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Memória Roda Viva

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Aldo Agosti

13/5/2002

Historiador do comunismo, o professor italiano fala do comportamento das esquerdas na Europa Ocidental e das mudanças de paradigmas decorrentes do fim da União Soviética

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Carlos Alberto Sardenberg: Boa Noite. O nosso entrevistado de hoje é um dos mais importantes estudiosos sobre os movimentos comunistas e socialistas no século passado. Seus estudos representam uma valiosa contribuição para entender o que esses movimentos representaram no século XX, que está tão recente e é o nosso século, a nossa história. O Roda Viva entrevista hoje o historiador italiano Aldo Agosti, que veio a São Paulo participar das comemorações dos oitenta anos do Partido Comunista Brasileiro.

[Comentarista, narração de Valeria Grillo]: Aldo Agosti é professor de história contemporânea da Faculdade de Letras da Universidade de Turim na Itália. Nessa viagem a São Paulo, ele participou de um debate no Centro de Documentação e Memória da Unesp, a Universidade Estadual Paulista, fazendo um balanço da história do comunismo no século XX. Vários dos seus livros são dedicados à análise histórica do comunismo, tanto na Itália quanto no resto do mundo. O professor Aldo Agosti já prepara uma edição brasileira de seus trabalhos. Parte desses textos já está traduzida para o português no livro História do marxismo, organizado pelo historiador Eric Hobsbawm [historiador inglês de orientação marxista, nascido no Egito em 1917, que fez grandes estudos sobre classe social e cultura e é autor de importantes obras da história contemporânea, destacando-se a série Era das revoluções, Era do capital, Era dos impérios e Era dos extremos]. Com textos de vários autores, há dois capítulos de Aldo Agosti: "As correntes constitutivas do movimento comunista internacional" e "O mundo da Terceira Internacional: os estados-maiores", uma análise dos problemas em torno da iniciativa que pretendeu promover a revolução socialista em todo mundo através de partidos comunistas orientados diretamente por Moscou. Aldo Agosti é considerado um dos historiadores que mais tem contribuído para ampliar os estudos e o conhecimento a respeito do movimento comunista no mundo.

Carlos Alberto Sardenberg: Para entrevistar o historiador Aldo Agosti nós convidamos: Armênio Guedes, ex-dirigente do Partido Comunista e hoje editor do jornal Gazeta Mercantil; Alexandre Hecker, professor de história contemporânea da Universidade Estadual Paulista, campus de Assis; Luiz Weis, articulista do jornal O Estado de S. Paulo; Marcos Nobre, professor de filosofia política da Universidade de Campinas, Unicamp, e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap; Marco Antonio de Rezende diretor de redação da revista VIP e Luiz Sérgio Henriques, tradutor e editor dos Cadernos do cárcere de Antonio Gramsci e responsável pelo site Gramsci e o Brasil. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados, incluindo o Distrito Federal. O Roda Viva de hoje é um programa gravado, de maneira que não será possível a participação do telespectador e da telespectadora. Professor Aldo Agosti muito boa noite, muito obrigado pela sua participação aqui no Roda Viva. Eu queria começar com um cenário europeu desses dias. Há quatro, cinco anos a esquerda ganhava as eleições e ganhava nos países mais importantes, praticamente em toda a Europa. E, agora, parece que estamos assistindo o movimento contrário, vemos as derrotas da esquerda e vitória da direita. E vemos alguns resultados surpreendentes ou aparentemente surpreendentes, como o fato de Jean-Marie Le Pen [líder da Frente Nacional, partido francês de extrema direita que apóia, por exemplo, a restrição da entrada de imigrantes e a reposição da pena de morte. Nas eleições presidenciais de 2002, Le Pen chegou em segundo lugar para o segundo turno, à frente de Lionel Jospin, primeiro ministro socilalista, perdendo no segundo turno para Jacques Chirac] ter chegado ao segundo turno das eleições francesas. A minha pergunta é: o que estaria acontecendo para que a esquerda tenha ficado tão pouco tempo no governo desses países?

Aldo Agosti: É. Creio que haja razões muito variadas para as derrotas sofridas pela esquerda em diversos países da Europa e que também haja algumas razões em comum. Existe algo fisiológico, no sentido de que já constatamos que nos sistemas democráticos maduros, por assim dizer, existe uma alternância bastante natural entre a direita e a esquerda, ou entre o centro e a direita ou a esquerda. Portanto, assim como há cerca de quatro anos houve uma afirmação bastante generalizada da esquerda, hoje está acontecendo o contrário. Essa seria uma explicação superficial demais, simplista. Penso que existe, certamente, outras razões e outros elementos a destacar. Esses elementos têm a ver, sobretudo, com as fraquezas da esquerda. Penso que as fraquezas que a esquerda mostrou, seja nas eleições italianas realizadas há pouco menos de um ano, seja nas eleições francesas desses dias, estejam, acima de tudo, em uma grande divisão, em uma grande divisão interna. Do ponto de vista da porcentagem total dos votos, a esquerda na França e na Itália não retrocedeu em relação às eleições precedentes. Ela avançou, mas saiu derrotada. Porque o sistema eleitoral, os vários sistemas eleitorais castigaram a esquerda por ela estar muito dividida. Esse é um primeiro elemento sobre o qual é preciso refletir. Depois, é preciso se perguntar por que ela está tão dividida. Então, eu diria que é muito provável que a esquerda não consiga entender, não esteja conseguindo entender na Europa, na Europa Ocidental, de modo suficientemente profundo e adequado as mudanças muito profundas que estão se amadurecendo na sociedade. Existe alguma coisa que está mantendo a esquerda separada de alguma tendência da sociedade européia. Isso aprisiona a esquerda em uma situação muito difícil. Porque, de um lado, está perdendo, evidente, o consenso no seu eleitorado tradicional, o eleitorado que constituía a sua base social tradicional. Por outro lado, se busca o consenso no seu eleitorado tradicional, consegue, com maior dificuldade, adequar-se a perceber o que está mudando em uma sociedade em profunda transformação.

Luiz Weis: [interrompendo] Professor, se me permite, o Sardenberg lhe fez uma pergunta tratando de esquerda em geral, eu gostaria de retomar [essa] pergunta tratando especificamente da situação dos partidos comunistas e pós comunistas. No primeiro turno da eleição presidencial francesa, o partido comunista francês, ortodoxo tradicional, obteve um recorde histórico, menos de 4% dos votos. Na Itália, o Partido Democrático de la Sinistra [Democratici di Sinistra, DS], o partido pós comunista portanto, não se saiu melhor sobre o governo Berlusconi [Silvio Berlusconi, primeiro-ministro da Itália por quatro mandatos, o último começou em 2008. Foi fundador e líder do partido Força Itália. Considerado o homem mais rico da Itália e o 15º do mundo, é empresário de comunicações, bancos e entretenimento] e um exemplo claro disso é que a extraordinária greve geral, ocorrida na Itália no dia 16 de abril, foi comandada, decretada pelas três centrais sindicais, mas principalmente pela CGIL [Confederação Geral Italiana do Trabalho] do Sergio Cofferati [líder sindical da CGIL, maior sindicato italiano entre 1990 e 2002. Também foi prefeito de Bologna em 2004 pelo Partido Democrático (Democratici di Sinistra, DS)] . Está a esquerda, por assim dizer, mais radical do que o Partido Democrático de la Sinistra. Eu gostaria que, então, essa análise de natureza geral que o senhor fez, para a fraqueza atual dos partidos esquerdistas, eu gostaria que o senhor a focalizasse especificamente nos casos dos partidos comunistas, sejam os que continuam mantendo esse nome, sejam os que atualizaram, como é o caso do Partido Comunista Italiano.

