ficar nus." Isso é uma constante na aldeia do índio. A criança é a coisa mais importante para ele. Mas eu tenho uma saudade incrível daquilo lá, nossa! E eu ainda vou dar um passeio até lá, mas é um passeio como, né? Eu não sei. Eu fui convidado agora para este último quarup, eles me convidaram com insistência para que eu fosse até lá, mas caberia à Funai endossar esse convite, para que eu participasse de um avião que fosse até lá. Mas a Funai não se manifestou nada e eu não pude ir.

Antônio Carlos Ferreira: Mas o senhor ainda pensa em voltar até lá?

Orlando Villas Bôas: Ah, eu vou voltar sim. Antes de finar eu volto. [risos]

Antônio Carlos Ferreira: Agora nós vamos encerrar nosso programa. Eu gostaria muito de agradecer a presença de Orlando Villas Bôas em nosso programa. Gostaria de agradecer também a presença de todos os nossos entrevistadores e dos nossos convidados da produção. E o programa Roda Viva volta na próxima segunda-feira. Uma boa noite a todos.

Orlando Villas Bôas esteve no centro do Roda Viva também em 1993 e em 1999. Essas entrevistas também estão disponíveis no site Memória Roda Viva. O sertanista faleceu de falência múltilpa dos órgãos em dezembro de 2002, em São Paulo.

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