Baixe o player Flash para assistir esse vídeo.
[Programa gravado, portanto não permitiu a participação dos telespectadores]
Paulo Markun: Boa noite. O Roda Viva de hoje fala de um livro e de uma escritora que ajudaram a revelar ao mundo detalhes de um dos mais violentos episódios da ditadura na América Latina, a investigação jornalística que deu origem ao processo contra o ditador chileno Augusto Pinochet. Este programa foi gravado antes da recente decisão da Justiça chilena de suspender o processo que acusava Pinochet de seqüestros e assassinatos sob a alegação de que o ex-ditador sofre de problemas mentais. A acusação está recorrendo da decisão. Mas você vai ver na entrevista de hoje as revelações sobre como o grupo de Pinochet usou a brutalidade e o terrorismo militar para impor os seus poderes ao Chile nos anos 60. A autora dessa obra que tem o título de A caravana da morte, no Brasil, é a chilena Patrícia Verdugo, que o Roda Viva entrevista esta noite.
[Comentarista Valéria Grillo]: A jornalista e escritora Patrícia Verdugo já escreveu uma dezena de livros. O primeiro a ser traduzido para o português tem o título de A caravana da morte, e data de fins dos anos 80. A obra conta como Pinochet ordenou ao general Sergio Arellano Stark, que formasse um comando de elite a fim de eliminar presos políticos e inimigos do regime, logo depois do golpe de 11 de setembro de 1973, que derrubou o presidente Salvador Allende. Apesar de seu conteúdo explosivo para a ditadura, A caravana da morte circulou livremente no Chile porque Pinochet e seu círculo de poder acreditavam que livros não conseguiriam abalar a sólida estrutura autoritária implantada no país. A conclusão de que eles estavam enganados veio uma década depois. A obra de Patrícia Verdugo, baseada em uma investigação de mais de dois anos, ofereceu provas suficientes para que dois juízes, o espanhol Baltasar Garzón, e o chileno Juan Guzmán Tapia, abrissem processos contra o ex-ditador chileno. Um dos grandes trunfos de Patrícia Verdugo, ao escrever o livro, foi a entrevista que conseguiu com o general Joaquim Lagos. Ele foi o único militar chileno a contestar, cara a cara, as afirmações de Pinochet de que o ditador não tinha nada a ver com as execuções sumárias de presos políticos. Com o testemunho de Lagos contra o tirano e investigações sobre declarações de aliados do próprio Pinochet, Patrícia Verdugo expôs, em toda a crueza, o que significou para a história do Chile e da América Latina o sinistro episódio em A caravana da morte.
Paulo Markun: Para entrevistar Patrícia Verdugo, nós convidamos: Vicente Adorno, editor de Internacional do Jornal da Cultura; o cientista político Jorge Zaverucha, doutor pela Universidade de Chicago, pós-doutor em ciência política pela Universidade do Texas, em Austin, e professor da Universidade Federal de Pernambuco; o engenheiro Rafael de Falco Netto, superintendente da revista Imprensa; a escritora e ex-repórter da BBC de Londres, Jan Rocha, que participou do Grupo Clamor, ligado à Cúria de São Paulo, um grupo que denunciava as violações dos direitos humanos nos países do cone-sul; convidamos ainda o jornalista Otávio Dias, da editoria internacional do jornal Folha de S.Paulo; e a procuradora do estado de São Paulo, Flávia Piovesan, professora, doutora em direitos humanos e direito constitucional pela PUC de São Paulo. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Hoje não será possível a participação dos telespectadores porque o programa está sendo gravado. Boa noite, Patrícia.
Patrícia Verdugo: Boa noite.
Paulo Markun: Eu queria começar a história pelo final. O livro A caravana da morte conta o que fizeram alguns militares chilenos, relaciona os nomes desses militares, como o general Sergio Aureliano Stark, o coronel Marcelo Morén Brito, o major Armando Fernández Larios, coronel Sergio Arredondo González, tenente Juan Chimineli, o major Carlos López Tapias e o subtenente Hugo Julio. Tem outros nomes ainda? São de 12 a 14 nomes, segundo o seu livro?
Patrícia Verdugo: Estão procurando. Continuam a pesquisa para completar a lista da tripulação.
Paulo Markun: A lista dos tripulantes dessa caravana. Mas eu queria que você nos dissesse onde estão essas pessoas hoje, qual é a situação delas, o que aconteceu com essas pessoas?
Patrícia Verdugo: O general Sergio Arellano Stark está há dois anos e meio em prisão domiciliar. Foi condenado, e o juiz decidiu prendê-lo em seu domicílio. [Em outubro de 2008, a Corte Suprema do Chile condenou o general pelo assassinato de quatro opositores à ditadura de Augusto Pinochet: Teófilo Arce, José Sepúlveda, Segundo Sandoval e Leopoldo González, mortos num quartel militar da cidade de Linares, em outubro de 1973] Todos os outros estão presos em recintos militares. Já estão todos presos. O único que está livre é o major Armando Fernández Larios. Porque Armando Fernández Larios fugiu do Chile com o FBI e foi para os EUA para testemunhar no caso Letelier [atentado ocorrido em 21 de setembro de 1976 em que um carro-bomba matou Orlando Letelier, embaixador chileno nos EUA e adversário do regime de Pinochet, quando ele caminhava em uma rua de Washington]. E, nos EUA, foi condenado a uma pena menor por ter colaborado com a investigação. Hoje em dia está nos EUA, vive na Flórida, sob o regime de proteção de testemunhas. Mas há uma petição de extradição na Argentina para Armando Fernández Larios pelo assassinato do general Carlos Prats e sua esposa. Agora estão preparando uma petição de extradição no Chile pela Caravana da morte.
Paulo Markun: Ficou faltando um da Caravana da Morte que é o general Augusto Pinochet.
Patrícia Verdugo: O chefe. O grande chefe é Pinochet. E Pinochet está em sua casa. Está em sua casa, livre! Mas é uma liberdade física que ele não pode usar, na verdade. Creio que Pinochet bem no fundo está preso. Está em uma prisão de alta segurança, que ele construiu para si mesmo com seu medo, o terror que ele tem de que alguém faça com ele ou com a sua família o mesmo que ele fez conosco. Isso vai criando um cárcere de alta segurança. Pinochet, quando anda pelas ruas de Santiago, tem de fazê-lo em três Mercedes-Benz blindados iguais. De modo que, se houver um atentado, possa haver um erro quanto ao carro onde está Pinochet. Vai com um helicóptero sobre a caravana. Vai com motociclistas rodeando tudo. Não pode andar por uma rua sem estar rodeado de guarda-costas. Mas não é só ele. Até o menor de seus netos não pode ir à escola sem um guarda-costas armado. Portanto eu realmente creio que Pinochet não condenou só a si próprio a essa prisão, como condenou toda a sua família a essa prisão do terror. Ele vive aterrorizado, imaginando que algum de nós possa seqüestrar seus filhos, seus netos. Que alguém possa torturar, como ele torturou, alguém de sua família.
Paulo Markun: Como é que foi possível isso se justamente toda a tática da ditadura chilena era apagar os vestígios da sua ação violenta, de um lado, e do outro lado, criar uma estrutura jurídica e política que evitaria a punição deles? O general Pinochet, quando deixou, finalmente, depois de dez anos praticamente, após ter passado o prazo normal, deixou a chefia das Forças Armadas, o comando supremo das Forças Armadas, tornou-se senador vitalício. E tinha um outro título, que eu não me lembro agora, que era o comandante da nação...
Patrícia Verdugo: General benemérito da nação.
Paulo Markun: General benemérito da nação. De outro lado...
Patrícia Verdugo: É interessante como os ditadores crêem que, à medida que acrescentem estrelas ao quepe militar ou se cubram com mais títulos, mais medalhas, vão se assegurando um tipo de bunker de impunidade. No final tudo cai.
Paulo Markun: E mesmo a Lei de Anistia, que foi votada e que teoricamente impedia que esses casos fossem julgados, como é que se encontrou o caminho para que isso fosse superado?