Aldo Agosti: Sim, creio que na Itália os democratas de esquerda nesse ponto só podem, se forçarmos um pouco, serem considerados ex-comunistas ou pós-comunistas. Passaram-se dez anos desde que houve a renúncia, inclusive ao nome. E, em boa parte, houve um distanciamento crescente da tradição comunista. Não excluo que esse seja um dos elementos que também tenham levado a certa erosão eleitoral. Mas sem dúvida, o Partido dos Democratas da Esquerda não perdeu enquanto partido ex-comunista. Eu diria que as suas derrotas, hoje, como as suas vitórias no passado, podem ser explicadas melhor olhando comparativamente democracias sociais européias e coligações européias de centro-esquerda, e não o destino de partidos ex-comunistas. Certamente, outro partido de importância, de dimensões muito menores que existe na Itália e que nasce do cepo comunista, chamado Refundação Comunista [Também conhecido como Rifondazione é um partido de extrema esquerda criado em 1991 por antigos membros da PCI (Partido Comunista Internacional)] obteve nas últimas eleições um resultado modesto, inferior às suas expectativas. Um resultado que provavelmente desapontou os seus líderes que praticamente haviam derrubado o governo Prodi [Romano Prodi, líder da coalizão de centro-esquerda A Oliveira (L'Ulivo), eleito primeiro-ministro italiano de 1996 a 1998, quando deixou o cargo para presidir a União Européia entre 1999 e 2004; fora reeleito primeiro-ministro em 2006] criando uma situação muito instável na política italiana. Esse partido, Refundação Comunista, hoje é um partido sem dúvida combativo, que faz ouvir a própria voz, que representa, sobretudo, um voto de protesto. E está procurando cimentar um tradicional, porém residual, eleitorado de esquerda italiano com novos movimentos de protesto como aqueles, por exemplo, da antiglobalização.

Luiz Weis: [interrompendo] Agora, o que o senhor diria em relação à França nesse caso, onde uma parte do eleitorado tradicional do Partido Comunista, da Buffet parisiense [referência a Marie-George Buffet, secretária geral do Partido Comunista Francês] mudou-se para a extrema direita e engrossa hoje o eleitorado do Le Pen no primeiro turno.

Aldo Agosti: Creio que isso não seja novidade, infelizmente, no sentido de que uma mudança do eleitorado comunista francês ou de extrema esquerda para Le Pen já havia sido verificada em situações locais muito conhecidas como em Marselha, por exemplo. Certamente é uma tendência preocupante, possível de ser reconduzida, provavelmente, a um tema que foi um “cavalo de batalha” de todas as direitas ou das coligações de centro-direita na Europa que é o tema da segurança. A questão da segurança é real. Não há dúvida que, nas grandes cidades européias, italianas e francesas, exista o problema da segurança do cidadão. Mas esse tema foi enormemente ampliado pela propaganda de direita, acredito.

Luiz Weis: ...Aqui também.

Aldo Agosti: Sim, creio que aqui também, em geral acompanho. Também nos EUA. É um tema enormemente ampliado sempre pela propaganda de direita: a segurança. É um tema que pega muito o cidadão. Se esse tema, digamos, se coloca sobre uma situação social particularmente difícil, como a das periferias degradadas, como aquela das periferias onde, de qualquer modo, há um índice de desemprego elevado, sobretudo juvenil.... Sobretudo no momento em que o voto de identidade da esquerda já, há muitos anos, perdeu consistência. O voto de pertencer é um voto que, nos últimos anos, descoloriu-se muito. Tornou-se um voto, sobretudo, de opinião.

Luiz Weis: ... Um voto pragmático.

Aldo Agosti: Sim, sim. Um voto pragmático.

Marco Antonio Rezende: [interrompendo] Professor, o senhor, além de estudioso da história do comunismo e das questões teóricas do comunismo, é também um estudioso das questões sociais. O senhor acaba de citar aqui uma das razões do recuo das esquerdas da Europa Ocidental dizendo que os partidos de esquerda têm se mostrado incapazes de entender e compreender certas mudanças profundas que estão ocorrendo no mundo. Na sua opinião, quais são essas mudanças e por que motivo a esquerda não consegue entendê-las ou não consegue assimilá-las?

Aldo Agosti: Esta é uma pergunta que também me fiz muitas vezes, à qual não consigo dar uma resposta totalmente satisfatória. As sociedades européias, mas pensemos exatamente na italiana e na francesa, de que [estávamos] falando agora, mudaram profundamente nos últimos anos. A porcentagem de trabalhadores dependentes vem diminuindo, mesmo que ainda permaneça muito elevada. [Mas], vem diminuindo de modo consistente a força da classe operária que representava, digamos, a principal base social dos partidos de esquerda. A essa classe operária que se desmoronou, se dividiu, se pulverizou, agora, correspondem novas camadas sociais, das quais é muito difícil dar uma representação de interesse unitário. A esquerda ainda não consegue porque está na própria natureza da esquerda tentar mediar um interesse coletivo. A direita consegue com muito mais facilidade por ter - permitam-me o jogo de palavras - como regra, a falta de regra. Ela pode com maior facilidade pôr em jogo as suas promessas, a sua visão do futuro, prometendo, sobretudo, a essas camadas sociais que hoje não têm segurança alguma, uma rápida possibilidade de ascensão e mobilidade social. Geralmente, essa promessa não é verdade, não é mantida. Mas a direita é percebida como uma coisa capaz de mudar a sociedade e responder às exigências da sociedade, melhor do que a esquerda. Essa é a explicação principal que consigo dar, hesitando muito em dizer como a esquerda possa sair dessa situação. Porque ela está apertada, como eu dizia, entre duas necessidades contrastantes. Por um lado, não pode renunciar a ser ela mesma. Não pode renunciar a defender um patrimônio de herança, de identidade que é a sua. Por outro lado, porém, para ganhar as eleições nas situações européias é necessário levar em conta essas mudanças.

Marco Antonio Rezende: [interrompendo] O senhor vai se lembrar de uma piada recente. O líder da oposição na Alemanha falando do primeiro ministro Gerhard Schroeder [primeiro-ministro da Alemanha entre 1998 e 2005] disse: "não dá para confiar num sujeito que pinta o cabelo", quem pinta o cabelo é capaz de tudo, não é? Na verdade, os partidos comunistas trocaram de nome, não é? Eles renunciaram ao próprio nome. O [Lionel] Jospin [foi primeiro ministro da França entre 1997 e 2000] na França, recentemente, chegou a negar que tinha sido trotskista. Foi pego numa mentira no início de uma campanha eleitoral. Ele disse que embora fosse socialista, estava disposto a aplicar um programa não socialista. Uma gafe terrível porque perdeu a identidade, perdeu a única coisa importante, a única bandeira que ele tinha. Eu lhe pergunto: que crimes horrorosos, que passado tenebroso é esse, que a esquerda tem hoje dificuldade de digerir e tem dificuldade de vender para os eleitores.

Aldo Agosti: Continuo acreditando que a razão principal dos insucessos da esquerda não esteja no seu passado. Se estivesse no seu passado não explicaríamos porque, no momento em que reconhecemos, digamos, tradicionalmente, como a passagem do século - a meia-noite do dia 31 de dezembro de 1999 -  quase todos os governos da União Européia eram de esquerda. O passado, naquele momento, não havia impedido a maior parte dos países europeus de ser governada pela esquerda. Creio que as razões estejam ligadas com o presente. Isso não significa que Jospin não conduziu uma campanha eleitoral por um lado cinzento e pouco incisivo e, por outro, que tenha sido um pouco comprometida pela sua imagem no passado com a questão de ter sido trotskista. Mas, francamente, eu estava na França há um ano e ouvia debates freqüentes na TV. Naquele momento, a questão de ter sido trotskista já havia sido esquecida, digerida e metabolizada. [risos] Não creio que tenha influenciado o resultado das eleições francesas, como não creio que o passado ex-comunista dos democratas de esquerda tenha determinado o resultado tão modesto que tiveram há um ano.

