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Memória Roda Viva

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Dulce Maria Pereira

21/8/2000

Feminista e defensora do movimento negro, a arquiteta e antropóloga chegou a um cargo diplomático, no governo FHC, com o desafio de integrar os países da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa)

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Paulo Markun: Boa noite. Ela está na linha de frente dos que lutam contra a discriminação racial no Brasil. E acaba de se tornar a primeira mulher negra a ocupar um cargo na diplomacia brasileira. O Roda Viva entrevista, esta noite, a arquiteta e antropóloga Dulce Maria Pereira.

[Comentarista] Ela já se colocava na discussão das questões nacionais nos anos 1980, e foi aqui na TV Cultura. Além de outros programas, Dulce apresentou o Constituinte 87, uma mesa de debates sobre os principais temas ligados à reforma da Constituição. Nos anos seguintes, ampliou a sua atuação política, participando de movimentos de defesa dos direitos humanos. Chegou à presidência da Fundação Cultural Palmares [criada em 1988 e vinculada ao Ministério da Cultura], entidade voltada à defesa dos direitos da população negra no Brasil. Nos últimos anos, também se tornou coordenadora de programas que envolvem parcerias entre sociedade e governo na área social. Em julho deste ano, Dulce Maria Pereira foi escolhida pelo presidente FHC para assumir a secretaria executiva da CPLP, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. No discurso de posse, a reafirmação de um objetivo: buscar a integração política, econômica, social, cultural, científica e jurídica entre os sete países que falam português e tentam se unir através dessa comunidade – Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

Paulo Markun: Para entrevistar Dulce Maria Pereira nós convidamos a jornalista Teresa Cruvinel, colunista de política do jornal O Globo; a socióloga Fátima Pacheco Brandão, especialista em pesquisa de opinião pública e integrante do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo; a jornalista Maria Amélia Rocha Lopes, editora do Caderno de TV do Jornal da Tarde; a jornalista Norma Couri, colaboradora do jornal O Estado de S. Paulo; o jornalista Alfredo Prado, correspondente da agência Lusa no Brasil; a historiadora Cidinha da Silva, presidente do Geledès, Instituto da Mulher Negra, e o jornalista e escritor Eduardo de Oliveira, presidente do Congresso Nacional Afro-Brasileiro. O Roda Viva é transmitido para todos os estados brasileiros e também para Brasília. E o programa de hoje está gravado, portanto, não permite a participação dos telespectadores. Boa noite, Dulce.

Dulce Maria Pereira: Boa noite, é um privilégio estar aqui no Roda Viva.

Paulo Markun: Eu queria que você começasse explicando o cargo que você vai assumir na diplomacia e o que é que significa essa sua nomeação para a secretaria executiva da CPLP, a Comissão dos Países de Língua Portuguesa... é comissão?

Paulo Markun: Comunidade?

Dulce Maria Pereira: Exatamente. Olha, é um cargo importante, principalmente, pela quantidade de tarefas que existem a ser cumpridas, não é? A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa congrega países em três continentes e, certamente, com a presença do Timor, que em breve se incorporará, congregará países em quatro continentes, países que têm problemas e, ao mesmo tempo, imensas possibilidades, mas, principalmente, muita necessidade de intercâmbio, necessidade de convívio. E ainda, a própria CPLP, por ser uma instituição multilateral relativamente nova, acabou não se firmando no conjunto das outras instituições multilaterais como uma instituição política, e, sobretudo, que tenha voz, de fato, no que diz respeito às relações econômicas. É uma tarefa...

Paulo Markun: Tanto assim é, que eu acabei confundindo comissão com comunidade...

Dulce Maria Pereira: Pois é, exatamente. Com certeza, então, é uma tarefa importante. Agora, não é uma tarefa apenas para a secretária executiva da CPLP. É uma tarefa para os governos, para os sete, daqui a pouco, oito governos. Os presidentes têm peso muito grande nos trabalhos da CPLP. E, além disso, é uma tarefa para os povos dos nossos países. Sem dúvida nenhuma, um desafio extraordinário para o Brasil. Porque significará também uma oportunidade para o Brasil de trabalhar nessa instituição multilateral a partir da realidade dos países africanos de língua portuguesa, do Timor, da parceria com Portugal e da sua própria realidade interna.

Teresa Cruvinel: Dulce, por favor, eu poderia chamá-la de você? A partir do fato de sermos inclusive companheiras da mesma geração da universidade em Brasília. [risos] Língua, todos nós sabemos, língua é poder. E o melhor exemplo disso é o predomínio do inglês no mundo, hoje, como tradução do poder unipolar dos Estados Unidos. Exatamente contra esse poder unipolar dos Estados Unidos é que os países e as regiões têm procurado se organizar em blocos econômicos, em blocos regionais. E o melhor exemplo disso é também a União Européia e as associações que a União Européia busca, inclusive, esse acordo que estamos negociando com o Mercosul [bloco de países do cone sul da América Latina, formado por Brasil, Bolívia, Argentina, Paraguai, Uruguai e Chile]. Eu lhe pergunto: um organismo multilateral, como a CPLP, baseado na língua, na identidade, inclusive, na identidade étnica e cultural, que papel pode jogar na globalização, se os sete países que o integram têm economias tão diferentes, que dificultam trocas, que não permitem, por exemplo, uma pressão efetiva no jogo das trocas, no jogo internacional da economia? Que papel joga a CPLP na economia globalizada?

Dulce Maria Pereira: Teresa, acho que essa pergunta fala muito, inclusive, da própria realidade da nossa geração, não é? Porque a globalização, ao mesmo tempo em que, sem dúvida alguma, dificulta a realidade desses sete países, ou os oito da CPLP, também cria imensas oportunidades. Primeiro, oportunidade de tentar separar o que são as dificuldades do que são as nossas possibilidades. As possibilidades são muitas, principalmente, se nós conseguirmos lidar com o fato, se conseguirmos encerrar a guerra em Angola, que é fundamental. Angola é um país extremamente rico, é um país extremamente promissor e que depende muito, principalmente, do fim dessa guerra. O próprio fato da CPLP, como bloco, negociar e interferir para o fim da guerra, será uma... eu tenho certeza de que já dará à CPLP um status muito mais importante do que ela tem tido até hoje.

Teresa Cruvinel: Essa é uma prioridade?

Dulce Maria Pereira: Essa é uma prioridade, sem dúvida alguma. Além disso, fazer valer o poder da língua. O português é uma língua muito mais falada do que outras, que têm espaço, inclusive, nas Nações Unidas. E, no entanto, é desqualificada à medida que a própria CPLP não se impôs como instituição multilateral de concertação. Além disso, a globalização permite outras avaliações no que diz respeito à importância, mesmo. Veja bem, a CPLP congrega países de continentes diferentes, os países da CPLP estão tanto nas instituições africanas, quanto nas americanas e latino-americanas e, ainda, agora, com a entrada do Timor, na Ásia, e Portugal, que ocupa um papel importante, que inclusive foi presidente da União Européia até há pouco. Então, essas são vantagens que a CPLP precisa explorar, inclusive, participando das grandes instituições de concertação. É fundamental que a CPLP participe, por exemplo, agora, da Cúpula do Milênio. Não faz sentido que não esteja presente, a CPLP. Que a CPLP não tem ainda participado, por exemplo...

Teresa Cruvinel: Sim, mas na hora da Cúpula do Milênio, o Brasil vai como CPLP ou vai como Mercosul? Com certeza, vai como Mercosul.

Dulce Maria Pereira: Mas, veja bem, se a CPLP conseguir criar uma sinergia e, ao mesmo tempo, conseguir defender interesses que são comuns, a CPLP irá como CPLP. Como vai a União Européia, também, e como vai, por exemplo, o Mercosul, onde existem diferenças. O problema não é tanto em que bloco está cada país, mas é: como a CPLP deve se articular e se organizar para ter voz própria e para conseguir representar o que é interesse comum desses países.

Norma Couri: Dulce, eu queria perguntar uma coisa. O Brasil sempre foi muito distante dos outros países de língua portuguesa...

Paulo Markun: Até fisicamente.

Norma Couri: Até fisicamente, mas também por outros lados, né? Nunca se interessou por Timor, quer dizer, nunca nem soube o que era. Qual é o mecanismo que a CPLP pode utilizar para que a gente comece a formar uma comunidade real? E se você acha que isso é possível?

Dulce Maria Pereira: Olha, eu acho que é possível. Eu tive essa certeza na reunião de cúpula dos presidentes dos países da CPLP. Primeiro, é importante que os presidentes consigam se falar entre si com mais freqüência. Então, uma das medidas a serem tomadas é, justamente, assegurar um mecanismo de consulta permanente entre os presidentes e aí, também, com a própria secretaria executiva da CPLP. E, certamente, a cooperação multilateral. O problema é que hoje o que acontece é que, em geral, a cooperação – não é que ela aconteça apenas de forma bilateral, quando acontece –, é que mesmo a cooperação bilateral pode acontecer a partir dos interesses dos conceitos multilaterais. Não é o que acontece hoje. Eu entendo que uma das decisões já tomadas, agora, na reunião de cúpula dos presidentes, que é fazer caminhar os institutos que estão sendo estruturados, é essa decisão sendo tomada de forma comum, mesmo que os institutos estejam, um deles no Cabo Verde, o outro em Angola e o novo em Moçambique, já há aí uma predisposição ao trabalho comum. Então, é importante que a cooperação multilateral consolide as relações. Aliás, povos que não fazem negócio, que não produzem cultura em parceria, são povos que não têm mesmo capacidade de dialogar e nem mesmo de definir os seus interesses comuns. Sem dúvida, há muito em comum com os países da CPLP.

Fátima Pacheco Jordão: E do ponto de vista dos movimentos sociais? Você é uma pessoa muito articulada, tanto na questão dos movimentos de mulheres, quanto do movimento negro. Você vem de uma atividade governamental na Fundação Palmares nessa direção, e eu pergunto: como é que você vê as possibilidades de relacionamento do ponto de vista dos movimentos sociais, sobretudo, mulheres e negros, neste espaço que, também como o econômico, tem uma relação norte-sul, quer dizer, um movimento internacionalista, mas muito referenciado pelo Primeiro Mundo, EUA, etc. Você vê possibilidade de uma articulação de movimento étnico e movimento de gênero, movimento feminista, por exemplo, nesse novo espaço em que você está operando?