Patrícia Verdugo: Creio que todos os crimes deixam vestígios. E, de alguma maneira... Bom, sou católica. Portanto creio que os mortos, os espíritos dos mortos se acertam para clamar por justiça e conseguir justiça. Quando as pessoas pretendem a impunidade total e crêem que têm o poder para se transformar em todo-poderosos estão desafiando o próprio Deus. E, de alguma maneira, cometem erros que são a armadilha mortal em que caem depois. O caso da Lei de Anistia. Ele decretou uma lei de anistia para perdoar a si mesmo e a todo o seu grupo criminoso, que cobria desde 11 de setembro de 1973, o dia do golpe militar, até abril de 1978. No fim as equipes de segurança continuaram cometendo crimes. Portanto existe um problema hoje. Há gente da direita chilena que diz: "Precisamos ampliar o período da anistia". Do outro lado está o elemento mais aterrador que ele usou que é um instrumento comum, de tortura, de terror, em toda a América Latina, que é o método de deter e desaparecer com um prisioneiro. Esse é o método mais cruel, mais brutal. Porque para a família e os amigos da pessoa que é vítima dessa situação, não ficam só a dor e o sofrimento por anos e anos, mas também a paralisação, o terror profundo que se sente, e a esperança de que apareça vivo em algum lugar. E se o libertaram e, por causa da tortura, tiver enlouquecido. Ou se o libertaram e, por causa da tortura, estiver com amnésia, e o encontram em algum lugar. Isso é uma tortura permanente. Bom, esse terror utilizado por Pinochet em toda a América Latina e que pretendia eliminar até o último vestígio do crime... Porque Pinochet chegou a sustentar na ONU, através de embaixadores oficiais, que os detidos desaparecidos eram uma invenção, um invento da esquerda, era uma campanha do marxismo internacional. E que não eram pessoas que tivessem existência legal. Sabe o que fizeram? Apagaram as certidões de nascimento dessas pessoas no Registro Civil para mostrar que não existiam. E quando eu ou nós - os jornalistas - entrevistávamos as mães ou as esposas, ou os filhos, eles mostravam a foto e diziam: "Palavra que existe. Juro! Juro que o meu pai existe"! Mas, oficialmente, o embaixador de Pinochet na ONU dizia: "Não têm existência legal. É um invento". Esse invento, finalmente, transforma-se na armadilha mortal de Pinochet. Porque hoje, na Justiça chilena, o fato de alguém ser um detido desaparecido significa que se trata de um seqüestro. E o seqüestro é um delito permanente, que ocorre a cada dia. E portanto é um delito de lesa-humanidade, imprescritível. Não tem prescrição. Nunca termina. Pinochet poderia ser condenado, e todos os membros da caravana da morte, a penas de prisão muito altas. Não há anistia alguma que sirva se os corpos dessas vítimas não aparecem.
Jorge Zaverucha: Boa noite, Patrícia. Boa noite, telespectadores. A senhora falou a respeito da impopularidade de Pinochet. Eu pediria uma reflexão sua sobre o outro lado da moeda. No plebiscito de 1988, os militares tiveram 43% da votação. Nas eleições presidenciais de 1989, obtiveram 36% dos votos. São números nada desprezíveis. Como a senhora explica, apesar de todos os horrores praticados por Pinochet, cifras tão altas?
Patrícia Verdugo: Boa noite. Como se explica? Explica-se muito simplesmente. Explica-se assim: faz um mês, a organização Human Rights Watch [ONG norte-americana de defesa dos direitos humanos, com sede em Nova Iorque], unida à Sociedade Interamericana de Imprensa, entregou ao presidente Ricardo Lagos [governou o Chile de 2000 a 2006] o informativo sobre o estado da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa no Chile. O Chile ocupa o penúltimo lugar na América Latina. O último lugar é ocupado por Cuba. O estado da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão no Chile é muito similar ao de Cuba. Isso é dramático e lamentável. Portanto os cidadãos chilenos não tiveram acesso à informação, em profundidade, do que ocorreu. No caso da Caravana da Morte, há mais de dois anos, dois anos e meio, esse caso é notícia todos os dias na imprensa e TV chilenas. Mas é uma notícia processual, uma notícia legal, é uma notícia de tribunais. "O advogado X disse. O advogado Z responde. Pinochet disse. A advogada das vítimas responde". Não houve nenhuma reportagem, nem na televisão, nem na imprensa que contasse quem eram as vítimas. Quando cursei a escola de jornalismo da Universidade Católica ensinaram-me que, frente a um crime, há uma vítima, ou várias, um algoz, ou vários, e um processo para haver investigação e se fazer justiça. Nesse caso só existem algozes que têm direito à mais ampla exposição para contar a sua história, advogados e tribunais. E nenhum espaço para as esposas, para os filhos, e para os pais e para as pessoas descreverem quem eram as vítimas. Isso acontece no Chile.
Jorge Zaverucha: Esses números são fruto da falta de liberdade de imprensa no Chile?
Patrícia Verdugo: Exatamente.
Jorge Zaverucha: Mas o seu próprio livro vendeu muito, 140 mil exemplares...
Patrícia Verdugo: Mas isso não é o Chile inteiro.
Jorge Zaverucha: Sim, mas será que é só isso?
Patrícia Verdugo: Gostaria de tê-lo vendido para que estivesse em cada lar e pudesse ser debatido, provocando reflexão e consideração. Deveria ter vendido quatro milhões de exemplares.
Jorge Zaverucha: Desculpe-me, mas a gente vê nas manifestações populares que acontecem, manifestações contra e manifestações a favor de Pinochet. Essas pessoas que vão a favor de Pinochet, a senhora acha que vão unicamente porque não têm informações na imprensa, não há algo mais por aí?
Patrícia Verdugo: Eu não iria querer acreditar que 30%, 40% do meu povo sejam criminosos. Porque a violação de direitos humanos em massa é um crime horrível. Estar de acordo com isso é ser cúmplice do crime. Eu queria acreditar que essas pessoas não estão corretamente informadas. Prefiro ter o preconceito de que são boas pessoas não informadas a pensar que são cúmplices do crime.
Otávio Dias: Eu queria fazer uma pergunta que acho que tem a ver com essa, por isso que... Eu tenho a impressão também que pode-se explicar essa divisão que existe na sociedade, quer dizer, o fato de ter cerca de 30% que apóia o Pinochet e os pinochetistas, pelo fato de que o governo dele, por um lado, foi extremamente violento, mas por outro, foi um êxito econômico. O Chile mudou muito desde o início do governo Pinochet até hoje. Será que isso não explicaria essa contradição? Qual é a sua análise sobre isso, sobre as pessoas que consideram que o governo Pinochet foi um êxito econômico e que, portanto, valeu a pena?
Patrícia Verdugo: Vejamos, não é só o êxito econômico do Pinochet, isso vem de antes. Se algo foi violado pelo governo socialista democrático do presidente Salvador Allende, foi o direito de propriedade. Usando uma brecha legal, tomaram fazendas e fábricas na medida em que os camponeses ou trabalhadores das fábricas ocupavam esses espaços, dizendo que não estavam produzindo com a força que requeria a economia chilena e, portanto, havia um boicote da parte dos patrões, dos proprietários. Quando os sindicatos tomavam a fazenda, ou a fábrica, então o Estado nomeava um interventor. Essa era uma forma de expropriar a fábrica ou a fazenda. A questão é que por haver "violado" o direito de propriedade, muita gente temeu que esse processo, tendo em vista o socialismo real da União Soviética e dos países satélites da União Soviética, em face desse exemplo, muita gente chegou a temer que se o processo continuasse, poderiam tirar-lhes a própria casa, ou tirar-lhes o automóvel. Houve o processo de muita gente sentir um grande temor de perder a propriedade de algo até pequeno. Quando o governo militar chega, há muita gente que realmente, em vez de se vingar, por assim dizer, uma "vendetta" a respeito: "Você violou o meu direito de propriedade, em troca, violo o seu direito à vida e o seu direito à integridade física e o seu direito de viver na pátria". Estimaram que fosse um acerto de contas correto. “Você me fez viver uma grande dor por tirar minha fazenda. Você me fez viver uma grande dor porque tirou a minha fábrica. Bom, agora é a sua vez. Vá para o campo de concentração, vá para a câmara de tortura. E se conseguiu se exilar em uma embaixada, você vai para o exílio." É um tipo de "vendetta" social. Mas o processo político que significa "vendetta" social nada tem a ver com a defesa dos direitos humanos. Uma pessoa decente deve defender os direitos humanos de qualquer cidadão que seja afetado. Se no meu país a ditadura tivesse sido de esquerda, eu estaria defendendo os direitos humanos das pessoas de direita, se elas tivessem sido torturadas, exiladas ou assassinadas. A defesa dos direitos humanos não tem signo ideológico, não tem partido. Mas, esta seria a explicação para a primeira parte dos "pinochetistas". A segunda parte está ligada ao fato de que Pinochet chegou a utilizar o país como laboratório, como cobaia, para o experimento neoliberal da escola de Chicago, cujo guru era Milton Friedman [renomado economista norte-americano, cujas idéias influenciaram diversos políticos. Nos anos 70 e 80, alguns economistas que estudaram na Universidade de Chicago – conhecidos como "Chicago Boys" – ocuparam postos importantes no governo Pinochet, ajudando-o em seu programa de privatizações e na contenção da desenfreada inflação do país].
Vicente Adorno: Também com o apoio dos Estados Unidos, que deu muito dinheiro...