Alexandre Hecker: Professor Agosti gostaria de fazer uma questão justamente sobre esse problema do passado, uma vez que nós estamos diante de um historiador e gostaria de aproveitar justamente isso. A respeito desse passado, que muitas vezes se faz um conhecimento, assim, sem muito cuidado, onde livros, [como, por exemplo,] o Livro negro do comunismo: crimes, terror e repressão [publicado no Brasil em 1999, discute o número de mortes nos vários regimes socialistas e comunistas], por exemplo, que diz uma série de inverdades aliada a uma série de fatos mesclados, de forma a chegar a determinados objetivos absolutamente contemporâneos e servem a uma proposta ideológica atual. Hoje, ainda há comunistas, pessoas que se autodenominam comunistas, mas há, de toda a forma, militantes de esquerda. Eu queria lhe perguntar: o quê, nessas últimas décadas, tem sido ser comunista? O que foi ser comunista e o que é hoje ser comunista, um pouco desse panorama. E também, puxando para o seu trabalho específico, o que mudou também num historiador? O que foi ser... Uma vez que o senhor foi, inclusive, inscrito no Partido Comunista até o final, a sua história, a sua maneira de fazer história mudou nesse tempo? Quer dizer, no tempo que era comunista e agora é um não comunista. Como era, então, ser comunista e como tem sido... Como agora aparece esse trabalho não só pelo lado militante, mas como para um especialista em história.

Aldo Agosti: Creio que, sem dúvida, o meu modo - e não só o meu - o modo de fazer história de historiadores, que mesmo sem ser comunistas militantes, que de qualquer modo se reconheceram em uma área próxima ao Partido Comunista, na qual, certamente, sempre votaram etc, imperceptivelmente mudou. Mas mudou, essencialmente, por um motivo. Não por uma razão de oportunismo político, ao menos espero. E nem pelo motivo, por exemplo, pela abertura dos arquivos ex-soviéticos que, até poucos anos estavam fechados, que tenham revelado coisas extraordinárias, que fossem ignoradas antes. Certamente, essa abertura acrescentou muito aos nossos conhecimentos, mas não creio que tenha virado do avesso as nossas perspectivas. O que mudou é uma coisa que creio seja raro acontecer na vida de um historiador. Quase de um instante a outro, de um modo bem imprevisto, no período de um ou dois anos, aquilo que se estudava como um fenômeno em curso, um fenômeno que incidia profundamente na história do mundo, que contribuía para mudar a história do mundo [já] podia ser julgado muito negativamente ou com muito distanciamento crítico, mesmo por nós. Já havia quem não pensasse mais que fosse reformável, talvez uma minoria acreditasse que ainda fosse reformável. Mas a mudança de perspectiva deriva do fato que, de repente, uma coisa que existia não existe mais. E passamos a falar dela no passado. Então, para quem estudou durante boa parte da vida esse tipo de tema, parece que o chão desapareceu debaixo de seus pés.

Luiz Weis: Ou seja, professor, o historiador foi substituído pelo paleontólogo

[risos]

Alexandre Hecker: O comunismo morreu?

Aldo Agosti: Seria simples demais se fosse assim. Porque, na realidade, a morte do fenômeno comunista... Creio que falar de morte do fenômeno comunista seja, no mínimo, prematuro. No sentido que existirá de qualquer modo, sob muitas formas, sob a forma de persistências no tempo, de sobrevivências, haverá muitas heranças do fenômeno comunista que continuarão acompanhando, certamente, a minha geração. E talvez, também, a que virá depois da minha. Portanto, a conversão de historiador a paleontólogo é uma coisa provavelmente impossível. Sobretudo, é impossível para quem é historiador e estudou-a como matéria viva e não pode, de repente, tornar-se paleontólogo. Mesmo que, digamos, será bom manter em mente que está estudando uma coisa que se encerrou. Não está morto completamente, mas é um período histórico que se encerrou. Um período histórico que, de certo modo, eu diria, foi um projeto histórico que parou de representar alguma coisa como uma alternativa válida, uma esperança a respeito do sistema histórico dominante. 

Luiz Weis: E qual projeto seria capaz, nesse começo de século, de resgatar a carga humanista que havia no projeto comunista original e adaptá-lo às novas condições, às novas realidades, à globalização, à emergência da agenda pós-materialista, liberdade sexual, direito de minorias, imigração, vida familiar...

Aldo Agosti: Estamos frente a uma situação tão complexa e de uma transformação tão rápida que é muito difícil pensar que em pouco tempo possa ocorrer um projeto alternativo, como uma receita pronta. Eu creio que esteja... Tenho a impressão que, nos últimos anos, estejam tomando forma, como nunca aconteceu antes, fenômenos de crítica que são, acima de tudo, de reação, não ainda de projeto alternativo. Fenômeno de crítica muito forte no que se refere à ordem mundial vigente do pensamento único, que pareceu dominar a cena mundial. Creio, talvez, que dali saia um projeto novo. Penso que esse projeto deverá ser a soma e o resultado de muitos conhecimentos diversos, de muitas contribuições diversas e de muita boa vontade para reunir tudo.

Carlos Alberto Sardenberg: Um minuto a todos, um minuto a todos, por favor. Nós estamos completando o primeiro bloco do nosso programa. Nós vamos fazer um intervalo e voltaremos em instante, entrevistando o historiador italiano Aldo Agosti, em instantes.

[intervalo]

Carlos Alberto Sardenberg: Estamos de volta com o Roda Viva entrevistando hoje o historiador italiano Aldo Agosti, um dos mais importantes historiadores dos movimentos comunistas e socialistas. Só para lembrar, o programa de hoje é gravado, portanto, não será possível a participação dos telespectadores. Nesse segundo bloco eu queria começar passando a palavra, para o jornalista Armênio Guedes [ver entrevista com Armênio no Roda Viva], ex-diligente do Partido Comunista, hoje editor da Gazeta Mercantil. Armênio.

Armênio Guedes: Professor, já que o senhor não é um paleontólogo, mas um historiador que faz a história viva, eu gostaria de fazer a seguinte pergunta: durante anos, o Partido Comunista Italiano, com os seus dirigentes e seus teóricos, trabalharam com a idéia de um caminho, de elaborar um caminho italiano para o socialismo. Qual é o balanço histórico que o senhor faz desse esforço do Partido Comunista Italiano? Isso pode ter influência – completando a pergunta – isso pode ter influência na busca da reorganização da esquerda italiana?

Aldo Agosti: Talvez não mais, quanto à última pergunta. Mas a procura de uma via nacional, uma via italiana do socialismo, como foi dito, foi uma constante na história do Partido Comunista Italiano, após 1944. Foi uma das primeiras preocupações de Palmiro Togliatti ao retornar à Itália, da União Soviética [(1893- 1964) líder do Partido Comunista da Itália entre 1927 e 1964]. Depois, foi deixada um pouco à sombra, ao fundo, durante os anos mais duros da Guerra Fria. Mas, a partir de 1956, se tornou, eu diria, a própria essência da política do Partido Italiano. Não significa que o Partido Italiano já houvesse, na época, rescindido os elos com a União Soviética. Os elos permaneceram muito fortes, mas a insistência sobre a necessidade da via italiana ao socialismo e, portanto, de especificidades que essa via devia seguir foi levada avante com decisão. Creio que essa estratégia de base adotada foi o que permitiu ao Partido Comunista Italiano ser o maior partido da esquerda italiana até o momento que decidiu se dissolver e obter, no máximo de sua força, 34% dos votos. Certamente, foi essa capacidade de responder às perguntas que a sociedade italiana apresentava, mesmo que a análise das mudanças dessa sociedade nem sempre fosse atualizada e, às vezes, pudesse apresentar esse atraso, mas, como um todo, o Partido Comunista Italiano teve a capacidade de penetrar, através da sua organização, também através da forte influência que gozou entre os intelectuais, nos ângulos mais escondidos da sociedade italiana. E, assim, definitivamente, tornar-se por muitos anos o maior partido da esquerda, o maior partido da oposição.

Luiz Weis [interrompe]: Mas, não se tratava apenas de um caminho italiano para o socialismo. O Partido Comunista Italiano fez uma proposta válida para o mundo todo, para todos os momentos, ou seja, a democracia como valor universal. Esse aspecto eu gostaria que o senhor abordasse: o que a esquerda atual italiana pós-comunista, ex-comunista, socialista – o nome que o senhor queira dar – reteve dessa extraordinária jornada dos anos 1960 e começo dos anos 1970, que colocava a questão central da democracia.

Armênio Guedes [interrompe]: Eu quero acrescentar que essa busca, esse trabalho para elaborar um caminho italiano para o socialismo não foi mais uma busca do caminho democrático para a democracia, se é que hoje tem uma grande importância.

Aldo Agosti: Sim, Sim. Estou convencido, efetivamente, de que a estratégia do Partido Comunista Italiano, de uma via nacional para o socialismo, fosse algo que não valia só para a Itália. De fato, em um momento particular, apesar de muito breve, por volta da metade dos anos 1970 - devem se lembrar - houve o fenômeno do eurocomunismo que envolveu Berlinguer [Enrico Berlinguer (1922-1984)], então secretário do Partido Comunista Italiano, também com dirigentes do Partido Comunista Francês, com relutância maior, e os comunistas espanhóis, como Santiago Carrillo [(1915 - ) secretário geral do Partido Comunista da Espanha entre 1960 e 1982, foi combatente na Guerra Civil espanhola, considerado uma importante figura de oposição a ditadura de Francisco Franco (1939-1976)], mas influenciou também outros partidos comunistas europeus de menor importância, de menor peso político e eleitoral. Os comunistas ingleses e suecos, por exemplo, foram influenciados de modo profundo pelo eurocomunismo. Portanto, aquela era certamente uma estratégia que apresentava certo fascínio. Sobretudo no momento em que se falava na possibilidade de uma terceira via entre o comunismo soviético e a social-democracia. É provável que o espaço para essa terceira via já não existisse mais, porém era difícil reconhecer isso para partidos comunistas que tinham uma história tão antiga e da qual, justamente, eram tão orgulhosos. Irei, em parte, responder à última observação de Armênio [Guedes]. Parece-me que, efetivamente, houve aquela que se pode chamar de uma heterogênese dos fins. Ou seja, através da propaganda dessa via nacional ao socialismo, continuando a insistir quanto ao horizonte socialista, o que o Partido Comunista fez na Itália – acho que não só na Itália – foi cumprir uma obra extraordinária de educação política de massas que haviam sido, até aquele momento, deixadas às margens do discurso democrático.

Luiz Weis: [interrompe] O que restou disso na Itália [depois] do Berlusconi? Essa é a minha pergunta original.

Aldo Agosti: De qualquer modo restou muito. Creio que tenha restado muito. Mesmo que a sociedade mude de modo rapidíssimo, digamos. E, naturalmente, os meios de poder enormes de que dispõe Berlusconi, entre os quais o controle quase absoluto da informação, possam facilitar a obra de desmantelamento de um sistema de valores, de vínculos que, porém, em minha opinião, mantém uma força ainda muito grande. Eu queria fazer notar quanto a isso que, certamente, os resultados das eleições do ano passado são os que todos conhecemos e que levaram à vitória um governo de centro-direita com uma conotação muito forte para a direita, com figuras inqualificáveis, talvez piores do que Le Pen.

Luiz Weis: Gianfranco Fini

Aldo Agosti: Gianfranco Fini não [presidente do partido da Aliança Nacional (Alleanza Nazionale), considerado um partido conservador, foi vice-presidente do Conselho de Ministros e ministro dos Negócios Estrangeiros durante o governo Berlusconi (2001-2006), também foi vice-presidente no segundo mandato de Berlusconi]. Mas certamente Umberto Bossi é um personagem até pior do que Le Pen, se isso for possível [Umberto Bossi é fundador e líder do movimento político Liga Norte, que reivindica autonomia e até mesmo independência do norte da Itália. Já foi membro do Parlamento italiano e fez parte do governo de Berlusconi]. Um demagogo da pior espécie. Mas eu queria fazer notar que todas as vezes que se vai às eleições de administrações locais, nas quais também funciona um sistema eleitoral diferente, então, surgem muito mais as heranças deixadas em profundidade dessa obra de educação, de crescimento democrático, não só o Partido Comunista – não quero dar o mérito só ao Partido Comunista – mas do sistema tradicional dos partidos. E, dentro desse sistema, o Partido Comunista havia deixado na Itália, tornando a Itália, sem dúvida, ao menos até os anos 1970, um caso muito estudado, visto com muito interesse no mundo inteiro como uma forma de democracia participativa e avançada.

Luiz Sérgio Henriques: Professor, pela sua formação de historiador, nós estamos aqui entre história e política o tempo todo. Claro, nós todos hoje somos democratas

[...]: ... Quase todos

Luiz Sérgio Henriques: ...Quase todos. Temos absoluta consciência do terror vermelho, do terror stalinista. E, no entanto, continuamos a nos dizer socialistas, como é até o meu caso. Eu queria que o senhor nos explicasse, nos dissesse o que ficou da herança comunista desses 150 anos de movimento operário? Porque isso não pode ser esmagado sobre uma escavadeira, um trator nesse período de grande celebração liberal. Essa é a primeira pergunta. [Então] do ponto de vista histórico, o que ficou? O que hoje ainda temos para nos afirmar como esquerda, que ainda nos intitule comunistas e socialistas, mesmo admitindo o terror de Stalin. Na política, eu gostaria de retomar um pouco a questão da esquerda européia, da esquerda francesa, da esquerda italiana e também da esquerda brasileira. Os slogans, eles são significativos. Tinha um slogan do Partido Comunista Italiano, ao qual eu tinha uma grande admiração, que era dizer-se um partido de luta e de governo. Quer dizer, um partido capaz de, simultaneamente, se enraizar na sociedade, dirigir movimentos sociais ou pelo menos estar ao lado deles, apoiá-los e dar respostas para o conjunto da sociedade. Ser capaz de propor, ser uma esquerda positiva, para usar um termo que no Brasil nós usamos às vezes. Então, eu lhe pergunto se uma recomposição das esquerdas, na Itália, na Espanha, na França e no Brasil, não seria num sentido de, novamente, tornar vivo esse slogan. Construir um partido de esquerda que seria capaz de ser governo e dirigir lutas.

Aldo Agosti: A pergunta tem dois aspectos. O primeiro é o que resta da herança de 150 anos de comunismo. Eu penso que resta, sobretudo, o que eu já disse antes. Ou seja, resta uma obra de grande pedagogia política que ajudou a crescer movimentos de classes subalternas ou menos favorecidas e deu a elas direito de cidadania política. Alargou os confins da cidadania política e social. Isso o comunismo deu, nos países onde foi oposição. E quero dizer que não só, nem exclusivamente, a esses países, a esses, o comunismo deu, em minha opinião, uma contribuição notável. O que pode restar disso? De certo modo isso poderia ser uma pergunta que se liga àquela: "existe ainda hoje diferença entre a direita e a esquerda?" Eu creio que ainda exista, mesmo que, naturalmente, tenha se tornado mais imprecisa, menos evidente e menos clara do que no passado. Mas creio que ainda exista. E creio que seja, exatamente, a herança que ainda vejo utilizável. O que diferencia a esquerda da direita é a insistência quanto ao princípio da igualdade. É a insistência quanto ao princípio da igualdade e junto, como dizer, reconhecer como momentos positivos, não exclusivamente negativos e, portanto, não excluí-los para o futuro, momentos de ruptura revolucionária. Faz parte da tradição da esquerda uma série de rupturas revolucionárias. A começar pela primeira, pela revolução inglesa, depois a americana, a francesa e, depois, a russa. Com conteúdos muitos diversos, etc. Mas reconhecer-se herdeira de momentos de ruptura da ordem, creio que constitua, ainda, um ponto irrenunciável para definir a identidade da esquerda. O outro ponto é, justamente, a insistência, a centralidade do princípio da igualdade. Os projetos que hoje não são revolucionários... Certamente, não creio que haja projetos de tipo revolucionário na ordem do dia, nem no Brasil, nem na Itália – os dois países de que podemos falar agora - talvez em outro lugar, mas não no Brasil, nem na Itália. Mas mesmo nos projetos de reforma, de melhoria, de mudança, esse princípio de igualdade é o que diferencia a direita da esquerda. Percebo que estou falando coisas muito genéricas, mas acho que, ao menos disso, devemos partir.

[sobreposição de vozes]

Marco Antonio Rezende: O princípio da igualdade, o senhor me permite, também foi estabelecido na Revolução Francesa e pela Igreja Católica, o cristianismo muito antes do comunismo. E, sobretudo, somados, entre a Revolução Francesa e o cristianismo morreu muito menos gente do que no comunismo e sobraram, na verdade, outras duas coisas no comunismo: Cuba e Coréia do Norte, que são dois exemplos muito negativos para quem quer avaliar...