Dulce Maria Pereira: Eu acho, sem dúvida alguma. Eu acho que você é uma pessoa que há muitos anos investe, por exemplo, em relações adequadas com a África e com outros lugares do mundo, não é? E você sabe que não há apenas a possibilidade, como há mesmo a necessidade, até mesmo para que os Estados, sobretudo os Estados africanos, e para que o Brasil também tenha os processos de democracia aprofundados, é importante essa relação entre os povos, entre as sociedades desses países. Eu vejo com grande esperança – principalmente, a partir do encontro que fizemos na Bahia entre as mulheres dos países de língua portuguesa -, um relacionamento estreito e a organização de projetos comuns entre as mulheres. Além do mais, para os diferentes grupos humanos é extremamente importante conseguir lidar com a nossa diversidade. Veja bem – e eu não falo só de africanos e de afro-descendentes –, essa é uma relação importante, precisa ser consolidada. Eu vejo com grande esperança e com muito otimismo o interesse que já há, inclusive, na construção de processos comuns. Agora, eu falo de todos os povos que compõem essa colcha de retalhos que são os países da CPLP. Veja bem, nós somos todos países que têm populações importantes imigrantes em outros locais do planeta. E em geral, populações que têm uma baixíssima auto-estima, que tem baixa auto-estima porque a sua própria referência cultural de origem é desqualificada. Então, a CPLP deve ser uma instância de promoção do intercâmbio entre as pessoas, para que essa auto-estima dos lusófonos seja muito mais próxima da nossa realidade, da nossa própria história como povos. É claro que a gente tem histórias extremamente perversas, mas também, histórias extremamente ricas. E eu diria que, principalmente, o que se coloca para o futuro é presente no debate feito em todos esses países. É, principalmente, a necessidade do aprofundamento da relação Estado-sociedade. A construção de Estados que sejam Estados que, de fato, incluam o conjunto dos seus cidadãos e que criem oportunidades para esees cidadãos todos, e, além disso, hoje o que se sente em todos esees grupos é que várias das soluções encontradas nos nossos diversos países são aplicáveis ao conjunto dos povos lusófonos. Então, essa é uma questão importante, e eu gostaria de dizer que é fundamental para o Brasil, não é? O Brasil lidará de forma muito mais adequada com a sua identidade à medida que conviver melhor e que os povos todos que compõem o Brasil, as pessoas de todas, de várias origens que compõem essa nossa realidade cultural, tenham condições de conviver com os vários povos que compõem os países africanos de língua portuguesa. E, certamente, Portugal é um país importante e fundamental para o nosso convívio. E agora o Timor, não é? Eu vejo os problemas do Timor como problemas comuns a todos os nossos países, de fato. Então, eu acho que nós temos grandes oportunidades a partir deste intercâmbio.

Norma Couri: Mas, Dulce, é um problemão aqui no Brasil, que é um país que tem vergonha da cor e tem vergonha da própria língua. Eu acho que é uma tarefa... ‘tá preparada?

Dulce Maria Pereira: É uma tarefa, é uma tarefa... mas agora, veja bem, é muito interessante, Norma, que a questão da identidade hoje é um problema gritante em todos os países e é no Brasil, também. Porque ter vergonha de si próprio significa não interferir nos processos políticos e nos processos econômicos a partir de toda a sua vitalidade. Eu acho que há uma mudança no Brasil, não é? Primeiro há uma mudança a partir da voz poderosa dos movimentos sociais e, principalmente, do movimento negro. O movimento negro, eu diria que é o movimento que mais construiu mudanças estruturais neste final de século. Então, essa é uma mudança muito importante. Além disso, o Estado brasileiro, principalmente a partir dessa motivação, não é?, e, principalmente, das cobranças, está se transformando de forma muito interessante. Nem sabe o quanto está se transformando, e, certamente, não está avaliando a nova cultura que deve ser produzida, a nova cultura de desenvolvimento que deve ser produzida. Mas, o Estado brasileiro rompeu com a política estruturada, organizada, que era – primeiro –, que tinha o objetivo de tornar-se, fazer com que a nação se tornasse uma nação branca. É inviável hoje, e não passa mais, de forma alguma, pelas estruturas de Estado, a necessidade, ou sequer a avaliação de que seja possível construir essa realidade. Por outro lado, o Estado brasileiro entende, hoje – eu digo o Estado de uma forma geral, eu falo dos poderes todos e das pessoas que gerenciam o Estado hoje –, entende que é impossível assegurar o desenvolvimento do nosso país se os vários grupos humanos não forem considerados a partir da sua própria cultura, se não forem respeitados e se nós não valorizarmos a nossa diversidade. Então, não há saída. A única saída, hoje, é valorizar essa rica síntese que nós produzimos aqui.

Alfredo Prado: Em uma certa entrevista à agência Lusa, a doutora Dulce Pereira admitiu que o Brasil, apesar da criação do projeto, da criação da CPLP ter partido de um brasileiro, nomeadamente do hoje embaixador José Aparecido Oliveira [(1929-2007) fundador da CPLP, foi embaixador do Brasil em Portugal, ministro da Cultura e governador do Distrito Federal], que o Estado brasileiro pouco empenho teve na CPLP para a sua dinamização. Que tem sido mais retórico do que prático. No entanto, disse que tinha aceitado o convite do presidente Fernando Henrique Cardoso, que lhe garantiu apoio para essa sua missão. Em termos práticos, que garantias é que tem de um empenho, de uma participação de frente da CPLP, do Brasil, perdão, na CPLP? E quando me refiro ao empenho e à participação, me refiro não só à participação em projetos concretos, à participação financeira, a uma nova estratégia da política externa do Brasil?

Dulce Maria Pereira: Exatamente. Olha, primeiro, vale a pena dizer que o embaixador José Aparecido é um homem de extrema visão e que ao criar a CPLP, ele soube plantar sementes muito profundas no Brasil. Ele soube fazer com que muitas vozes e com que muitas pessoas se engajassem e vissem nesse projeto a sua importância. E, embora não tenha havido – as ações do Brasil não tenham sido ações muito mais proativas –, eu diria que em momento nenhum a idéia da CPLP, a importância da CPLP tivesse totalmente deixado de existir no país. O presidente Fernando Henrique Cardoso, desde 96, quando esteve no momento de criação da própria CPLP, afirmou que considerava importante esse espaço geopolítico. Hoje, o que eu vejo...

Teresa Cruvinel: No entanto, o embaixador José Aparecido só não foi nomeado por problemas de relacionamento com o Itamaraty [Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores], picuinhas com o Itamaraty. Ele não era de carreira, e ele tinha muita autonomia política. Você não receia que em algum momento o Itamaraty "te puxe o tapete"?

Dulce Maria Pereira: Olha, veja bem, eu não sou de carreira e eu acho que eu tenho extrema autonomia política, hoje. Eu não receio, eu acho que esse momento é um outro momento. O Ministério das Relações Exteriores, hoje...

Teresa Cruvinel: Absorveu a idéia da CPLP?

Dulce Maria Pereira: Certamente, e está comprometido com a CPLP. Até porque eu diria que, em vários momentos, a Fundação Cultural Palmares e eu, como presidente da Fundação Cultural Palmares, nós fomos chamados com outros órgãos de governo a criar no Brasil muito mais interesse pela CPLP. As manifestações concretas, hoje, não são apenas aquelas que se materializam em recursos. Há uma decisão de um maior aporte de recursos à CPLP, como também, eu tenho podido contar com uma equipe que eu escolhi no Ministério das Relações Exteriores. Além disso, contar com a compreensão de que, embora o Brasil deva atuar de forma muito mais dinâmica na CPLP, vai atuar em um organismo de concertação multilateral, portanto, o investimento do Brasil não significa única e exclusivamente levar para dentro da CPLP a política do Brasil para a CPLP, mas construir consenso. Eu entendo que, principalmente, nessa discussão tão honesta, esteja aí colocada a intenção objetiva do Brasil de contribuir em uma compreensão da importância da CPLP. Eu gostaria de dizer, além do mais, que seria tolo de qualquer dirigente, em qualquer um dos países da CPLP, não perceber a sua importância nesse momento de globalização. Eu pergunto: qual é a instituição de concertação multilateral que congrega países de vários continentes e que tem a possibilidade de ter um papel estratégico, inclusive, na rediscussão de problemas que são fundamentais para os nossos povos? A gente acaba de ver a discussão sobre a questão da dívida externa. Quando, agora – o Brasil agora perdoou a dívida externa, 95% da dívida externa de Moçambique, aumentando inclusive a nossa própria dívida –, está colocada aí, eu acredito, uma disposição muito séria de fazer política de fato de acordo com os interesses da CPLP. Então, eu confio de forma muito real. E eu acho que o presidente Fernando Henrique Cardoso e o ministro Lampreia, [Luiz Felipe Palmeira Lampreia, sociólogo, embaixador no Suriname, Portugal e Genebra, foi secretário geral do Itamaraty e ministro das Relações Exteriores nos dois mandatos de FHC] jamais convidariam alguém com o meu perfil – e eu diria que com a autonomia que eu tenho hoje – para fazer esse trabalho, e, principalmente, me chamando mesmo a fazer esse trabalho com todo o dinamismo e aglutinando o maior número possível de pessoas da sociedade brasileira, se não houvesse uma intenção honesta do Brasil de participar. Além disso, criamos uma comissão, também, que trabalhará sob a coordenação do embaixador Ivan Canabrava [Ivan Oliveira Canabrava, subsecretário de Assuntos Políticos no governo FHC, foi embaixador na Alemanha, Bélgica e Luxemburgo], uma comissão que tem a tarefa de potencializar as ações e os conhecimentos sobre a CPLP no Brasil. Então, eu acho que aí está colocada, já, uma intenção honesta do Brasil de fazer com que a CPLP avance, de participar de forma muito dinâmica na CPLP.

Cidinha da Silva: Dulce, por favor, eu gostaria de fazer duas perguntas a você, como presidenta do comitê preparatório à Conferência Mundial Contra o Racismo, ano que vem, na África do Sul. No dia 3 de maio passado, em Genebra, o governo brasileiro renunciou à oferta, à sua oferta de candidatura para a realização da conferência regional das Américas, preparatória à conferência mundial. No dia 7 de junho, nós participamos conjuntamente, também com o ministro Marco Antônio Diniz Brandão [ministro, diretor do Departamento de Direitos Humanos do Itamaraty no governo FHC, foi embaixador na Alemanha, Bélgica e Luxemburgo], de uma audiência pública na Câmara dos Deputados, que tratava da Conferência Mundial Contra o Racismo, e um dos temas que nós discutimos lá, um dos subtemas, foi o fato de o Brasil, que é signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial – o Brasil é signatário desde 1968 –, o Brasil não assinou o artigo 14, que é o artigo que permite a entrega de petições ao comitê pela eliminação da discriminação racial e também a entrada – o artigo 14, que permite a entrada do comitê nos países – que entregam as petições para investigar os casos. E, naquele momento, você e o ministro Marco Antônio Diniz Brandão nos diziam que o Brasil está a caminho de ratificar esse artigo. Então, essa é a primeira pergunta: eu gostaria de saber de você a quantas anda esse encaminhamento. E – aliás, essa é a segunda pergunta – e a primeira – é realmente um estranhamento, já que o Brasil é um dos países que assinou e que ratificou a convenção, desde 1968 –, por que, até hoje, o artigo 14 não foi assinado e ratificado? E a quantas anda o processo para que isso seja feito?