Patrícia Verdugo: Claro. Os EUA armaram o golpe; fizeram o complô contra o presidente Allende e depois deram o golpe. Vinham com a idéia: “Ensaiemos neste país a fórmula neoliberal”. Foi um espaço de muito sucesso para ele, para ensaio. É muito fácil impor uma fórmula econômica tão brutal quando se inoculou uma dose de terror tão grande que ninguém vai sair às ruas para protestar. Não existe parlamento, não existem representantes democráticos, nem uniões sindicais, nem colégios profissionais. Não existem! Existe um povo aterrorizado. Assim é muito fácil fazer uma experiência econômica que requeira um grande sacrifício. Os salários foram reduzidos bruscamente entre os anos de 74, 75, 76, a fim de preparar o terreno para fazer essa mudança. E ninguém protestava. Pois precisavam agradecer, todo dia, por estarem vivos! Por não estarem em uma câmara de tortura! “Como vou protestar por estar desempregado? Vou protestar por ter menos salário”? Quando o que importa é poder respirar!
Flávia Piovesan: Patrícia, boa noite, eu gostaria de cumprimentá-la pela excelência do seu trabalho investigativo, e teria duas indagações. Na realidade qual é a sua opinião sobre o legado e o impacto do caso Pinochet no tocante ao regime das imunidades e as leis de anistia política no âmbito latino-americano? Eu digo isso porque neste mês de março, houve duas decisões importantes no que tange ao Peru e à Argentina, questionando justamente a validade das leis de anistia política. Eu trago aqui a decisão unânime da Corte Interamericana dos Direitos Humanos, decisão adotada em março de 2001, que anulou a lei de anistia peruana, entendendo que as violações graves de direitos humanos como tortura, execuções sumárias, extrajudiciais e arbitrárias, ou desaparecimentos forçados não podem ser anistiados. Portanto são inadmissíveis os dispositivos da lei da anistia peruana. Isso ocorreu em março, e eu lembraria o caso argentino, proposto por uma entidade de direitos humanos, em que também se questionou a Lei de Obediência Devida [promulgada em junho de 1987, na Argentina, determinou que todos os militares subalternos aos comandantes da ditadura não podiam ser punidos pelos crimes cometidos, por terem atuado em subordinação a autoridades superiores] e a Lei do Ponto Final [lei sancionada pelo Parlamento argentino, em dezembro de 1986, estabeleceu o prazo de 30 dias para iniciar processos contra crimes vinculados à repressão violenta durante o regime militar, após o qual não haveria novas ações penais]. E a decisão, no caso argentino, foi no sentido de que essas leis feriam parâmetros internacionais constantes da Convenção Americana de Direitos Humanos, ou seja, o direito à verdade, o direito à justiça, dentre outros, o direito ao acesso à justiça, à proteção judicial, estariam violados se houvesse a vigência dessas leis. E lembraria também temas contemporâneos como o caso [Slodoban] Milosevic [(1941-2006), ex-presidente da antiga Iugoslávia e primeiro chefe de Estado em atividade acusado por um tribunal internacional, o Tribunal de Haia, em maio de 1999, por crimes contra a humanidade – genocídio e crimes de guerra – no Kosovo, Croácia e Bósnia], ex-chefe de Estado, hoje indiciado pelo tribunal da ONU, o tribunal ad hoc, criado para o caso da Bósnia, preso, e há o pedido da ONU para que ele seja então encaminhado à Haia e lá seja julgado. E lembraria a própria discussão sobre a criação do Tribunal Penal Internacional Permanente, que prevê também o fim das imunidades. O Artigo 28 do Estatuto de Roma, que já foi ratificado por trinta países, prevê que nenhum cargo político possa ser barreira ou obstáculo para que alguém seja responsabilizado criminalmente, especialmente quando se tem em vista os piores crimes contra a humanidade, como é o caso das torturas, dos desaparecimentos, genocídio, dentre outros. Qual é o futuro das nossas anistias políticas, das leis, no caso brasileiro? Será que isso vai abrir uma ferida, vai abrir essa discussão e vai assegurar o direito à verdade e o direito à justiça? Como você vê hoje, na ótica contemporânea, o destino das imunidades? Até que ponto isso é sustentável, é admissível numa ordem contemporânea em que se quer a justiça, o direito à verdade e à prestação de contas num regime democrático, em que a lei é igual e se aplica igualmente a toda e qualquer pessoa, independentemente do cargo que ocupa?
Patrícia Verdugo: Não sou advogada. Não sou especialista em direito internacional. Sou só uma jornalista que, nesse papel, observa e trabalha em prol dos direitos humanos. E trabalho em prol dos direitos humanos para a minha aldeiazinha, que é o Chile, entendendo que assim colaboro com a aldeia maior, que é a América Latina. Na medida em que todos os latino-americanos formos avançando – Peru, Argentina – poderemos ir colaborando com o processo mundial. A questão está ligada à globalização. Não podemos perceber a globalização só como um fenômeno de comércio, para que alguns poucos enriqueçam. Não pode ser que percebamos a globalização como um fenômeno cultural-comercial. Os satélites nos permitem, hoje, ter... Quantos? Trinta, cem canais de TV nas nossas casas. Também temos que perceber a globalização como o fenômeno de globalizar a justiça. E globalizar a questão do meio ambiente. O que os EUA acabam de decidir de romper o Protocolo de Quioto e não eliminar essas substâncias tóxicas que estão provocando o aquecimento do planeta é grave para todos nós. Não é uma decisão que os EUA possam tomar sozinhos, porque afeta a possibilidade de vida dos nossos filhos e netos na África, na Ásia ou na ponta da América Latina. Não pode ser. Se em uma aldeia, em um país, os direitos humanos são violados, em um mundo onde pela internet pode-se aprender a fazer uma bomba atômica, põe-se em risco a segurança do planeta. Portanto têm que ser organizações internacionais cada vez mais democráticas, cada vez mais éticas, cada vez mais transparentes, que estejam vigiando como funciona o planeta completo para haver paz crescente e paz real. Não a paz imposta pelo mais poderoso. Esse ponto é muito importante para chegar à questão, no nosso caso, dos direitos humanos, do Tribunal Penal Internacional. Não queremos tribunais ad hoc que dependam de se quem será julgado é alguém que foi um perdedor. Também queremos julgar um vencedor, se ele violou os direitos humanos. Para isso precisamos de um Tribunal Penal Internacional. O caso Pinochet, com a prisão em Londres, serviu justamente para recordar o mundo de que devemos avançar, conseguir o Tribunal Penal Internacional. E parece que um dos países que menos querem são os EUA.
Paulo Markun: Nós vamos fazer um rápido intervalo e voltamos daqui a instantes. Até já.
[intervalo]
Paulo Markun: Estamos de volta com mais um Roda Viva, esta noite entrevistando a jornalista chilena Patrícia Verdugo, autora do livro A caravana da morte, que foi peça fundamental nos processos judiciais que levaram o ex-ditador chileno, Augusto Pinochet, ao banco dos réus. Patrícia, eu gostaria muito que todos os nossos telespectadores comprassem o seu livro, que é muito interessante, embora não seja uma leitura agradável. De todo modo, como eu sei que tem gente que talvez não consiga fazer isso, eu queria ler um pequeno trecho do depoimento da mãe de um desses desaparecidos, Eugenio Ruiz-Tagle Orrego. Ela chama-se Alice e diz o seguinte [lendo o trecho]: "Não me deixaram entrar no necrotério, só pude ver o cadáver de meu filho já no caixão com a parte do vidro soldada. Não pude dar testemunho das torturas que ele sofreu. De seu pescoço, de sua cabeça, sim eu posso falar, está gravado em mim a fogo para sempre. Faltava-lhe um olho, o esquerdo, as pálpebras estavam inchadas, mas não havia feridas ou cortes. Tiraram o seu olho com alguma coisa a sangue frio. Tinha o nariz quebrado, com cortes, inchado e separado embaixo até o fim de uma das narinas. Tinha a mandíbula inferior quebrada em várias partes, a boca era uma massa informe, machucada e sem dentes. Tinha um corte grande, largo, não muito profundo no pescoço. A orelha direita inchada, partida e semi-arrancada do lóbulo para cima. Tinha indícios de queimaduras ou talvez uma bala superficial na bochecha direita, um sulco profundo. Na testa, pequenos cortes e machucados. Sua cabeça estava em um ângulo muito estranho o que me fez crer que tivesse o pescoço quebrado. Sei que no corpo havia duas balas, uma no ombro e outra no estômago”. Em primeiro lugar, você não acrescenta nenhum tipo de adjetivo e nenhum tipo de comentário aos depoimentos que você registra. O livro é uma coleção desses depoimentos, uma descrição das passagens, das movimentações desse helicóptero que transportava a "Caravana da morte". Agora, o que eu queria saber, em primeiro lugar, por que você agiu dessa maneira, de tratar essa questão assim tão secamente. E em segundo lugar, gostaria que você descrevesse, em poucas palavras, o que é a Caravana, o que fez essa "Caravana da morte". Eu sei que isso, no fundo, é, de alguma forma, tirar alguns leitores do seu livro, mas eu espero que não, a partir dessa descrição que fiz. Eu acho que é importante que nós estamos aqui discutindo o assunto do Chile como se todas as pessoas soubessem o que essa "Caravana da morte" fez, mas nós não falamos exatamente isso aqui, com todas as letras.
