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Memória Roda Viva

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Norma Bengell

6/6/1988

A atriz, que entrou para a história com o primeiro nu frontal do cinema brasileiro e que pretende seguir carreira como diretora, fala também de política e de ecologia

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[Programa ao vivo]

Jorge Escosteguy: Boa noite. Está começando mais um programa Roda Viva. Roda Viva está sendo transmitido simultaneamente pela rádio Cultura AM e pelas TVs educativas de Bahia, Piauí e Porto Alegre, e retransmitido pelas TVs educativas do Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Espírito Santo. A entrevistada do Roda Viva desta noite é a atriz e diretora de cinema Norma Bengell. Norma Bengell, 53 anos, uma das atrizes mais carismáticas do cinema brasileiro, começou a ganhar fama com o filme Os cafajestes [1962], de Ruy Guerra. Ela fez o primeiro nu frontal do cinema brasileiro. Norma Bengell estudou em colégio de freiras, foi modelo da casa Canadá, no Rio [de Janeiro], e trabalhou em teatro de revista com Carlos Machado [(1908-1992) maestro e empresário brasileiro]. Fez mais de 70 filmes no Brasil e no exterior. Norma Bengell trabalhou em teatro, planeja escrever um livro de memórias e estreou recentemente como diretora de cinema. Ela dirigiu Eternamente Pagu [1988], um filme sobre Patrícia Galvão, cujo roteiro tornou-se uma polêmica na imprensa. Para entrevistá-la no Roda Viva desta noite, nós convidamos Edmar Pereira, crítico de cinema do Jornal da Tarde; Ricardo Kotscho, repórter do Jornal do Brasil; Roberto Ethel, chefe de reportagem do jornal O Globo; Moacir Jupiassu, redator-chefe da revista Elle; Luis Fernando Emediato, diretor de jornalismo do SBT, Sistema Brasileiro de Televisão; Sergio Lhamas, editor de cultura da Folha da Tarde; Antonio Bivar, autor de teatro. Está aqui para registrar os melhores momentos do Roda Viva o cartunista Paulo Caruso. Vocês que estão assistindo ao programa podem fazer perguntas à entrevistada desta noite pelo telefone 252-6525. A Bernadete, a Iara e a Denise estarão anotando as suas perguntas. Os alunos de comunicação social da Faculdade Anhembi Morumbi são os convidados da produção. Norma Bengell, você estreou como diretora de cinema, dirigindo o filme sobre Pagu e, imediatamente, acendeu-se uma polêmica sobre a autoria do roteiro do filme, primeiro com a jornalista Márcia de Almeida, e agora com um dos irmãos Campos [refere-se ao poeta Augusto de Campos, irmão de Haroldo de Campos], assumindo a autoria desse roteiro. Afinal, qual é a história do roteiro?

Norma Bengell: Bom, em primeiro lugar, eu quero agradecer a todo o público que está indo ver [Eternamente] Pagu, porque Pagu merece ser vista e ser conhecida. Quero agradecer à imprensa que me deu a maior força, à televisão, à imprensa escrita e falada, enfim, aos críticos que criticaram o filme como bons críticos, e quero abominar aqui as pessoas que só vomitaram ódio em cima desse trabalho, as pessoas que não respeitaram os leitores de seus jornais, falando coisas horrorosas, coisas realmente que de um jornalista não devia sair, não é? De um jornalista, [visto] que eu considero jornalistas superintelectuais... Então, acho que eles deveriam ter um pouco mais de consideração com o público que lê os seus jornais. Crítica é construtiva, agora, o que eles fizeram, alguns, não é construtivo. Então, eu queria pegar... Desculpe, eu vou “alugar” as pessoas aqui por cinco minutos, porque eu vim a este programa hoje para falar o que está acontecendo, que eu acho uma coisa muito desagradável, não é? A "Ilustrada" [caderno cultural do jornal Folha de S.Paulo], "Folha Ilustrada" que se chama, não é? E a revista Veja, que eu particularmente chamo de “não veja”, por terem me mostrado, eu quero agradecer a eles por terem me mostrado [Norma Bengell lê suas anotações]. Eu escrevi, porque senão eu vou esquecer tudo... Por terem me mostrado a alma e o caráter e a falta de sensibilidade de alguns de seus jornalistas, e a pretensão dessa menina, que agora já está uma coroa, que é a [jornalista] Márcia de Almeida, e do [roteirista] Geraldo Carneiro. A Márcia de Almeida eu conheci em 68, quando ela jogava pedra na polícia. [Eu] quis dar uma chance a ela e a chamei para fazer as pesquisas da Pagu, não é? Ela trabalhou o ano de 83, ganhou 4 milhões de cruzeiros, que era uma nota preta na época, e me entregou um roteiro infilmável. Não dava para filmar, eu perdi uma co-produção na França e [o projeto do filme] foi recusado na Embrafilme [(1969-1990) empresa estatal que financiava grande parte do cinema brasileiro] por seis vezes. Aí chamamos o Geraldo Carneiro, para dar uma mexida nesse roteiro e ele fez [esse trabalho]. Bom, a Folha de S.Paulo vem dizendo... Aí a Márcia diz que não viu o filme para não se aborrecer. Eu digo: é melhor mesmo [que não veja], porque ela vai ficar louca, porque o filme é lindo e mostra a ela que ela não tem talento, porque do roteiro dela só sobrou vinte por cento, porque não era bom. Porque era uma guerra dela com o Partido Comunista, e eu não ia filmar isso, porque eu nunca fui do partido e nem entrei em guerra com partido nenhum. Quanto à declaração dela, dizendo que do roteiro original dela consta o nome do senhor [Augusto de] Campos, eu tenho aqui nas minhas mãos, para provar que ela é mentirosa e covarde, o original do roteiro dela, que está aqui. “A quem interessar possa” [lê uma parte do roteiro]. “Trata-se, aqui, do chamado first treatment – ela fala inglês –, do longa-metragem Fogo, Pagu.” Já Fogo, Pagu não era o título dela original; eu tive que tirar, e botei Eternamente Pagu, porque Fogo, Pagu parece que é de um outro escritor aí. Bom [volta a ler]: “Como sempre, as cenas que estão apenas indicadas, assinaladas para a informação do PIC e da corrente do enredo.” Eu não entendi nada do que ela escreveu. [Retoma a leitura] “A roteirista ainda entrevistará pessoas já aqui citadas por terem entendido melhor ter/dar o ‘quadro geral', baseados nas pesquisas e versões por ela escolhidas para, depois, trabalharem as cenas junto com as versões mais subjetivas. A roteirista, conforme assinala no início, não se ateve às informações, mas utilizou-se delas também e muitas vezes para criar situações paraficcionais. Para o roteiro final, sugiro a inclusão de depoimentos dos raros que conviveram com a escritora Patrícia Galvão, intercalando os fatos e as aventuras a critério da diretora Norma Bengell.” Óbvio, não é? Como dizia o Glauber, diretor é aquele que arranja dinheiro para fazer o filme. [Volta a ler] “Os diálogos serão mexidos, as cenas ampliadas, algumas coisas carecendo de confirmação [serão] inseridas. À disposição para quaisquer esclarecimentos, sem mais, agradeço. Márcia de Almeida, 15 de dezembro de 1984.” E aqui, quando ela diz ao senhor [Augusto de] Campos que ela mandou para a produção, dizendo que no roteiro dela tinha o nome dele, é mentira. “Pesquisa, argumento e roteiro: Márcia de Almeida. Adaptação livre entre aparência e libertária da vida de Patrícia Galvão, 83/84.” Está [bem]? Então, eu vou continuar aqui, desculpe, estou alugando...

Ricardo Kotscho: [interrompendo] Norma, o programa está começando agora, é melhor fazer perguntas e se, ao final, alguma coisa faltar a ouvir... Senão fica muito longo, eu acho. Eu gostaria de perguntar coisas que talvez até estejam respondidas aí.

Norma Bengell: É, pode até ser.

Jorge Escosteguy: Norma, você mencionou a frase do Glauber, [dizendo] que diretor é aquele que arranja dinheiro.

Norma Bengell: Para dirigir [filmes].

Jorge Escosteguy: Você teve que pedir ajuda ao presidente da República José Sarney [que governou o Brasil entre 1985-1990] para fazer esse filme?

Norma Bengell: Claro, porque o machismo e a misoginia eram tão grandes, que não me deixavam...

Jorge Escosteguy: Você se sentiu sabotada? O que aconteceu? Por que não lhe deram dinheiro para dirigir o filme?

Norma Bengell: Não me deixavam dirigir meu filme. Eu sou uma mulher que trabalha há 34 anos em cinema e tenho o direito de dirigir um filme e dar o meu primeiro passo. Eu não vim aqui atacar de Orson Welles [(1915-1985) consagrado cineasta norte-americano, diretor do antológico Cidadão Kane], apenas dei um primeiro passo, e eu tenho certeza que o meu filme é lindo, tem gente que vai gostar do meu filme e tem gente que não vai gostar do meu filme.

Jorge Escosteguy: Mas quem não deixava você dirigir?

Norma Bengell: Os burocratas...

Jorge Escosteguy: Eles que não lhe davam financiamento da Embrafilme?

Norma Bengell: Eu não quero falar na Embrafilme aqui. Mas, na época, realmente, a Embrafilme não queria me dar [aprovar] esse projeto. Então, eu fui sim ao José Sarney; agradeço imensamente a ele, ele não me deu dinheiro não, ele apenas pediu ao ministro [da Cultura] Celso Furtado que olhasse o meu projeto, e o ministro olhou e o filme foi feito. Dinheiro eu arranjei com a Lei Sarney [que vigorou entre 1986-1990 e incentivava o financiamento de projetos culturais em troca de benefícios fiscais aos patrocinadores].

Roberto Ethel: O que alegavam para não lhe dar o dinheiro? Quais alegações que tinham para não lhe dar o dinheiro?

Norma Bengell: Olha, [diziam] porque você é a atriz, como você vai dirigir? O roteiro não é bom, essas coisas.

Jorge Escosteguy: Mas quem lhe dizia essas coisas?

Norma Bengell: As pessoas.

Edmar Pereira: E uma vez que o filme ficou pronto, Norma, parece que a Embrafilme apostou nele, quer dizer, mudaram de atitude?

Norma Bengell: Não. Quando mudou a gestão, que foi o [...], aos quais agradeço imensamente, que me respeitaram como mulher e artista e nunca me criaram nenhum problema. Porque, do momento em que eu apresentava o meu filme dentro do organograma, dentro de tudo que foi combinado, eles também se comportaram comigo como eu estava me comportando com eles, e não tenho queixa nenhuma da gestão deles, e apostaram no filme. Agora, também essa mídia toda que eu tive foi uma mídia de trabalho, e não pensem que eles me deram cinqüenta milhões e nem [que] pagaram [o programa televisivo] Globo Repórter, porque de repente, daqui a pouco, inventam essa história também.

Jorge Escosteguy: Mas, com essa polêmica, você seguramente teve mais publicidade para o seu filme e ele obteve um sucesso de bilheteria melhor?

Norma Bengell: Olha, eu não acredito que a polêmica tenha levado o público a ver o filme, porque o público que está correspondendo [assistindo] mais ao meu filme é o povão. O cinema Palácio 2, no Rio, quando ele dá pouco [público], ele dá 450, 480 pessoas, e esse povão lê o jornal O Dia , e O Dia não deu [a] polêmica.

Ricardo Kotscho: Eu li há algum tempo – só para sair um pouquinho da polêmica, depois a gente volta –, em 84, você deu uma longa entrevista para a revista IstoÉ, contando nessa entrevista que você já fez 18 abortos. Então, eu queria comparar esses 18 abortos...

Norma Bengell: Você aumentou dois.

Ricardo Kotscho: [Então foram] 16; é que faz tempo já. Eu queria comparar, quer dizer, não sei, eu acho que você não tem nenhum filho, o [seu] primeiro filho é esse filme que você fez. Eu queria que você falasse um pouco sobre essa sensação de não ter tido um filho seu, e desse primeiro filme que você dirige e que foi tão esculhambado pela crítica. Eu queria que você comparasse as duas coisas da mulher criadora.

Norma Bengell: Não foi tão esculhambado pela crítica, não. É porque você só está lendo a crítica aqui de São Paulo, que é a Folha [de S.Paulo]; que é um outro homem que nem é crítico, ele escreveu assim: “Pagu usa a mesma bolsinha o tempo todo”. Eu falei: primeiro, ela não usa, aí eu achei, bom, observar uma bolsinha durante um filme de uma hora e 40 minutos... Imagine, isso é ótimo, porque o público está indo ver o filme; mas o que você perguntou?

Ricardo Kotscho: Eu tinha perguntado dos abortos.