Dulce Maria Pereira: Essa é uma pergunta muito interessante. Eu só gostaria de dizer o seguinte: eu não sou mais a presidente do comitê brasileiro. Seria inviável conseguir ser secretária executiva da CPLP e, ao mesmo tempo, presidir o comitê brasileiro. Nós estamos fazendo uma divisão de trabalho. A proposta que nós temos feito é que o embaixador Saboia [Gilberto Vergne Saboia], que é o secretário de Direitos Humanos, assuma a presidência do comitê brasileiro – e, certamente, ele o fará com a qualidade com que poucas pessoas o fariam –, e estamos tratando de conduzir, principalmente, uma série de pré-conferências que tratam especificamente da questão da cultura do desenvolvimento no Brasil, de forma a garantir conteúdo para o documento brasileiro e, além disso, a começar a criar, principalmente no executivo, uma discussão mais honesta sobre a questão do racismo e formas específicas de conseguir combater, de fato, o racismo, não é? Então, é um desafio muito interessante, muito rico, que eu considero extremamente importante. Eu tenho uma avaliação sobre a questão da não assinatura, do Brasil não ter ratificado ainda a convenção. Primeiro, claro, que muitos países não assinam. Segundo, o Brasil, em muitos momentos, assinou e ratificou vários acordos, e o cumprimento destes acordos, a gente sabe que tem sido muito lento – quando há alguma consideração pelos acordos. Além disso, foi um outro momento político. Eu vou lhe dizer a impressão que eu tenho e que eu pude pesquisar até agora: é que ficou quase que escondido. Porque eu me lembro o dia em que o movimento negro entregou ao embaixador Walter Franco [representante-residente do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e coordenador do Sistema ONU no Brasil] o documento questionando, inclusive, a não ratificação. Houve uma surpresa geral, inclusive. E houve uma procura. E todo mundo queria saber, afinal de contas – “o que é isso?” –, que não assinamos. Então, o que eu lhe diria é que há em construção uma data visível, uma data, inclusive, que seja dada essa satisfação à altura, principalmente, para o movimento negro, com a ratificação do acordo.

Eduardo de Oliveira: Eu queria, Dulce, saber o seguinte: você, que tem uma passagem brilhante, a única mulher a compor, realmente, a direção maior da Fundação Cultural Palmares – por lá passaram brilhantes antecessores, como o Carlos Moura [primeiro presidente da fundação], o fundador, Adão Ventura, mineiro, poeta, Joel Rufino [historiador, escritor, doutor em comunicação e cultura, exilado pelo regime militar], que todos nós respeitamos e admiramos, e agora você –, eu gostaria de saber como é que ficaria, realmente, esse trabalho, para dar continuidade a esse trabalho que você desenvolveu, e, ao mesmo tempo, poder relatar, rapidamente, quais são os pontos básicos e fundamentais que você acha nessa gestão de... seis anos?

Dulce Maria Pereira: Não, não. De quase quatro anos.

Eduardo de Oliveira: De quase quatro anos, porque você passou...

Dulce Maria Pereira: Veja bem. Não há descontinuidade. Não há descontinuidade, não há ruptura, é uma decisão, inclusive, não só do ministro da Cultura, como também, do presidente. Agora, além disso, eu diria que esses anos foram anos muito interessantes. Primeiro, porque eu aprendi muito. Eu aprendi muito no que diz respeito aos limites da cultura administrativa para lidar com as questões que não são aquelas tradicionalmente lidadas, com as quais o Estado lida no dia-a-dia. Aprendi muito ao entender as dificuldades que existem, mesmo quando há boa intenção, principalmente no executivo, ou até mesmo no legislativo, para tratar da questão racial. Consegui entender o estrago extraordinário que o mito da democracia racial como opção do Estado brasileiro fez para todos nós, mas, principalmente, consigo hoje, ter uma visão muito precisa das possibilidades. Principalmente, sendo a população brasileira como é, dependendo tanto das decisões do Estado, das decisões do governo, das decisões do executivo. As possibilidades para a superação do racismo no Brasil são muito maiores – eu vejo –, até mesmo do que as dificuldades. Agora, é preciso que, principalmente, o governo e o executivo sejam muito pró-ativos. Então, eu diria que nós estamos entrando em uma nova fase, uma fase muito mais pró-ativa. Eu tive a oportunidade, com uma equipe extraordinária e, certamente, também a partir da pressão dos movimentos negros, de entregar, hoje, uma quantidade de terra para populações quilombolas, que chega à área de uma Bélgica. Quer dizer, é muito significativo. Na verdade, é cumprir parte da história atrasada no Brasil, que deveria ter acontecido ainda antes da abolição, no processo de abolição ou, pelo menos, no início da República. Agora, eu tenho certeza, também, de que o atual sistema político não permite uma participação maior da população negra. Tenho certeza de que é preciso um trabalho quase que cotidiano, mesmo com os dirigentes de Estado, para que aquela vergonha, que a Norma disse, da nossa negritude, das nossas africanidades, não se consolide simplesmente em posturas muito superficiais ou hipócritas, para que a gente não vá fundo nos problemas, não é? E, além do mais, eu acho que esse é o momento da nação brasileira interferir, de fato, e fazer com que o Estado seja um Estado mais cidadão. E ele não pode ser um Estado cidadão se não incluir a população negra, não é? Agora, também acho que é muito importante que mais e mais as pessoas, no dia-a-dia, se preocupem com as ações do Estado. Por exemplo: a execução do orçamento da União – e essa é uma discussão... alguns de nós falávamos disso muitos anos atrás –, mas, por exemplo: como é que nós podemos consolidar um avanço da população negra, uma melhor inclusão da população negra, da população indígena, no processo de desenvolvimento, se não houver um investimento real, inclusive dos recursos públicos, para que isso realmente aconteça? Agora, sei também que a gente tem que ter muitas pessoas conscientes e com muita paciência para investir no trabalho cotidiano do executivo. É muito importante.

Paulo Markun: Dulce, eu queria pedir um instantinho. Nós vamos fazer um rápido intervalo e voltamos daqui a instantes. Até já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, que esta noite entrevista a antropóloga e arquiteta Dulce Maria Pereira, a nova secretária executiva da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e a primeira mulher negra a ocupar um cargo na diplomacia brasileira. Dulce, você falou no primeiro bloco de dois assuntos, que é a questão da CPLP e a questão do racismo. Eu tenho a impressão de que, para a grande maioria da população e até para quem está nos assistindo, é muito mais fácil entender o racismo do que a história da CPLP. E cito um exemplo prático: não existe qualquer tipo de iniciativa ou qualquer tipo de estímulo para que os brasileiros conheçam outros países da comunidade de países de língua portuguesa. Quer dizer, na hora de um filho de classe média, por exemplo, escolher aonde ele vai passar as férias, ou onde vai fazer o seu intercâmbio, ou vai estudar fora do Brasil, jamais vai passar pela cabeça dele estudar ou conhecer um país que fale a língua portuguesa. Não acha que isso dificulta muito? Quer dizer, eu acho que você está com uma visão super otimista da sua tarefa – e eu imagino que essa é a primeira condição para que a tarefa dê certo –, mas eu vejo a coisa um pouco mais complicada. Eu vejo que o traço de união entre esses países tão distantes é muito vago. Não é?

Dulce Maria Pereira: Veja bem, Markun, eu sou muito otimista no que diz respeito à concertação política. Eu acho que um intercâmbio cultural será feito muito mais a médio prazo, justamente pelo que você diz: primeiro, pelos preconceitos, de lado a lado; segundo, pelas extraordinárias expectativas que existem, inclusive, em relação ao Brasil. Porque, veja bem, se o brasileiro não vai para os outros países de língua portuguesa, o Brasil está no imaginário da grande maioria dos países, principalmente, dos países africanos. Além do mais, eu acho que durante muitos anos, a CPLP, ou durante os anos de CPLP, a CPLP funcionou mais ou menos num modelo de cinco mais dois, quer dizer: Portugal, Brasil e os outros países. Essa é uma mudança que precisa ocorrer. É uma mudança cultural, inclusive, uma mudança de uma nova cultura de instituição. Eu sou muito entusiasmada pelo extraordinário desafio. Eu espero que os resultados estejam à altura do desafio, inclusive. É importante que se dêem a conhecer melhor as possibilidades dos países. Agora, é fato também que é muito difícil alguém pensar em ir a Angola, visitar um país em estado de guerra. É verdade, nós precisamos acabar, por exemplo, com a guerra em Angola. Eu conheci a Ilha de Luanda num momento de Angola em paz e amo aquele país. A última vez que eu fui à Angola, agora, eu não reconhecia sequer a minha paixão por aquele espaço do mundo, tão parecido e tão diferente, ao mesmo tempo, da nossa realidade. Portugal: quanto é que, de fato, nós conhecemos de Portugal? E esse Portugal contemporâneo, moderno, é extremamente interessante. Quanto mais se conhece de Portugal nesses momentos, dos processos internos de Portugal, certamente, temos muitas razões para nos apaixonarmos por aquele país. Inclusive, pela forma como os portugueses hoje lidam com a própria história de colonização. Eu acho que essa é uma lição importante pra todos nós. Moçambique: Moçambique é um país extraordinário. Cabo Verde, conhecer, por exemplo, as...

Paulo Markun: É lindo.

Dulce Maria Pereira: Cabo Verde é um país belíssimo. Agora, para que essa realidade seja conhecida, São Tomé, Guiné Bissau, que é um outro país extremamente interessante – e o Timor? Você esteve no Timor, você sabe; eu conheço um pouco da arte do Timor Leste de alguns anos atrás, uma arte belíssima que eu nem sei se existe ainda –, então, eu acho que essa é parte do desafio: fazer com que os povos se conheçam. E uma das formas dos povos se conhecerem é através da cooperação e do intercâmbio. Eu não acredito que o turismo, por exemplo, possa ser considerado imediatamente, mas eu tenho certeza de que o intercâmbio e a cooperação podem e devem ser instrumentos de diálogo entre os países.

Maria Amélia Rocha Lopes: Dulce, eu finalmente vou fazer uma pergunta para você...

Dulce Maria Pereira: É, pelos nossos longos anos de convivência... [risos]

Maria Amélia Rocha Lopes: Longos anos de convivência e nos reencontramos, hoje, com muito prazer. Dulce, duas coisas diferentes que eu queria falar, mas eu queria começar pelo seguinte: eu li, recentemente, uma reportagem sobre os primeiros resultados do censo no Brasil, e era especificamente com relação a Salvador, ao estado da Bahia, que na nossa memória afetiva, nas lembranças que a gente tem, na imagem que a gente tem da Bahia, talvez, seja o estado mais negro do Brasil. Aí, primeiro os resultados do censo: 15% se consideram negros, quando a gente sabe que a realidade não é essa. Então, a minha pergunta é a seguinte: será que os movimentos negros estão realmente falando, cativando essa população, convencendo esse povo todo de que realmente são negros e que devem assumir essa negritude? Estão sendo eficientes o suficiente? Pelo resultado do censo, não. Eu queria que você falasse sobre isso.