Patrícia Verdugo: A primeira parte está ligada à minha opção como comunicadora. Quando se tem um tema nas mãos, como um escritor, é preciso encontrar o tom em que comunica, do modo como crê mais eficiente, a história que tem para relatar. Eu sabia que nessa história, não devia usar adjetivos. São demais. Para quê? Se os adjetivos se formam no cérebro e no coração de quem está lendo, não é preciso dizer nada mais. O segundo tema não está ligado à formalidade da linguagem, mas com uma opção de comunicação, a como relatar essa história. Você acaba de ler o testemunho da mãe de uma das vítimas. Esse homem, Eugenio Ruíz Tagle Orrego... Bom, aqui, os seus sobrenomes nada significam. No Chile, ele pertence a uma das famílias "aristocráticas". Ele pertence a uma família de classe alta com mais prestígio no país. Portanto o seu assassinato e a descrição do que acontece com ele provocam um alto impacto, quando a pessoa que lê pertence à "aristocracia" local. Mas a questão fundamental é que eu não podia construir essa história sobre a base dos testemunhos da família das vítimas por causar grande impacto, por esses testemunhos terem sido muito chocantes. Porque há uma porcentagem de pessoas que poderiam não acreditar em mim. Poderiam acreditar que eu fazia parte da campanha do marxismo internacional, da esquerda internacional. Nunca fui marxista. Mas, de repente, acrescentam qualificações às pessoas. Portanto o mais importante aí para a eficiência da comunicação jornalística em um livro era que o relato deveria ser feito por militares. E por isso era muito importante encontrar os militares que testemunharam a "Caravana da morte" e pudessem, eles mesmos, contar essa história. O livro foi construído sobre a base do relato de um general, vários coronéis, tenentes-coronéis, majores. Existe o grau de major aqui? A operação da "Caravana da morte", propriamente, em síntese, em que consiste? É a primeira pedra da ditadura do general Pinochet ao dar o golpe militar. Essa primeira pedra consiste em uma missão militar que ele entrega a um general do Exército de muito prestígio e de muito poder no Chile naquele momento, o general Sergio Arellano Stark. A missão militar, que vai a bordo de um helicóptero Puma percorrendo o país, tem dois objetivos: fazer com que a sua ação terrorista paralise a população civil - que comprovará, desde esse dia, que no Chile não há mais Deus, nem Lei, que começa a guerra suja. O segundo objetivo é alinhar em um bloco compacto de comando as Forças Armadas, com a mensagem de que também não existe a lei militar, nem o que lhes foi ensinado nas escolas militares, relacionado aos acordos de Genebra sobre a proteção de prisioneiros políticos em tempo de guerra. Porque Pinochet havia criado um decreto de que, para efeitos da Justiça Militar, estava decretado tempo de guerra. Não havia guerra. No Chile nunca houve guerra. Mas ele decretou tempo de guerra para efeito dos procedimentos judiciais. Então, se o senhor era julgado e era declarado culpado porque, em sua casa, no momento em que foi detido, havia um revólver, e era condenado a um ano de prisão, por ser tempo de guerra, em vez de um ano, eram dois anos. A pena era dobrada, tornava-se mais pesada, mais grave. A missão militar consistia em tirar da prisão, em cada cidade, prisioneiros políticos cuja maioria havia se entregado voluntariamente às autoridades militares. Alguns estavam sendo submetidos a um Conselho de Guerra, outros estavam esperando processos, outros já haviam sido condenados a penas que iam... Por exemplo, o jornalista e advogado [e militante comunista] Carlos Berger havia recebido uma pena de sessenta dias de prisão. Havia outros com penas de dez anos de prisão. Mas isso não importava. A missão militar tirava-os da prisão, massacrava-os... Quando digo massacrar, quero diferenciar de fuzilar. Uma pessoa, quando é fuzilada, supõe-se que a ponham junto a uma parede, coloquem uma venda sobre seus olhos e disparem, esperamos, no coração, para que, com um disparo ou dois, morra. Nesse caso, os corpos que foram encontrados têm marcas de trinta, quarenta tiros, cada um, além das feridas feitas com o corvo, uma faca curva usada pelos comandos militares. Os corpos ficaram despedaçados. O general Joaquín Lagos, em Antofagasta, foi o único que não aceitou a ordem de enterrar clandestinamente esses corpos despedaçados. Ele ordenou aos médicos militares e aos médicos civis que montassem uma equipe para que, com linha e agulha, costurassem os corpos para poder armá-los e colocá-los em ataúdes. Isso para que, quando as famílias abrissem o caixão para comprovar a identidade, o espetáculo não fosse tão chocante, tão horroroso. Foi isso o que fez essa missão militar sob as ordens do general Pinochet, que deixou uma impressão digital nesse caso que o está levando a processo.
Rafael de Falco Netto: Foi difícil ler o livro. Antes de me exilar na embaixada da Argentina, eu e cerca de mais uns cinquenta brasileiros ficamos escondidos em uma casa de um diplomata francês. E ouvíamos pelo rádio os proclamas do Exército, pedindo para que os chilenos denunciassem os terroristas e guerrilheiros estrangeiros que queriam destruir o Chile. Na sua investigação posterior, realmente existia esse sentimento junto ao Exército chileno e à população chilena com relação aos estrangeiros no Chile ou era mais uma peça de propaganda da ditadura? E a outra pergunta é sobre se, no desenvolvimento da investigação, você se encontrou com os brasileiros, alguns dos quais morreram, no golpe de Pinochet. Por exemplo, o capitão Vânio da Silva Matos [capitão da Polícia Militar de São Paulo. Preso no Brasil por sua militância na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), foi banido para o Chile por ocasião do seqüestro do embaixador suíço, juntamente com outros 69 presos políticos], que morreu no estádio de Santiago...
Patrícia Verdugo: No Estádio Nacional? Quanto à primeira pergunta. Se o senhor ouviu os proclamas militares, também deve se lembrar dos bandos militares, ou proclamas, que faziam listas, em ordem alfabética, para os cidadãos se apresentarem voluntariamente. Todos os dias havia proclamas militares em cada cidade, dizendo: "Pelo bando militar número 48, número 96, ordena-se aos seguintes cidadãos apresentar-se ao comissariado ou regimento mais próximo. “Número 1: Aguirre, Pedro. Quarenta...” Qualquer sobrenome, até chegar à letra z, até chegar a Zapata, Jorge. O fato é que em todos esses primeiros dias, a maior parte dos cidadãos convocados apresentava-se voluntariamente. É assim que acontece a "Caravana da morte", o massacre desses prisioneiros que confiaram na legalidade. O Chile é um país interessantíssimo em termos do seu respeito à lei. [Gabriel] García Márquez [(1928-), importante escritor colombiano, jornalista, editor e ativista político. Cem anos de solidão (1967), seu livro mais conhecido, é considerado uma obra-prima da literatura em língua espanhola], quando voltou ao Chile, em 1990, quando começou a transição, dizia que o Chile era o único país que [ele] conhecia onde as leis são campeãs de vendas, oferecidas nas ruas. É assim. Quando se vai ao centro de Santiago, há vendedores de rua gritando: "A última reforma do Código Trabalhista"! E todo mundo compra. "A última reforma tributária”! "A nova lei processual penal"! É interessantíssimo. As pessoas precisam ter a Lei em casa. É impressionante. Portanto muitos cidadãos, a maioria dos cidadãos convocados acreditou que realmente respeitava-se a Lei. Porque o golpe militar, na primeira proclamação, disse que o objetivo das Forças Armadas, ao tomar controle da nação, era reconstituir o respeito pleno à Lei e à Constituição que o governo da Unidade Popular havia desrespeitado, quanto ao direito de propriedade. É só isso. E muita gente acredita e entrega-se voluntariamente. No caso dos estrangeiros, até o dia de hoje, o pinochetismo... As pessoas que estão ao redor de Pinochet, uniformizadas e civis, falam, por exemplo, dos dez mil guerrilheiros cubanos que havia no Chile. Cada vez que me falam do assunto, digo: "perdão, e quando saíram do Chile? Onde estão as fotografias da notícia de quantos aviões tivemos de dispor para tirar do Chile dez mil guerrilheiros cubanos? Ou mataram todos? Como é que Cuba não protestou por dez mil cidadãos cubanos mortos e desaparecidos"? Inventa-se qualquer coisa. Mas a verdade é que o povo chileno, na maioria, tinha um sentimento de grande alegria pelos estrangeiros e latino-americanos que estavam no Chile. Porque não é só a questão dos jovens da América Latina e do mundo que decidiram sonhar, junto aos chilenos, com a construção do socialismo na democracia. Não se trata só disso. Há uma tradição histórica do Chile, como república, de receber os latino-americanos, sobretudo do mundo intelectual: estudantes, acadêmicos de toda a América Latina. Cada vez que em seus países há um golpe de Estado, vão para o Chile procurar asilo e continuar os estudos. Creio que o presidente Cardoso esteve no Chile desse modo, não é? Mas está cheio, em todos os lugares aonde vou encontro sempre ministros, ou presidentes ou reitores de universidades que passaram pelo Chile em algum momento em que seus países sofreram uma ditadura. Chile tinha uma tradição de abrir os braços e receber a todos os que fossem lá para se refugiar. Porque o nosso grande amparo não era ter êxito econômico, sempre fomos um povo pobre. A nossa graça era a cultura. Pobre, mas culto. Tão culto que tem dois prêmios Nobel de poesia [Em 1945, Gabriela Mistral recebeu o Nobel d literatura; em 1971, foi a vez do poeta Pablo Neruda]. Esse era o grande orgulho do Chile. Não o de ter um crescimento de 7% ao ano. Nem o de ter equilíbrios macroeconômicos perfeitos. Essa não era a idéia. O nosso grande orgulho era Pablo Neruda e Gabriela Mistral.