Norma Bengell: Não foram todos os críticos. O Azarias Azeredo botou o boneco aplaudindo [isto é, avaliou positivamente o filme]. O Wilson Cunha acha que a cena do Marcelo Picchi com a Beth Goulart... que eu escrevi esse filme noir em homenagem ao cinema francês, e que eu devo muito aos franceses, porque me acalentaram durante cinco anos de exílio, não é? Então, eu fiz uma homenagem ao cinema francês, escrevi esse filme lá, e o Wilson Cunha acha que é uma cena imortal, você entendeu? O Ronaldo Monteiro também, que fez uma crítica genial, inclusive ele sabe as fraquezas do roteiro, mas ele sabe que foram assumidas e que virou uma liberdade poética. E, enfim, não foram todos os críticos que esculhambaram, foram os azedos que esculhambaram.

Ricardo Kotscho: Eu queria voltar ao início da pergunta, Norma. Eu queria perguntar sobre os abortos de que você falou nessa entrevista da IstoÉ. Como é que uma mulher, porque é uma violência um aborto, sofre dezesseis abortos e depois cria um filme? Como é que é isso, como é que você...?

Norma Bengell: [O filme] Foi o décimo sétimo que eu não abortei, não é?

Ricardo Escosteguy: Norma, o telespectador Heraldo Simões...

Norma Bengell: [Retomando sua última resposta] Mas tem tanta violência aí também. Me desculpem, eu ia virar as costas para vocês. A violência que está aí é muito mais violenta do que uma mulher fazer um aborto. Dê só uma olhada no que está acontecendo no mundo e no Brasil.

Luiz Fernando Emediato: Você fez aborto porque foi obrigada ou porque você acha que não tem nada a ver, que o aborto é uma coisa natural?

Norma Bengell: Eu fiz por motivos meus, particulares, da minha vida privada, e primeiro eu não tive nem tempo, porque eu acho que criar um filho é muita responsabilidade, e eu não tive tempo disso. Eu não sou reacionária, eu acho que as mães solteiras são todas fantásticas, mas eu não quis criar um filho como mãe solteira, porque minha mãe foi mãe solteira, depois que os meus pais se separaram, então eu sei o quanto foi duro para ela, e eu não quis passar por isso, é uma decisão minha.

Luiz Fernando Emediato: Mas você quis alguma vez ter algum filho?

Norma Bengell: Não, eu só quis ter um filho quando eu tinha 40 anos, que eu fiquei grávida, mas aí também não deu, porque eu estava exilada, eu não sabia como ia ser o meu futuro e nem o futuro dessa criança, não é?

Jorge Escosteguy: Você defende a legalização do aborto?

Norma Bengell: Eu defendo, eu acho isso daí [a proibição do aborto no Brasil] uma hipocrisia. Um país onde fazem aborto nas favelas do jeito que fazem, e só rico tem direito a “abortar bem” e os pobres estão aí abortando e levando porradas, as mulheres pobres... Eu sou sim [favorável à legalização], eu acho uma hipocrisia o que acontece neste país.

Jorge Escosteguy: O telespectador Heraldo Simões, do Embu, pergunta a você se você tem aversão a novelas.

Norma Bengell: Eu não, imagine...

Jorge Escosteguy: Mas você teve problemas, ao menos uma vez, na TV Globo, quando foi fazer alguma novela?

Norma Bengell: Não, foram desentendimentos de... enfim, choques culturais, mas eu não tenho aversão a novela. Eu fiz Os imigrantes [1981]; eu fiz Os adolescentes [1981]; fiz Partido alto [1984], que foi ótimo, foi ótimo, Partido alto foi ótimo.

Jorge Escosteguy: A Nati Viana, do Jardim Celeste, quer saber por que você retratou Pagu como uma pessoa tão anti-heroína no seu filme.

Norma Bengell: Pois é. Puxa, você achou isso? Que maravilha, muito obrigada, muito obrigada. Por quê? Porque eu não sei por quê. Porque eu não acredito em heróis, todos os heróis têm olhos azuis.

Jorge Escosteguy: Você acha que essa é a característica de Pagu?

Norma Bengell: Eu quis fazer um filme sobre uma mulher, não sobre uma heroína. Aliás, agora, na França, o homem que pretende distribuir o filme na França, que se chama Marin Karmitz, ele acha que o lado que eu vi a Pagu é um pouco o lado que a [atriz e cineasta alemã] Margarethe Von Trotta viu a Rosa, a Rosa Luxemburgo [refere-se ao filme Rosa Luxemburg (1986)].

Jorge Escosteguy: A telespectadora Maria Borges, de Itaquera, gostaria de saber, já que você citou o Glauber, se como diretora você vai seguir a mesma linha do Glauber Rocha, e [gostaria] que você falasse um pouco da sua amizade com o Glauber.

Norma Bengell: Não, eu não posso seguir a linha do Glauber, porque o Glauber era único, e depois eu não tenho ,assim, nada em comum com ele. Eu ainda não posso lhe dizer qual é a linha, eu não tenho ainda linha, eu sou uma mulher que fez o primeiro filme, mas o Glauber era épico, superépico, e eu não sou. E eu sou mulher, ele é homem, e ele via o mundo diferente, não é? O Glauber era um supertalento, supergenial, “supertudo”, mas eu discordava dele em muitas coisas; ele era supermachista. Então, nós brigávamos muito. Eu acho que amigo é para isso, é para falar a verdade.

Sergio Lhamas: Norma, eu achei o [filme] Pagu um pouco teatral demais. Uma preocupação sua é que a obra chegue a um número maior de pessoas. Você não acha que teria feito uma boa peça [de teatro] com esse roteiro, ou uma minissérie muito boa na Rede Globo? Você tentou isso?

Norma Bengell: Não, eu quis fazer esse filme assim mesmo. Onde você acha que ele é teatral?

Sergio Lhamas: Um pouco arrastado, não é, Norma?

Norma Bengell: Você acha? Será que você não está viciado em ver filme americano, [diante dos quais] ninguém pensa, todo mundo tem ejaculação precoce?

Sergio Lhamas: Não, eu acho que não é por aí.

Norma Bengell: Ah é, os diretores americanos todos têm ejaculação precoce. Falou cortou, falou cortou. E por que não? Por que não os tempos? E eu quis fazer esses tempos.

Sergio Lhamas: Você acha que quem assiste Pagu sai sabendo quem foi Pagu?

Norma Bengell: Sai sabendo quem foi a minha Pagu, cada um tem uma Pagu na cabeça. A minha Pagu é essa, entendeu? Aliás, tem aí uma pessoa que falou que eu devia ter feito o filme não sei como, não sei como. Eu vou mandar um dinheirinho para ele começar a pré-produção do filme dele, não é? Mas [para ele fazer] depois de dez anos, [visto que] eu tenho direito por dez anos. Mas acho boa a sua observação, porque eu não acho teatral, eu acho que os tempos existem, silêncio é música.

Sergio Lhamas: Mas, Norma, se você tivesse feito uma Pagu [em formato de] minissérie, você não acha que o resultado não teria sido melhor?

Norma Bengell: Não, eu sou uma mulher de cinema, eu não sei dirigir TV, gente.

Sergio Lhamas: Mas você fez televisão também.

Norma Bengell: Mas eu sou atriz, eu não sei dirigir TV, eu não sei, inclusive eu não tenho tesão nesta câmera [olha para a câmera do programa].

Sergio Lhamas: É tanta diferença assim?

Norma Bengell: É completamente diferente, eu não tenho tesão nessa câmera.

Sergio Lhamas: A [diretora de cinema e de televisão] Tizuka [Yamasaki (1949-)] se adapta bem.

Norma Bengell: Pois é, mas a Tizuka é uma pessoa e eu sou outra, não é? A Tizuka é uma mulher de uma cultura tal e eu sou outra mulher. Mas quem sabe eu vou aprender e vou fazer uma minissérie algum dia?

Jorge Escosteguy: Norma, o Moacir Japiassu, da revista Elle, quer fazer uma pergunta.

Moacir Japiassu: O maior fã dela [Norma Bengell] sou eu. Norma, vamos falar de coisas agradáveis. Em 1969 você deu uma entrevista ao [jornal] Pasquim em que você dizia o seguinte: “eu não saio de moda, porque não sou estrela.” Hoje, passados quase vinte anos, você é uma estrela e está rigorosamente na moda. Qual é a sua receita?

Norma Bengell: Não sei, não me considero estrela. Eu me considero uma operária, uma trabalhadora de cinema. Foi o cinema que me fez conhecer o mundo inteiro, eu conheço quase que o mundo inteiro com o cinema, conheço quase o Brasil inteiro. Foi o cinema que me deu o de comer, o cinema que me fez ser amada e odiada. Então, esse cinema é a minha vida. Eu não me considero uma estrela, no modo pejorativo, aquelas coisas assim. Eu também nunca me comportei como estrela. Eu sempre trabalhei como atriz, estava bonitona lá, fazendo o meu papel, mas quando eu terminava... Eu sei o quão difícil é fazer cinema no Brasil. Então, eu ia trabalhar com a equipe, eu já cozinhei para a equipe comer no [filme] Os deuses e os mortos [1970], do Ruy Guerra. Então, o cinema me deu tanta coisa que eu não me considero uma estrela assim. De repente, eu sou uma estrela usada, eu não sei direito.

Ricardo Kotscho: Uma história boa para ser contada tem que ser contada desde o começo, não é? Uma outra coisa que eu me lembro de ter visto, que eu já vi muita coisa sua, é a história do seu nascimento. Seu pai gostava muito de carnaval, não é?

Norma Bengell: Papai? É, ele era alemão.

Ricardo Kotscho: E parece que ele só foi conhecer você... você nasceu no carnaval, não é isso?

Norma Bengell: Eu nasci no dia 21 de fevereiro, no domingo de carnaval.

Ricardo Kotscho: E [ele] foi conhecer você depois da quarta-feira de Cinzas. Lembra desse episódio, como é que foi isso?

Norma Bengell: Papai se fantasiou, porque papai queria uma menina e minha mãe queria um menino. Aí nasceu uma menina, e ele se fantasiou, tomou um porre e deixou mamãe empenhada num hotel até acabar o carnaval, enfim, essas coisas de pai.

Jorge Escosteguy: Antonio Bivar queria fazer uma pergunta.

Antonio Bivar: Norma, quanto tempo demorou, desde que você pensou em fazer Pagu até o filme estrear? Quanto tempo levou?

Norma Bengell: A primeira vez que eu conheci a Pagu foi em um jornal, esses jornais pequenos de imprensa paralela. Eu estava voltando da França em 75 e fui na casa da Claire, que você conhece, lá em Cabo Frio. E eu vi um jornal assim jogado num canto e fiz assim: quem é essa mulher? E eu me identifiquei com ela pelo lado poético, porque ela dizia: “esse mar não escorre por minhas faces”, e isso daí eu sentia quando eu estava exilada. Você acompanhou um pedaço do meu exílio, e eu morri no exílio, eu tive uma morte clínica por causa do mar, quer dizer, levou tempo para burro, [até que] eu me senti preparada para tocar nessa mulher.

Antonio Bivar: Agora, tem uma coisa, eu acho que o filme você fez num tempo assim surpreendente para o cinema brasileiro, onde as pessoas levam três, quatro anos. E eu me lembro que, no carnaval, na passagem de ano do outro ano, há um ano e meio mais ou menos, você estava trabalhando no roteiro, porque eu estava com...

Norma Bengell: Você veio trabalhar comigo, não foi, Bivar?

Antonio Bivar: Foram dois dias lendo... mas de repente o filme ficou pronto num tempo que, para cinema brasileiro, eu acho que foi um tempo até curto. E o que o filme passa, por exemplo, vendo o filme eu senti um amor muito grande, dentro do trabalho dos atores, eu senti uma alegria deles, até o momento em que a vida da Pagu fica uma coisa mais triste, e aí o filme... mas até o momento em que ela foge com o Oswald de Andrade, eu senti uma coisa de uma alegria tão grande dos atores, sabe, que vibra na tela esse contentamento, essa coisa, e tem coisas antológicas. Então, eu acho que você fez um filme exemplar.