Dulce Maria Pereira: É muito interessante isso. Eu acho que o movimento negro no Brasil é um movimento que faz muito mais do que pode com os recursos que tem. Se a gente for pensar e avaliar, é o movimento mais antigo da história do Brasil, ao mesmo tempo em que teve que sobreviver às suas próprias custas e vindo de uma população extremamente fragmentada. É uma população, inclusive, que é ensinada, inclusive, a não se organizar. É ensinada a se organizar no núcleo familiar, a criar relações profundas no núcleo familiar. Mas, em geral, foi quase que imposta a desagregação da população negra, como grupo político, por exemplo. Então, eu acho que o movimento negro tem feito muito, eu acho que não é bem o movimento negro que não tem feito a sua parte. O Estado é muito tímido, tem sido muito pouco pró-ativo no sentido de fazer a sua parte. Eu diria que começa a fazer. Agora, também a gente vive uma história: até 95, lembremo-nos de que era crime alguém dizer que o Brasil não é uma democracia racial. Era considerado antinacionalismo, era considerado, de alguma forma, uma ofensa e, além do mais, era considerado radicalismo primário etc. Então, é muito recente essa nova postura.

Teresa Cruvinel: Dulce, dentro dessa nova postura, vamos fazer um aparte. Você disse em uma outra resposta que o Estado brasileiro quebrou, fez uma ruptura com o ideário do embranquecimento racial brasileiro. O movimento negro, ela [Maria Amélia Rocha Lopes] aponta...

Dulce Maria Pereira: Ruptura teórica.

Teresa Cruvinel: Na ideologia. Ela aponta a timidez dos movimentos negros e ainda a vergonha de ser negro. Os dados dizem que, alguns dados, por exemplo, segundo, o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], os negros são 44% da população, que ocupam 5% das vagas nas universidades. Entre os 20% dos mais pobres da população, 69% são negros, dados também do IBGE. O Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] tem um estudo recente que me impressionou muito, de que uma mulher negra ganha 46% do que ganha uma mulher branca no mesmo ofício. Dos desempregados de São Paulo, 22% são negros, 16% são brancos. Eu não sou boa de estatística, eu não vou ficar esticando mais os números. Sendo essa a realidade, por que o Brasil hesita, porque o Estado hesita em discutir a política de cotas, cotas para os negros nas universidades, no mercado de trabalho, em acessos gerais aos serviços do Estado? Você acha, você é dos que acham que isso não funcionaria no Brasil?

Dulce Maria Pereira: Muito bem. Eu acho que as cotas são mecanismos absolutamente artificiais, que devem ser aplicados no bojo de uma política de combate ao racismo ou da superação das desigualdades. Eu acho que as cotas são importantes; eu não estou desqualificando as cotas. Mas eu acho que cota não é política. Eu não acho que a gente possa falar em política de cotas. Eu acho que a gente pode falar em políticas de inclusão. Eu não gosto do nome de políticas de ação afirmativa, porque eu acho que ele se referencia basicamente em um modelo dos Estados Unidos. Agora, política para a superação da desigualdade, o Brasil precisa fazer. O fato é, eu diria honestamente...

Teresa Cruvinel: Mas cota é um tipo de política.

Dulce Maria Pereira: As cotas são instrumentos de uma política. Agora, não adianta só fazer as cotas, colocar pessoas na universidade, se as pessoas vão ter que romper, inclusive, com as suas referências humanas e culturais. Um estudante negro – eu sei o que vivi eu –, por exemplo, na universidade e todos os outros. Um estudante negro na universidade, ele tem que romper com a sua família, ele esconde a sua mãe, esconde o seu pai e tem que romper, inclusive, com a sua história, o que é absurdo. Uma criança negra que entra na escola hoje, ela é – no momento em que ela entra na escola –, ela é vulnerável ao racismo, vulnerável inclusive à desestruturação emocional e psicológica, porque se você entra na escola e a primeira coisa que você ouve é: “ô, seu cara de urubu”, ou “cabelo de bom-bril”, sei lá o quê, de uma forma desqualificatória, a tua estrutura emocional começa ali a ser demolida. Então, o fato é: a gente tem que ir muito além das cotas. A gente tem que ter políticas que permitam de fato criar uma nova cultura, não só administrativa, nova cultura do desenvolvimento, nova cultura da educação, nova cultura da saúde.

Norma Couri: Dulce, dentro disso tudo, você carrega duas minorias – você é mulher e você é negra –, neste país com esses números, que a Teresa falou. Como é que você chegou lá?

Dulce Maria Pereira: Olha, duas maiorias distantes do poder, não é? Eu várias vezes me pergunto. Eu venho de uma família pobre, de uma extrema dignidade. Agora, de uma família que sempre soube se cuidar muito bem, afetivamente, respeitar os limites dos outros, principalmente na família, mas, principalmente, em maximizar as potencialidades. Eu sou a filha mais velha de uma família muito preocupada com a contribuição que a gente tem que dar para o universo. Eu acho que isso me ajudou muito. Além do mais, eu me considero extremamente privilegiada, eu tenho tido referências muito importantes. Eu, vendo a Fátima aqui, por exemplo, eu fico emocionada: Fátima Pacheco Jordão foi uma das pessoas que me escolheu em um determinado momento de grande dúvida profissional, para que eu fizesse um trabalho que não era muito bem o que eu vinha fazendo e que apostou na minha possibilidade, nas possibilidades que eu apresentava. Eu conheci pessoas – eu fiquei esses dias pensando – eu fui à Moçambique e soube da recente morte de um dos dirigentes moçambicanos que se predispôs a me ensinar o que era África, muito cedo, não é? Eu tive uma bisavó índia, de uma nação indígena, que optou pela auto-extinção, porque escolheu não ter mais filhos – escolheram isso –, e, ao mesmo tempo, que me dizia: “olha, não importa o que os outros fazem, faça o seu melhor”. Então eu, sobretudo, pude contar, eu diria que eu fui uma das pessoas que contou muito com a generosidade do movimento social negro. E vou dizer o porquê. Eu fui feminista muito cedo, eu me lembro que, por exemplo, em setenta e poucos, quando eu escrevi alguns artigos, eu me lembro que não só homens, mas mulheres do movimento negro, que hoje são feministas, e diziam: ”isso é um horror, imagina, isso é uma coisa de branco”. E eu dizia: “não é, porque nós temos uma história extraordinária”. Eu conheci Lélia Gonzáles [(1935-1994) intelectual, política, professora e antropóloga, teve participação histórica no movimento feminista brasileiro e no combate à violência contra a mulher. Incentivadora das tradições afro-brasileiras, foi uma das fundadoras do grupo Olodum, na Bahia], por exemplo. Quando eu dizia... olha, o fato de eu estar... para mim é difícil às vezes estar em certas organizações porque eu não me submeto, eu sou uma pessoa que respeito hierarquia, eu trabalho, as pessoas sabem que eu respeito muito a hierarquia, mas, não me proíbam de pensar! E conheci uma pessoa extraordinária, que foi o meu primeiro marido, que foi Hamilton Cardoso [(1953-1999) Hamilton Bernardes Cardoso, jornalista, um dos principais articuladores do Movimento Negro Unificado, engajado na luta contra o racismo no Brasil] que sempre me dizia: “voe, não deixe ninguém cortar as suas asas”. Entendeu? Então, eu acho que esse tipo de estímulo – eu convivi com Maurice [Rupert] Bishop [1944-1983)], revolucionário que foi presidente de Granada, onde implantou o Governo Revolucionário do Povo, sendo deposto e fuzilado após um golpe de Estado em 1983], por exemplo. Eu não tinha o que comer na escola, mas eu consegui conviver com o homem que foi o presidente de Granada [país do Caribe, ex-colônia britânica, cuja capital é Saint George’s]. Então, eu acho que eu tive muitas oportunidades, muitas oportunidades. Por isso muitas responsabilidades, também.

Norma Couri: Mas é um contra-senso na história brasileira.

Dulce Maria Pereira: É. Agora eu sei que não sou “tonton” [tio ou bicho-papão, em francês]. Isso me agrada muito. Eu sei que eu não sou uma cara-preta de saias. Eu acho que isso me ajuda a continuar, também.

Fátima Pacheco Jordão: Dulce, você foi suplente do senador Eduardo Suplicy [do PT paulista]. Naquela ocasião, havia grande expectativa tanto do movimento de mulheres, como no movimento negro, de que você, de alguma maneira, pudesse ter alguma abertura, uma participação, nem que fosse por um mês, simbólica, era muito importante naquela ocasião. Isso não ocorreu. Você não teve a coragem suficiente de romper a resistência do senador, do então jovem senador Eduardo Suplicy, ou do PT, ou o próprio senador não lhe deu todas essas oportunidades que você disse que teve ao longo do tempo?

Dulce Maria Pereira: Veja bem, eu acho que eu teria tido as oportunidades se eu tivesse brigado por elas ou se eu tivesse conversado ou negociado. O Suplicy é um homem de uma grandeza política extraordinária. Agora, Fátima, tem aí um limite meu. Eu vou lhe dizer o seguinte: eu acho, eu sempre me vi muito preparada para o executivo. Eu digo isso honestamente. E eu sempre achei que eu tinha que fazer bem feito aquilo que eu fizesse. Então, eu não achava que eu faria tão bem feito no Senado, e, além do mais, pouco tempo depois, foi eleita a senadora Benedita. E eu dizia: “olha, o fato de ter uma senadora como a Benedita [Benedita da Silva; ver entrevista no Roda Viva], depois, a senadora Marina Silva [ver entrevista no Roda Viva], se eu apoiar essas mulheres e, sobretudo, se o mandato do Suplicy conseguir incluir os conteúdos, eu, de certa forma, vou me sentir um pouco livre para fazer aquilo que eu faço bem”. Eu fui, por exemplo, para a presidência da fundação [Palmares], como suplente do Senado. Então, eu me senti, pessoalmente, mais feliz e, principalmente, muito bem representada, porque a gente tinha representantes. Em seguida, foi o senador Abdias do Nascimento [político do PDT do Rio de Janeiro, exilado pela ditadura militar, sociólogo, militante do movimento negro, foi um dos propositores do feriado de 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, em memória da morte de Zumbi dos Palmares] para o Senado. Agora, eu entendo que aí certamente houve uma frustração grande por parte das pessoas que, principalmente, lutaram tanto por isso. Entendo mesmo. E acho também que essa é uma questão importante, porque eu acho que a gente tem que construir muitas lideranças com empenho no legislativo. No executivo é importante, mas o legislativo é muito importante.

Fátima Jordão: Você disse que há preconceito com relação à ascensão de negros na política. Você coloca isso nos partidos? Coloca isso dentro dos governos? Por onde é que você coloca essas barreiras ao trânsito de lideranças negras?