Jan Rocha: Eu queria lhe dar, primeiro, parabéns pelo seu livro, que é um livro realmente feito com muita coragem na época em que você fez. E eu acredito que é um livro muito importante também porque ele não só conta a verdade sobre esse episódio terrível que foi A caravana da morte, mas também no livro você restabeleceu a verdade sobre as pessoas, sobre as vítimas da Caravana, porque oficialmente eram todos terroristas que eram fuzilados quando tentavam fugir, geralmente essa era a versão oficial. E, no seu livro, você mostra que não eram nada disso; eram simplesmente sindicalistas, ou membros do Partido Socialista, eram médicos, ou estudantes. Eram pessoas de bem que, como você disse agora [Patrícia acrescenta: “Eram prefeitos”], eram prefeitos, intendentes, que se apresentaram às autoridades. E já estavam em processo de serem julgados quando foram barbaramente assassinados. Então, no seu livro você restabelece a verdade de quem eram essas pessoas e como eram mortas. Eu creio que, para as famílias, é extremamente importante isso. Eu queria lhe fazer duas perguntas sobre o livro. Eu queria perguntar primeiro, durante a pesquisa, que deve ter sido uma coisa que levou muito tempo, se você descobriu alguma coisa sobre o envolvimento dos Estados Unidos nessa época. Porque nós sabemos que antes do golpe, os Estados Unidos estavam muito ativos em todas as conspirações para derrubar Salvador Allende, também participando financeiramente do apoio à oposição de Salvador Allende. Eu queria saber se surgiu alguma evidência de que depois do golpe, quando Pinochet já estava no poder, se havia alguma orientação americana – na época era o [Henry] Kissinger [foi secretário de Estado norte-americano durante o governo de Richard Nixon (1969-1974)], né? – para que se fizesse essa campanha de terror que foi a "Caravana da morte". E depois eu queria lhe perguntar outra coisa. Lendo o livro...
Patrícia Verdugo: Você acha que vou me lembrar de tantas perguntas? [risos]
Jan Rocha: Não, são só duas.
Patrícia Verdugo: Já me esqueci da segunda do colega. [risos]
Jan Rocha: E a segunda é a seguinte. Uma coisa que me chamou a atenção no livro é que muitos militares chilenos, na verdade, não participavam desses métodos, ficaram também horrorizados, tentaram de alguma forma, senão evitar, ao menos, não participar. Ficaram chocados realmente, eles mesmos. E um, acho que foi um tenente coronel, chegou a ser até torturado por não ter participado. Eu queria saber se é conhecida essa atitude desses militares que se opuseram ou, ao menos, não concordaram. Se em relação a eles, no Chile, tem algum apreço, se eles são vistos um pouco como pessoas, não heróicas, mas se tem algum reconhecimento pelo fato de que não queriam obedecer essas ordens e serem também assassinos?
Patrícia Verdugo: Vejamos, por partes. Primeiro, você pertence à Clamor [Comitê Latino-americano de Defesa dos Direitos Humanos para o Cone Sul]? Quero aqui, publicamente, dizer, mesmo não sendo representante do povo chileno, em nome do meu povo, obrigada pela ajuda da Clamor. A advogada Carmen Hertz, cujo marido [Carlos Berger] foi vítima da "Caravana da morte", encabeça todo o processo legal contra Pinochet. Nesse caso ela veio ao Brasil e recebeu muita ajuda da Clamor. Então, muito obrigada. A questão americana. Na verdad, neste livro, não pesquisei nada relacionado aos EUA. É importante não perder o objetivo. Mas a questão está aí. Ao ser liberado, há poucos meses, um grande material da CIA, cada vez há mais dados, que vão se encaixando com outros testemunhos e outros indícios, de como foram preparados os golpes militares no Chile, na América Latina pelos EUA, como também, depois, sustentaram as ditaduras militares e que tiveram métodos comuns. Tudo começou com a Guerra Fria [período compreendido entre 1945/49, com a Segunda Guerra Mundial, e 1989/91, com a queda do Muro de Berlim, quando o mundo estava dividido em dois blocos, os capitalistas dos Estados Unidos e seus aliados versus os comunistas da URSS e seus aliados, ambos com poderosos arsenais nucleares]. Tudo começou, inclusive, creio, com os militares brasileiros, como todos os militares latino-americanos, ao saírem das escolas militares quando tinham apenas 19, vinte anos. Muitos jovens, quando saíam como cadetes, para passar a ser subtenentes, tinham que ir, durante uma temporada, à escola de Fort Gulik, no Panamá. Para quê? Para receber treinamento militar anti-guerrilheiro marxista. Isso aconteceu durante tantos anos. Tudo foi se preparando diante dos nossos olhos, diante dos nossos narizes, e não percebemos. Depois pagamos muito caro, em dor. Mas os EUA não eram a questão aqui. Neste livro há mais elementos que juntam Chile e Brasil na questão da Operação Condor. Porque um dos homens que está na comitiva de assassinos é o homem que foi o elo entre a inteligência chilena e a inteligência brasileira. Viveu, primeiro, como adido militar, no início. [Markun diz: “Sergio Arredondo”.] Sergio Arredondo González. Depois viveu em São Paulo um segundo período, aqui, com a cobertura, com a máscara de ser o encarregado do Chile em duas empresas do Estado: Codelco [estatal chilena de produção de cobre e maior produtora deste metal] e Enami. A corporação do cobre e a Empresa Nacional de Mineração. Nessa qualidade, seguiu trabalhando como vínculo. Era muito amigo de [João Batista de Oliveira] Figueiredo [(1918-1999), foi o último presidente do regime militar (1964-1985) no Brasil], o presidente. Temos vínculos. Fora o doloroso vínculo que significa que nossos prisioneiros foram submetidos ao que parece ter sido inventado aqui, já que tem um nome brasileiro: o "pau de arara". Mas o vínculo mais importante que temos é o da solidariedade. Agora, a outra questão é sobre os militares. Creio que isso acontece em todas as realidades latino-americanas. A vida não é em branco e preto. A vida não é um tabuleiro de xadrez com quadradinhos brancos e pretos. A vida está cheia de matizes de cinza e de muitas cores. O fato é que a maior parte das Forças Armadas, nas ditaduras militares, mantém-se em trabalhos profissionais militares que nada têm a ver com o crime. São as equipes de inteligência, grupos especiais que talvez sejam escolhidos por seu sadismo, por demonstrações de brutalidade. São os que integram os esquadrões da morte durante a ditadura. A maioria dos militares mantém-se em trabalhos profissionais do governo, se foram designados para postos de governo. Quando têm acesso ao horror, quando, por alguma razão, vêm a saber de um testemunho que parece fidedigno sobre a tortura, ou no caso da "Caravana da morte", em que devem apoiar logisticamente para que os crimes sejam cometidos, ficam horrorizados, com um tremendo e grave dano psicológico. Falei com muitos deles, continuo falando com muitos deles e fico impressionada. Porque se parte do preconceito de um dissidente, em uma ditadura militar, de que todos os militares são maus, todos são muito duros. Nada disso! Meu irmão mais novo é militar. O irmão mais novo do meu pai chegou a general. Foram formados na nossa mesma família, com as mesmas tradições culturais e religiosas. Quando chega o momento do sangue, é muito chocante, muito forte emocionalmente. A Igreja Católica chilena, que foi uma igreja que se portou tão maravilhosamente bem, dando respaldo aos dissidentes e ajudando os direitos humanos com o Vicariato da Solidariedade... Recordo que o discurso que se repetia sempre é que em uma câmara de tortura há duas vítimas: o que está no choque elétrico ou no "pau de arara", e o torturador, que também é vítima. O que está se passando dentro dele vai deixá-lo marcado para sempre. Meu pai foi assassinado e posso assegurar que é muito mais fácil emocionalmente ser filha de uma vítima do que ser filha de um algoz. Sinto uma compaixão enorme pelos filhos dos algozes. É muito mais difícil.