Norma Bengell: Posso só falar uma coisa? Esse filme tem esse amor na tela, porque eu trabalhei primeiro com uma equipe de primeira ordem. Se não fosse essa equipe eu não saberia ter feito esse filme, e eu também sou pé-de-boi, eu trabalho, eu não converso, eu trabalho, você sabe que eu trabalho. O que eu entendi como direção de cinema, botar a câmera, decupar [dividir em cenas o roteiro], para tudo isso aí tem fotógrafo, a gente trabalha junto, é um trabalho de equipe. O cinema é genial, porque é equipe, ele é comunitário. Então, o que eu descobri que é fazer cinema, e [por] isso eu vou ser uma grande diretora de cinema, porque eu sei que é você respeitar um ser humano e botar a equipe inteira, ser uma boa produtora. Se a produção funciona, se não tem discriminação, por exemplo, o técnico tem o mesmo direito da cúpula da direção e do ator, não é? Então, se todos se sentirem iguais e felizes, eles trabalham felizes. A minha produção foi perfeita. Isso, você pode entrevistar do figurante da cena do Herculano, que é o figurante mais humilde que tem no Brasil, que eles mandam em caminhões, como eles foram tratados, até a [atriz] Carla Camurati, que é a estrela do filme. Todo mundo igual e todo mundo com os mesmos privilégios. Hotel Maksoud ... eu fiz um contrato com o [luxuoso] hotel Maksoud, com o [empresário] Roberto [Macksoud], e os meus técnicos ficaram lá comigo. Nenhum técnico foi para um hotel mais barato e eu [não] fiquei lá de estrela, entendeu? Eu acho que isso é ser feliz e é isso que está na tela. Quer dizer: o que gostam, o que não gostam, se tem furo de roteiro, se não tem, não interessa; interessa é que o filme foi feito, que eu estou dando o primeiro passo para uma outra história, e eu tenho direito a essa história, porque sou filha e sou mãe do cinema.

Edmar Pereira: Qual é a próxima história, Norma?

Norma Bengell: Eu não vou falar não, mas também vai ser uma outra arruaça.

Edmar Pereira: Você escrevendo o filme, você pensando em dirigir, planejando, você já se escolheu como atriz também, ou foi por uma circunstância, uma contingência que você acabou fazendo a Elsie Houston também?

Norma Bengell: Olha, eu não queria fazer [o papel]. Depois eu falei assim: ah, vou atacar de [Alfred] Hitchcock [(1899-1980) famoso cineasta inglês, ícone do cinema mundial, em particular dos filmes de suspense, costumava fazer, como figurante, rápidas aparições em seus filmes]. Depois eu disse: não, vou chamar uma atriz para fazer, e aí tinha muito pouco dinheiro e eu disse: bom, eu faço, porque eu não me pago, e esse dinheiro eu desvio para outras coisas de produção e aumento um ator que queira ganhar mais. E fiz, supercansada, eu não sabia direito quem era Elsie Houston, porque inclusive no roteiro ela era só um gancho para a Pagu, e como ela era misteriosa para mim, eu fiz um personagem misterioso, botei óculos, chapéu.

Edmar Pereira: E alguém dirigiu você nessas cenas ou você mesma se marcou e se dirigiu?

Norma Bengell: Não, eu me marquei; quem me dirigiu foi a Sonia, que é a minha assistente de direção.

Roberto Ethel: Como é que você escolhe um ator ou uma atriz? O que você observa, o que você quer do ator ou de uma atriz quando você pensa em um papel?

Norma Bengell: Ah, eu acho que a gente tem que se apaixonar [pelos autores]. Eu acho que parei um pouco de fazer cinema porque os diretores não se apaixonam mais por mim, eu acho que você tem que se apaixonar.

Roberto Ethel: Paixão é fundamental em cinema?

Norma Bengell: É!

Roberto Ethel: Em televisão não tem paixão?

Norma Bengell: Isso eu não sei.

Roberto Ethel: Você não tem?

Edmar Pereira: Você começou a pensar na Pagu com a [atriz] Cristiane Torloni?

Norma Bengell: Foi.

Edmar Pereira: Era uma paixão? Acabou [a paixão] e você acabou trocando [de atriz]?

Norma Bengell: Eu ainda estava tateando; inclusive, teve uma outra atriz também que eu olhei. Mas eu achei que a Cristiane era linda demais, mas que o mundo dela estava um pouco distante do mundo da Pagu. Ela era linda demais, mas eu acho que ela não fazia mais [papel de alguém com] 18 anos, e a Carla [Camurati] faz, não é? Então, a Carla é super-rebelde, eu conversava muito com ela. Nós trabalhamos muito bem, mas tinha dias que eu dizia: faz, e ela dizia: não faço. E eu dizia: vai fazer sim! E ela fazia, mas a Carla, sei lá, eu gostei dela.

Roberto Ethel: É mais fácil dirigir ou ser ator?

Norma Bengell: Sabe o que eu achei quando estava atrás das câmeras, rapazes? É que o ator é tão desprotegido; eu [como diretora] chorava atrás das câmeras o tempo todo e eu não dizia “corta”, eu dizia “chega”. Porque aí eu comecei a ver o que um diretor pode fazer com um ator, ele pode destruir o ator, e o ator fica ali falando, achando que está tudo ótimo. Ser diretor é mais protegido, ser ator é mais... você está mais vulnerável.

Roberto Ethel: Você teve consciência disso agora quando você dirigiu?

Norma Bengell: É, eu não sabia, é terrível. E você sabe que, na moviola [equipamento para montagem cinematográfica], foi o único problema grave que tive na montagem, porque como eu pedia tempos, eu dizia: pega o tempo de vocês, pega o tempo dramático de cada um. [Para a] Ester Góes, essa atriz genial, eu disse: Ester... É o primeiro filme da Esther praticamente. Ela disse: é o meu primeiro filme. E eu disse: Ester, pega os seus tempos, você é uma deusa, você tem os seus tempos. Então eu dizia: fala! Então, ela pegou os tempos dela. Ela serve o estar dela, ela olha para Pagu antes de dizer: “e o Oswald?” Eu acho genial aquele tema. E na moviola eu fiz assim: eu vou fazer o meu filme com ejaculação precoce ou vou deixar o tempo desses atores geniais? E deixei os tempos deles, não tive coragem de cortar.

Luiz Fernando Emediato: Norma, há mais de vinte anos você fez o primeiro nu frontal no cinema brasileiro e foi aquele escândalo, não é?

Norma Bengell: Nem sei por que, né? Hoje tem bunda para cá, bunda para lá.

Luiz Fernando Emediato: É isso que eu ia dizer, hoje as atrizes mostram frente e verso no cinema, nas revistas e tal.

Norma Bengell: E os rapazes também, não é?

Luiz Fernando Emediato: E os rapazes também. O que é que você acha, deixando de fora os rapazes, porque já é uma coisa mais rara, mas o que você acha dessa exploração da nudez feminina no cinema, no teatro, nas revistas?

Norma Bengell: Eu acho que se a mulher tiver consciência e ela vai porque ela quer, tudo bem. Agora, se ela não tem consciência, eu acho uma utilização barata.

Luiz Fernando Emediato: E o que é ter consciência e o que é utilização barata?

Norma Bengell: Ué, eu fui para fazer Os cafajestes e eu tinha consciência. Eu tinha uma consciência política, o que representava aquele meu passo de tirar a roupa, de ser apedrejada pela TFP [Tradição, Família e Propriedade - organização extremamente conservadora que apoiou inclusive ações de repressão da ditadura militar no Brasil, que se abriga dentro da Igreja Católica], eu tinha uma consciência.

Jorge Escosteguy: Mas você, numa entrevista, Norma, disse que no começo foi difícil, porque você se tapava e o Ruy Guerra disse: “fique”, e você se tapava.

Norma Bengell: Ué, é claro, ficar nua é difícil, é difícil, até agora é difícil. Duvido que você tire a roupa aí, é superdifícil.

Roberto Ethel: Você fez algum preparo psicológico?

Norma Bengell: O [Ruy] Guerra fez, eu não. O Guerra fez; eu era muito menina para fazer essas coisas. Eu vinha do filme do [cineasta Carlos] Manga [1928-], que era O Homem do Sputinik [1959], que eu adoro; eu vinha do Mulheres e milhões [1961], do Jorge Ileli, que foi um dos filmes de que eu mais gostei de fazer, e acho ele um diretor superinjustiçado, o Jorge Ileli. Eu tinha feito O pagador de promessas [de 1962, dirigido por Anselmo Duarte, ganhador da Palma de Ouro, do Festival de Cannes, em 1962], fazendo a Marli, e o Ruy Guerra disse: “entra na água de maiô”. Eu fiquei e ele tirou a minha roupa dentro da água e me disse: “agora corre”, e foi embora. E eu saí correndo atrás, na realidade foi isso.

Ricardo Kotscho: Norma, o que essa cena, que passou para a história do cinema brasileiro, tem a ver com o que aconteceu com você depois? Você falou rapidamente aqui do exílio; há uma outra passagem muito marcante na sua vida: você foi seqüestrada por órgãos de segurança no Brasil [órgãos de repressão da ditadura militar]. Eu queria que você ligasse um pouco essa vida do cinema... e você contou agora há pouco para nós que, no exílio em Paris, você teve uma morte clínica. Como é a seqüência, como se fosse um filme, como é que você liga esses fatos, a partir de Os cafajestes, essa cena, o que aconteceu na política brasileira e na sua vida depois?

[Aparece na tela uma charge de Paulo Caruso: Norma Bengell sentada em uma cadeira de diretora de cinema, segurando um megafone com a mão esquerda. À sua frente, um ator envergonhado e desnudo esconde com as mãos seu nu frontal.]

Norma Bengell: Olha, você sabe que eu até queria fazer um filme sobre isso. Eu estou com vontade, se eu tiver paz e sossego de escrever, não porque eu seja tão vaidosa assim para ter que escrever a minha vida, não é isso, eu vou fazer uma coisa ficcional. Mas eu queria escrever a trajetória de uma atriz, mostrando todo lado dela que eles dizem: “é o sucesso”, e depois que apagam essas luzes, essa mulher... Então, eu quero fazer um filme assim. Eu não sei como começar, porque eu não tenho paciência de escrever, eu sou muito impaciente; eu estou com 53 anos, o tempo é curto. Então, eu não estou sabendo sentar e fazer isso, inclusive, era sobre isso mesmo... O que é que levou essas pessoas, essas mulheres, não é? Eu tenho uma tese: eu acho que em 62 já era uma preparação do golpe militar de 64, então já estava baixando aí um moralismo barra-pesada. Isso é a minha tese, pode ser que eu me engane. Daí eu tive a sorte de sair com O pagador de promessas, e aí fui pega pelo [produtor italiano] Dino di Laurentis e fiquei na Itália trabalhando, mas sempre ligada no Brasil. A minha vida realmente foi um inferno fora do Brasil, porque este país foi sempre um grande mito para mim. O meu sonho era ser uma grande estrela brasileira, eu nunca quis, e eu não sei por que eu não quero, ser uma estrela lá ou uma atriz lá, o que seja, e que existe esse encantamento dos estrangeiros por mim. De vez em quando eles me chamam. Em 83 eu fui fazer Jean Genet [(1910-1986) dramaturgo francês]. Então eu fiquei lá fora e eu vi o que aconteceu no Brasil, não é? Eu acho que tem tudo a ver, tem a ver a preparação do golpe de 64, depois quando eu voltei da Itália, em 68, que eu vi a morte do [estudante paraense] Edson Luiz [Lima Souto, assassinado à queima-roupa por um tenente da Polícia Militar no Rio de Janeiro, em 1968, durante uma manifestação estudantil contra a ditadura militar], eu falei: opa, o que é isso?

Ricardo Kotscho: Nessa época mais ou menos do Roda Viva, da peça [de teatro] Roda Viva [escrita em 1967, estreou no Rio de Janeiro em 1968] do [músico e escritor] Chico Buarque, que houve esse seqüestro com você, não é?

Norma Bengell: Eu fui seqüestrada aqui no Teatro de Arena [em São Paulo, fundado em 1953], eu fui seqüestrada e espero que não seja hoje também. Eu fui seqüestrada aqui no Teatro de Arena porque eu tinha dado uma declaração sobre o aeroporto do Galeão, e a rádio Gazeta botou no ar. E aí me seqüestraram para saber sei lá quem era eu, e aí fizeram aquelas perguntas. Quer dizer, na realidade, eu acho que o meu trabalho de atriz nunca foi muito valorizado no Brasil, e sim as minhas posições político-libertárias, e também nem tão revolucionária eu sou assim, eu não sou nada, eu sou uma pessoa que reclama os meus direitos.

Ricardo Kotscho: De Roda Viva, da peça em que aconteceu esse seqüestro, para o Roda Viva de hoje, deste programa, o que é que mudou no Brasil, Norma? De Roda Viva a Roda Viva . Hoje dá para falar sem medo?

Norma Bengell: Olha, eu sempre falei sem medo, eu nunca tive medo de ninguém. Minha mãe dizia que, se eu fosse homem, graças a Deus que eu não tinha nascido homem, porque senão eu ia ser barra-pesada. Porque a mamãe conotava homem com revólver e com morte. Quer dizer, a geração dela, eu já não conoto mais assim. Mas eu acho que a ditadura criou uma geração que está precisando ser informada. Principalmente no Rio de Janeiro, aqui em São Paulo não sei muito, porque eu não vivo aqui, mas no Rio de Janeiro eu acho que essa geração tem que ser informada. Nós temos que contar a história verdadeira do Brasil, porque eles foram enganados durante vinte anos.