[...]: China

Marco Antonio Rezende: ... Não. A China é uma ditadura capitalista, é bem diferente. A Coréia do Norte e Cuba são dois países que ainda pregam uma ligação orgânica com o ideal marxista, com a ditadura do proletariado. E, na verdade, são dois exemplos do contrário. Ou seja, desfazem qualquer esperança de que o comunismo aplicado na prática possa resultar no regime democrático aceitável que difunda o bem-estar, garanta igualdade, não privilegie a hierarquia ociosa no poder, não seja repressivo e não casse a palavra das pessoas, enfim. Eu acho que a herança que nós estamos falando é de uma coisa que, no fundo, nunca existiu. Porque, quando existiu, a herança é muito negativa, basta ver Cuba e Coréia do Norte.

Aldo Agosti: Antes respondi sobre a tradição do Partido Comunista Italiano e, em geral, falei de partidos comunistas de oposição. Quero dizer que a situação muda no que se refere aos partidos comunistas que estiveram no poder. Não creio que se possa dizer que são todos iguais, a mesma coisa. Não penso que se possa julgar sob uma única etiqueta negativa toda a experiência dos socialismos reais ou realizados, como se chamaram. No próprio caso da Revolução Cubana, certo, estamos na presença, estamos nessa fase, particularmente, crepuscular... quero dizer, da experiência castrista [referente ao regime cubano, comandado por Fidel Castro] frente a fenômenos particularmente odiosos de repressão do direito de expressão, palavra e perseguição da oposição política. Mas é impossível esquecer as condições particulares em que Cuba se desenvolveu. Cuba se desenvolveu no isolamento mais absoluto, na hostilidade e no bloqueio imposto pela maior potência capitalista do mundo. Não creio que seja justo esquecer que nos primeiros, eu diria, dez ou quinze anos do poder castrista em Cuba, houve progressos extraordinários, do ponto de vista da alfabetização, saúde e generalização de alguns direitos sociais em Cuba. O caso da Coréia do Norte, francamente, parece-me bastante insignificante, tudo somado. Parece-me mais um dos motivos de propaganda habitual de George W. Bush [presidente do Estados Unidos entre 2001-2009] sobre o “eixo do mal”, do que algo que nos ajude a entender o que foi o comunismo.

[sobreposição de vozes]

Carlos Alberto Sardenberg: Com licença, por favor. Professor Marcos Nobre, por favor.

Marcos Nobre: O senhor já se referiu à dificuldade de distinguir direita e esquerda, que eu acho que é o mal-estar geral da situação européia e da situação mundial, a grande dificuldade, neste momento, de distinguir direita e esquerda. E é o que está pressuposto nessa conversa, aqui hoje. E muitas das análises sobre o fenômeno do crescimento da direita na Europa e, particularmente, da extrema-direita, vão dizer que isso se deve justamente à incapacidade de distinguir direita e esquerda, embora a gente continue usando esses dois termos. Ou seja, o movimento da esquerda e da direita, simultaneamente, em direção ao centro as tornou quase indistinguíveis, o caso de [Lionel] Jospin e [Jacques] Chirac é exemplar nesse aspecto. Então, nesse contexto, eu gostaria de perguntar como o senhor vê o futuro da União Européia? Quero dizer, como é possível fazer, de fato, avanço democrático na União Européia neste momento que a distinção entre direita e esquerda está esfumaçada? Porque uma referência genérica à igualdade é importante, mas ela não consegue mais ter o ancoramento no passado tão forte como ela tinha. Quero dizer, ela não tem a direção, como tinha no caso do movimento comunista, de instaurar a verdadeira igualdade e a sociedade verdadeiramente livre.

Aldo Agosti: Neste momento, nem eu estou muito otimista quanto ao futuro da União Européia. Não no sentido de que se possa voltar atrás em relação ao nível a que se chegou agora, ao menos de moeda única, unificação dos mercados, etc. Mas quanto aos passos à frente, do ponto de vista político, após ainda algumas afirmações significativas de princípio de poucos meses atrás, o crescente peso da direita na Europa certamente não ajudará no caminho de uma União Européia política, no sentido de que um elemento comum a toda essa direita é tomar distância da Europa, jogando também com o tema clássico da burocracia opressiva e, portanto, também apelando a sentimentos compreensíveis dos cidadãos. Todavia, creio que o problema seja o voto do Parlamento europeu que, por enquanto, tem um valor quase só simbólico e expressa uma preferência. Não há um Parlamento europeu diretamente responsável frente aos seus cidadãos. Até chegarmos a algo desse tipo, a União Européia dificilmente poderá ser algo diferente do que foi até agora. Dificilmente poderá ter uma política externa unitária, em vez da soma heterogênea dos interesses particulares de tantos países diferentes. A União Européia deverá ter, também, uma força militar própria. Porque, certamente, sem essa, não poderá exercer, em uma área quentíssima do mundo, uma função que possa, ao menos, contrabalançar talvez, colocando-se ao lado dos EUA. Não sou muito otimista por ora quanto ao futuro da UE.

Marcos Nobre: O senhor, eu, queria, desculpe, o senhor acredita que esse crescimento da direita está diretamente ligado às reações à União Européia, particularmente ao movimento da moeda única? Ou o senhor acredita que há outras causas mais importantes do que essa reação. 

Aldo Agosti: Eu me sinto propenso a crer que não esteja diretamente ligado à moeda única. É um fato recente do ponto de vista prático do cidadão que faz as contas, são só dois meses. Não pode ser isso que tenha mudado, por exemplo, a tendência das coisas nos países onde se votou há pouco, como Portugal e França. Existe, claro, o que eu dizia antes, certa intolerância do tipo corporativo, que diz respeito ora aos camponeses franceses, ora aos criadores italianos, ora a esta ou àquela pequena categoria que se sente punida pelas diretivas gerais da UE. Creio que esses sejam fenômenos bastante fisiológicos que poderão com o tempo ser resolvidos. Porque também há muitas vantagens que derivam de ser parte de uma união.

[sobreposição de vozes]

Alexandre Hecker [interrompe]: Eu tinha pedido a palavra antes, professor, a respeito desse problema, acho que muitas vezes a gente tem falado de comunismo no singular, quando na verdade, eu posso ver claramente  nos seus livros e de outros intelectuais, que a experiência comunista admite comunismos tão diversos entre si, quanto outras formas de governo são diversas do comunismo. Mas, nesse sentido, há um problema muito grande que a gente tem enfrentado, que é essa questão de fazer uma relação muito imediata: o comunismo morreu e o capitalismo venceu. Então, assim como existem comunismos, certamente existem capitalismos. E eu creio, há socialismos nos meios desses meios. Então, todo esse emaranhado... E mesmo a questão a respeito de direita e esquerda, que nós estávamos falando, eu acho que seria conveniente dizer duas ou três palavras sobre o marxismo, que afinal, durante algum tempo, não para todos os socialistas, mas pelo menos pelos comunistas “da boca para fora” foi a coluna principal dentro da qual se colocou. O marxismo morreu, professor? Essa é a pergunta que nós estamos sempre repetindo: o comunismo morreu é uma coisa, mas e o marxismo, como fica essa história, essas mudanças pelas quais ele tem passado? E, para nós especificamente os historiadores, como devemos ainda pensar a respeito dessa questão do marxismo e da sua pertinência como crítica a um capitalismo... que se o comunismo era um horror, como alguns dizem, há capitalismos horríveis também.

Aldo Agosti: Creio que o marxismo permaneça um método de análise histórica profundamente válida. Não só eu penso assim, é totalmente evidente que as mais diversas ciências sociais tenham incorporado a si mesmas elementos de análise do marxismo. Elas os revisaram e atualizaram. Mas creio ainda que o marxismo, contanto que, naturalmente, não seja considerado um sistema fechado, em que haja uma verdade e todo o resto é heresia, isso pertence totalmente ao passado e não nos ajudaria de modo algum, mas que o marxismo, ou Marx, ou a leitura de Marx, ou a leitura de tantos clássicos do marxismo, possam ainda nos ajudar na leitura da realidade atual, parece-me evidente. Claro que Marx elaborou a sua análise e a sua interpretação do capitalismo há mais de 150 anos... Ele começou a elaborar. Há 130 anos, terminou de elaborar. As coisas mudaram profundamente. Mas também é verdade que, no conjunto, muitas características do capitalismo, que é o sistema dominante da economia mundial, foram percebidas e colhidas com lucidez. Por exemplo, a própria idéia de globalização. O manifesto comunista é um dos primeiros textos [risos] que falam de modo claro sobre a globalização. Portanto, ainda pode nos ajudar muito, contanto que não o torne algo fechado, dogmático.

Carlos Alberto Sardenberg: [interrompe] um minuto só.....

Carlos Nobre: [interrompe] O senhor considera que o imperialismo poderia ainda hoje ser aplicado? Quer dizer, o conceito imperialismo. Porque o senhor está dizendo: há uma distinção clara entre teoria e prática, que estão juntas no Marx, então, eu não posso separar o método do historiador, posso pegar isso do Marx. Quer dizer, há outras categorias que poderiam também ser aplicadas assim? Nós temos, por exemplo, o livro de Antonio Negri e Michael Hardt, que se chama Império, mas não apresenta uma teoria do imperialismo e acha que o imperialismo no sentido marxista não é mais aplicado. Quer dizer, o senhor considera que alguma categoria como imperialismo serviria hoje?

Carlos Alberto Sardenberg: [interrompe] Professor Aldo Agosti, um minuto só. Nós completamos esse bloco. A pergunta fica pendente, o senhor tem tempo para pensar e os telespectadores também. Nós vamos fazer agora um pequeno intervalo e voltaremos em instantes, entrevistando o historiador Italiano, professor Aldo Agosti. Em um instante estaremos de volta.

[intervalo]

Carlos Alberto Sardenberg: Bem, estamos de volta com o Roda Viva, entrevistando hoje o historiador Italiano Aldo Agosti, que é um dos principais analista dos movimentos socialistas e comunistas. Nós estávamos... Antes, deixe-me lembrar que este é um programa gravado e, portanto, não será possível a participação dos telespectadores. Professor, o senhor se lembra, nós encerramos o bloco com a pergunta do Marcos Nobre que era sobre – se lembro bem – a existência ainda de um imperialismo, o que é imperialismo hoje. Concretamente, professor, os Estados Unidos são hoje a potência imperialista?

[risos]

Aldo Agosti: Sem dúvida. Os EUA são uma potência imperialista. Quanto a isso não há dúvidas. Ao mesmo tempo, para entender, compreender e também combater essa política, o conceito clássico do imperialismo de Lênin, do seu texto – se não me engano – de 1916, hoje nos serve muito pouco [referência ao livro O imperialismo: etapa superior do capitalismo]. Em todo caso, o que está realmente superado no texto é exatamente o conceito de que o capitalismo fosse a última fase, no sentido da fase da agonia. Em suma, uma agonia que durou quase 90 anos. Sobre esse ponto, parece-me que seja uma coisa muito, muito lenta.

[risos]

[..]: O moribundo está cheio de saúde

Aldo Agosti: ...O imperialismo é, certamente, um termo pelo qual se pode encontrar um acordo ao definir os relacionamentos mundiais, caracterizados por uma distribuição extremamente desigual dos recursos e por vantagens enormes dadas a uma pequena parte rica do mundo, que correspondem desvantagens enormes da parte maior do mundo. Nesses termos muito elementares, o imperialismo e as sucessivas teorias do imperialismo - pois não houve só a de Lênin, outros refletiram sobre isso - servem ainda para analisar a realidade atual. Eu ainda não li o livro de Negri, portanto, sobre isso, não quero me pronunciar. Mas, certamente, a categoria de imperialismo é uma categoria que parece definir, de todo modo, uma parte da realidade atual. Em vez dessa definição, prefiro usar - usei esses dias, em algumas discussões aqui no Brasil - a de globalização unipolar. Um único pólo, hegemônico e influenciador. Podemos fazer isso coincidir também com a categoria...

Alexandre Hecker: Mas se tem esse pólo único, ele não se ativa, ele não exerce a mesma função histórica da Segunda Guerra [Segunda Guerra Mundial] para diante? Por exemplo, na história do Brasil e na história da Itália, os Estados Unidos são vistos de forma diferente pelos italianos e pelos brasileiros, pelo menos pelos brasileiros democratas e nacionalistas etc, é diferente ou não?

Aldo Agosti: Certamente, creio que seja diferente como os EUA são visto. A razão principal é o fato... .

Alexandre Hecker: [interrompendo] Desculpe-me, mas aquele filme do [Roberto] Benigni [refere-se ao filme A vida é bela (1997) escrito, dirigido e interpretado por Benigni. A história ocorre nos campos de concentração de judeus durante a Segundo Guerra Mundial] que termina com um norte-americano dirigindo um tanque e o menininho vem e senta de forma carinhosa ao lado dele, aqui no Brasil seria vaiado...

[...]: aplaudidíssimo. A vida é bela ganhou o Oscar.

Alexandre Hecker: Aplaudidíssimo na Itália, eu estava lá. Mas a idéia de um garotinho e do norte-americano servir como o grande libertador da Itália de uma opressão, isso não existe no Brasil.

Aldo Agosti: A diferença principal é exatamente esta. Já discutimos em particular com o Alexandre. Não há dúvidas de que a Itália tenha sido liberta pelas tropas anglo-americanas, não só de um inimigo externo, ou seja, os alemães, mas também de uma ditadura que durou vinte anos. Assim, os americanos foram considerados libertadores na Europa. Em grande parte da Europa, não só na Itália. Naturalmente, também na França foi assim. As cenas de júbilo popular durante a chegada dos aliados são bem conhecidas. Creio que nós nunca deixamos de levar em conta isso, até nos momentos em que, depois, os EUA tornaram-se uma espécie de padrinho ou patrão incômodo, que também limitou as escolhas políticas internas do país. Mas foram eles também que asseguraram, com ajuda econômica consistente, a extraordinária retomada da economia italiana. Portanto, não creio que na Itália o papel dos EUA seja visto de um modo unívoco. Esse papel que também tem traços negativos foi uma ingerência direta na soberania do país, mas, ao mesmo tempo, vimos muitos outros aspectos. Somos um país profundamente americanizado, mas americanizado, direi, com seu próprio consentimento. Há muitas coisas da cultura americana que penetraram profundamente no tecido social-cultural italiano.

Carlos Alberto Sardenberg: Professor Luiz Henriques, me dá licença um minuto, o Luiz Weis estava na fila e como ele disse que só voltaria a falar...

Luiz Weis: ...Se me fosse dada a palavra...

Carlos Alberto Sardenberg: No entanto, Luiz Weis, como todos sabem, é um freguês aqui no nosso programa, e, às vezes, a gente critica que ele interrompe demais. E agora ele está dizendo que só vai falar se for dada a palavra. Está dada a palavra.

Luiz Weis: Professor, uma das características dos dias atuais, uma característica óbvia dos dias atuais é o descrédito generalizado das pessoas, especialmente das gerações mais novas, pela política, pelo sistema de negociação de barganha que é inerente à luta parlamentar. Disso resulta uma rejeição da urna em favor da rua. As pessoas se reúnem, a centenas de milhares nas principais capitais do hemisfério norte, seja na Europa, seja nos Estados Unidos para combater a globalização, e rejeitam objetivamente que as mudanças que eles propõem possam ser fruto da atividade política convencional ou possam ser obtidas através do jogo partidário, através do voto. E o resultado é que se tem uma coisa patética que se viu na França logo em seguida ao primeiro turno das eleições, em que houve uma abstenção de 28%. Os jovens, como se diz no Brasil, foram todos para a praia e quando descobriram que o Le Pen tinha passado, foram todos para a rua com protestos, como uma espécie de "no pasarán" ([não passarão), palavra de ordem utilizada pela líder comunista Dolores Ibarruri, conhecida como "La pasionaria", durante a Guerra Civil espanhola, incorporada aos movimentos e manifestções políticas ao longo do século 20]. Ora, essa atitude, por mais que os políticos mereçam ser criticados, por mais [que haja] fraquezas inerentes ao sistema, isso não enfraquece objetivamente qualquer possibilidade reformista substancial daquilo que as pessoas consideram errado no mundo de hoje? Ou seja, é possível mudar sem a política, é possível mudar sem o Parlamento, é possível mudar sem as eleições. Quer dizer, a rua resolve?

Aldo Agosti: Concordo em parte com a sua análise. Não completamente, porque não vejo necessariamente a contraposição entre a participação através do voto e através das manifestações em praça pública. Eu lhe asseguro, por exemplo, mesmo sem estar na Itália quando houve a greve geral, suponho, quando se diz: 13 milhões de trabalhadores participaram da greve, creio que ao menos, 80%, 90% se compõem de gente que também vota.

Luiz Weis: ...Se me permite aqui havia um interesse objetivo que era a questão da legislação trabalhista italiana. Havia um interesse de classe claramente definido, ao passo que diante de uma bandeira difusa a luta contra a globalização, isso não se dá.

Aldo Agosti: Entendo o que quer dizer. Naturalmente, também estou preocupado. Considero um fato negativo essa desatenção à política. Considero que, digamos, o voto seja, ainda, o modo principal e a única forma democrática que foi inventada até agora para mudar a situação política. O problema é que os políticos de todos os partidos - sobretudo dos partidos de esquerda - deverão fazer um grande esforço para reconquistar essa cota tão ampla do eleitorado. Mas o convido a não valorizar demais a amplitude: 27% de não votantes é muito, mas não é muitíssimo se pensar na situação dos EUA e na porcentagem de votos que elegeu o presidente Bush.

Luiz Weis: [interrompe] É muito em relação às eleições para presidentes. Comparamos coisas comparáveis.

Aldo Agosti: Certamente, há uma tendência fisiológica presente em toda a Europa de diminuir, cada vez, o número dos participantes às eleições. Fora casos muito particulares, de polarização muito forte, ou quando está em jogo a defesa de interesses particulares muito sentidos, considero negativo o fato de desafeição política, mas creio que seja tarefa dos partidos políticos encontrar como reconquistar essa parte do eleitorado que perderam.

Luiz Weis: [interrompe] Agora, o senhor não acha que isso é uma herança perversa e tardia do marxismo que sempre desprezou as questões institucionais em favor do movimento social, do movimento das forças sociais, como se a política não tivesse uma margem de autonomia em relação à sociedade.

Aldo Agosti: Creio que não estou de acordo com a sua avaliação do marxismo como algo que tenha, de modo tão profundo, desvalorizado o aspecto político das questões, que não tenha atribuído à luta política uma importância... Não vamos nos esquecer que o sufrágio eleitoral foi conquistado em toda a Europa com base na forte pressão de movimento guiado pela social-democracia. Por outro lado, eu queria ser, de certo modo, otimista como o senhor, mas não sou. Não creio que hoje exista essa contraposição entre absenteísmo eleitoral e movimento social de praça pública. Os movimentos sociais de praça representam uma minoria. Não são aqueles que não vão votar. Grande parte dos que saem para protestar contra a globalização, tenho certeza, pelo que conheço da situação italiana, são os que vão votar. Deve-se procurar em outro lugar para reconquistar o apoio de um eleitor desconfiado. É muito difícil de ser feito.   

Carlos Alberto Sardenberg: Luiz Sergio Henriques...

Luiz Sergio Henriques: Eu queria dizer que valorizo muito, aprecio muito a sua maneira de historiador de criticar valentemente o nosso passado naquilo que teve de errado, ao mesmo tempo, que defende em parte – não quero polemizar – mas defende Cuba nessa sua fase crepuscular, que não pode ser de forma nenhuma comparada à Miami. Cuba tem que ser comparada com o Haiti e me parece até que ganha, segundo Caetano Veloso [refere-se à música “Haiti”, do compositor baiano] e eu estou de acordo com ele. Mas a gente também tem que partir para o futuro, ver prospectivamente. Então, eu vejo hoje o seguinte: o professor Alain Touraine [entrevistado pelo Roda Viva em 22 de abril de 2002] esteve aqui semanas [atrás] e disse que nós vivemos entre a queda do Muro de Berlim e a queda das Torres Gêmeas [11 de setembro], um período do capitalismo enlouquecido, com pretensões imperiais, pretensões de um novo universalismo sem observar a sociedade, os povos, as nações. E, com certo otimismo, eu vejo nascendo alguma outra coisa como uma vocação também universal que é a linguagem dos direitos: direitos políticos, direitos civis e econômicos, direitos culturais. Eu pergunto ao senhor se um dos caminhos do renascimento da esquerda não seria assumir com radicalidade essa linguagem universalizante dos direitos e tornar-se republicana, democrática, sem ambigüidade, sem duplicidade, assumir isso como uma bandeira para sempre.

Aldo Agosti: Em grande parte estou de acordo com isso. Sem dúvida, esse caminho de expansão de direitos pode ser realmente um projeto, talvez o único que possa ter fôlego suficiente, não para contrastar a globalização, porque creio que seja algo inevitável, de certo modo, mas para governá-la, regulamentá-la, para mitigar os seus aspectos piores. Eu me sentiria um pouco hesitante em voltar a uma concepção talvez excessivamente abstrata dos direitos, como me pareceu a que o senhor relembrou ao falar de direitos republicanos. Hoje, não se pode falar em direitos sem atribuir uma parte realmente fundamental aos direitos sociais. Pois sem o exercício dos direitos sociais, os direitos políticos ficam totalmente vazios de sentido. O outro aspecto muito espinhoso e controverso dos direitos é o problema da guerra e da paz. Porque nós vimos... Por exemplo, na Europa nós assistimos a declaração e condução de guerras conduzidas em nome dos direitos humanos. Em certa medida, sem dúvida, justificadas por violações flagrantes e particularmente odiosas dos direitos humanos. Mas a tentativa de restaurar os direitos humanos violados trouxe, na realidade, a violação igualmente clamorosa e flagrante de outros direitos humanos. Então, existe um problema que, creio, hoje, seja central sob qualquer perspectiva. Pode-se encontrar um ponto de equilíbrio, onde termine o direito de restaurar os direitos humanos e fazer que sejam respeitados sem, com isso, violar outros. É uma questão muito delicada, quando se fala em direitos, que deverá ser mantida presente.

Marco Antonio Rezende: Nós [falamos] muito das questões internacionais e em particular da Europa. Eu queria que o senhor falasse um pouco sobre o Brasil. Eu não sei se o senhor sabe, neste exato momento que nós estamos falando aqui da herança dos ideais marxistas e do comunismo, um partido que “pintou o cabelo”, o antigo Partido Comunista Brasileiro [transformou-se em PPS - Partido Popular Socialista, a partir de 1992], está tentando fazer uma aliança com um partido que durante vinte anos apoiou a ditadura militar. Nós temos uma democracia formal no papel, mas o senhor sabe que é uma democracia muito imperfeita. Porque, embora as pessoas votem muito aqui – não é como na Europa, onde as pessoas se abstêm, vai votar quem quer – aqui, o voto é obrigatório. E, no entanto, nós temos uma situação de semi-desenvolvimento ou de semi-atraso, eu não sei se a garrafa está meio vazia ou meio cheia. A pergunta que lhe faço é essa para resumir: qual deveria ser a postura de uma esquerda moderna num país como o Brasil com tamanhos contrastes em termos institucionais, econômicos, sociais? Um país já com o pé no mundo desenvolvido, um país com alguma ciência, com tecnologia, com informação difusa, com liberdades individuais.

Aldo Agosti: Infelizmente, conheço muito pouco a situação brasileira. Particularmente, mesmo lendo jornais nesses dias, é difícil me orientar em um panorama político que vejo ser não menos fragmentado do que o italiano.

Marco Antonio Rezende: [interrompe] Os brasileiros também.

Aldo Agosti: Devo dizer que não quero dar opinião alguma sobre questões de aliança de partidos brasileiros, pois não me arrisco a falar de coisas que não conheço bem. Só posso dizer que, pelo que li da história brasileira, parece-me haver certa tendência àquilo que, na Itália, chama-se de "transformismo", ou seja, a possibilidade de mudar facilmente as alianças em função até exclusivamente instrumental, fora dos programas. Parece-me que isso é algo profundamente radicado na história brasileira desde o tempo da Velha República [ou Primeira República, período da história brasileira que se estendeu da Proclamação da República, em 1889, até a ascensão de Getúlio Vargas (1882-1954) em 1930. O termo foi  usado em oposição a Nova República, inaugurada por Vargas], seguindo assim por muitos anos. O Brasil é uma democracia muito jovem. Penso que possa ser considerada como tal somente desde 1985, mesmo havendo momentos antes, infelizmente, muito breves em que tentou-se manter esse caminho.

Marcos Nobre: O senhor disse que o marxismo fica como herança, para o historiador, como método, um método de investigação científica. Quais são, em sua opinião, os historiadores mais importantes da segunda metade do século XX e quais dentre eles o senhor poderia dizer de alguma maneira que são marxistas?

Aldo Agosti: O primeiro nome que me vem à cabeça, fora de qualquer dúvida possível, é alguém que considero meu mestre, Eric Hobsbawm. Sem dúvida, ele é um historiador marxista mesmo que seja de um marxismo muito aberto, muito crítico, que soube ser receptivo às contribuições de uma gama muito variada das ciências sociais, antropologia, sociologia. Portanto, é um dos marxistas mais abertos e, ao mesmo tempo, está entre os mais argutos e inteligentes que eu possa pensar hoje dos historiadores vivos. Sem dúvida, Hobsbawm, creio que seja o mais válido intérprete de um marxismo ainda vivo. Permitam-me nomear só um, do contrário, haveria o risco de fazer uma hierarquia. Sem dúvida, há muitos outros, mas quanto a este, não tenho dúvidas.

Carlos Alberto Sardenberg: Professor, nós estamos já na parte final do programa e eu pediria ao senhor e aos entrevistadores que fizessem perguntas curtas e que o senhor pudesse responder mais brevemente. Uma coisa que eu queria perguntar ao senhor, tomando a liberdade, como o senhor vê a China? Marco Antonio falou, é uma ditadura capitalista, é um país que, em certos setores, eles provocam muita admiração porque cresce todos os anos. É uma economia aparentemente muito dinâmica, mas não se sabe se as estatísticas são corretas ou não...Todo mundo quer fazer negócios com a China, um país que se apresenta como uma república popular, uma república comunista e, ao mesmo tempo, com forte desenvolvimento capitalista. Que bicho é esse? Como o senhor vê a China e o futuro desse país?

Aldo Agosti: A China parece-me um caso muito evidente de uma separação já muito clara entre uma estrutura política e institucional que, aparentemente, ainda é uma sobrevivência do comunismo - por isso se fala em morte do comunismo e se pensa que um bilhão e duzentos milhões de pessoas vivem sob um regime que se proclama comunista, que só admite o Partido Comunista, que ainda forma seus quadros de acordo com a leitura de uma ortodoxia comunista. Mas isso parece ser totalmente desligado do caminho econômico e, sobretudo, dos custos sociais que esse caminho econômico pareça exigir à China. Não é um país que eu conheça muito, devo confessar minha ignorância, sou um historiador da esquerda européia, mas como historiador do comunismo, sei algo da China. Então, parece-me ver na China, de novo, acima de tudo a volta, em primeiro plano, de um tema que se tornou central na herança comunista. A partir de certo período, a partir já, talvez, da metade dos anos 1930, mas, sem dúvida, após a Segunda Guerra Mundial, o mais universal que restou do modelo comunista foi o aspecto do atalho para a modernização. Ou seja, o caminho mais breve possível para alcançar em tempos rápidos um nível de auto-suficiência econômica nos confrontos de um mundo considerado potencialmente perigoso. A China continua, ainda agora, em minha opinião, caminhando com extrema decisão em um sistema fortemente autoritário que lhe permite, provavelmente, amortizar custos sociais muito altos nessa direção. Se, a certo ponto, isso criará tensões insuportáveis como pareceu, por um momento, em 1989 na Praça da Paz Celestial [Praça Tiananmen, no centro da cidade de Pequim, capital da China, usada para desfiles do governo e tristemente conhecida pelo protesto de estudantes pró-democracia em 1989], ou se isso poderá continuar por muito tempo até o momento em que, previsivelmente em dez ou vinte anos, a China, se não for a primeira potência mundial, será a segunda e disputará com os EUA a hegemonia pelo domínio do mundo. Essa resposta é que não sei dar.

Luiz Weis: Professor, eu gostaria de fazer a última pergunta de minha parte. A esquerda no mundo inteiro, especialmente na Europa, está mobilizada com justa razão pela tragédia do Oriente Médio, onde se tem um país que é governado por um cidadão cuja única diferença em relação ao Slobodan Milosevic [(1941-2006), ex-presidente da antiga Iugoslávia e primeiro chefe de Estado em atividade acusado por um tribunal internacional, o Tribunal de Haia, em maio de 1999, por crimes contra a humanidade –  genocídio e crimes de guerra – no Kosovo, Croácia e Bósnia] – Milosevic está preso e ele dirige um país. Eu me refiro ao criminoso de guerra Ariel Sharon [(1928) primeiro-ministro de Israel no período 2001-2006. Serviu durante 25 anos às Forças Armadas de Israel como comandante militar. Foi também membro fundador do partido Likud (partido liberal de centro-direita) e do partido Kadima]. A esquerda protesta contra as atrocidades cometidas por Israel nos territórios ocupados na Cisjordânia, mas como essa esquerda pode fazer isso sem cair na terrível armadilha do anti-semitismo?

Carlos Alberto Sardenberg: Professor, esta é a sua última questão. Nós estamos chegando ao fim. Esta é também a sua última resposta. Infelizmente, o programa está chegando ao fim.

Aldo Agosti: Sem dúvida, é uma condição muito difícil para a esquerda. Em geral, é um problema espinhoso e difícil de resolver para toda a Europa. A Europa põe diretamente sobre si as conseqüências da tragédia do anti-semitismo, do Holocausto. Tem um complexo de culpa também justificado pelas omissões cometidas nos anos 1930 que possibilitaram esse holocausto. Por seu lado, o governo de Israel, não só o de Sharon, mas também governos anteriores souberam usufruir com habilidade essa possibilidade de identificar toda crítica à política de Israel como anti-semitismo. Na verdade, é preciso ser capaz de salientar que não existe, de modo algum, uma identidade: criticar Israel e ser anti-semita. Creio que a esquerda italiana esteja fazendo o seu dever nesse campo. A esquerda italiana está procurando lutar com muita decisão para se reabrir um espaço de diálogo. De qualquer modo, creio que seja desejável e inevitável que os dois povos - o israelense e o palestino – estejam destinados a conviver. Um não pode pensar em eliminar o outro. Portanto, trabalham no sentido do diálogo. Mas, ao mesmo tempo, a crítica foi muito severa quanto à política, sobretudo militar, dos últimos meses de Sharon. Naturalmente, as coisas foram tornadas mais difíceis imediatamente ao repetirem-se fenômenos de anti-semitismo na Europa, não na Itália, mas na França, por exemplo, como incêndios de sinagogas, ou fenômenos de pequena criminalidade anti-semita que, naturalmente suscitam, justificadamente, um grande alarme. De novo, fazem o jogo, "trazem água para o moinho" de Sharon que diz: "Criticar Israel significa ser anti-semita".

Carlos Alberto Sardenberg: Ok, muito obrigado professor, o Roda Viva vai chegando ao seu final, nós queremos agradecer a presença e a participação do professor e historiador Aldo Agosti, muito obrigado aos entrevistadores, jornalistas, acadêmicos que aqui estiveram ajudando na entrevista do Roda Viva. Roda Viva estará de volta na próxima semana, segunda-feira às 10:30 da noite, mais uma vez procurando oferecer um espaço aberto e democrático para as idéias, e esse é o compromisso do jornalismo público da TV Cultura. Muito obrigado e boa semana a todos. Agradecemos também a sua atenção, telespectador e telespectadora.

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