Paulo Markun: Patrícia, nós vamos fazer mais um intervalo e a gente volta já, já.
[intervalo]
Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando a jornalista chilena Patrícia Verdugo, autora do livro A caravana da morte. Patrícia, eu queria entender como é que você conseguiu escrever esse livro durante o período em que o general Pinochet estava no poder. Na reportagem foi mencionada a idéia que os militares tinham; eles achavam que os livros não derrubam presidentes ou todo-poderosos, foi isso mesmo? Você foi processada inclusive.
Patrícia Verdugo: No Chile houve censura prévia dos livros, censura militar, de 73 a 83, por dez anos. Mas quando o povo começou a sair às ruas em protestos populares, Pinochet concedeu várias coisas. Começaram a circular listas de exilados que podiam voltar. Ele também autorizou a liberdade para os livros. Por que decidi escrever um livro? Porque era um tema muito complexo, que requeria uma ampla reportagem. Não adianta escrever isso em dez páginas para poder publicar em uma revista dissidente. Devia ser um livro, para ter os documentos, todos os elementos que lhe dessem credibilidade e força. E o livro podia circular livremente, podia chegar às livrarias. Claramente o risco era que ele se inteirasse antes, de que eu estivesse pesquisando, enquanto eu fizesse a pesquisa, e que me matasse. Mas fazia parte dos riscos que os jornalistas dissidentes correm em toda ditadura: o risco de morrer. Também havia o risco de que matasse alguns dos militares que eu entrevistava. Era uma questão que eu deixava clara, com o general Lagos ou todos os coronéis que entrevistei. "O senhor percebe que corre risco de morte, coronel"? "Sim, percebo". "Assume? Preciso que o senhor assuma o risco. Vamos gravar a entrevista". Quando eu estava com a entrevista gravada, eu a transcrevia e levava o material ao coronel, ou ao general, por escrito, para que, responsavelmente, vendo a declaração por escrito, corrigisse e assumisse o risco de aquilo ser publicado. Não se pode aqui, em uma questão como essa, fazer uma pesquisa jornalística mal feita. Conseguindo declarações das quais, depois, o entrevistado se arrependa. Não se pode. É preciso ser muito responsável porque a vida de muitas pessoas está em jogo. Mas finalmente o livro apareceu. Por fim uma editora atreveu-se a publicá-lo.
Paulo Markun: Só uma curiosidade, você, nesse período, trabalhava em outro lugar ou ficou dedicada exclusivamente ao livro?
Patrícia Verdugo: Fiquei dedicada ao livro. Tinha outros trabalhos para sobreviver.
Paulo Markun: Quanto tempo?
Patrícia Verdugo: Três anos. Durante três anos vendi casas. O dono da empresa construtora era meu marido, mas eu me dediquei a vender casas. Nas pausas, nos momentos entre um e outro comprador, eu tinha um computadorzinho para poder ir anotando dados. E procurava dados para chegar aos entrevistados. Pouco a pouco fui completando a pesquisa.
Vicente Adorno: Há pouco tempo eu li o livro de [Mario] Vargas Llosa [escritor peruano - ver entrevista com Llosa no Roda Viva] sobre a ditadura na República Dominicana, que parece que faz tanto tempo assim, mas foi só em 1961 que acabou. A gente tem memória curta, né? E quando eu estava lendo o seu livro, eu falei: "puxa, esse livro é o contrário do livro do Vargas Llosa, mas está dizendo a mesma coisa, porque o dele é ficção misturada com realidade e esta aqui é uma realidade que ficou sepultada muito tempo. Eu quero pedir licença para ler duas frases aqui: uma é do general Joaquim Lagos, que lhe foi perguntado: "Ao todo, 53 presos políticos na região sob o seu comando foram assassinados. O que aconteceu com o senhor? Como se sentiu"? E ele disse: "Foi e é uma dor enorme, uma dor indescritível. Ver frustrado o que se venerou por toda uma vida: o conceito de mando, o cumprimento do dever, o respeito aos subalternos e o respeito aos cidadãos, que nos entregam as armas para defendê-los e não para matá-los". Eu quero citar a outra frase do antípoda, a outra figura que foi citada aqui, o coronel Sergio Arredondo, que viveu aqui em São Paulo, que era a ligação da chamada Operação Condor. E lhe foi perguntado se de fato tinham ocorrido esses fuzilamentos da "Caravana da morte" e ele respondeu o seguinte: "A verdade é que não me lembro bem porque já se passou tanto tempo, mas é provável que haja ocorrido um ou outro fuzilamento legal. Pode ter ocorrido, mas falar disso agora é, certamente, manifestar espírito de vingança". Eu pergunto simplesmente a você: será que nós vamos, na América Latina, não só no Chile, nos livrar para sempre de tipos como o coronel Arredondo e vamos venerar gente como o general Lagos?
Patrícia Verdugo: Tomara! É o que eu espero. Tomara! No Chile, ao menos, o primeiro sinal de mudança foi há uns dois meses. Um campo militar, que fica muito perto da minha casa, na comunidade de La Reina, passou a chamar-se general René Schneider. O general René Schneider era comandante do Exército no ano de 1970. Em uma operação comandada pela CIA, em que uma arma, inclusive, entrou pela embaixada norte-americana, uma metralhadora especial, um grupo de extrema direita acionou essas armas e matou o comandante do Exército, general René Schneider, para impedir que o presidente Salvador Allende passasse a ser o presidente do Chile. Ocorreu no período entre a eleição, em setembro de 70, e novembro, que seria o momento em que o Parlamento devia ratificar a sua eleição. O assassinato do general Schneider ocorreu em outubro de 70. Durante o governo do presidente Allende, o presidente Allende fez um concurso entre artistas para fazer um monumento ao general Schneider. Quando chegou o momento do golpe, esse monumento estava construído em aço inoxidável e não chegou a ser inaugurado. Pinochet, durante toda a ditadura, fingiu que esse monumento não existia. O nome de Schneider nunca foi usado, durante a ditadura, como um mártir militar. Por quê? Porque a direita o havia matado. Para quê? Para impedir que o socialismo chegasse ao Chile. Como se os heróis fossem os assassinos do general Schneider. Há dois meses, no campo militar de La Reina, foi colocado o nome do general René Schneider. O atual comandante do Exército, general [Oscar] Izurieta, presidiu o ato em que, por fim, vemos o nome do general Schneider. As coisas vão mudando. Acredito que logo seja uma estátua do general Lagos com esse tipo de frase que esteja no pátio da Escola Militar. E que se apaguem dos registros históricos, que se anule, ao menos, a frase de que Pinochet é general benemérito da pátria.
Vicente Adorno: E o Arredondo está sendo julgado agora?
Patrícia Verdugo: Sim, está preso. Está sendo julgado.
Vicente Adorno: Ele pode ser condenado?
Patrícia Verdugo: Pelo fato de que ainda há 17 prisioneiros cujos corpos não aparecem. Esses 17 prisioneiros estão seqüestrados. Perdão?
Vicente Adorno: Ele não foi beneficiado por aquela anistia que você mencionou anteriormente?
Patrícia Verdugo: Foi beneficiado pela Lei da Anistia quanto aos 58 prisioneiros cujos corpos já apareceram. Mas não são beneficiados pela anistia nem Pinochet, nem o general Arellano, nem o coronel Arredondo quanto aos 17 prisioneiros cujos corpos não foram encontrados. Porque enquanto não forem encontrados, são seqüestrados, não assassinados. Se o Exército entregar os corpos, a Justiça transforma os casos em homicídios ocorridos durante um tempo amparado pela anistia e pode anistiar os autores. Mas enquanto for seqüestro, é um delito de lesa-humanidade que está acontecendo hoje.