Roberto Ethel: Norma, você acha que a [Assembléia] Constituinte [que formulou a Constituição de 1988] vai mudar alguma coisa?

Norma Bengell: Olha, eu espero que sim, mas eu acho que a Constituinte é meio conservadora.

Luiz Fernando Emediato: Norma, você tem orgulho ou tem vergonha de viver neste Brasil de hoje?

Norma Bengell: Às vezes eu tenho orgulho e às vezes eu morro de vergonha.

Luiz Fernando Emediato: E tem vergonha por quê?

Norma Bengell: Porque, quando eu ando na rua, eu vejo um país de mendigos. É um país de pedintes, todo mundo pede, não é? Eles pedem na rua, coitados, porque não têm como sobreviver; é um país reacionário, não é? Não é um país humano, do jeito que o povo está sendo tratado; e eles pedem pela televisão. Eles pedem, pedem, pedem, porque eu acho que os nossos governantes... mas não é de agora, muitos que nós tivemos... eu nasci durante o [governo de] Getúlio [Vargas], eu nasci em 35. Então, eu acho que o Brasil é um país mal governado e o povo mesmo não sabe ainda reivindicar os direitos dele. Agora que está... tem [Luiz Inácio] Lula [da Silva], tem mil pessoas aí berrando, mas o povo brasileiro é muito dócil, ele fica dizendo: Deus dará, Padre Cícero dá. Não, vamos respeitar o padre Cícero e Deus, mas se você não for à luta, ninguém vai lhe dar nada. Eu acho que também não adianta só dizer assim: os governantes e os governantes, porque fica aí uma coisa meio paternalista. Eu acho que a gente tem que ir lá ganhar o que a gente quer também. Eu morro de vergonha de ver essas crianças na rua pedindo, é velho pedindo, é racismo. Você não tem vergonha?

Luiz Fernando Emediato: Às vezes sim, mas a entrevistada é você.

Moacir Japiassu: Norma, por falar em vergonha, o Sarney ajudou você a fazer o filme. Você era a favor dos quatro anos [de mandato presidencial] ou dos cinco? [José Sarney assumiu o governo, em 1985, com direito a um mandato de seis anos. Em 1988, muitos constituintes defenderam a redução do mandato presidencial para quatro anos, mas, após um acordo, estabeleceu-se um mandato de cinco anos para o governo Sarney.]

Norma Bengell: Olha, você quer saber de uma coisa, eu não era a favor de nada para falar a verdade, porque estou muito distante de política e eu não estou acreditando mais em política. Eu espero só que depois de cinco anos [de mandato] ele consiga fazer alguma coisa legal. Mas eu estou muito... não acredito mais. É terrível isso, mas ainda vou acreditar outra vez; eu acredito só em movimentos ecológicos, em outras coisas.

Moacir Japiassu: Este programa está sendo visto no Piauí. Você acha que nós temos alguma coisa a dizer para o Piauí?

Norma Bengell: Eu não conheço o Piauí, eu sei que o Piauí é pobre demais, não é?

Moacir Japiassu: Nós estamos falando disso, neste momento; nos últimos cinco minutos estamos falando de pobreza e de vergonha.

Norma Bengell: Não sei o que dizer, mas [espero] que o Piauí comece a gritar, a reivindicar os direitos deles.

Moacir Japiassu: Pelo menos o Piauí não tem um presidente deles; o Maranhão tem, não é? [Referência ao presidente José Sarney, que é maranhense.]

Norma Bengell: Pois é, mas o Rio de Janeiro teve um presidente péssimo [refere-se, provavelmente, a João Figueiredo (1918-1999), que presidiu o país entre 1979-1985].

Jorge Escosteguy: Ricardo Kotscho, por favor.

Ricardo Kotscho: Na época da ditadura militar, na época do seu exílio, o grande sonho de quem estava fora do Brasil era voltar para o Brasil, e hoje, na Nova República, o grande sonho da classe média brasileira, segundo todas as pesquisas publicadas recentemente, é ir embora do Brasil. O que aconteceu nesse meio-tempo?

[Aparece uma charge de Paulo Caruso em que Norma Bengell é representada, de costas, nua, com cabelos ruivos longos e com grandes e coloridas asas de borboleta. Descalça, deixa pegadas por onde passa.]

Norma Bengell: Eu acho que são os problemas econômicos, mas eu sou contra isso. Eu fui amiga de um homem chamado Alain Aptiekman, que era filho de um exilado russo, e que era um exilado russo bem-sucedido, economicamente bem-sucedido. E ele, antes de morrer, ele disse para o Allan: por pior que esteja o seu país, nunca emigre, porque tem uma palavra que se chama estrangeiro; você é uma pessoa estranha, não é? Então, eu acho que a gente tem que lutar aqui mesmo, viu?

Ricardo Kotscho: Você, que já viveu fora, pode contar para quem está querendo ir embora, que é muita gente, como é que é isso aí?

Norma Bengell: Eu não posso dizer que eu fui mal-sucedida, quer dizer, eu fui bem-sucedida na minha carreira e fui mal-sucedida... mas eu era estrangeira.

Ricardo Kotscho: Como é ser estrangeira? Como é que é isso?

Norma Bengell: Ser estrangeiro é ser estranho, não é a sua língua. Você de repente não pode dizer assim: “Vai para...”, porque não é, você está na casa dos outros, não é? É duro; eu tenho o maior carinho pelo imigrante, meu pai era imigrante, eu sou filha de imigrante com brasileiro.

Jorge Escosteguy: Se seu pai não tivesse imigrado, você não estaria aqui e seria uma pena. Mas mudando um pouco de assunto...

Norma Bengell: Eu quero acabar de ler isso aqui [as anotações que lia no início do programa], porque eu estou zangada com essa história [da polêmica com relação ao roteiro do filme Eternamente Pagu.]

Jorge Escosteguy: A Denise Viana, do Jardim Celeste, pergunta: “Eu gostaria de saber sobre sua carreira de cantora. Por que você não grava mais? Se pintasse uma música que fizesse a sua cabeça, você gravaria novamente? Faço essa pergunta porque tenho saudade da época em que você era cantora.” O Marcos Melo, de Perdizes, também pergunta: “Onde está aquela sua voz linda, por que você não canta mais e não volta a trabalhar em teatro interpretando papéis como madame Cleci, na peça Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, onde você estava magnífica?

Norma Bengell: Porque estou ficando saudosista, é porque em teatro não tem mais o [diretor de teatral] Ziembinski [1908-1978], porque o teatro que está se fazendo agora não está me interessando. Eu trabalhei com [diretor de teatro] Victor Garcia [1934-1982], trabalhei com [o cineasta francês Patrice] Shereau [1944-], trabalhei com Ziembinski, trabalhei com [o diretor de teatro brasileiro] Emilio di Biasi [1939-], trabalhei com diretores ótimos, [com] a Gilda [Grillo], que dirigiu Os convalescentes [1970], e esse teatro que está se fazendo agora não está me interessando muito.

Jorge Escosteguy: Você acha que o Brasil não tem hoje bons diretores de teatro?

Norma Bengell: Eu acho que tem. O que eu acho é que não tem espaço para eles trabalharem. Você vê o Zé Celso [Martinez Corrêa, do Teatro Oficina], que não tem espaço para trabalhar, e eu acho que o público mesmo está viciado a esse teatro que está aí.

Jorge Escosteguy: E cantar?

Norma Bengell: Cantar, eu confesso que fiquei traumatizada, porque o primeiro disco que eu fiz foi arrasado pelo [escritor e compositor brasileiro] Sérgio Porto [(1923-1968) conhecido mais pelo pseudônimo] Stanislaw Ponte Preta, e todo mundo acha ele divino, e eu não acho. E ele arrasou o meu disco e eu fiquei meio traumatizada. Depois eu gravei em 75, e fiz trilha sonora, cantei nos Estados Unidos, gravei dois discos nos Estados Unidos com um programa que eu fiz para NBC Paramount chamado The cap burgler. Eu cantei duas músicas brasileiras que fizeram muito sucesso, e eu também acho que [para] cantar, eu tenho que me dedicar a isso, e eu me dediquei ao cinema, não é? Por causa do meu trauma dos anos 50 – [visto] que eu gravei meu primeiro disco em 59 –, eu segui a carreira em que estavam me fazendo mais carinho, porque eu não nasci para apanhar, eu quero muito carinho.

Jorge Escosteguy: Pois é, você falou agora que não nasceu para apanhar, quer carinho. Você picha muito as pessoas que criticam você e elogia muito as pessoas que elogiam você. Você não estaria sendo intolerante?

Norma Bengell: Não, absolutamente, eu não estou pichando a crítica. Você não me entendeu. Eu acho que a crítica é construtiva; eu estou aqui revidando uma crítica que não é construtiva, que é só um vômito de fel, entendeu? É isso que estou fazendo. Eu não picho a crítica, muito pelo contrário, eu acho que a crítica me ajudou a evoluir muito nesses meus anos de trabalho. Só que eu acho que tem certas pessoas que escreveram coisas que não são justas, e eu tenho que reclamar, porque o silêncio é reacionário. O Brasil está desse jeito por causa do silêncio, entendeu? O silêncio é reacionário.

Jorge Escosteguy: Você não viu nenhuma crítica que falasse mal de [Eternamente] Pagu, que você considerasse uma crítica bem-feita dentro desses padrões que você reclama?

Norma Bengell: Ninguém falou. Quem fez crítica bem-feita não falou mal de Pagu, ele analisou o que eu fiz. E quem falou mal de Pagu não fez crítica, porque não é crítico. Crítico é o Edmar [Pereira], crítico é o Eli [Azeredo], crítico é o Ronaldo, que eu leio e digo: pois é, tinha razão. Pois é, agora esse fel que jogam por aí, isso não é crítica. E depois tem mais uma coisa: eu fiz esse filme para o público, e o público está indo. Aí, se eles gostam vão, se eles não gostam não vão, e o filme vai dobrar a quinta semana [em cartaz]. É o boca-a-boca, alguma coisa ele tem. Crítica é outra coisa, não é vomitar a sua inveja, o seu ódio, não é? Eu não estou esculhambando a crítica, não. Eu estou esculhambando quem não é crítico e que está falando absurdos, não é? Absurdos!

Luiz Fernando Emediato: Mas, Norma, essa coisa da crítica, isso é muito relativo. Às vezes você não gosta da crítica porque o crítico não gostou do seu trabalho. Para quem está ouvindo, assistindo essa entrevista, não fica achando que você está reclamando da crítica só porque a crítica não gostou de um filme do qual você obviamente gosta, um filme que você ama? O que são essas coisas horrorosas, esse fel que a magoa tanto? Você podia dar um exemplo bem específico?

Norma Bengell: Está aqui escrito, você quer ouvir? Ninguém quer ouvir a minha carta.

Roberto Ethel: Esteja à vontade.

Norma Bengell: [Recomeça a ler suas anotações] É o seguinte, esse senhor aqui que se chama [...]. Bom, eu termino [de ler] isso num instantinho. Eu estava onde? Porque eu não me lembro, onde é que eu estava, porque eu não guardo rancor. Vamos brigar um pouquinho, daqui a pouco faremos as pazes, não é? Bom, aí agora tem o [Augusto de] Campos, que está dizendo que o roteiro é dele. Não é, né? Olha, eu vou falar uma coisa, eu não li o seu livro, não li o seu livro [refere-se ao livro Pagu: vida e obra [1982], de Augusto de Campos], entendeu? Eu tenho parte nesse roteiro, escrevi várias coisinhas no roteiro, e eu acho que a "Folha Ilustrada" também me mostrou assim a pretensão do Geraldo Carneiro. Eu estou achando ele pretensioso, ele disse que não viu o filme, porque não acompanhou mesmo e não sabia no que tinha dado. Olha que pretensão! Será que ele é mais inteligente do que eu ou mais talentoso do que eu? Então a Folha de S.Paulo está me esclarecendo muita coisa. Outra coisa, aqui está a crítica, quer ver? [É assinada pelo jornalista Mauricio] Stycer, eu nunca ouvi falar nele, ele não fez crítica, ele ficou falando mal do cinema brasileiro. Então, ele diz que o cinema brasileiro está envolvido em escândalos. Não é verdade. A Folha de S.Paulo é que faz escândalos com o cinema brasileiro. O cinema brasileiro não está envolvido em escândalos, entendeu? A Folha de S.Paulo fez o escândalo da Márcia [de Almeida], fez o escândalo da Sidéria, utilizou a Sidéria numa projeção que eu democraticamente deixei a Folha de S.Paulo ir para a Sidéria, porque se eu quisesse eu teria dito: não, a Sidéria vai sozinha sem jornalista, entendeu? A Folha de S.Paulo fez isso, como a Folha de S.Paulo agora está querendo fazer outro escândalo com o [Augusto de] Campos, não é? Então esse cara, ele fala do meu filme dizendo o seguinte: que...

Luiz Fernando Emediato: Norma, para que o telespectador entenda, senão vai ficar uma salada danada, era bom explicar o que o Augusto de Campos está dizendo, senão ninguém vai entender nada.

Norma Bengell: O Augusto de Campos está dizendo que o roteiro é dele. Bom, a Márcia fez pesquisas e eu nem sei se ela fez pesquisas em cima do livro dele.

Luiz Fernando Emediato: Ele publicou quando o livro dele?

Norma Bengell: Em 82, não é? Mas se ela pesquisou em cima, também era um livro de pesquisa, o livro dele não é um romance, não é um roteiro de cinema, mas eu não quero nem entrar no mérito disso, porque isso daí se resolve de outra forma. Mas a Folha de S.Paulo [publicou o artigo do] Stycer, que falou do filme, [dizendo que era] um filme pobre, uma adaptação pobre, e daí? O que é isso?

Jorge Escosteguy: Só para fazer um esclarecimento aos telespectadores e à Norma, a produção do programa...

Norma Bengell: Tem certos jornalistas e certos críticos que têm uma misoginia profunda, entendeu? Aliás, eu trouxe uma garrafa de champanhe [pega a garrafa e a levanta, mostrando-a aos entrevistadores] para estourar aqui simbolicamente, para comemorar a queda da misoginia hoje, a partir deste programa.

Jorge Escosteguy: Apenas para esclarecer aos telespectadores que produção do programa convidou um representante da Folha de S.Paulo para participar do Roda Viva de hoje, e eles se recusaram a aparecer. E [gostaria de] fazer também uma pequena autocrítica, em relação à telespectadora Celia de Souza, de Pinheiros, que protesta por não haver, para entrevistar uma mulher polêmica, uma entrevistadora.

Norma Bengell: Aliás, eu reclamei disso no começo do programa.

Jorge Escosteguy: E há mais duas perguntas aqui que eu gostaria de fazer, que tem mais ou menos o mesmo enfoque, da Maria Aparecida...

Moacir Japiassu: [interrompendo] Eu queria registrar também o meu protesto. Não tem [aqui] uma entrevistadora, mas tem um jornalista... eu sou um jornalista que representa uma revista feminina [refere-se à revista Elle], então [o programa] não está tão desfalcado assim.

Jorge Escosteguy: [Eis] A representação do jornalista, nosso amigo Moacir Jupiassu.

Norma Bengell: Olha, eu posso ler mais uma coisinha? Hoje estou com vontade de ler. Isso daqui é para o Rudá [de Andrade (1930-2009), filho de Pagu e Oswald de Andrade] e para o Kiko. O presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro fez uma moção ao filme Pagu. Eles “propõem à mesa diretora, na forma regimental consta dos anais desta casa de leis, um voto de congratulações à atriz Norma Bengell pela direção do filme Eternamente Pagu, num momento em que a mulher ocupa, a passos largos, a sua posição na sociedade, vossa senhoria, através da arte, imortalizou Patrícia Galvão, Pagu, e a fez perpetualizar-se dentro da memória do povo brasileiro. Homenagem sincera a sua pessoa e toda sua equipe que participou dessa obra. Parabéns.” Isto daqui é para você, Kiko, e para você, Rudá.

Jorge Escosteguy: Obrigado, Norma, nós vamos fazer um pequeno intervalo e o programa Roda Viva volta dentro de instantes. Até já.

[intervalo]

Jorge Escosteguy: Voltamos com o programa Roda Viva, que esta noite está entrevistando a atriz e diretora de cinema Norma Bengell. O Sérgio Lhamas tinha uma pergunta a fazer um pouco antes do intervalo. Por favor, Sérgio.

Sergio Lhamas: No bloco anterior, você falou em carinho, falou em ecologia. E na década de 60 [a atriz francesa] Brigitte Bardot era um grande sucesso no mundo todo. Você é um grande sucesso no Brasil. Ela ficou nua, você ficou nua. Hoje a Brigitte está cuidando de animais, todo mundo sabe disso, e tem uma paixão violenta [pelos animais]; tem sessenta e tantos gatos etc. Você, como é que você traduz o seu amor à natureza e o que você acha que deve ser feito de imediato?

Norma Bengell: O que deve ser feito de imediato? Primeiro, é botar mais guardas, não tem guarda. Você vê agora esse negócio, essa matança dos leões-marinhos; atiram, é uma vergonha o que fazem aqui. Eu não sei o que tem de ser feito, eu acho que o Partido Verde é que tem que fazer isso aí.

Sergio Lhamas: Agora a Brigitte Bardot entra na pergunta. Ela está fazendo um trabalho em cima disso. Você pretende canalizar as suas forças para isso de alguma forma, um filme?

[Aparece uma charge de Paulo Caruso em que Norma Bengell, para evitar sua nudez, está segurando uma grande folha de parreira, na qual se lê “Folha de S. Paulo”. Acima, lê-se: “Viva o verde!”.]

Norma Bengell: Não, porque a Brigitte Bardot tem toda uma estrutura governamental; é ao governo da França que interessa que ela faça isso.

Sergio Lhamas: Mas você não poderia, como Norma Bengell, lutar por alguma coisa aqui no Brasil?

Norma Bengell: Eu sozinha?

Sergio Lhamas: Ué, seria um bom começo.

[...]: Tem o Partido Verde aí.

Jorge Escosteguy: Seria uma provocação: você poderia voltar ao presidente da República e pedir para que ele lhe dê recursos [para alguma iniciativa desse tipo].

Norma Bengell: Mas o Partido Verde tem [a atriz] Lucélia [Santos], a Lucélia é foguinho, adoro ela.

Roberto Ethel: Você acha que o cinema, ou qualquer outra expressão artística de uma maneira geral, não pode ajudar a conscientizar não só a nível ecológico, mas a nível político?

Norma Bengell: Eu acho, eu quero fazer cinema, eu nunca vou fazer um filme reacionário.

Jorge Escosteguy: Antonio Bivar, por favor, queria fazer uma pergunta.

Antonio Bivar: Norma, você filmou a Pagu; quais outras mulheres brasileiras que lhe passam pela cabeça assim, que você gostaria, de repente, de trabalhar em cima delas num filme?

Norma Bengell: Não sei, mas nós estamos fazendo pesquisas sobre uma mulher no Maranhão, Ana Jansen, que tem mil lendas em torno dela, uns dizem que ela era ótima, outros dizem que ela era racista, que ela era isso, que ela era aquilo. Então, nós estamos pesquisando, ainda não sei quem era ela. Não estou apaixonada por ela, porque eu não a conheço. Estamos fazendo... a Lúcia Romeu está fazendo uma pesquisa sobre a [pintora brasileira] Tarsila [do Amaral (1886-1973)]. Mas agora eu vou fazer um filme, que já está decidido, que eu não posso dizer qual.

Luiz Fernando Emediato: É sobre uma mulher ou sobre um homem? Você só pensa fazer filme sobre mulher?

Norma Bengell: Ah, bobagem!

Roberto Ethel: E a mulher Norma Bengell, quem é hoje?

Norma Bengell: Eu não sei.

Roberto Ethel: Dê umas dicas.

Ricardo Kotscho: Pelo que eu sei, você nunca fez operação plástica, [você é uma] das poucas atrizes da sua geração que...

Norma Bengell: Mas eu vou fazer, viu, porque eu não estou gostando muito da minha cara, eu ainda não fiz, mas vou fazer. Porque estou já grilada com um negócio aqui [aponta para partes de seu rosto], já estou, vou fazer. Dia 14 eu vou lá no [cirurgião plástico Ivo] Pitanguy.

Ricardo Kotscho: No intervalo, você estava dizendo que a gente está muito tímido aqui, né? Então, criei coragem de fazer uma pergunta que não fiz, mas sempre tive vontade de fazer. Você foi um grande símbolo sexual brasileiro de uma geração inteira, que é a minha. Queria saber como é na sua cabeça envelhecer como símbolo sexual, que é inevitável, não é?

Norma Bengell: Primeiro, eu não estou envelhecendo, eu sou jovem. Eu acho que a gente só começa envelhecer a partir de 65 anos. Quer dizer, envelhecer fisicamente. Eu não estou envelhecendo, eu sou superjovem, quer dizer, eu não tenho 20 anos, [mas] eu sou uma mulher jovem, une jeune femme. E não me sinto nem com esse problema. E depois, pela minha própria cultura, eu acho que envelhecer é uma coisa tão bonita. Eu fico olhando a minha tia que tem 84 anos; eu fico olhando, é superbonitinha, toda enrugadinha. E eu também quero ficar assim feito aquela leãozinha, superlinda, mas eu não estou envelhecendo. E depois também eu nunca liguei para esse negócio de símbolo sexual, eu nunca levei a sério, o problema era de vocês.

Ricardo Kotscho: Qual que é o grande símbolo sexual brasileiro hoje, Norma?

Norma Bengell: Tem tantos, tem a [atriz] Sonia Braga, tem eu, eu ainda sou.

Antonio Bivar: Norma, você dirigiria um filme com a Sonia Braga?

Norma Bengell: Ah, não sei. Eu até pensei nela para Pagu e depois dispensei rápido.

Antonio Bivar: Por que, Norma?

Norma Bengell: Dispensei, porque ela estava nos Estados Unidos, estava batalhando lá. Agora fez um filme com [ator e cineasta americano] Robert Redford [1936-], não é? Eu não ia competir com Robert Redford, que ela não vinha mesmo. Mas se ela viesse, eu ia achar um luxo.

Edmar Pereira: Norma, voltando àquela história da sexy symbol, da mulher bonita, desejada, você mesma disse que o cinema é uma coisa muito misógina, muito manipulativa, quer dizer, a beleza representa capital. Você, como uma mulher bonita, para fazer essa carreira toda, você teve que dizer muitos “nãos”? E alguns desses “nãos” que você disse provavelmente prejudicaram a sua carreira?

Norma Bengell: “Nãos” a produtores ou a diretores?

Edmar Pereira: A produtores, a diretores.

Norma Bengell: Prejudicaram, acho que sim [ri].

Edmar Pereira: E continua [dizendo “nãos”]?

Jorge Escosteguy: Você se lembra de algum mais importante?

Norma Bengell: Ah, tantos.

Moacir Japiassu: São evidentemente inesquecíveis.

Norma Bengell: O preço da minha liberdade é caro, supercaro.

Jorge Escosteguy: Moacir Jupiassu, por favor.

Norma Bengell: Teve um homem que queria se associar ao Robert Haggiag [(1913-2009), produtor de cinema], que fez [o filme] A condessa descalça, e ele ia só me produzir com grandes diretores, mas aí eu tinha que casar com ele [risos]. Eu não queria, eu quis casar com o Gabriel, que era bonitinho demais, gatinho, bonitinho.

Moacir Japiassu: Norma, falou-se aqui, passou-se assim um paralelo entre a sua carreira e a da Brigitte Bardot. E eu lembro que um dos seus primeiros filmes foi uma caricatura que você fez da própria Brigitte Bardot. Eu queria saber o seguinte: eu sou seu fã desde os tempos de teatro de revista, eu já sou seu fã há quase trinta anos. Então me lembro bem que, de repente, você estava no teatro de revista, você estava na Casa Canadá. Aliás, manequim de uma beleza profunda, elegância sensacional, e aí você passou para o cinema. Como foi essa passagem?

Norma Bengell: Eu vou contar, é bonitinho. Quando eu era menina, eu ia ao cinema, eu adoro cinema. Então, eu chegava em casa e imitava todas as atrizes. [Para imitar] A Esther Williams, eu ficava no chão nadando assim [imita, com os braços, um movimento de natação] e imitando ela, aí eu cantava. O espelho era o meu Ricardo Montalban [ator que contracenava com Esther Williams]. Aí ia ver também as comédias da Atlântida, as chanchadas. Aí eu dizia: eu quero ser uma artista, eu tenho que ser atriz. Em 54 teve um teste para miss Cinelândia , então eu fui. Cheguei lá, era o [famoso galã do cinema] Cil Farney, e o diretor era o Manga. Eu nem tinha vestido; quem me emprestou o vestido foi a Helena de Lima; me emprestou um vestido lindo dela... Aí eu fui fazer o teste. Cheguei lá, eu não sei se eu já tinha um temperamento um pouco dramático, quando eu falei a primeira frase, o Cil Farney riu. Aí eu falei: eu não estou agradando, né? Ele riu. Bom, o teste foi feito, e tinha uma outra menina que se chamava Inalda; e ela fez o teste também e ela ganhou, e o prêmio era fazer um filme. Ela ganhou, fez o filme e casou com o Manga.

Antonio Bivar: E está casada até hoje com o Manga?