Dulce Maria Pereira: Certamente, há muito medo de uma presença negra mais independente. Primeiro, ainda há muito medo, um medo cultural, um medo atávico – não é? – de uma organização negra que venha a ser tão independente, que não seja controlada pelos vários instrumentos de controle social. Essa é uma questão que eu vejo presente no cotidiano. Segundo, os partidos. Os partidos têm conceitos muito atrasados. Os partidos têm também conceitos muito atrasados, com relação às mulheres, né? Os partidos têm, em geral, conceitos muito utilitários dos negros e das mulheres. Quer dizer, os negros que trazem votos, contam. Se não trazem voto, pra discutir a superação do racismo, nem sempre contam. Eu posso lhe dizer, por exemplo, a dificuldade que foi conseguir a possibilidade para um órgão negro do governo, afinal a Fundação Palmares é para titular terra de quilombos. Primeiro, que ninguém acreditava que nós pudéssemos fazer, que a gente tivesse condições técnicas, tivesse condições objetivas. Eles sabiam que tinha, aliás, esse trabalho a gente fazia. Agora, ninguém acreditava que uma instituição, sobretudo, que trabalhasse com a população negra, para a população negra e dirigida por negros tivesse capacidade técnica ou condições políticas, por exemplo, de titular terras dos quilombos. Foi uma luta. Não pense você que foi uma luta só entre os setores mais conservadores da sociedade. Não foi só com os cartórios, não. Foi também uma luta interna, porque as pessoas não acreditavam. Agora, essa é uma questão séria. Em geral, o movimento negro com razão não tem tido... não confia em geral nas instituições, e com razão. As pessoas negras, em geral, com muita razão, não confiam no Estado, porque nunca tiveram porque confiar. Então, eu entendia, principalmente naquele momento, inclusive, do Senado, que era muito importante conseguir construir mais e mais essa confiança nas etapas, nos vários estágios. Os partidos têm dificuldade para lidar com isso. Para você imaginar, para você convencer um partido a colocar de forma adequada as discussões como as políticas de ação afirmativa, política de superação das desigualdades ou políticas compensatórias nas suas plataformas, é muito difícil. É muito difícil. Porque sempre usam o rótulo fácil – “aí: isso é racismo às avessas” – ou então usam outro rótulo fácil... na verdade, é medo de perder voto, primeiro. Medo de não conseguir lidar no conjunto com essas questões, e, principalmente, medo do desconhecido. Há um profundo medo desse espaço desconhecido, que é a realidade do povo negro. De fato, porque quem não vive, quem não convive com uma família negra não conhece uma família negra. Na realidade, o cotidiano de negro é muito pouco conhecido das pessoas que gerenciam o Estado, ou dos partidos.

Cidinha da Silva: Dulce, por favor, de volta à Conferência Internacional Contra o Racismo, tenho mais duas perguntinhas aqui para te fazer. Uma, a justificativa central do governo brasileiro na pré-conferência em Genebra, de um a cinco de maio, para retirar a oferta de candidatura da realização da conferência regional das Américas, era o fato de que o Brasil precisaria fazer uma tarefa de casa, inicialmente, que o Brasil despenderia muitos recursos financeiros, humanos, em uma conferência regional das Américas, e que deveria investir esses recursos em uma conferência nacional. E temos ouvido rumores de que a conferência nacional brasileira pode ocorrer depois da conferência regional. E a conferência regional das Américas será no início de dezembro, em Santiago, no Chile. Então, eu gostaria de saber de você qual é a previsão de data para a realização da conferência nacional, da nossa conferência interna, preparatória à conferência mundial, e também quanto o governo brasileiro já disponibilizou, até agora, para a realização dessa nossa conferência nacional?

Dulce Maria Pereira: Veja bem, Cidinha. Eu acho que aí existe um problema sério de comunicação, um problema sério de entendimento, e eu tenho certeza de que o embaixador Saboia, que é o secretário de Direitos Humanos, saberá construir esse diálogo. E eu acho também que os movimentos vão se sentir mais confortáveis dialogando com ele. Primeiro, há um processo preparatório, intensivo, dentro do governo. Eu posso dizer, por exemplo, nós tivemos agora, esta semana, um extraordinário encontro de vários especialistas discutindo em profundidade as várias áreas que estão sendo discutidas nesse setor, que é de cultura e desenvolvimento. O ministro José Serra está com uma equipe toda discutindo de forma profunda e honesta a cultura da saúde. E ele teve a coragem de chamar grande parte da sua equipe e perguntar para as pessoas: “o que é anemia falciforme? Como é que acontece a anemia falciforme? Como é que um médico, hoje no Brasil, pode não conhecer a anemia falciforme? Como é que vocês não sabem que as mulheres negras morrem muito mais de hipertensão do que as mulheres não negras no Brasil?”. Então, há um processo interno preparatório. O Ipea e várias outras áreas, a própria Cultura [Ministério da Cultura]. Então, esse processo interno, que a gente chamava um pouco do “dever de casa”, ele está acontecendo e ele é um processo público aberto, as pessoas podem consultar pela homepage e, toda semana, a gente solta notas e a gente convida as pessoas, ele é um processo aberto. Por outro lado, eu acho que, de fato, todo mundo foi atropelado por essa conferência. Eu nunca vi – e eu tenho participado desde a conferência de direitos humanos, por exemplo – eu nunca vi uma conferência mundial ter que ser preparada em um ano e meio. Esse atraso não foi do Brasil, pelo contrário. E até, em Genebra, eu me sentia muito confortável em relação a isso, porque eu sei quanto a própria fundação [Palmares] e eu mesma, o quanto nós pressionamos as Nações Unidas para que se posicionasse e para que fizesse aquele encontro do começo de maio, porque, veja bem – e a extraordinária  [advogada irlandesa] Mary Robinson [ver entrevista no Roda Viva], que esteve aqui neste programa – eu participei aqui do Roda Viva –, onde ela mesma disse: “olha, esse foi um processo atropelado porque a própria agenda das Nações Unidas acabou sendo uma agenda que não permitiu um longo processo preparatório”. Então, primeiro, há um esforço sim. Eu vou dizer: não considerar que é um esforço seria desqualificar o movimento negro, porque esse esforço não surgiu simplesmente por um interesse natural. Surgiu a partir das pressões e das colocações do movimento negro para o governo brasileiro, primeiro. Segundo, além de haver um esforço, é possível, eu não sei se é pior ou melhor – eu acho que aí deve ser um consenso, uma decisão comum –, a conferência brasileira acontecer antes ou depois da conferência preparatória no Chile. Depende do que se quer da conferência brasileira. Se houver a possibilidade de negociações até o encontro do Chile, que acontece no começo de dezembro, do ponto de vista operacional e do ponto de vista pedagógico, para o próprio governo, eu acho que seria extraordinário que a conferência brasileira acontecesse depois do Chile. Até porque o conjunto do governo brasileiro estaria mais pressionado a dar respostas a partir de uma conferência regional. Depende do que se espera. Então, eu acho que não é uma decisão, por exemplo, que deva ser tomada só pelo governo, ou só pelos movimentos, eu acho que aí, sim, precisa haver negociação e um encontro dos interesses. Eu acho que essa é uma proposta extremamente válida dos movimentos sociais, mas é fundamental que haja uma definição sobre, afinal de contas, quais são os interesses dos movimentos, quais são os interesses do governo e as possibilidades reais. Eu tenho muito medo de fazer, no Brasil, uma conferência atropelada. Até porque eu sei que várias áreas do governo apresentam a sua lição de casa e lavam as mãos e vão embora, depois de uma conferência nacional. Se ela acontece com mais subsídios, e inclusive, a minha proposta hoje e a proposta de vários setores é que o Brasil não só apresente propostas para o documento da África do Sul, mas que nós também consigamos produzir um cenário para 2001 “mais cinco” – não é? –, como acontece hoje, a gente tem Beijing “mais cinco”, a conferência da mulher na China, mais cinco anos. Mas que a gente já produza um cenário do que é que nós queremos e como é que nós queremos as relações interpessoais, as relações culturais e, principalmente, as relações econômicas em 2006. Eu acho que essa seria uma contribuição muito importante do governo brasileiro para a superação do racismo no país.

Eduardo de Oliveira: Dulce, permita-me indagar o seguinte: tempos atrás, três ou quatro semanas, seis semanas, por aí, nós estivemos em Brasília, em que você participou de uma mesa, realmente, de uma audiência pública com relação à oficialização, à proposta de oficialização do hino à negritude – letra e música de nossa autoria, que você conhece –, e que você fez, realmente, uma bela defesa da sua natureza etc. Em audiências públicas como essas, em que assuntos polêmicos são, realmente, debatidos lá no Congresso Nacional, eu tive a oportunidade de participar também da – para ver, não, para ouvir –, a conferência em que se debateu o problema dessa conferência contra o racismo etc, e que o representante do governo foi oficial no – você lembra o nome dele?

Dulce Maria Pereira: O embaixador Marco Antônio Diniz Brandão.

Eduardo de Oliveira: Ele deixou um mal-estar muito grande quando disse, peremptoriamente, que a sociedade brasileira não tinha absolutamente nenhum interesse em assuntos dessa natureza. Você se lembra disso? E não tinha interesses em assuntos de “coisas”... está voltado para outros aspectos, razão porque não daria a verba etc, aquela coisa, e você teve uma posição muito forte no sentido de defender a conveniência dessa audiência. É nesse sentido que eu pergunto: como é que, realmente, a gente pode realizar uma... fazer parte de um mundo, de um universo que está preocupado, realmente, nós temos o Papa aí, pedindo perdão em propriedades da participação da Igreja na vida da catequese da civilização brasileira. Tem uma série de coisas que estão mudando, realmente. E me parece que há estruturas muito rígidas dentro de certos setores do governo que resistem a esse tipo de modificação e de aceitação. Como é que a gente pode conciliar isso dentro dessa necessidade de se fazer um congresso dessa magnitude?

Dulce Maria Pereira: Veja bem, eu acho que existem estruturas rígidas no governo e no Estado brasileiro. Eu me lembro de uma discussão muito interessante com alguns setores do Tribunal de Contas da União, quando nós justificávamos porque é que os nossos técnicos viajam tanto no final de semana. E a gente dizia: “olha, porque trabalham para uma população tão pobre, que só pode ser reunida – uma população que não pode se reunir à noite durante a semana – só pode se reunir no final de semana, e nós precisamos ir lá, porque não adianta pensar em trazer uma pessoa do interior de algumas regiões do Maranhão, ou até mesmo do interior de São Paulo para Brasília, para discutir e negociar, ou trabalhar. Os técnicos têm que ir até lá”. Então, há um processo fundamental de “pedagogização” desses setores rígidos. Os setores, às vezes, são rígidos não só porque são simplesmente racistas ou porque respondem ao estímulo tradicional da discriminação, mas, muitas vezes, porque desconhecem essas realidades. A gente precisa entender que o Brasil que gerencia o Brasil conhece pouco dessa realidade cotidiana do país. E que precisa conhecer cada vez mais. Por outro lado, nós encontramos, hoje, servidores públicos que têm plena consciência da importância do serviço público. Ele sabe que o serviço público não pode ser apenas para alguns, mas deve ser, de fato, para a coletividade. E que tem uma parte da coletividade que está excluída. Então, eu acho, seu Eduardo, e eu aprendi isso com pessoas como o senhor e tantos outros: é fundamental que se tenha paciência histórica, muita força e muito engajamento cotidiano. Nós não vamos mudar os conceitos do Estado, ou a estrutura do Estado, apenas porque o presidente quer ou porque alguns setores querem, nem mesmo porque um conjunto de interesses partidários querem. É preciso trabalhar justamente nessas áreas de rigidez, para que elas percebam a importância. Eu vou dizer, é muito interessante, Carnaval: eu nunca consegui, eu ainda não consegui uma emenda parlamentar que permitisse apoio a determinadas instituições carnavalescas. Porque as pessoas acham que é simplesmente pôr dinheiro em um bando de negros que vão lá, no final de semana, fazer festa. Essa é a frase ou é a forma como se expressa o imaginário das pessoas. E não percebe que esse grupo de negros se encontra naquele coletivo, naquele espaço físico, porque ali produz cultura e porque ali, inclusive, ele consegue construir a sua dignidade. E que é uma alternativa extraordinária para o narcotráfico, uma alternativa extraordinária para o roubo, uma alternativa extraordinária justamente para os massacres psicológicos. E ainda o quão pedagógico pode ser o trabalho com uma escola de samba. Então, alguns de nós, de fato, temos que ter muita paciência, muita coragem e, de forma alguma, imaginarmos que as coisas estão resolvidas, porque tem alguém na Fundação Palmares, porque tem o senhor, ou porque tem a Cidinha, não! Nós precisamos construir um número muito grande de pessoas que consigam entender essa realidade e investir na sua superação. Negros, brancos, mulheres e homens de todas as origens, índios, japoneses e tudo o mais.

Paulo Markun: Dulce, a escola de samba tem breque e programa de TV tem intervalo. Nós voltamos já, já.[risos]

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando a antropóloga e arquiteta Dulce Maria Pereira, secretária executiva [da Comunidade] dos Países de Língua Portuguesa e a primeira mulher negra a ocupar um cargo na diplomacia brasileira. Isso é fato, realmente? É a primeira mulher negra a ocupar um cargo...

Dulce Maria Pereira: Não, eu conheço algumas mulheres negras extraordinárias na diplomacia...

Paulo Markun: Mas a ocupar um cargo externo, talvez...

Dulce Maria Pereira: Externo, de embaixadora, sim. É, ao mesmo tempo – sempre, eu digo – que é uma vergonha. É fundamental que aconteça, mas é uma vergonha para o nosso país que isso só aconteça agora. Eu acho que não é um mérito meu, mas é um mérito, inclusive, de se ter produzido essa possibilidade, do movimento social negro e dos setores políticos, do presidente. Porque o presidente foi muito corajoso, eu acho que o presidente Fernando Henrique tem sido muito corajoso, não apenas nessa minha indicação, como em outros atos. E, às vezes, inclusive, são atos do presidente que nem sempre são acompanhados pelo conjunto do governo, até porque não há muita cultura ainda de inclusão, não há uma programação para a inclusão no conjunto do governo.

Alfredo Prado: Doutora Dulce, que projetos que pretende desenvolver no sentido de conquistar maior visibilidade internacional para a CPLP, foi o que referiu não só a nível internacional, mas também dentro da própria opinião pública brasileira? Por um lado, isso. Por outro lado, falou no início desta entrevista, falou na questão de Angola. E apresentou isso como um objetivo, ou seja, a CPLP ter um papel no fim da guerra em Angola. Que passos concretos que pretende dar nesse sentido?

Dulce Maria Pereira: Bem, sobre a primeira pergunta, eu estou iniciando esse meu mandato, visitando todos os presidentes, já comecei essa conversa com os presidentes porque, primeiro, eu tenho que ouvir o que os presidentes esperam e, também, eu tenho pedido a eles que invistam muito na negociação e na discussão interna sobre a importância da CPLP. Isso se aplica, inclusive, ao Brasil, ao meu governo, não é? Além disso, eu acredito que algumas ações imediatas são importantes. Uma delas é, inclusive, informatizar a própria CPLP e agilizar o contato e a informação à impressa. Eu acho que você, Alfredo, é uma das pessoas que sabem da importância de um diálogo cotidiano com a imprensa, até para que a CPLP seja visível.

Paulo Markun: Bancando totalmente o ignorante, que eu sou no caso, existe um site “CPLP ponto com”?

Dulce Maria Pereira: Existe um site, mas esse site precisa... existe um site CPLP. Agora, esse site precisa ser revitalizado e, sem dúvida alguma, atualizado. Agora, por exemplo, os presidentes não têm nenhum mecanismo de intercâmbio mais direto com a própria CPLP. É o mesmo velho telefone... então, essa é uma das metas: fazer com que a própria secretaria executiva tenha um diálogo cotidiano com os presidentes dos países. Além disso, fazer aquilo que fazem todas as outras instituições multilaterais do mundo: construir ações e criar mesmo, fazer publicidade nos vários lugares do mundo. É importante que se faça. Tornar as suas ações visíveis.

Alfredo Prado: Por exemplo, no caso do Brasil, concretamente, há uma verba governamental para propaganda?

Dulce Maria Pereira: Sim.

Alfredo Prado: Do Estado? Por exemplo, estar discutindo a CPLP, por exemplo. Eu creio que o ministro que tem essa verba...

Dulce Maria Pereira: Andréa Matarazzo [ministro de Estado e chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, de 1999 a 2001].

Alfredo Prado: Matarazzo. Por exemplo, custa caro a verba desse orçamento para dar a conhecer no Brasil que existe uma instituição, da qual o Brasil faz parte, que se chama CPLP?

Dulce Maria Pereira: Sim, há. Não apenas há essa verba como há, hoje, uma organização de uma série de produtos de comunicação para fazer com que a população brasileira se engaje no processo da CPLP. É novo, é claro que faz parte dos esforços atuais. Agora, eu queria dizer o seguinte: é muito importante, também, que não seja única e exclusivamente um ato do Brasil. Porque é importante que a CPLP se constitua, cresça como uma instituição multilateral. Então, o que eu espero – e é parte da negociação que eu vou fazer com todos os presidentes –, é que nós tenhamos procedimentos comuns nos vários países. Inclusive, porque podemos assim mostrar... no caso de Portugal: Portugal, sem dúvida alguma, se importa muito com a CPLP. A CPLP é conhecida em Portugal. Agora, será importante que o Brasil saiba o que pensam os portugueses da CPLP, o que esperam os portugueses da CPLP, o que esperam os angolanos da CPLP. Então, além desse merchandising, dessa publicidade sobre a CPLP, está sendo desenvolvido um projeto que é de intercâmbio sobre a informação que se faz nos vários países, também. Isso a curto prazo: tem que ser a curtíssimo prazo.

Norma Couri: Deixa eu te perguntar uma coisa rápida, aqui, que é sobre esse assunto. A CPLP existe há quatro anos, não é? Não é só no Brasil, acho que ninguém ouviu falar nela. E eu pergunto se a culpa disso não seria o fato do primeiro secretário geral, secretário executivo, não ter sido o embaixador José Aparecido de Oliveira, que era, realmente, a alma disso tudo. Quer dizer, colocaram ali alguém que não tinha muita afinidade com a coisa...

Teresa Cruvinel: Política interna brasileira, né?...

Norma Couri: Política interna brasileira.

Dulce Maria Pereira: Eu não sei, eu não sei. Eu realmente não sei se o fato é não ter sido o embaixador José Aparecido. Eu respeito, admiro e eu sei – quando eu crescer eu quero ser igual a ele, eu quero fazer tudo o que eu espero que ele faça –...

Teresa Cruvinel: Nós abrimos mão do Nascimento.

Norma Couri: Ele tinha paixão pela coisa. E isso que fez a coisa andar.

Dulce Maria Pereira: Ele tinha paixão... claro.

Teresa Cruvinel: Estamos torcendo muito por você, viu embaixadora? [risos]

Dulce Maria Pereira: Pois é. Eu não acredito que uma instituição multilateral possa depender única e exclusivamente de uma pessoa. Eu acho que tem que ser política dos estados, e, claro, que como secretária executiva, eu pretendo dar um dinamismo muito grande, eu quero assegurar a participação dos vários países, inclusive, através de colaboradores técnicos. Eu quero assegurar que essa presença cotidiana dos países esteja ali no dia-a-dia da CPLP. Agora, eu entendo, também, que foi um momento difícil para o conjunto dos países. E eu não sei o quanto, mesmo Portugal – aí claro que, se Portugal avaliar a importância dessa instituição multilateral, quando ela foi criada – eu acredito que nenhum dos países percebia a sua importância para a concertação política e econômica, até porque é um outro momento desse processo acelerado de globalização. Era um outro momento, também, dos países, internamente. Eu acredito que se esperava muito mais da CPLP, um resultado quase que interno, do que o resultado que é possível para a CPLP. Eu acho que é a história. A história acaba por si própria dando saltos. Eu acho que houve um salto da própria história aí.

Maria Amélia Rocha Lopes: Dulce, deixa eu te perguntar uma coisa pessoal. Você tem dois filhos adolescentes e você está falando muito de coragem, de programas, de coisas que você quer fazer, e eu quero saber como é que fica a sua vida pessoal com relação a isso. Você sai do país por quatro anos? Você leva os seus filhos junto? O que é que acontece com a Dulce mulher?

Dulce Maria Pereira: Olha, eu ouvi lá em casa que eu sou um ser dos sete mares, porque afinal de contas, são sete países e os vários mares para trabalhar. Eu convivo, eu sou a única feminista de uma casa de homens. Eu tenho um marido extraordinário, um companheiro extraordinário, e filhos que estão se formando, aí, se adequando a uma mãe feminista, que a vida inteira foi assim. Eu me lembro quando trabalhava na TV Cultura, quando eu amamentava o meu filho e algumas pessoas se lembram aqui, por exemplo, quando eu amamentava, aqui...

Paulo Markun: Eu me lembro.

Dulce Maria Pereira: E depois veio o segundo filho. Eu aleitei as crianças durante muito tempo. Um dos meus privilégios é essa família. É um dos grandes privilégios. É uma família de homens muito interessantes, responsáveis, que percebem a importância do trabalho que eu faço e que fazem, eles também, um trabalho muito sério, humano. Que têm consciência da importância do mundo se modificar, que são generosos. Agora, eu sinto falta de não conviver mais, principalmente, porque eles são tão interessantes. Eu gostaria de poder...

Paulo Markun: E, respondendo à pergunta, você não vai levá-los... [risos]

Dulce Maria Pereira: Não. A impressão que eu tenho é que eles vão para Lisboa antes de mim. Eu ouvi lá em casa: “as aulas começam dia sete de setembro, não é isso?” E eu ouvi ontem essa história: “olha, enquanto você fica aí pelos sete mares, nós precisamos nos concentrar em algum lugar”. Então, já estão vendo escola e tudo mais. Chegarão antes de mim! [risos]

Cidinha da Silva: Dulce, deixa eu aproveitar e te fazer mais uma pergunta, aqui nessa linha, também. É notório o crescimento das lideranças negras no país, o crescimento de algumas, a consolidação de outras. E é inevitável que essas lideranças sejam convidadas a assumir cargos públicos, assumir responsabilidades maiores no coletivo mais amplo. E aí, a partir da sua experiência – e essas são lideranças que vêm do movimento social –, a partir da sua experiência, eu te pergunto o seguinte: é possível ter uma perna no movimento social e uma perna no governo? Isso existe?

Dulce Maria Pereira: Olha Cidinha, eu acho que as pessoas têm que fazer escolhas, e as escolhas não são fáceis. As escolhas nunca foram fáceis. Eu li, há pouco tempo, um texto extraordinário do Luiz Gama [(1830-1882) o abolicionista Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu de mãe negra, a insurgente baiana Luiza Mahin, e de um fidalgo português que o vendeu como escravo aos 7 anos de idade. Serviu ao Exército Brasileiro, atuou como jornalista e formou-se em direito, tendo libertado mais de 500 escravos e convivendo com personalidades como Castro Alves, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco], onde ele dizia do tipo de ruptura que ele teve que fazer quando ele escolheu advogar. De alguma forma, entrar para uma atividade que era “mais reconhecidamente” como muito mais próxima do Estado. Eu acho que a trajetória das pessoas não acaba quando elas passam para um lugar ou para outro. Elas carregam, sem dúvida alguma, toda a sua bagagem. E seria muito pobre e, principalmente, um prejuízo muito grande para o conjunto das pessoas, para o conjunto, principalmente, da população negra, se alguns de nós, e se algumas de nós, mulheres, não participássemos das estruturas de governo. Porque, afinal de contas, são estruturas muito importantes para que elas assegurassem um retorno para a própria população. Eu lhe digo – honestamente –, eu duvido que, a não ser que fosse alguém que não tivesse nada a perder a não ser o respeito do próprio movimento, eu duvido que algumas ações fossem feitas como fazem hoje, por exemplo, Evair [Evair Augusto Alves dos Santos, doutor em sociologia, membro da Comissão de Direitos Humanos do Ministério da Justiça e secretário Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República], como faço eu, ou como fazem outras pessoas. É o mesmo caso das mulheres. Eu vi a extraordinária briga no caso do conselho da mulher, feita pela Solange [Solange Bentes, alagoana, presidenta do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher], e outras brigas. E, quem ganha? E eu me pergunto ainda: quem perderia se isso não fosse feito? Eu sei quantas pessoas perderiam... olha, pensemos num projeto de que você participa, que eu levei para vocês, que foi o Geração 21, por exemplo, da Fundação BankBoston. É um projeto que jamais teria o sucesso que tem, jamais teria... nós não teríamos esses 21 jovens com as possibilidades que terão! E nem esse projeto seria a referência que é, não houvesse algumas pessoas aberto mão um pouco, até, das suas possibilidades humanas um pouco mais tranqüilas e menos conflituosas, de assumir, como o Reinaldo [Reinaldo Burgarelli, educador ligado ao Unicef, com atuação no terceiro setor, como a Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo, e na esfera pública, como a Secretaria do Menor do Governo do Estado de São Paulo] da Fundação BankBoston; você, em uma ONG, uma organização não governamental, e eu uma instituição de governo que era responsável por fazer aquela interlocução naquele momento. Então, eu acho que são escolhas. Por outro lado, eu não acho que se as pessoas têm certeza do objetivo, se estão afinadas com as referências fundamentais que carregam do próprio movimento social, eu não vejo porque não interferir para transformar as estruturas do Estado. Esse momento social é assim. Imagine pessoas como muitos de nós, eu, por exemplo, esses dias, eu vi o deputado Aldo Arantes, que encaminhou as propostas da língua portuguesa...

Teresa Cruvinel: Rebelo.

Dulce Maria Pereira: Aldo Rebelo [deputado federal pelo PCdoB-SP, propôs, num projeto de lei de 2007, o banimento de palavras estrangeiras nos meios na publicidade, informações em estabelecimentos comerciais e, sobretudo, na comunicação oficial pública]. Aliás, é injusto com o Aldo Rebelo, que é uma liderança maravilhosa, outro dia...

Teresa Cruvinel: Eu ia te perguntar isso: o que você acha do projeto dele?

Dulce Maria Pereira: É um projeto ousado, é um projeto que, sem dúvida alguma, carrega a expectativa de um grande número de pessoas. Ele representa setores ali, que consideram importante esse tratamento à língua portuguesa.

Paulo Markun: Você considera importante?

Dulce Maria Pereira: Relativamente importante. Exatamente. É importante, porque determina que todos os termos utilizados na comunicação pública sejam em língua portuguesa. A gente não vai poder usar mais...

Paulo Markun: E pune quem usar termo em inglês, o francês...

Teresa Cruvinel: Superávit, essas coisas...

Dulce Maria Pereira: E pune quem usar o inglês ou o francês. Olha, veja bem, eu acho muito interessante que se apresente um projeto. Individualmente, eu não considero que essa seja a questão mais relevante do ponto de vista da língua portuguesa. Agora, eu acho que é uma forma política de se fazer com que a língua portuguesa ganhe peso e com que o debate sobre a língua portuguesa passe a fazer parte do dia-a-dia político nosso. E eu acho que vai ser muito importante para que nós caminhemos mais rapidamente para a discussão sobre o acordo ortográfico. Aí, acho importante. Acho que, como marco político, ele é extraordinário. Agora, talvez... Markun, deixa eu dizer uma coisa: você sabe que, por formação, eu acho que a língua expressa muito da história, trajetória dos povos, e aí, eu acho que a língua portuguesa tem uma importância ímpar.

Teresa Cruvinel: Então, eu quero te fazer uma pergunta sobre isso. Voltando aos sete mares, que na verdade os sete mares é o grande mar português, eu acho – ou melhor, eu não acho, é assim –, o que pereniza uma língua é a literatura. Entre esses sete países acontece uma coisa engraçada: um não-diálogo literário. Nós, todos os brasileiros, hoje, conhecemos e gostamos, adoramos José Saramago, mas pouco conhecemos escritores contemporâneos portugueses, uma bela poeta como Sophia Mello Breyner Andresen [nascida em 1919 e ganhadora do Prêmio Camões aos 80 anos, em 1999, compôs ao longo da vida uma obra de empenhamento social e político contra a injustiça e a opressão]...

Dulce Maria Pereira: Que eu adoro.

Teresa Cruvinel: Eles, portugueses, até onde eu sei continuam gostando muito de Érico Veríssimo e de Jorge Amado, mas desconhecem autores contemporâneos. Nossos muitos autores contemporâneos, eu acredito que ainda são desconhecidos lá entre os portugueses. Por exemplo, um João Ubaldo [Ribeiro], um Carlos Heitor Cony [ver entrevista no Roda Viva], as nossas escritoras contemporâneas, que são muitas, Ana Miranda [autora do romance Boca do inferno (1989)]].

Paulo Markun: Isso sem falar na literatura africana, que no Brasil é desconhecida...

Teresa Cruvinel: Eu ia chegar lá. E tanto nós brasileiros, quanto os portugueses, só agora, nós começamos a conhecer um Mia Couto [escritor moçambicano, nascido em 1955, biólogo de formação, jornalista e teatrólogo, com ascensão internacional, sobretudo na Europa, por sua obra que representa de forma sutil, porém questionadora, a situação de seu país], um romancista fantástico, moçambicano...

Norma Couri: “Um Mia Couto”? [risos] E ponto, né?

Teresa Cruvinel: Então, essa falta de – quer dizer –, o que a CPLP pode fazer para que a gente se aproxime da literatura? Acredito que você pense sobre isso.

Dulce Maria Pereira: Com certeza. Aí, os projetos são ousados. Inclusive, eu estive há poucos dias conversando com a  [...]. Estamos já pensando em como garantir que os nossos livros sejam ilustrados e que haja uma troca comum. Nós vamos fazer uma parceria interessante com a Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] para vitalizar o intercâmbio entre as obras que já estão produzidas, estamos trabalhando para a organização de um prêmio literário... além disso, há a intenção – e eu acredito ser muito rapidamente –, uma ação concreta, a organização de publicações comuns, publicações em parceria. E, sobretudo, vamos tentar baratear...

Teresa Cruvinel: Comum lançamento lá e aqui?

Dulce Maria Pereira: Exatamente. E, além do mais, baratear o custo de produção de livros e fazer com que eles circulem de forma muito mais ágil. Para você imaginar a pressa, nós esperamos, já com a Unesco, daqui a um mês, começar a fazer com que haja uma mais ágil circulação dos produtos literários dos nossos países. E, além disso, estamos tratando no estímulo a novos escritores, também. Uma outra área interessante, também o cinema. Há uma predisposição já a co-produções. Nós estamos trabalhando para criar condições para que muitas co-produções sejam, de fato, co-produções com participação, pelo menos, de três países da CPLP. Então, esses projetos, eu acredito, que se encaminhem rapidamente. Aliás, esse é um sonho que eu tinha há muito tempo atrás. Ele foi viável na Fundação Palmares e agora, viável na CPLP. Fazer filme em comum.

Maria Amélia Rocha Lopes: Você acha que em quatro anos é possível fazer tudo isso?

Dulce Maria Pereira: Com um investimento grande dos países, com equipes que saibam multiplicar os interesses, com o entusiasmo extraordinário que eu vejo hoje dos vários setores, eu acho que é fundamental. Além disso, há um outro problema no caso da CPLP. Muitas iniciativas foram abortadas pela falta de investimento, pela falta de interesse. Então, esse é um momento em que essas iniciativas voltaram a acontecer. Olha, imagine: só neste mês, existem quatro ou cinco reuniões que tem por tema a CPLP. Existe uma reunião do Tribunal de Contas da União, existe uma reunião de jovens cineastas que querem discutir, existe uma reunião de áreas de cientistas, há a proposta de um encontro sobre governabilidade no ano que vem no Brasil – e esse encontro de governabilidade que será, aqui, coordenado pelo ministro Pedro Parente [chefe da Casa Civil da Presidência da República, ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão e secretário executivo do Ministério da Fazenda, no governo FHC], é conseqüência de um encontro que aconteceu há um mês no Cabo Verde. Então, há muita motivação e, nós mulheres, sem dúvida alguma – porque há um grande interesse e grandes articulações das mulheres para que a gente faça com que aconteçam principalmente os encontros de escritoras e alguns encontros setoriais. E a área de negócios, também, pelo visto, será uma outra área bastante dinamizada.

Eduardo de Oliveira: A propósito do que você fala em escritores, nós temos aqui o nosso decano Clóvis Moura [(1925-2003) intelectual, historiador, jornalista e cientista social, um dos mais importantes militantes do MNU (Movimento Negro Unificado)], que teve uma obra extraordinária, eu tenho a impressão de que é uma das coisas mais acabadas com relação à história do negro no Brasil. E eu gostaria que você pudesse tomar conhecimento dessa obra e pedir o seu empenho, pelo prestígio de que você dispõe, que possa a Fundação Palmares ou outras instituições ligadas ao Ministério da Cultura, pudessem realmente se interessar por essa obra e conhecê-la, e fazer com que, realmente, essas luzes do próximo milênio, que estão por aí chegando, possam, realmente, ver e conhecer essa obra, que seria uma maneira não só de nós mostrarmos para o Brasil, sob o ponto de vista dos afro-negros, como, acima de tudo, possa fazer com que isso pudesse circular em termos dos sete países que falam a língua portuguesa, língua de Camões, já que nesta semana, nestes dias, o Eça de Queiroz está fazendo o seu centenário de morte, e muita coisa está sendo feita por aí. E nós gostaríamos que Cruz e Sousa [(1861-1898,) abolicionista catarinense e consagrado como um dos maiores poetas do simbolismo], que esses escritores afro-brasileiros pudessem ter essa mesma contemplação da imprensa etc, e do Estado, particularmente, em que você tem uma grande influência e é altamente respeitada, que pode influir para essa decisão. É um apelo que eu faço, ao ar, aqui, para isso.

Dulce Maria Pereira: Veja bem, o Clóvis Moura é absolutamente conhecido. Ele é o homem, inclusive, que motivou grande parte dos trabalhos que são feitos hoje na Serra da Barriga [a 100 km de Maceió, área geográfica reconhecida pelo governo federal como monumento histórico nacional], em Alagoas, lá no Quilombo de Palmares. A circulação de obras como as dele é fundamental. É fundamental, por que as obras dele são fundamentais.

Teresa Cruvinel: A Norma Couri viveu, foi correspondente em Lisboa e, certamente, sabe, conhece muito melhor do que eu aquele receio, que você sabe muito bem, de uma colonização revertida, de sentido inverso – a exportação de telenovelas brasileiras para Portugal –, não houve um momento desse surto, dessa paura [medo] portuguesa? Os outros países receiam que a gente possa, de alguma forma, querer exercer um colonialismo cultural?

Dulce Maria Pereira: Olha, eu diria que não. Eu diria que há uma expectativa do Brasil ser muito mais proativo, há uma grande expectativa do conjunto dos países, de uma presença maior do Brasil. O Brasil é um país muito ausente. A política brasileira foi, até recentemente, até agora, muito pouco presente. Na verdade, houve quase que um distanciamento muito grande, embora é claro, o Brasil tenha relações históricas com Angola e com os outros países, eu tenho reconhecido. Então, não. Há uma demanda muito grande de presença cultural brasileira. Há também uma cobrança muito grande em função das desigualdades no Brasil. É interessante que, hoje, esse tipo de realidade se faça presente na África. Agora, eu acho que, também com Portugal, o que tem acontecido é que nós não nos conhecemos de forma suficiente. Muita gente me dizia que o governo brasileiro morria de medo de uma apropriação total de espaços outros que seriam do Brasil. Eu não vejo isso. Eu acho, principalmente no caso de Portugal – eu nem posso falar por Portugal, e certamente o Armando [referindo-se ao entrevistador Alfredo Prado] poderá dizer muito mais –, há um desconhecimento, e eu diria que há muito pouca prática na construção de política multilateral. E aí, a CPLP precisa ser um espaço de construção dessas ações conjuntas. Eu acho que grande parte desse medo vai se acabar, até porque o que eu tenho visto e ouvido de Portugal, é que Portugal não tem nenhum interesse em retomar as suas... em lidar, simplesmente, com a memória colonial, no caso do Brasil.

Teresa Cruvinel: Portugal está muito mais interessado nos investimentos, na infra-estrutura brasileira, não é? No uso do capital presente... [risos]

Dulce Maria Pereira: Aí, é um problema. Aí, depende de cada país ser ágil e se fazer impor em outros espaços. E Portugal tem feito, no caso do Brasil, e o Brasil, certamente, terá facilidade em função da língua. E compete ao Brasil, então, agilizar a sua presença não só em Portugal como em outros lugares, em outros países. O Brasil tem exportado muito pouco, por exemplo. A gente sabe que hoje... e o Brasil tem exportado muito pouca cultura, inclusive.

Maria Amélia Rocha Lopes: A cultura musical – quer dizer, a música brasileira - com relação aos outros países, tem uma abertura grande, já, não tem?

Dulce Maria Pereira: Tem uma abertura grande, mas de novo o Brasil não ocupa o espaço possível na indústria cultural a partir da música. Essa é uma realidade dramática, não só em relação aos países de língua portuguesa, como com relação ao conjunto dos países do mundo. Nós ainda estamos construindo uma política de presença mundial através da música.

Paulo Markun: Entre outras coisas, porque a indústria cultural é uma indústria que não é dominada por empresas brasileiras.

Dulce Maria Pereira: Claro, claro. E porque nós não criamos mecanismos que assegurem que, independente da origem da indústria, esses produtos estejam presentes em todo o mundo. Eu vejo com muito bons olhos, por exemplo, o selo Mercosul ou o Mercosul Cultural [selo criado pela Receita Federal em 1998 e regulamentado em 2008, com o objetivo de facilitar o trânsito de produtos culturais, como obras de arte para exposições, instrumentos musicais e materiais cenográficos, entre os países integrantes do bloco]. É muito interessante, porque permite o intercâmbio. E o Brasil perde com isso, também. Acaba não recebendo música com uma qualidade extraordinária e recebe, única e exclusivamente, a música produzida pelos Estados Unidos, que interessa às gravadoras que seja tocado aqui e nem é a boa música norte-americana.

Norma Couri: Dulce, tem uma pergunta que ficou no ar, que eu acho interessante você responder. É sobre Angola. Quer dizer, é uma guerra que dura quarenta anos [a guerra civil angolana durou, oficialmente, 27 anos. Ao referir-se a uma duração de “quarenta anos”, a entrevistadora provavelmente considerou os primórdios da independência no país, nos anos 1960, com a criação da MPLA]....

Dulce Maria Pereira: É uma guerra que dura quarenta anos, é uma guerra extremamente perversa.

Teresa Cruvinel: E o que a CPLP pode fazer por Angola?

Dulce Maria Pereira: A CPLP pode ser muito dinâmica para assegurar, primeiro, que o Protocolo de Osaka seja cumprido. Porque esse é um dos maiores problemas, hoje, no cotidiano da guerra. E, segundo, fazer com que os vários...

Paulo Markun: O que esse protocolo estabelece?

Dulce Maria Pereira: Ah, sim. Bem, o Protocolo de Osaka é o protocolo que estabelecia que as partes envolvidas, no caso a Unita, que não tem cumprido a sua parte, e o governo aí conduzido pela MPLA, deveriam cumprir determinadas normas, deveriam negociar. Seria muito longo falar o conteúdo total do protocolo, mas deveriam negociar e respeitar...

Paulo Markun: Manter o cessar-fogo?

Dulce Maria Pereira: Manter o cessar-fogo e respeitar as normas que foram, inclusive, estabelecidas pelas Nações Unidas. Isso não foi cumprido pela Unita, não foi cumprido pelo Jonas Savimbi [líder africano que fundou a Unita, em 1966, para combater o colonialismo português e terminou como um dos protagonistas da guerra civil de Angola. Derrotado nas eleições, finalmente convocadas em 1992, optou por retomar a guerra. Sua morte, em 2002, foi um dos fatos que puseram fim ao conflito], e há uma opção do governo de Angola, que é vencer pelas armas. O que eu entendo é que a CPLP e o conjunto de países da CPLP devem fazer, inclusive, com que os vários outros interesses presentes em Angola... deixem de manter os interesses que fazem com que essa guerra continue, inclusive. Essa é uma das formas de se fazer com que a guerra possa chegar mais rapidamente ao fim. Além disso, investir, de fato, em projetos que permitam ao povo angolano superar o impacto negativo extraordinário criado pela guerra – não é? – e que acaba também criando um círculo vicioso e mantendo um cotidiano de guerra, que acaba sendo quase que perpetuado, porque o que se criou em Angola hoje, eu vejo, é que em Angola há uma cultura de guerra, há uma cultura de guerra. Então, romper com essa cultura de guerra é fundamental e é papel da CPLP.

Alfredo Prado: Que, aliás, é uma guerra, uma situação de guerra trágica e que é mal conhecida. Muito mal conhecida no Brasil, apesar dos interesses econômicos grandes do Brasil em Angola, quer no campo do petróleo, quer no campo das obras públicas, hidroelétricas – uma das maiores hidroelétricas do mundo que está a ser construída há anos em Angola está a ser feita por uma grande empresa brasileira que tem, inclusive, uma cidade satélite junto à capital, Luanda. Isso mostra, também, que mesmo no campo da mídia, eu penso que há um pouco, por parte da mídia brasileira, um certo “deixar andar” em relação a tudo que seja exterior ao Brasil.

Norma Couri: Não, e principalmente, que seja África.

Alfredo Prado: Eu não queria ir tão... [risos]

Dulce Maria Pereira: Claro. Além do desconhecimento, é um fato o desconhecimento, o medo. Agora, havia uma desqualificação mesmo. Eu me lembro, quando várias vezes, quando se tentava fazer programas – ou mesmo como instituição, quando nós tentávamos levar jornalistas aos países africanos –, muitas vezes os próprios editores ou as direções dos veículos de comunicação diziam que não era importante, sabe: “que interesse estranho é esse? São esses africanistas que acabam, aí, privilegiando a África”. E outra coisa: havia uma compreensão absolutamente equivocada de que a África deixaria de contar para a geopolítica, e, principalmente, que deixaria de contar do ponto de vista econômico. Porque, afinal de contas, países que vivem no nível de pobreza que vivem os países africanos, em princípio – a compreensão que se tinha há dois ou três anos atrás –, era que não sendo países consumidores, esses países não contavam, não eram tão importantes. Hoje, quem pensa minimamente política internacional sabe que esse é um erro absurdo.

Teresa Cruvinel: A Norma falou do nosso... não somos apenas nós, Brasil, que vivemos de costas para a África. Há um entendimento entre os que estudam essa etapa do capitalismo global, que a África... decidiu-se excluir a África, mesmo. A África é para ser um continente...

Dulce Maria Pereira: Mais do que isso, claro: dizimar! Nós vimos, por exemplo – e aí estão alguns dos projetos fundamentais que nós estamos já trabalhando – a realidade que vive a África no que diz respeito à aids, é absolutamente perversa. Então, um dos nossos projetos principais é justamente o combate comum contra a aids, a luta comum contra a guerra...

Teresa Cruvinel: O Hobsbawn, que é um pensador, diz assim, que você conhece: “a África não dá para incluir”. Podemos incluir parcelas na América Latina, de outros setores do terceiro mundo... a África... quer dizer, na lógica do capitalismo, deixamos para lá.

Dulce Maria Pereira: Pois é, é verdade. Agora, a África é um universo desconhecido para a grande maioria, inclusive, dos grandes teóricos, inclusive, sobre o capitalismo, e teóricos que não só não conheciam a África, como todas as suas teorias foram construídas a partir de preconceitos e a partir de medos extraordinários. Afinal de contas, essa última fronteira, de alguma forma, era vista simplesmente como um espaço de reserva natural, principalmente.

Paulo Markun: Dulce, muito obrigado pela sua entrevista, nosso tempo acabou, boa sorte na sua empreitada, que eu sei que não vai ser fácil, e que você conte, aqui, com a TV Cultura, sempre que possível, para que a gente possa divulgar um pouco mais esse conceito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e as questões que abordamos neste programa. Obrigado a você que está em casa, aos nossos entrevistadores. Nós voltamos na próxima segunda-feira, sempre às dez e meia da noite. Uma boa noite, uma boa semana e até lá.

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