Jorge Zaverucha: Patrícia, eu gostaria de fazer duas perguntas. Passemos à primeira. A ditadura chilena difere de outros casos sul-americanos pelo papel central assumido pelo comandante-em-chefe do Exército, no caso o general Pinochet, e não pelo corpo de oficiais generais. O governo militar, no Chile, foi ao mesmo tempo institucional e pessoal. Por exemplo, no Brasil, nós tivemos cinco generais presidentes "eleitos" pacificamente. Na Argentina tivemos também sucessão, não tão pacífica porque houve alguns golpes palacianos. Mas o caso chileno é peculiar. A senhora acha que essa peculiaridade chilena facilita ou dificulta o julgamento de Pinochet? Segunda: a senhora mencionou corretamente o apoio norte-americano ao golpe no Chile. Poderíamos até lembrar a famosa Escola das Américas, onde se ensinava doutrinas de segurança nacional a todo o continente. No entanto, ao meu juízo, o apoio norte-americano é condição necessária, mas não suficiente, para se explicar o sucesso ou o fracasso de um golpe de Estado. Por isso mesmo eu pediria uma reflexão da senhora em relação a dois outros atores políticos. Primeiro, a democracia cristã, naquela época, pontificado Eduardo Frei [presidente do Chile de 1964 a 1970], o pai, não o filho, e Patrício Aylwin [governou o Chile de 1990 a 1994], que vai ser posteriormente o primeiro presidente. E esses líderes apoiaram a assunção de Allende em 1970, no entanto, lavaram as mãos em 1973, deixando que os militares tomassem o poder. A mesma coisa com a Suprema Corte, que, a princípio, bancou a assunção de Allende, no entanto se declarou em litígio com o presidente, dizendo que ele não cumpria as suas ordens, dizendo que ele estava violando o estado de direito democrático. A senhora poderia explicar porque antigos aliados do presidente Allende se tornaram rivais dele?
Patrícia Verdugo: Pode só me ajudar a lembrar a primeira pergunta?
Jorge Zaverucha: A primeira pergunta é sobre o caráter peculiar da ditadura chilena, que ela foi tanto institucional como pessoal, e se isso facilita ou dificulta o julgamento de Pinochet.
Patrícia Verdugo: Essa diferença é verdadeira. A questão dos ditadores pessoais que governam por muito tempo parece até uma característica da primeira metade do século XX, na América Latina, e não a característica dos governos militares dos anos 70, 80. É verdade. Inclusive o rodízio das juntas militares desenvolve uma dinâmica que as torna cada vez menos cruéis. Cada vez vão buscando uma conexão que lhes permita ser populares frente ao povo, eliminando matanças, câmaras de tortura. Porém a personalização da ditadura, como no caso de [Rafael] Trujillo [ditador que, por 30 anos (1939 e 1961), governou a República Dominicana, com base na intimidação, tortura e morte de adversários políticos], lembrado com A festa do bode [livro de Mario Vargas Llosa sobre o ocaso e queda de Trujillo], na primeira parte do século XX, ou em meados do século XX, fez com que Pinochet, efetivamente, acreditasse que era Deus. É o que aconteceu. A grande armadilha do poder absoluto é que o poderoso, o ditador, acaba acreditando que é Deus e que pode fazer o que quiser com você. Pode fazer desaparecer o seu corpo, pode destruir você inteiro, crê que ele é dono da sua vida ou da sua morte. É ele quem decide. Esta é uma grande armadilha do poder. Efetivamente Pinochet teve essa ambição. Recorde que no primeiro dia em que a junta militar assume e Pinochet toma a presidência da junta porque o Exército é a arma mais antiga da República do Chile e a mais poderosa. Pinochet anuncia a rotatividade na presidência da junta. Ele ficará um ano como presidente, depois virá o comandante da Marinha, depois o da Aeronáutica, e em seguida o diretor-geral da polícia. Mas ele não cumpre nenhuma dessas promessas. [Jorge Zaverucha pergunta: “Carabineiros”?] Os carabineiros, a polícia uniformizada. É a polícia militarizada do Chile. O ponto é que ele chega, nessa discussão de poder, a tal nível, que cinco anos depois do golpe, ele dá um golpe de Estado contra o comandante da Força Aérea, general Gustavo Leigh. Ele o seqüestra. Deixa-o trancafiado no Ministério da Defesa. Corta até os telefones. Tira o general Leigh da junta e esvazia o generalato da Força Aérea. Tira 25 generais em uma hora. "Fora, todos"! A ameaça é: "Vou acabar com a Força Aérea. Vou transformá-la em um comando aéreo do Exército". Evidentemente o poder total na mão de um só homem explica uma crueldade crescente, uma crueldade mantida ao longo de muitos anos. Também explica a dificuldade para fazer justiça. Porque a transição, durante oito anos, nada pôde contra Pinochet. Pelo contrário, a transição negociou com Pinochet para que ele permanecesse oito anos como comandante do Exército, até março de 1998. Depois transformou-o em senador vitalício, exemplo para as novas gerações. Como? Se tem o poder absoluto e usa todo o poder do Estado para aniquilar os dissidentes? O prêmio final do seu país é que o transformam em um senador vitalício para ditar a lei em um espaço chamado República Democrática. Isso é um horror. Portanto é óbvio que a personalização do poder de Pinochet dificultou muito o processo, a tal ponto que o Chile não pôde... O Chile, através das famílias das vítimas e dos defensores de direitos humanos... Tivemos de fazê-lo [incriminar Pinochet] com a ajuda dos espanhóis, na Espanha. Se não fosse a prisão de Pinochet em Londres nada disso estaria ocorrendo. O senhor Pinochet seria hoje um grande líder no Senado da República. Nos senados de cada país acontecem coisas incríveis. Os brasileiros também sabem. Agora, a segunda pergunta.
Jorge Zaverucha: Sobre a atuação da democracia cristã e da Corte Suprema que eram antigos aliados de Allende e depois se voltaram contra ele? Por quê?
Patrícia Verdugo: Efetivamente, para dar um golpe militar, não basta a decisão do Pentágono. Uma decisão do Pentágono para a América Latina não é suficiente. Para dar um golpe militar, é necessária a aprovação dos EUA, mas é necessário que o poder econômico de um país, que o poder econômico privado esteja de acordo. E também é necessária uma opinião pública importante a favor do golpe. No Chile havia essas três condições. Assim não basta que os EUA tomem uma decisão. A opinião pública também é importante. E nesse sentido a CIA trabalhou muito bem. Nos documentos que se tornaram públicos, consta que um senador americano, Frank Church, pediu uma investigação ao Senado norte-americano em 1974. Já faz 27 anos. Essa investigação, a primeira do Senado norte-americano, já determinou quantos milhões de dólares que foram entregues à imprensa de direita no Chile para criar o clima que permitisse uma opinião pública favorável a um golpe militar. Isso foi muito importante. Estão até as somas entregues a El Mercurio [jornal chileno]. Estão ali, constam. E o El Mercurio nunca negou. A questão tinha a ver também com a democracia cristã. Nesse contexto, parte do Partido Democrata Cristão entra no complô. Mas é muito importante acrescentar um detalhe histórico: quem leva os militares chilenos de modo legal e constitucional até o governo é o presidente Allende. Quando o presidente Allende tem um país onde pontes são dinamitadas pela organização de extrema direita Pátria e Liberdade, quando o presidente Allende tem manifestações nas ruas a favor do governo, contra o governo, tudo era uma grande desordem. Quando o presidente Allende tem uma economia que já não pode controlar e há uma inflação brutal. Param os caminhoneiros, param os comerciantes. Nesse país, que já estava caótico, o presidente Allende procura pôr ordem, pedindo aos comandantes-em-chefe que assumam postos-chaves no gabinete. Portanto quem leva os militares à ante-sala do governo, por assim dizer, que é o gabinete, é o próprio presidente Allende. É por isso que muitas pessoas, de boa vontade e de boa fé, crêem que um golpe militar "brando", sem crueldade, sem sangue, seja possível no Chile. De modo que os militares assumam a plenitude do poder, ponham ordem no panorama e voltem a convocar eleições. No Partido Democrata Cristão há uma corrente forte que participa do golpe e cujo líder é justamente o general Sergio Arellano Stark, o que comanda o helicóptero da "Caravana da morte". Ele é o líder do golpe militar, quem prepara o complô em nome do Partido Democrata Cristão.
Otávio Dias: Patrícia, você já escreveu cerca de dez livros, e eu não conheço todos eles, mas dois deles que eu conheço que é esse [A caravana da morte] e o Interferência secreta, que conta exatamente como foi o diálogo entre os comandantes no momento do golpe – inclusive vem um CD com esse diálogo. Esses dois livros tratam dos porões da ditadura. Dez anos depois, há ainda lados obscuros do regime que precisam ser investigados e revelados? Há um projeto ainda de continuar investigando o que foram esses anos? Qual seria o seu próximo projeto?