Norma Bengell: Ainda? Não, já era [risos]. Aí aquele teste deve ter ficado lá na Atlântida. Bom, em 54 eu fui trabalhar no Show das Emancipadas, com Caribé da Rocha, no Copacabana, [visto] que eu era menor e não podia, aí teve que emancipar. Aí fui para Casa Canadá. Eu tinha que trabalhar muito porque era arrimo de família, então eu trabalhava de dia, de noite, de tarde, eu não tinha sossego, só trabalhava. E em 59 eu gostava de fazer caricaturas, então eu imitava a [atriz americana] Jane Mansfield [1933-1967], botava cinco seios aqui, cinco aqui [aponta para partes de seu corpo], botava perucas, e o Machado me dava forças para esse meu lado. E o Manga foi lá e viu. Também viu o teste, não sei o que deu na cabeça dele e ele perguntou se eu queria fazer a sátira da Brigitte. E eu fui fazer, e na realidade eu não satirizei a Brigitte, satirizei o Manga, porque o Manga ficava atrás da câmera e fazia [faz gestos com a boca para imitar o Manga]. Daí eu falei: eu vou imitar é ele [risos]. Imitei, e o filme é ótimo, eu nem pensava mais na Brigitte Bardot, olhava o Manga atrás da câmera. Ele fazia tudo, ele ia atrás e eu imitei o Manga. Esses diretores são loucos.

[Aparece uma charge de Paulo Caruso em que Norma Bengell, vestida com uma camiseta com a foto de Pagu, como a que veste no programa, olha-se em um espelho que segura com a mão direita]

Jorge Escosteguy: O telespectador João Luiz Gabo Batista, do Ipiranga, disse que você abriu um processo contra o cantor Mick Jagger [vocalista e alma da banda de rock Rolling Stones], por sua atuação no videoclipe que ele gravou no Brasil. Pergunta: como está esse processo?

Norma Bengell: Olha, não está, porque eu tenho que contratar um advogado [e pagá-lo] em dólar, então eu desisti.

Jorge Escosteguy: Qual era o motivo do processo?

Norma Bengell: O motivo foi o seguinte: o Mick Jagger ia fazer esse filme nos Estados Unidos, ia custar 4 milhões de dólares. Aí ele resolveu vir para o México, que ia custar 2 milhões de dólares. Aí ele resolveu vir para o Brasil e fez esse filme; eu fiz esse filme por 400 mil dólares; sacanagem, né? Aí essas equipes maravilhosas, que são os técnicos de cinema no Brasil, fizeram o filme para ele em um mês. Eu nem queria trabalhar com Mick Jagger não, ele que viu uma fotografia minha e ficou lá tarado atrás de mim, disse que eu era o crème de la crème, aquelas coisas de high society, e acabei indo, fui, foi ótimo, superprofissional, foi genial. Mas eu fiz um clipe, eu fiz um clipe de três minutos, que era a música que puxava o disco She's the boss. Eu fazia uma coisa meio Barbara Stanwyck [atriz americana (1907-1990)], de chapéu, de chibata, uma coisa bem engraçada. Mas eu estava desconfiada, eu disse: mas, clipe, como eu não entendo direito de clipe, e eu disse: mas clipe não é com vídeo? Ele disse: não, não, agora os clipes são feitos com câmera 35 [mm], e eu disse: ah bom, tudo bem. E aí começou a aumentar o meu papel, e de vez em quando o diretor dizia: “vem cá que nós vamos fazer um close. Eu vou te fazer uma grande estrela internacional”, e eu ria. Ele não me conhecia. E eu achava ele engraçado, e aí eu dizia: acabei, thank you, e foi ótimo [risos]. Aí, eu estou crente que é um clipe, e quando eu vejo, o Mick Jagger fez um longa-metragem por 400 mil dólares, que estreou no estrangeiro [trata-se do filme Running out of luck (1987)]. E nós ganhamos, nós, atores brasileiros que participamos do filme e os técnicos, nós ganhamos para fazer clipe, sacanagem.

Edmar Pereira: Quer dizer, virou [mesmo] um longa-metragem, que ele estava em junho do ano passado no Festival de Munique, e eu vi o filme lá.

Antonio Bivar: E a direção do [filme foi do cineasta inglês] Julien Temple.

Norma Bengell: Quer dizer, pagou por um clipe, fez o clipe, ganhou o clipe, fez um disco, fez um longa, e no Brasil não passa... Porque eu quero que passe, mas ele vai ter que pagar o que me deve como longa. Não é justo, ele é trilhonário, isso é sacanagem. Você falou no Festival de Munique, eu tenho uma notícia para dar para o [cineasta brasileiro] Sergio Bianchi, e espero que essa notícia seja verdadeira, porque eu estava lá em Cannes [cidade francesa que sedia um importante festival de cinema] e fiquei até supercontente, porque... acho que ele é o diretor do Festival de Munique, ele me disse que o filme brasileiro de que ele tinha mais gostado era um [filme chamado] Romance [(1988) de Sergio Bianchi], e ele queria me convidar para Munique.

Edmar Pereira: Eu tenho a mesma opinião dele. Mas você falou em diretores, você falou no Manga, a gente falou do Julien Temple. Quem são os melhores diretores que já dirigiram você?

Norma Bengell: Os melhores? Ou os piores?

Edmar Pereira: Os melhores... e os piores também, por que não?

Norma Bengell: Ah, os melhores, olha, eu gostei de trabalhar com todos os diretores com quem eu trabalhei, porque foi uma experiência mesmo. Agora, eu tive minhas paixões, dos brasileiros eu gostava de trabalhar com Glauber, porque a gente quase não se falava mais, a gente já se entendia no [filme] A idade da Terra [1980]; gostei de trabalhar com o [Ruy] Guerra; gosto de trabalhar com o [Paulo César] Sarraceni [1933-]; o Walter [Hugo] Khouri [1930-2003] é minha paixão, adoro trabalhar com ele, ele é supergentleman; e lá na Itália eu gostei de trabalhar com Giuliano Montaldo [1930-]; [...] é um pouco histérico. Adorava ver o [Luchino] Visconti [1906-1976] filmar; o Mauro Bolognini [1922-2001], eu não trabalhei com ele.

Luiz Fernando Emediato: Com quem você não trabalharia nunca mais?

Norma Bengell: Com um diretor surdo italiano com quem eu trabalhei [risos]. Eu fiz um filme horroroso chamado O homem de Toledo [1965]. Eu estava precisando de dinheiro e não disse “não”. O miserável era surdo, era terrível.

Roberto Ethel: Qual era o nome dele?

Norma Bengell: Sabe que eu não me lembro? Tem umas coisas na minha vida assim que eu apago. Eu tenho o nome do filme, mas não tenho o nome do diretor. Eu estava superdura e não pude dizer “não”.

Edmar Pereira: Quem era o galã do filme?

Norma Bengell: Também não lembro.

Edmar Pereira: Também não lembra, apagou?

Norma Bengell: Eu sei que eu era uma árabe, olha a loucura [risos].

Moacir Japiassu: E o nome do filme?

Norma Bengell: O homem de Toledo. Estava superbonita com o cabelo [passa as mãos no rosto], maquiada, bem escura, mas o maldito era surdo.

Edmar Pereira: Era [sobre] a vida de El Greco [pintor grego (1541-1614], não era?

Norma Bengell: Era um pouco, mas era um filme de décima categoria.

Jorge Escosteguy: Moacir Jupiassu tem uma pergunta para você.

Moacir Japiassu: É que num esforço de reportagem eu descobri o nome do diretor, chama-se Eugenio Martin, está aqui.

Norma Bengell: Eugenio Martin.

[Aparece uma charge de Paulo Caruso, representando o entrevistador Moacir Jupiassu, vestido de paletó azul, gravata vermelha e com óculos.]

Moacir Japiassu: Isso está aqui [olha para um papel], fez O homem de Toledo. Está aqui, é o meio surdo.

Norma Bengell: Mas esse Eugenio Martin não é o que fez o Fiandra? Eu já não sei mais.

Moacir Japiassu: Está escrito aqui: O homem de Toledo, Eugenio Martin. Então, é o surdo, não é isso?

Norma Bengell: É o surdo.

Ricardo Kotscho: Norma, conta para a gente uma coisa. Eu estava reparando que você tem um humor muito bom. Apesar de tudo que você já passou na vida, a bronca com alguns críticos, você tem mostrado aqui, dos últimos programas que eu vi, um dos mais bem humorados. Qual é a receita para ter bom humor nesse país hoje? Eu acho que muita gente gostaria de saber.

Norma Bengell: É ter nascido da barriga da minha mãe. A minha mãe era uma mulher super bem-humorada. Você sabe que ela estava doente, e eu dizia: mamãe, pelo amor de Deus, não faz isso, não morre, como é que eu vou ficar, eu sou filha única. Ela ria e dizia: está com medo de que eu vá abotoar o paletó? E ria. Minha mãe era uma mulher linda, não era, Bivar? Eta sorriso bonito! E eu sou bem-humorada, eu não sou rancorosa, eu não quero ficar rancorosa, as pessoas rancorosas são muito feias.

Moacir Japiassu: Mas você é feminista ou não?

Norma Bengell: Eu sou. Agora, feminismo aqui é palavrão. Feminismo é uma coisa estapafúrdia, não sei o quê, uma coisa rancorosa.

Moacir Japiassu: Eu perguntei, porque você disse que não é uma pessoa rancorosa, e normalmente costumam dizer: eu sou feminista rancorosa, você não é rancorosa.

Norma Bengell: Não existe feminista rancorosa, as mulheres estão aí reivindicando os direitos delas.

Moacir Japiassu: Por falar nisso, o Millôr Fernandes [ver entrevista com Millôr no Roda Viva] disse uma vez numa entrevista...

Norma Bengell: [interrompendo] Mas o Millôr é supermisógino, não é?

Moacir Japiassu: Eu só vou falar uma frase que ele disse. Millôr disse que o melhor movimento feminino ainda é o dos quadris. O que é que você acha desta frase? [risos]

Norma Bengell: Eu acho engraçado.

Luiz Fernando Emediato: Você falou agora há pouco da sua mãe, que você gostava muito dela. E seu pai, alemão, era daqueles que batiam quando você fazia malvadeza?

Norma Bengell: Papai? Não, a única vez que ele me bateu, ele me deu uma palmada na bunda, ficou vermelho e aí eu dormi, dormi de raiva dele. Porque era assim, ele tinha que me dar dinheiro para eu ir ao cinema e ficava me sacaneando, ele me dava dez, e eu ia lá para namorar, né? Aí ele estava deitado, eu estava na cama e fiz [com os pés, mostra o movimento que fez contra a cama], fiquei com raiva, bati com o pé no encosto da cama e a cama desarmou e ele caiu. Ficou zangado e pau [bateu na filha]. E quando eu acordei, ele estava chorando em cima da minha bunda, passando manteiga. Meu pai não me batia, meu pai falava comigo, meu pai me educou muito bem, meu pai era um dândi, e um homem muito sofrido também. Papai fez a Primeira Guerra Mundial [1914-1918], migrou para a Argentina e depois para o Brasil. Meu avô era afinador de piano e meu pai também afinava piano; e ele era muito sofrido, papai não acreditava mais em nada, todo mundo que faz guerra não acredita mais em nada.

Luiz Fernando Emediato: Norma, antes do programa você vinha caminhando para cá e eu, vindo do seu lado, vi que o seu rosto estava leve, iluminado, você estava muito bonita.

Norma Bengell : E agora, estou horrorosa?

Luiz Fernando Emediato: Não, não, mas você entrou aqui e começou a falar do filme e ficou tensa, ficou com o rosto enrugado, cheia de ira, e eu senti um certo amargor. Agora você está bem-humorada, aí de repente me dá vontade de perguntar o seguinte: você é feliz?

Norma Bengell: Às vezes sim, às vezes não. Já pensou se eu fosse feliz o tempo todo, que coisa chata?

Luiz Fernando Emediato: E, há meia hora, o Ricardo Kotscho lhe perguntou sobre coisas violentas, amargas da sua vida, como exílio, como o seqüestro, e você fugiu da pergunta. O que é que mais a magoou na vida, o que é que mais lhe fez sofrer?

Norma Bengell: Não sei, não tenho mais...

Luiz Fernando Emediato: Mas você não quis falar direito do seqüestro.

Norma Bengell: Aquele seqüestro foi terrível, não é, Bivar? Que absurdo, até hoje eu não entendi, eu queria tanto que alguém me explicasse. A “não veja” [refere-se à revista Veja] parece que publicou um negócio aí, mas eu não vi.

Ricardo Kotscho: Você foi torturada, houve tortura?

Norma Bengell: Não, não me torturaram, imagina, eles não tinham coragem. Só torturavam as pessoas...

Ricardo Kotscho: Que tipo de pergunta eles faziam, Norma? Você falou de um interrogatório.

Norma Bengell: Eles perguntavam quem eram os comunistas do teatro. Sei lá, eu nunca perguntei a ninguém, e se soubesse também não diria. [Ela brinca] “Muito prazer, o senhor é ator, o senhor é comunista?” É uma coisa meio esquisita, e perguntavam coisas, eles falavam que [o diretor teatral] Flávio Rangel era um louco, falavam coisas horrorosas, e que o [músico] Geraldo Vandré ia morrer. Aí ele pediu para eu cantar a música do Geraldo [Vandré], eu falei: eu não sei, coronel, é tão grande que eu não lembro, eu só sei o refrão [da música “Pra não dizer que não falei das flores”: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer”]. O refrão todo mundo sabia, aí eu falei: eu não sei, e o senhor, sabe? Ele falou: sei, e ele cantou a música inteira [risos].

Roberto Ethel: Você lembra o nome do coronel?

Norma Bengell: Eu lembro.

Roberto Ethel: Quem era?

Norma Bengell: Você é danado, hein? Eu vou falar porque saiu na “não veja” outro dia. É Helvécio Leite.

Ricardo Kotscho: Isso durou quanto tempo, Norma?

Norma Bengell: 48 horas.

Ricardo Kotscho: Te levaram para onde?

Norma Bengell: Lá para o DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna - órgão de repressão da ditadura militar]; não era DOI-Codi ainda, era PIC [Pelotão de Investigações Criminais].

Antonio Bivar: Você foi levada de São Paulo para o Rio?

Norma Bengell: Me seqüestraram, e depois, sabe que eles são atores? Eu tinha que saber... [Dirige-se a Edmar Pereira] Você não quer escrever uma história comigo, você que escreve? É, vamos fazer? Olha, eu tinha que escrever, porque foi um negócio todo teatralizado, era superteatral. Porque, olha, eu vim do Rio, e eu ia sempre no fim de semana lá para ver minha casa, como é que estava, minhas coisas, minha mãe, essas coisas. E aí volto, vou para o hotel; eu estava no Hotel Amália, um hotel pequenininho que tem aqui na [rua] Xavier de Toledo. E aí telefonaram para mim e disseram: “Norma, aqui quem está falando é o Miranda, o secretário do Paulo Autran.” Eu sei [a história] com diálogo e tudo, olha, é fácil escrever. Aí eu disse: “Miranda, você está com uma voz esquisita, onde é que você está?” Ele disse assim: “Eu estou aqui no banco na rua... - tem 1º de abril, né? - 7 de abril. Estou aqui na rua 7 de abril e estou num banco e eu preciso falar com você.” Eu falei: “num banco, agora, às oito e meia da noite?” Ele falou: “É! Que horas você vai para o teatro?” Eu falei: “Acho que você não está bom da cabeça, você sabe muito bem que eu estou saindo agora.” Blum, desligaram. Aí eu ligo para o Emílio Di Biasi e digo: “Emílio, eu acho que vão invadir o nosso teatro hoje, porque alguém ligou aqui e acho que foi um trote”. Aí ele falou: “Paranóica!” Paranóica! Mulher não é paranóica; paranóia é uma doença do sistema. Bom, aí eu falei: “Emilio, eu não sou paranóica, alguém fez isso. Será que foi a turma da Regina?” Porque tinha um teatro, tinha todo mundo hospedado no mesmo hotel, do grupo do Paulo Autran, e aí nós começamos a telefonar para os atores: “Vocês fizeram isso?” [E responderam] “Não, não, não e não.” Aí eu falei: “Bom...”, me vesti, eu ia jantar com o Daverta, que ia me apresentar a um gato lindo, botei minissaia, botinha, superbonitinha, e aí quando eu vou saindo do hotel, eu vi uma coisa fazer assim [gesticula], foi uma coisa. Aí não entendi direito, mas eu não sou covarde, e aí eu fui e andei, dei a minha chave [na portaria do hotel], quando eu botei o pé na rua, foi assim, pô [simula um tapa]. Aí pronto, foi bofetão. O Emílio também foi me buscar... aí os caras eram tão grandes e [eram] tantos que eles fizeram assim no Emílio: pá [faz um movimento com os dedos], [deram-lhe] um peteleco e o Emilio desceu de bunda naquela rua toda, foi parar lá embaixo. E o homem tinha um cachimbo e não mexia o cachimbo. Aí me botaram no carro e me levaram embora. E eu fazia assim: “O público está me esperando, eu tenho que ir para o teatro, seja gentil!” [E disseram] “Gentil nada, você vai é para o Rio de Janeiro!” E aí me levaram embora.

Jorge Escosteguy: Norma, vou registrar aqui primeiro a queixa do telespectador Marcos Soares,  [do bairro] Tucuruvi. Ele disse que este programa está muita rasgação de seda, muita promoção

Norma Bengell: [brincando] Ah, você quer que eles me batam?

Jorge Escosteguy: Então, vou fazer aqui uma pergunta de dois telespectadores sobre o mesmo tema, voltando um pouco ao filme [Eternamente] Pagu . É da Regina Santos, de Pinheiros, e Maria Aparecida Nilbergue, de Cerqueira César.

[Norma Bengell acende um cigarro.]

Jorge Escosteguy: [reproduz as perguntas das telespectadoras] Norma Bengell diz que Pagu é a visão bela da personagem e critica o fato de você não ter feito uma pesquisa conseqüente sobre o filme. Então, a Maria Aparecida pergunta se você, com isso, não está deturpando a história da mulher Pagu, e a Regina pergunta ainda o que você acha da crítica da [política do PT] Marta Suplicy ao filme ,na Folha da Tarde, onde ela cumprimenta, mas afirma que teve o roteiro falho por falta de pesquisa, e que Pagu não foi bem retratada.

Norma Bengell: Problema da Marta, não é? Um problema dela. Ela vai, faz a pesquisa e faz o filme dela. Agora, eu continuo dizendo que a arte é livre e essa é a minha visão da Pagu. Eu não quis fazer um filme biográfico, e não fiz, ué!

Jorge Escosteguy: Mas, na medida em que você está lidando com um personagem histórico, não há esse problema de, de repente, você deturpar a história de uma pessoa que teve importância?

Norma Bengell: Não, por que eu tenho que contar a história tintim por tintim? Eu contei do modo que eu soube contar, é o meu modo; a arte é livre, gente, a arte é o meu filme, [que] é um noturno de Chopin, é um noturno. [Frederic Chopin (1810-1849), compositor e pianista polonês, um dos maiores nomes da história da música]

Antonio Bivar: Não sei por que as pessoas reclamam tanto da falta de pesquisa, porque o filme está belíssimo. A vida da Pagu não tem nada, quer dizer, a vida da Pagu é uma coisa tão grande, que engloba tudo.

Norma Bengell: Eu também acho. Eu não sei por que inventaram que não é a vida da Pagu; é a vida da Pagu, gente.

Roberto Ethel: Norma, saindo um pouco de Pagu...

Norma Bengell: [interrompendo] Não deixem de ver Pagu, [nos cinemas] Belas Artes e Metrópolis.

Roberto Ethel: Você já falou duas vezes em gatinho, gatão.

Norma Bengell: [interrompendo novamente] Aliás, [o filme] vai para Santos na terça-feira e para Brasília no dia 16.

Roberto Ethel: Você já falou duas vezes em gatinho, gatão. Como que é hoje, aos 53 anos, a sexualidade de Norma Bengell? Ela se produz ainda para tentar conquistar alguém, como é que é? [risos]

[...]: Tem namorado?

Norma Bengell: Tenho vários.

Roberto Ethel: Mas como é que é, você seduz alguém hoje?

Norma Bengell: Não sei, se você quiser eu posso tentar. [risos]

Roberto Ethel: Seria um prazer. [risos]

Norma Bengell: Você é bonitão, eu gosto, juro! Aqui, quando cheguei, fiquei um pouco nervosa quando eu te vi.

Roberto Ethel: Ah é? Obrigado. Eu só posso agradecer, fico envaidecido e espero que o [Ricardo] Kotscho não fique bravo.

Norma Bengell: Quantos anos você tem?

Roberto Ethel: Trinta e um.

Norma Bengell: Hum!!!

Jorge Escosteguy: A telespectadora Maria Teresa Sanches, do Alto da Lapa, pergunta qual é o segredo para você manter essa excelente forma física. São cuidados com alimentação, ginástica etc?

Norma Bengell: Eu como legal, não como gordura, como muita verdura, muita fruta; fumo, rôo unhas, mas eu danço, eu faço ginástica. Estou adorando aqueles desenhos [refere-se às charges de Paulo Caruso]... eu não como gordura.

Sergio Lhamas: Norma, voltando um pouco à Pagu, ela vai ter carreira internacional? Como é que está o filme?

Norma Bengell: Olha, ele foi convidado para o Festival Taormina [na Itália], lá em Cannes, e como lá não existe esse envolvimento emocional que existe com a Pagu [no Brasil], os homens olham lá e dizem assim: é um filme profissional e emocionante. Então, ele foi convidado para Taormina, porque eles acham o filme bom e parece que o Festival de Taormina, quando o filme participa, ele automaticamente é distribuído e também vai para a feira de Milão. Quer dizer, eu acho que o filme está sendo bem olhado lá fora.

Sergio Lhamas: E nos Estados Unidos?

Norma Bengell: Nos Estados Unidos eu mostrei para o [produtor] Dino de Laurentis. Ele me passou para um outro cara, chamado Paul Rosenfeld, que adorou o filme, mas a sócia dele achou teatral [risos]. O Fellini é teatral, mas eu acho também que americano não abre muito o mercado para a gente. Ele acha que o filme pode ser distribuído em universidades, em cinemas pequenos, e [ele sugeriu] que eu faça o próximo filme em língua americana, porque americano não lê subtítulo. Eu agradeci o conselho. Mas [Eternamente Pagu] vai ter uma carreira normal. Tem lugar para o meu filme, tem lugar para Romance, tem lugar para todos os filmes, não é?

Sergio Lhamas: Está pago já o filme pelas bilheterias do Rio e São Paulo?

Norma Bengell: Ah, quem dera, que Deus te ouça e que a sua boca seja santa, mas o filme está indo bem.

Sergio Lhamas: E como está a freqüência?

Norma Bengell: Por volta de 60 mil espectadores em três semanas e meia, está indo bem. E eu estou fazendo road show. São quatro cinemas no Rio e dois em São Paulo; agora estou só em três cinemas no Rio, essa semana entra no quarto, [o filme] vai dobrar a quinta semana.

Sergio Lhamas: Você precisa de quantos espectadores para o filme se pagar?

Norma Bengell: Olha, meu filme custou tão barato, e agora está mais barato, porque o dólar cada vez sobe mais. Com 200 mil dólares eu pago o filme.

Sergio Lhamas : E as locações?

Norma Bengell: Foram todas feitas no Rio.

Sergio Lhamas: Todas no Rio? Por que não em São Paulo? E a viagem, não deu para fazer nada fora [do Rio]?

Norma Bengell: Porque não é a minha cidade, eu não sabia, eu não sei me movimentar aqui. Eu estou lá no Hotel Bristol hoje, aí eu falei: onde é que eu estou? Como é que eu ia fazer um filme aqui? É uma irresponsabilidade, mas eu acho que lá foi art déco, a art nouveau está tudo lá. O trabalho do Alexandre é muito bonito. O meu filme não é um filme pobre, é um filme de idéias.

Jorge Escosteguy: Ricardo Kotscho, por favor, tem uma pergunta.

Ricardo Kotscho: Mudando um pouco de assunto, Norma, nós temos um assunto assim meio triste.

Norma Bengell: A Pagu é forte mesmo, hein, só pode se falar dela.

Ricardo Kotscho: Norma, você é uma das poucas brasileiras que já votou para presidente da República. Você lembra em quem você votou?

Norma Bengell: Uma vez só, no Juscelino.

Ricardo Kotscho: Juscelino. E parece que a gente vai ter eleição, não sei exatamente em que dia, mas está previsto para o ano que vem. Você já sabe em quem você vai votar?

Norma Bengell: Eu não, eu não tenho nenhum interesse por nenhum deles, pelos que estão por aí não me interessei ainda, você já?

Ricardo Kotscho: Eu já.

Norma Bengell: Quem?

Ricardo Kotscho: Mas você é a entrevistada.

Norma Bengell: Ah, mas me deixe saber, este programa não é autoritário, a gente está aqui trocando idéias.

Ricardo Kotscho: Eu vou votar no Lula. [Ver entrevista com Lula no Roda Viva]

Norma Bengell: No Lula? Eu precisava conversar com o Lula para ver se eu me decido por ele. Eu tenho umas coisas que eu tinha que perguntar para ele, que são particulares.

Luiz Fernando Emediato: O que é que você acha do Lula? Pelo que você vê pelo esforço dele.

Norma Bengell: Eu acho ele um batalhador, acho ele um líder, mas eu tenho coisas de que eu discordo dele e gostaria de conversar com ele, em outra ocasião.

Luiz Fernando Emediato: E do Ulysses Guimarães, você também deve discordar?

Norma Bengell: O doutor Ulysses? O doutor Ulysses é super-respeitoso, super-respeitado.

Roberto Ethel: E o Jânio Quadros?

Norma Bengell: Ele é engraçado, né?

Roberto Ethel: Bastante.

Norma Bengell: Mas me disseram que ele está fazendo um bom governo aqui, é verdade?

Roberto Ethel: Eu não acho.

Norma Bengell: Não? Então não está. Está?

Edmar Pereira: Não sei, dizem que ele faz um bom governo para quem não votou nele, o pessoal que levou ele para a prefeitura está sofrendo muito. Agora, quem votou em Fernando Henrique [Cardoso - ver entrevista no Roda Viva] parece que está indo muito bem, ele [Jânio] calça as ruas. Toda parte da cidade onde moram as pessoas [das classes] A e B está muito bonita.

Norma Bengell: Eu ajudei a campanha do Fernando Henrique aqui, eu vim fazer a campanha do Fernando, mas não deu certo [porque ele perdeu as eleições para a prefeitura de São Paulo em 1985].

Moacir Japiassu: Ela falou do Fernando Henrique. Eu gostaria então de fazer uma pergunta em homenagem a Fernando Henrique: você acredita em Deus? Ele devia ter dito isso [que acreditava] e já resolvia isso de uma vez [refere-se a um debate na Rede Globo entre os candidatos à prefeitura de São Paulo, no qual o jornalista Boris Casoy perguntou a Fernando Henrique, então favorito, se ele acreditava em Deus. O candidato preferiu não responder, dizendo que havia sido combinado que tal assunto não entraria no debate. Acredita-se que este episódio tenha sido decisivo para a derrota de Fernando Henrique para Jânio Quadros.]

Norma Bengell: Mas eu acredito em Deus, não nesse deus tirano que as pessoas acreditam. Eu acredito no deus [...], no seu deus, no deus de todo mundo que está aqui, mas nesse deus que inventaram eu não acredito.

Jorge Escosteguy: Norma, o telespectador Vanderlei Zalope, de Campinas, pergunta: Norma Bengell diz que não é covarde. Fazer dezesseis abortos é covardia, valentia ou glória?

Norma Bengell: Não é nenhum dos três, são situações que você tem que decidir. Eu nem gosto muito de tocar nesse assunto, é tão privado, é do passado.

Jorge Escosteguy: O telespectador José Wolf, jornalista da revista Arquitetura e urbanismo, que mora em Santa Efigênia, pergunta se o que a mantém viva é a crença política ou a crença mística? Parece que você tem ligações com o candomblé, gosta de candomblé.

Norma Bengell: Eu acho que são todas as minhas crenças que me mantêm viva, porque eu era uma pessoa destinada ao assassinato cultural, como houve tantos. As minhas amigas, as minhas companheiras, a  Aneci Rocha, a Adriana Prieto, a Leila Diniz, de uma forma ou de outra [as mortes delas] foram assassinatos, culturais, mas foram. Se a Leila tivesse tido trabalho no Brasil, na época, ela não teria ido para Austrália, e aí morreu. E eu também estava predestinada a isso, eu não sei o que aconteceu que eu fui salva. A Adriana, por exemplo, foi assassinada, porque ela estava fugindo de um carro de polícia que perseguiu ela e ela bateu. Isso é assassinato, não é?

Jorge Escosteguy: Você, que se exilou, por que você voltou, o que a trouxe de volta ao Brasil?

Norma Bengell: Ué, eu sou brasileira, eu ia ficar na França? Eu vim para cá, para o meu país, não tem nada “porque assim” [não houve um motivo especial]. Teve uma abertura política e eu vim.

Ricardo Kotscho: Norma, você mostrou aqui que você é uma mulher muito decidida.

Norma Bengell: Eu não, eu tenho um destino.

Ricardo Kotscho: Não, você sabe o que você quer. Tem alguma coisa de que você se arrependa de ter feito na sua vida, ou de não ter feito?

Norma Bengell: Olha, quando estou com raiva, eu me arrependo de ter voltado para cá [ao Brasil], porque tudo é difícil e tem muito fel, muita briga. Você faz um trabalho, em vez de passar o trabalho normalmente vira uma guerra, e é guerra de dinheiro. E aí quando eu fico com raiva, eu digo assim: maldita hora em que eu saí de Hollywood, você entendeu? Mas são raivas passageiras, porque tem outro lado que você não tem nem em Hollywood, nem na França, nem na Itália, nem no diabo que o carregue, que é esse amor que as pessoas me dão e que eu dou às pessoas. Eu não sei se poderia viver num país onde ninguém me reconhece. Eu adoro o Brasil, eu adoro as pessoas, eu adoro ser reconhecida, adoro carinho. No Rio, aquela coisa meio assim malemolente: “Olá, como vai?”, é todo mundo íntimo, e aí já vira uma grande festa. Aqui em São Paulo eu sinto as pessoas um pouco mais formais, mas muito honestas, muito afetivas, eu gosto de ser amada.

Moacir Japiassu: E por falar no Rio de Janeiro, qual é o seu relacionamento com a [favela da] Rocinha? Porque a Rocinha está na moda no Rio de Janeiro.

Norma Bengell: Nós estamos em guerra civil, eu acho, eu vou falar uma coisa...

Moacir Japiassu: Você tem algum ídolo na Rocinha atualmente? Todo mundo tem atualmente um ídolo na Rocinha; o meu, mataram a semana passada.

Norma Bengell: Não, eu não tenho um ídolo não, mas eu chorei quando eu vi aquele corpo sendo arrastado [refere-se ao corpo de Buzunga, traficante morto no morro da Rocinha pela polícia, em 1988], porque eu fiquei pensando assim: será que ele nasceu para isso? Ninguém nasce para virar isso. E eu chorei na televisão quando eu vi ele sendo arrastado. Se ele é bandido ou não é bandido ou seja lá o que for que digam dele, mas será que uma mãe pariu aquele filho para isso? Eu fiquei supertriste, fico supertriste com o que está acontecendo.

Moacir Japiassu: Mas parece que o Buzunga não era bom filho. Há provas nesse sentido.

Norma Bengell: Não? Mas será que ele escolheu não ser bom filho ou foi a própria sociedade que fez ele virar isso?

Sergio Lhamas: Norma, você é uma recordista de aborto, e nós falamos de um problema tão grave quanto a aids aqui, que é a política. E você, tem medo da aids?

Norma Bengell: Claro, porque eu tenho medo de morrer, não é? Eu quero ficar viva, eu queria viver até... Ainda vou namorar ele [refere-se a Roberto Ethel] [risos].

Jorge Escosteguy: Você vai recomendar o uso da camisinha ou não? Você só transa com camisinha ou não?

Norma Bengell: Depende, não é? [risos]

Sergio Lhamas: Quais são os outros medos da Norma Bengell?

Norma Bengell: Os meus medos? Ah, eu tenho tantos medos, mas eu tenho medo mesmo é de morrer, viu, gente? Eu não quero morrer. Porque quando eu tive a minha morte clínica, eu vi como era a morte, é chato, é chato, fica tudo meio paradão.

Ricardo Kotscho: Como é que foi essa morte clínica, Norma?

Norma Bengell: Eu fiquei doente na França. Estive muito doente, e apaguei.

Ricardo Kotscho: Como é que foi a história do mar, Norma, que você falou no começo? Eu não entendi direito, o que é que o mar tem a ver com isso, como é que foi isso?

Norma Bengell: O mar? Na França não tem mar [refere-se provavelmente à região francesa onde morava], e eu sou do mar, eu nasci no Rio, eu tenho que olhar o azul, senão eu morro. Então, de vez em quando eu ia lá para a Costa Azul [parte do litoral sul da França] olhar o mar. Mas era difícil, porque a vida na França é muito difícil, e eu só pude olhar esse mar dois anos depois de [estar na] França, porque eu fui para lá sem um tostão. Quer dizer, quando eu comecei a trabalhar no Teatro Nacional Popular [Théâtre National Populaire], aí sim, eu fui e tinha dinheiro e fiz uma turnê pela França inteira. Mas, olha, eu acho o português uma língua linda, eu gosto de palavras, e me faltava isso. Por melhor que você fale uma língua, não é a sua língua, sabe, tem o mar, o "mar que não escorre por minhas faces" [como dizia Pagu]; tem o [rio] Sena, que é bonito. Agora, eu gosto de ir a Paris passear, porque agora eu posso ir e vir. Eu estava proibida, e proibir é horrível, assim: você está proibido de voltar para o Brasil! O que é isso, gente? Estão loucos? Eu ligava para a embaixada, dizendo: me dá o meu passaporte! Não [respondiam], vai buscar no Brasil. Como é que eu iria buscar no Brasil? A proibição é uma coisa horrorosa, é horrível. E isso daí foi horrível para a minha vida, porque o meu casamento também foi para o brejo, foi tudo para o brejo. A minha vida privada virou um penico, quer dizer, aí eu pergunto assim: o que é sucesso? Foi eu ter trabalhado no TNT, ter feito filmes na Europa ou foi a minha vida privada, meu pai que morreu, minha mãe que morreu, meu casamento que se danou por causa dessa bosta dessa ditadura?

Antonio Bivar: Você trabalhou em Portugal, você fez uma peça com o [diretor] Victor Garcia.

Norma Bengell: Fiz, você sabe que o Victor Garcia morreu na miséria, bêbado nas ruas, era uma vergonha, não é? [Norma Bengell acende outro cigarro.]

Antonio Bivar: E quanto tempo você ficou em Portugal, durante essa época, meses?

Norma Bengell: Sabe que eu não me lembro muito bem, mas eu acho que eu fiquei uns dois meses, porque o [diretor francês Patrice] Chéreau me descobriu e mandou me chamar, e [foram] os atores brasileiros que me botaram para fora, porque eu não queria ir, né? O [ator] Cláudio Mamberti [1940-2001] dizia assim: “Vai, deixa de ser burra”, me tirou da peça e me jogou para ali... meus companheiros.

Antonio Bivar: Mas o que você achou de Portugal, por exemplo, você sentiu algo...?

Norma Bengell: Eu não gosto de lá, não gosto.

Antonio Bivar: Porque hoje tem muitos brasileiros que estão indo para Portugal.

Norma Bengell: Eu não gosto de Portugal, não gostei de lá.

Antonio Bivar: Mas a inflação lá é de 10%, uma coisa assim...

Norma Bengell: Pode ser até que agora eu goste, mas na época eu não gostei. Ainda tinha a ditadura, nós fomos obrigados a trabalhar em Cascais [cidade portuguesa localizada na região de Lisboa].

Jorge Escosteguy: Norma, por favor, o nosso programa está chegando ao fim e eu queria que você terminasse de explicar a história do champanhe que você trouxe.

Norma Bengell: O champanhe eu trouxe [como objeto] simbólico [ela pega a garrafa de champanhe]. Quem é que pode estourar para comemorar o sucesso da Pagu, o sucesso da arte, o sucesso da arte livre e a queda da misoginia? [Dirige-se a Jorge Escosteguy] Você pode abrir, por favor?

Jorge Escosteguy: Nós temos a produção para abrir, senão eu vou fazer um estrago aqui.

Norma Bengell: Quem quer abrir? [A um rapaz que se oferece para abrir a garrafa] Vem cá, que bonitinho, obrigada! [O rapaz chega, cumprimenta-a com um beijo e pega a garrafa] À queda da misoginia, à queda do machismo, por um mundo melhor, por um mundo livre, que encontrem remédios para a aids, que parem com essa coisa, porque é fácil encontrar, a gente sabe disso.

Jorge Escosteguy: Esse champanhe é nacional?

Norma Bengell: É nacional. Sabe quanto está custando uma champanhe francesa aqui? Um escândalo. [Mas] Vocês merecem. Não tem crítico aqui. Para um mundo melhor, por um mundo melhor, pelas Pagus... [O rapaz abre a garrafa]. Obrigada. Saúde! À queda da misoginia!

Jorge Escosteguy: O nosso tempo infelizmente está esgotado, eu agradeço a presença de Norma Bengell e dos nossos entrevistadores desta noite. Infelizmente não pudemos fazer todas as perguntas dos telespectadores, mas vamos entregar todas à Norma para que ela possa ler. O programa Roda Viva volta na próxima semana, muito obrigado!

Norma Bengell: Adorei. Muito obrigada. Muito obrigada por terem me aturado. Um beijo e até sempre.

[Aparece uma charge de Paulo Caruso: Norma Bengell sentada e, ao seu lado, uma grande garrafa de champanhe.]

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