Patrícia Verdugo: Quero recordar o tema do livro Interferência secreta. É um livro em que o CD – para esclarecer aos telespectadores que estão nos assistindo e escutando – o CD não é uma dramatização sobre o diálogo. No CD está a voz de Pinochet, a voz dos almirantes e dos generais. Porque o que aconteceu é que sempre há uma falha. Por mais que as pessoas se esforcem para que os atos sejam perfeitos, sempre há uma falha. É como se um anjo da guarda se encarregasse lá em cima: "Ok, você está preparando o complô perfeito? Vou fazê-lo falhar por algum lado". Nesse caso é que alguém decide, alguém interfere nessa comunicação secreta por rádio e grava. É muito impressionante ouvir a voz de Pinochet comunicando-se com outros generais e almirantes. É onde se escuta o general Pinochet mandar pôr o presidente Allende com a família em um avião, e que o avião depois caia. É preciso jogar o avião. Não importa sacrificar o piloto e a tripulação. Não importa nada. Se é preciso matar o presidente e sua família em algo que pareça um acidente, faz-se isso. Essa é uma gravação que, desde que a pus no livro, é usada no mundo inteiro para recordar o dia do golpe militar. Na verdade não há direitos autorais sobre essa gravação. É uma gravação que pertence à humanidade como prova da barbárie, como prova da traição. Porque é preciso recordar que o general Pinochet chega ao poder nomeado pelo presidente Allende. Dez dias, quatorze dias antes do golpe, o presidente Allende deve nomear um novo comandante. Todas as informações de inteligência de seu governo indicam que o general Pinochet é um general confiável, legalista, constitucionalista. E o presidente Allende o nomeia. Entrega-lhe a arma mais poderosa em suas mãos. Para quê? Para que defenda a democracia das tentativas golpistas dos EUA e do fascismo local. Portanto quando Pinochet adere ao golpe de estado, só 36 horas antes, comete um gigantesco ato de traição em relação a quem havia confiado nele.
Paulo Markun: Você não respondeu qual é o seu próximo projeto.
Patrícia Verdugo: Não existe ainda projeto.
Otávio Dias: Há lados obscuros ainda para se investigar do regime Pinochet?
Patrícia Verdugo: Está cheio de lados obscuros. Mas fazer uma investigação sobre direitos humanos e sobre os lados obscuros de uma ditadura tão sangrenta demanda muita energia, porque é muito doloroso para um jornalista fazer isso. Essa questão dos médicos, nos hospitais, sobretudo em atendimento de emergência, em que vão se aplicando doses de anestesia para não sentir dor, ao ver crianças que chegam atropeladas ou afogadas e poder atendê-las rápido e bem, salvar-lhes a vida, no jornalismo não serve, não funciona. Nunca fui correspondente de guerra, por isso não sei. Mas para mim não serve. Cada vez que faço um trabalho, passo muito mal. Tira muita energia de mim. Fazer este trabalho, Interferência secreta, e poder relatar, hora a hora, o golpe de Estado significava que havia dias e momentos em que eu chegava a minha cama, entrava e dizia ao meu marido: "Sinto que não posso respirar! Estou no Palácio de la Moneda, no incêndio! Estou lá dentro! E estou cheia de fumaça". Quando escrevi este livro [A caravana da morte], também. Leram o testemunho da mãe de Eugenio Ruiz Tagle. Lembro-me de quando transcrevi esse testemunho, chorei por muitas horas. Passei muito mal! Portanto não estou procurando o projeto seguinte em direitos humanos, nem nos cantos obscuros da ditadura. Quisera não ter de fazer nada mais. Tomara que seja feito por jornalistas jovens, novos, com energia nova. Queria poder me dedicar a me divertir. Dedicar-me aos meus filhos, a outras coisas. Não sei, mas sabe, no fim, ninguém procura um projeto. É o projeto que procura alguém. Só quando você sente as histórias baterem à porta muitas vezes, portanto, não há dúvidas, não foi um engano, não estão batendo no vizinho, estão batendo ao coração, à alma dessa pessoa. Não há volta. É preciso responder. Aí a pessoa reúne a energia para fazer o projeto, pesquisar e concluí-lo. Porque a pessoa têm a sensação – isso acontece comigo por ser católica – de que o projeto está abençoado, de que deve realizá-lo.
Flávia Piovesan: Uma breve questão e na linha do que disse o Otávio: em que sentido a transição democrática foi capaz de romper com esse padrão de violação dos direitos humanos, especialmente a execução sumária, extra-judicial e arbitrária? Quer dizer, se aqui no seu livro, a "Caravana da morte" implicou na execução de mais de setenta pessoas por perseguição política, essa prática ainda subsiste? Eu me refiro ao lançamento do relatório, na semana passada, aqui no Brasil, e em Genebra, do qual eu participei, sobre as execuções sumárias no Brasil. E a nossa conclusão é que, no Brasil, o Estado não consegue, ainda que tenha existido a transição, responder a questão da execução sumária, agora com outro critério, que é o critério econômico social, e não mais de perseguição política.
Patrícia Verdugo: É verdade que a crueldade quanto a eliminar os que sobram, ou que parecem ameaçar o sistema, é algo que se mantém. Definitivamente parece tão brutal quando se encontra alguém do mundo conservador que bate no peito ou rasga suas roupas como diz a Bíblia, com respeito ao aborto e diz que jamais uma criatura, um ser humano pode ser abortado. Quando alguém quer pedir coerência a essa pessoa para levá-la até a questão de que se toda vida é sagrada, por que deixa de ser sagrada quando tem cinco anos? Três anos? Por que deixa de ser sagrada quando tem vinte anos e não acha emprego? Por que deixa de ser sagrada, quando, por fome, tem que cometer um roubo? Por que deixa de ser sagrada quando o fruto da marginalização torna-se um criminoso, em delinqüente? Em vez de fazer um esforço, a sociedade teria de lhe pedir perdão. Teria que pedir perdão por tê-lo marginalizado da mesa, da comida, da cama, do teto seguro e do trabalho digno. E por tê-lo levado à criminalidade. O que dirão os estudos sobre quantos nascem para ser maus desde que nascem? Terminamos com esquadrões da morte eliminando os que sobram. É preciso eliminá-los ainda crianças. Agora, estão pedindo... Em alguns países existe prisão para crianças de 12, 13 anos! Tolerância zero! O que é isso? O sistema econômico, por um lado, os marginaliza, e depois, tolerância zero! O que é isso? Não entendo. Creio que nós, defensores dos direitos humanos, temos um trabalho enorme por fazer para levar os jovens a refletirem sobre como funciona a questão de defender os direitos humanos desde a vida até o direito à vida digna.
Paulo Markun: Patrícia, o nosso tempo está acabando, mas eu queria saber: você já entrevistou o general Pinochet alguma vez?
Patrícia Verdugo: Pedi uma entrevista com o general Pinochet durante muitos, muitos anos. Nunca me deu. Em um certo momento, fui a única correspondente estrangeira, pois era correspondente estrangeira do México no Chile, durante muito tempo. Durante 16 anos da ditadura. Fui a única correspondente estrangeira que ele nunca recebeu. Afinal, é um orgulho, passa a ser uma estrela de mérito.
Paulo Markun: Eu sempre acho que, às vezes, os jornalistas só conseguem fazer a pergunta, a resposta a gente não vai ouvir, mas também não tem nenhuma importância. Se você pudesse fazer uma pergunta para o general Pinochet, qual seria?
Patrícia Verdugo: Por quê? Seria a única pergunta: por quê? Vou justificar por que a pergunta seria só esta: por quê? O general Pinochet pertence muito bem ao quadro de por que alguém chega a ser ditador. Quando Garcia Márquez fez o estudo para preparar O outono do patriarca [começou a ser escrito em 1958 e foi publicado em 1975], encontrou um fator comum nos ditadores da América Latina: na sua infância, não havia pai. Ou o pai havia abandonado a família, ou era um homem tão débil que se tornava praticamente invisível. O general Pinochet tem esse fator comum. O pai dele era um advogado e jogador. Era viciado em jogo. Gastava todo o dinheiro da família. A mãe era a mulher forte e foi ela quem criou essa criança, Augusto Pinochet, batendo nele, maltratando-o e gritando todos os dias que os homens não servem para nada. As mulheres fortes e "anti-homens" criam ditadores. Esse menino tinha de provar para a sua mãe que sim, ele servia para alguma coisa. E, obviamente, para repetir o padrão, casou-se com uma mulher igual à sua mãe que manteve, portanto, em eco, em estéreo, a versão: "Vamos, mostre que você serve para alguma coisa"! Quando Pinochet deu o golpe militar, ao bombardear o Palácio de la Moneda, teve de se instalar em um edifício que o presidente Allende havia construído especialmente para uma reunião das Nações Unidas, da Unctad [Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento]. Ele mudou o nome do edifício, colocou Edifício Diego Portales. O que Pinochet fez? Na frente do Diego Portales havia outro edifício, na rua principal de Santiago, La Alameda. Na frente, no mesmo andar do escritório dele, ele mandou matar o vice-reitor da Universidade do Chile, o doutor Enrique Paris, que tinha um apartamento em frente. Nesse apartamento, Pinochet instalou a mãe. De seu escritório, Pinochet podia cumprimentá-la com a mão. Imagino que fazia assim [ela estende o braço para cima, com a palma da mão paralela ao chão], em vez de assim [braço semi-flexionado e mão na vertical, como no cumprimento comum]. Podia cumprimentar a mãe todos os dias de manhã. A questão do porquê é o que me interessaria.
Paulo Markun: Muito obrigado pela sua entrevista, Patricia, obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa.