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Memória Roda Viva

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Ruth Rocha

1/7/2002

A escritora "queridinha da mídia", como ela mesma se reconhece, fala sobre o sucesso de seus livros, seu público e sobre o mercado editorial brasileiro

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Paulo Markun: Boa noite. Há mais de trinta anos, ela constrói uma ligação entre a criança, a leitura e a literatura. Criou histórias de Marcelo, de Catapimba, de Terezinha. Falou de reis, de pássaros, de borboletas, do medo, do ridículo, da mentira. E seus livros refletiram sobre a vida e a alma humana, ajudando a criar e formar novas gerações de leitores. O Roda Viva entrevista esta noite a escritora Ruth Rocha, uma das mais importantes autoras de literatura para criança no Brasil.

[Vídeo com imagens dos livros de Ruth Rocha, da autora e de seu site na internet. Comentários de Valéria Grillo]:

Na minha rua tem uma porção de casas e prédios. Tem casas que servem pra morar. Tem outras que servem pra trabalhar. Quando os prédios servem pra morar, chamam-se prédios de apartamento. Na minha opinião, esses prédios deviam se chamar empilhamentos, porque são uma porção de casas empilhadas umas em cimas das outras.

Entrar no mundo de Ruth Rocha é redescobrir a magia, a invenção. É brincar com os significados, mexer com idéias, opiniões, visões de mundo.

No Universo Online, na internet, o site de Ruth mostra que a história dela também é cheia de histórias. A começar pela história profissional. Paulista, socióloga e jornalista, ela trabalhou primeiro com orientação educacional. Depois foi para a Editora Abril, como orientadora pedagógica de revistas, passando por redatora, editora e diretora na área de livros, coleções e fascículos da Abril. A carreira de escritora veio aos 45 anos de idade e resultou, quase três décadas depois, em uma produção de peso: cento e trinta livros. Um deles tornou-se um marco na história editorial infantil no Brasil, com mais de um milhão de exemplares: Marcelo, marmelo, martelo, a história do menino que preocupava os pais por ser muito perguntador e por querer reinventar os nomes das coisas. “Por que me chamo Marcelo e não Marmelo?", "Por que o leite não pode se chamar suco de vaca?”. Um personagem que ficou na memória de infância de milhões de leitores, em quem Marcelo, marmelo... provocou a curiosidade e a invenção. Na esteira da obra publicada, uma coleção de prêmios importantes, entre eles dois Jabutis [O prêmio Jabuti, lançado em 1959, é o mais importante e tradicional prêmio literário do Brasil] – o mais recente em maio de 2002, ganho por Ruth Rocha e Anna Flora, com Escrever e Criar... Uma nova proposta!, livro do ano na categoria não-ficção. Intuitiva, com texto curto e ilustrações caprichadas, Ruth Rocha toma o caminho divertido e prazeroso que a literatura pode dar ao aprendizado, à formação. Brincar de cruzadinha é brincar com palavras. Brincar de adivinhar é brincar de aprender. Dá para brincar até com os medos que todo o mundo tem. Zombar da mentira, do ridículo, do autoritarismo e das idéias prontas, e abrir melhor os caminhos da vida e da infância legal.

[fim do vídeo]

Paulo Markun: Para entrevistar a escritora Ruth Rocha, nós convidamos a escritora Tatiana Belinky; Manuel da Costa Pinto, editor da revista Cult; Ricardo Soares, documentarista, diretor e apresentador do programa Literatura, da Rede Sesc/Senac de Televisão; Francesca Angiolillo, repórter do caderno Ilustrada do jornal Folha de S.Paulo; Adriana Vera e Silva, jornalista do site e da revista Primeira Leitura; Augusto Massi, poeta e professor de literatura da Universidade de São Paulo; e Dib Carneiro Neto, editor do Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo.

O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília, e hoje, infelizmente, você não pode fazer a sua pergunta porque o programa está sendo gravado.

Paulo Markun: Boa noite, Ruth.

Ruth Rocha: Boa noite.

Paulo Markun: Eu queria começar com uma pergunta que depois eu vou ter que dar uma explicação, mas a pergunta é a seguinte: Por que preto é pobre? E a explicação eu vou dar antes que alguém me condene aqui, que foi essa a... segundo eu li nas entrevistas suas, a... o motivo de seu primeiro livro, não é isso?

Ruth Rocha: É verdade. Isso foi uma pergunta de minha filha, que tinha... não sei se 6 ou 7 anos, e me perguntou por que preto é pobre. E eu fiquei já achando que eu devia de começar a explicar para ela certas coisas. E fiz um livro, fiz uma história que se chama Romeu e Julieta, que são duas borboletas de cores diferentes. Era um approach até simplista do problema, porque eu falava de borboletas que não podiam andar juntas, porque tinham cor diferente, mas foi meu primeiro passo em direção a uma... uma contação de histórias que depois eu assumi, e sempre com um sentido social.

Paulo Markun: Mas nesse seu trabalho, a simplicidade é uma parte integrante, não é?

Ruth Rocha: É verdade, é verdade. Não só porque eu sou assim mesmo [Ruth ri], então escrevo com simplicidade, mas porque eu acredito que deva escrever com simplicidade. Eu gosto de pensar nisso, de fazer para as crianças uma obra compreensível, bem de acordo com o nível das crianças, com a capacidade de compreensão. Embora eu não tenha medo de assuntos que... nem sempre eram dirigidos às crianças. Eu acho que começou na literatura brasileira... quem começou esse movimento foi Monteiro Lobato, que já não pôs limites nos assuntos que ele abordou para crianças. Ele falou de política, ele falou de sociedade, ele falou de corrupção...ele falou de tudo que ele teve vontade de falar, sem nenhuma restrição. Agora, com aquele tom que estava ao alcance das crianças. E foi meu grande mestre.

Dib Carneiro Neto: Ruth, sobrou algum assunto sobre o qual você ainda não escreveu e que você morre de vontade de escrever?

Ruth Rocha: Ah, tem muitos assuntos. Eu tinha, eu tenho vontade de escrever, por exemplo, sobre escravidão. Eu escrevi um livro sobre escravidão, mas é um livro pequeno, não é um livro muito ambicioso. Eu tinha vontade de escrever mais alguma coisa, mas a inspiração nem sempre é... é acompanhada... quer dizer, a inspiração, a vontade nem sempre é acompanhada da inspiração. Quer dizer, nem sempre a gente tem uma história junto com aquela vontade. Então, fica esperando um pouco até que isso aconteça.

Paulo Markun: O mercado interfere nisso? Quer dizer, você, quando pensa numa história, você diz "Essa história pode vender, essa história não pode vender."?

Ruth Rocha: Não. Jamais. Jamais.

Paulo Markun: Você acha que o escritor não deve pensar nisso?

Ruth Rocha: Não sei. Eu não penso, não [sorrindo]. Eu acho que... eu acho que vender não é nenhum pecado. Eu, por exemplo...

Paulo Markun: [Interrompendo] É uma virtude, talvez, ...

Ruth Rocha: Pra mim, é.

Paulo Markun: ... num país tão complicado de vender livro.

Ruth Rocha: Eu tenho vivido disso, né? Tenho vivido de escrever a minha vida quase toda. Então eu acho que não é pecado. Agora, não penso, não. Eu acredito que nenhum pense. Às vezes falam em certos escritores, dizem: "Não, ele faz isso porque ele sabe que vende". Não é verdade. Eu acho que a gente faz aquilo que a gente é.

Ricardo Soares: Ruth, você não acha que o mercado, especialmente o mercado da literatura infanto-juvenil - eu estou falando das editoras, das grandes editoras - hoje em dia não está muito – não sei se o termo está mal empregado – hoje em dia, está muito mercantilista...

Ruth Rocha: Muito! Está muito [assente com a cabeça].

Ricardo Soares: ... ou seja, recomenda-se aos autores que não são conhecidos e reconhecidos como você, a Tatiana Belinky e o Ricardo Azevedo, livros, justamente, que vendam, que... "Ah, existe um nicho, 'o papai que perdeu emprego', 'o filhinho etc'.". Não tá muito... ?

[Sobreposição de vozes]

Ruth Rocha: Tá muito, tá muito. É verdade, é verdade, mas isso é um pecado de certas editoras...

Ricardo Soares: O que eu queria te perguntar é o seguinte: você acha que isso, de certa forma, compromete a qualidade, ou você acha que isso não interfere...?

Ruth Rocha: Não, compromete a qualidade dos que fazem, dos escritores que concordam em escrever sobre uma coisa que não é absolutamente, digamos...

Ricardo Soares:... do seu universo, né?

Ruth Rocha: É, que não é a coisa mais importante pra eles. Porque o que acontece quando a gente escreve é que sempre a gente está escrevendo aquilo que é mais importante pra gente. Se a gente não estiver...

Augusto Massi: [Interrompendo] Desculpe, você aceita encomendas? Você já aceitou encomendas?

Ruth Rocha: Olha, eu uma vez aceitei uma encomenda. Eu tive uma conversa com o Caio Graco [Prado (1932-1992), editor, proprietário da Editora Brasiliense], ele queria fazer uma coleção que chamava Coleção do Arco da Velha. Ele, então, queria uma história sobre o arco da velha. Eu peguei e escrevi uma história que era um menino e uma menina que atravessavam o arco-íris e mudavam de sexo. Mas não era nada disso que ele queria, ele levou um susto [risos]. Ele queria uma história do arco-íris que no fim tinha um pote de ouro e tal; era isso que ele queria. Mas eu escrevi o que eu sentia, o que estava em mim escrever.

Tatiana Belinky: Ruth, você acha que a quantidade - porque se publica muito, muitos títulos... - a quantidade gera qualidade ou gera mediocridade?

Ruth Rocha: Pode gerar as duas coisas [risos]. Eu acredito que possa gerar as duas coisas.

Tatiana Belinky: Eu acho que gera qualidade. Uns dez por cento são muito bons.

[Risos]

[Sobreposição de vozes]

[...]: Mas tem muita bobagem.

Ruth Rocha: Tem muita bobagem.

Adriana Vera e Silva: Mas como é que você avalia qualidade do mercado da literatura infantil hoje, Ruth?

Ruth Rocha: Como?

Adriana Vera e Silva: Na média, que nota você dá para a qualidade da produção da literatura infantil brasileira hoje?

Ruth Rocha: Olha, eu não conheço tudo que se faz, eu não leio tudo que se faz. Agora, eu acho que, como toda literatura, existe um grupo que trabalha bem, e que faz literatura, e que faz uma coisa que vale a pena. Em todas as literaturas do mundo, e em todos os graus e os gêneros. Não é? Você, na literatura pra adultos, também encontra muita coisa ruim. Eu acho que, entre os que escrevem bem, no Brasil, para crianças, nós temos uma literatura magnífica. Nós temos, sem pensar muito, nós podemos citar vinte autores maravilhosos no Brasil.

[Sobreposição das vozes]

Paulo Markun: Desculpe... por que é que... os dados aqui divulgados recentemente, quando houve a Bienal do Livro, mostram que de 2000 para 2001, o número de títulos em geral, do mercado editorial brasileiro, que envolve os didáticos, envolve ficção, não-ficção, enfim, tudo que se publica em termos de mercado editorial, não de literatura apenas, baixou de 45 mil títulos para 40 mil, mais ou menos. E o faturamento das editoras subiu de 2 bilhões [de reais] para 2 bilhões e 200 [milhões de reais]. E o número de exemplares vendidos diminuiu. Quer dizer, as editoras ganharam mais vendendo menos. De 334 milhões para 299 milhões de livros. Então, fazer esse longo preâmbulo para perguntar o seguinte: Se a gente tem.. se a gente fosse falar do futebol, quer dizer, as escolinhas de futebol, a literatura infantil, vamos dizer assim, que estão formando os novos leitores, nós temos realmente pessoas de altíssima qualidade e, como você disse, vinte grandes nomes... mas na literatura para adulto, a renovação é muito mais complicada, e publicar e vender um livro para adulto é dificílimo, já que desse número todo, de 300 milhões de livros, mais da metade é livro que o governo compra, para as escolas.

Ruth Rocha: É verdade...

Paulo Markun: Por que é que acontece isso, você acha? Por que a gente não consegue fazer com que o país leia mais?

Ruth Rocha: Olha, eu não sei dizer exatamente por quê. Eu posso... posso pensar em muitas hipóteses. Eu, por exemplo, acho que o ensino no Brasil não é bom. Eu acho que quando a criança vai para um... Bom, para começo... a história é mais complicada do que parece. Eu acho que quando a criança vai para o primário, geralmente a criança vai adorando. A criança, quando aprende a ler, abre-se um mundo para ela, que ela adora. Quase toda criança adora a escola primária. Ela gosta de aprender números... criança aprende números... às vezes crianças que não estão na escola e querem aprender números e pedem... eu tinha, eu tenho um irmão que era pequeninho, era muito menor do que eu, e que pedia para a gente passar contas para ele, ele não estava nem na escola. Gostava de números, de matemática. Então, existe uma... existe uma... digamos, uma fase pacífica entre a criança e a escola, uma fase boa entre a criança e a escola. Quando a criança chega aos onze anos e vai para a segunda parte do que hoje se chama curso fundamental, ela começa a entrar na adolescência, e ela começa a ter dificuldades escolares...

Paulo Markun: [Interrompendo] E a escola começa a ficar chata...

Ruth Rocha: A dificuldade geralmente começa aí. Começa com matemática, que todo o ensino de matemática está errado, porque a criança com dez, onze anos, nem todas entraram numa fase de abstração. Elas são concretas ainda, e começam a aprender álgebra sem saber do que se trata. Então começa a agonia do estudante. É um estudo não adequado a essa situação de adolescência. Nós precisaríamos ter uma... um reconhecimento desse problema, porque a criança quer mais liberdade, a criança começa a achar coisas que não achava antes, a criança entra numa fase... inclusive, se a gente for falar em psicanálise, ela entra numa fase que já começa a ter uma agitação sexual, digamos... num sentido mesmo infantil, não é uma coisa do outro mundo... mas, enfim, ela começa a ficar perturbada, e ela não aceita mais... E as escolas, em vez de tratarem, como tratavam no primário, fazer classe de 30 alunos, de 25 alunos, fazem classes de 40. Então a criança fica perdida dentro de uma situação muito coletiva, é muita gente. Além disso, mudam os professores, cada matéria tem um professor novo, que, para essa fase em que a criança está se sentindo insegura, com uma nova situação, até hormonal, a criança encontra um ambiente completamente diferente, completamente difícil, porque é difícil se adequar aos métodos, aos desejos, às vontades de muitos professores. E sabemos, também, que nossos professores não são bem formados. Eles não têm... não são todos... eu encontro por aí professores fabulosos que, inclusive, são responsáveis por essa situação de leitura, que está crescendo no Brasil, leitura de criança. Agora, a leitura de livro para adulto já exige um nível de abstração, um nível de interesse pela literatura que a escola não chega a dar, e que a sociedade desvia. Porque a sociedade atual... quando se fala em televisão, quando se fala em video game, quando se fala nessas coisas, não são elas especificamente que são negativas para a criança. O que é negativo para a criança, na minha opinião, é o excesso de estímulo, é o excesso de barulho que nós sentimos, é o excesso de... é o excesso de... de.... [gesticulando de forma inquieta] os programas infantis, por exemplo, eu vejo que procuram chamar a criança através de barulho, movimento, cor excessiva, correria, coisas que perturbam a cabeça da criança. [Sug video]

[...]: Tumultua tudo.

Dib Carneiro Neto: Você deu uma entrevista, falando isso de programa infantil de televisão, uma vez, quando o Castelo Rá-Tim-Bum, da TV Cultura, estava no auge, de prêmios, e incensado pela crítica... Você disse que o melhor programa infantil era o Chavez, o enlatado mexicano. Você ainda gosta mais do Chavez do que do Nino e da Morgana [personagens do programa Castelo Rá-Tim-Bum]... [risos] me fala, e você leva isso para a literatura, essa idéia, assim... você acha que o livro tem que divertir, muito mais do que educar, do que formar...? Esse raciocínio...

Ruth Rocha: Olha, eu acredito muito que a literatura educa não porque ela ensina, mas porque ela é arte. E eu acredito na educação pela arte. Eu acredito que quando o livro é bom, quando o livro é literariamente bem escrito, é uma forma de educação. Agora, não acredito, nem acho que a pessoa que escreve deva se imbuir, assim, de um espírito pedagógico, porque aí fica tudo muito chato, né?

Adriana Vera e Silva: Com esse boom de estímulos de toda a sociedade, que atinge a todas as crianças e adolescentes, a gente também vive um boom do mercado editorial. Então, existe um certo mito de que hoje criança lê menos do que as crianças de 30, 40, 50 anos atrás. Isso é verdade? Não é verdade? A criança lê mais? Até porque mais pessoas no Brasil, por exemplo, têm acesso à leitura e [o Brasil] tem um número maior de alfabetizados do que décadas atrás. Mas mesmo se a gente considerar só a faixa da classe média. Lê mais, lê menos?

Ruth Rocha: Lê mais. A criança hoje lê mais. A criança... a gente que vai a escolas e que conhece as crianças de perto, a gente vê, por exemplo, a gente é chamado muito para a escola porque a escola adotou um livro nosso e então pede para a gente ir lá. Então a gente vai... então o livro é o Catapimba, eles todos têm o Catapimba, pedem para a gente assinar, mas eles trazem pilhas de livros para a gente. Eles trazem douze, eles trazem quinze, eles trazem muitos livros para a gente autografar.

Manuel da Costa Pinto: De fato, pode haver um número maior de leitores hoje, mas há também um nível menor de compreensão de leitura. Até, recentemente, foi divulgada uma pesquisa que mostrou que o menor índice de compreensão de texto escrito no mundo é do estudante brasileiro, o que é uma coisa chocante. Você não acha... agora é uma pergunta...

Ruth Rocha: [Interrompendo] Não, espera um pouquinho, deixa eu responder para isso. Isso que você disse é o seguinte: eu acho que... eu não creio que, no tempo em que eu era menina, havia muito mais gente interessada em livro e que compreendesse muito melhor os livros. Eu me lembro que eu lia muito Monteiro Lobato e eu não tinha ninguém que eu conhecesse, com quem eu pudesse conversar a respeito. Ninguém. Eu estudava no Colégio Bandeirantes, que era um colégio muito famoso, muito bom. Naquele tempo se dizia que colégio bom era colégio puxado. Era muito puxado...

Paulo Markun: [Interrompendo] O Monteiro Lobato vendeu [...] ... mesmo descontada a quantidade....

[Sobreposição de vozes]

Ricardo Soares: Vendeu o que a Ruth Rocha vendeu.

Ruth Rocha: Vendeu. Vendeu muito. Agora, vendeu esgarçado...

[...]: Ao longo de muito tempo.

Ruth Rocha: ... porque não é muito, no Brasil, o que ele vendeu, como não é muito no Brasil o que eu vendi. É muito para Brasil, mas não que todas as crianças tenham sido atingidas. Eu me lembro muito disso, que não tinha com quem conversar sobre Monteiro Lobato.

Adriana Vera e Silva: Mas, voltando à pergunta dele, é fato que as crianças têm dificuldade de compreender, tanto a sua obra... e a gente pode até... eu queria fazer uma pergunta sobre Monteiro Lobato. As crianças apresentam enorme dificuldade de compreensão, uma enorme dificuldade de dar conta dos livros de Lobato, de um, quiçá de todos, e...

Ruth Rocha: É, o problema que eu acho de Lobato é o seguinte... claro que o ensino era mais... era melhor, o ensino era melhor. Então a gente lia Lobato... Reinações de Narizinho [livro de Monteiro Lobato publicado em 1931, em que aparecem pela primeira vez os personagens da série Sítio do Picapau Amarelo] era livro para 7 anos, mas hoje uma criança de 7 anos já não lê Reinações de Narizinho.

Adriana Vera e Silva: E por quê?

Ruth Rocha: Porque aprende menos, sabe menos ler.

Manuel da Costa Pinto: Será que não é por causa também dessa... de certa forma, os autores de literatura infantil tiveram de recorrer de tal maneira à linguagem visual, que teve, assim, um movimento meio ambíguo de aproximação da criança ao livro, mas de distanciamento em relação à palavra escrita?

Ruth Rocha: Olha, eu não acho, não. Eu acho que... eu acho que... eu sinto as crianças, quando eu vou às escolas e tal, mas não é sempre que eu tenho a oportunidade de saber isso. Eu sinto que eles compreendem bem. Os professores fazem por onde também. Claro que a gente vai na escola que nos chama porque adotou o nosso livro, estudou o nosso livro e gostou do nosso livro. A gente não vai na escola que não lê, que não lê o nosso livro. Esse a gente não fica nem conhecendo. Então, é difícil dizer isso. Eu sinto que o ensino baixou de nível. Eu sinto isso. Agora, eu me lembro também que as crianças não liam.

Paulo Markun: E mais do que isso, há alguns anos, não precisa nem ir muito tempo atrás, a quantidade de criança que estava fora da escola era absurda.

Ruth Rocha: Era enorme.

Paulo Markun: Quer dizer, nós estamos falando de universos tão diferentes. Uma coisa é... você tinha uma pequena elite, se fosse de colégio público ou não, mas chegava na escola. E hoje você tem uma escola universalizada. Isso eu acho que é inegável. Agora, o que me... só para botar mais lenha na fogueira, o que me... estranha, o que me chama a atenção, e eu tenho filhos adolescentes, é que eles lêem, não apenas já leram muito a Ruth Rocha, mas eles lêem O Senhor dos Anéis, por exemplo, que é uma coisa extremamente complicada. Lêem o... [romance fantástico escrito pelo britânico John Ronald Reuel Tolkien entre 1937 e 1949, traduzido em mais de 40 línguas e adaptado para o cinema meio século mais tarde. O primeiro filme foi lançado em 2001 no Estados Unidos e estimulou a popularização do trabalho de Tolkien entre os jovens.]

Ruth Rocha: Difícil! Ou esse... [fala junto com Paulo Markun] Harry Potter [romance fantástico da escritora britânica Joanne K. Rowling, publicado em série e traduzido para 64 línguas. O primeiro livro foi lançado em 1997 e sua adaptação para o cinema veio a público em 2001].

Paulo Markun: Lêem o Harry Potter também, que não é um livro [...] ...

Ruth Rocha: [Interrompendo] O Harry Potter provou que as crianças têm capacidade de leitura. Porque leram quatro livros massudos, desse tamanho [mostra com a mão a espessura dos livros].

Adriana Vera e Silva: [Interrompendo] É bom o Harry Potter, Ruth?

Ruth Rocha: Olha, não é do meu gosto [enfatiza], mas eu acho que é um livro que... as crianças gostam, lêem com alegria. Não é um livro literário. Na verdade, é um livro... assim... de aventura, né? Um livro... não é um livro muito do meu gosto. Agora, eu acho que prova que as crianças são capazes de dar conta daquela maçaroca toda. Lêem três, quatro, cinco vezes, um livro daquele! Eu tenho um neto de 7 anos que a minha filha lê para ele, e ele quer mais, quer mais, e está no terceiro livro, já.

Adriana Vera e Silva: Você identifica alguma coisa na estrutura dessas histórias do Harry Potter, que faça com que elas sejam tão atraentes? Qual é o segredo, qual é a bruxaria do Harry Potter [risos]?

Ruth Rocha: Eu não sei dizer, eu não sei dizer o segredo dos meus, não sei dizer o segredo dos outros.

Ricardo Soares: Ruth, deixa eu contar uma coisa para você, aproveitando...

[Sobreposição de vozes]

Ruth Rocha: ... agora, que está na moda, a magia, está. E não é só para crianças, né? Os adultos estão se fartando de ler histórias de magia.

Paulo Markun: A Francesca queria fazer uma pergunta.

Francesca Angiolillo: Ruth, eu queria continuar nessa questão da literatura na escola, mas um passo adiante, que é quando eles já estão mais crescidos. Se há essa dificuldade inicial no contato com a palavra, como acontece quando chegam os clássicos da literatura brasileira e portuguesa no ensino médio? Entrevistando a Ana Maria Machado sobre o novo livro dela, ela diz que acha isso um problema, que os clássicos universais prestariam melhor à adaptação à escola média porque eles ganham atualizações com as novas traduções, que a língua portuguesa, por já estar em português, obviamente, não ganha. Então, ela notava aí uma dificuldade do aluno, uma resistência, porque aquela língua era distante dele. Você concorda com isso?

Ruth Rocha: [Silencia e dá um longo suspiro] Preciso pensar um pouco. Eu fiz algumas adaptações de clássicos.... para jovens. E eu acho.... a cultura universal cresceu de tal forma que as pessoas não vão ler tudo que existe para ler. A cada dia nós temos menos essa possibilidade, não é? Quem é... ? Quantas pessoas lêem os clássicos, por exemplo? Os clássicos, digamos, os clássicos, mesmo. Os clássicos gregos, os clássicos romanos. Quantas pessoas lêem? Pouquíssimas pessoas lêem. Porque não dá nem tempo para ler. Quem é que lê? São pessoas interessadas em letras, gente que estuda letras, gente que... gente que tem um interesse, assim... específico nisso, gosta e pronto, gosta de ler e lê. Então, essas adaptações facilitam, e talvez, realmente... ninguém vai mexer num Machado de Assis, né? Aliás, Machado de Assis não é para crianças, Machado de Assis devia ser para faculdade, porque... os problemas, o que ele movimenta são coisas... são assuntos para adulto, não são assuntos para criança. Então, eu não creio.... mas outros clássicos, outros clássicos portugueses, seriam o quê? Seriam Os Lusíadas, talvez, que podia ser adaptado para criança...

Francesca Angiolillo: Ela não falava nem tanto das adaptações dos clássicos, e nem também somente dos clássicos stricto sensu... greco-latinos, né? Mas de clássicos mais modernos, de Júlio Verne [(1828-1905) escritor francês, autor de obras famosas de aventura e ficção científica que influenciaram gerações, como Vinte mil léguas submarinas (1869) e A volta ao mundo em 80 dias (1872)] ou qualquer autor considerado um clássico universal, uma literatura mais assimilável...

Ruth Rocha: Certo. Mas que seriam os clássicos em português?

Francesca Angiolillo: É, ela defendia que não se desse isso na escola.

Paulo Markun: Eça de Queirós?

Ruth Rocha: É, mas Eça de Queirós também não é assunto para crianças. Embora eu confesse que o primeiro livro de literatura séria que eu li foi A cidade e as serras. Eu tive... eu sempre conto que... foi meu encontro com a literatura, aí eu digo "não, não foi meu encontro, foi minha trombada.", porque eu, quando li Eça de Queirós, eu fiquei absolutamente entusiasmada e... adorei.

Augusto Massi: Com que idade você leu?

Ruth Rocha: Treze anos. Eu tinha um professor, que era o Aderaldo Castelo. Ele é professor ainda na USP. Ele deu esse livro para a gente ler, e eu confesso que eu não li. Não li e fiz o trabalho sem ler. Porque eu era uma aluna daquelas que... os professores pensam que eu era ótima. Eu encontro um professor [e ele diz] "Mas você foi uma excelente aluna.". Não fui. Eu era bem média, mas eu ouvia tudo que eles diziam e eu prestava atenção. Então, ele explicou na classe o que era o livro e eu, pá, fiz o trabalho. Tirei a nota mais alta da classe, e não tinha lido. E morri de vergonha. Quando eu vi que a minha nota tinha sido alta, eu falei "gente, que papel, que horror!", e saí para ler o livro, e aí li. E aí amei o livro...

Paulo Markun: Eu acho que você virou escritora por culpa do Eça de Queirós. [sorri]

Ruth Rocha: Talvez.

Paulo Markun: Falou "Eu vou botar essa moça..."

Ruth Rocha: "Vou botar essa mulher no mau caminho". [risos]

Dib Carneiro Neto: Ruth, você fez muito bem, falando em clássicos, essa transposição da Odisséia, de Homero, para as crianças. Mas você foi criticada? Teve gente que torceu o nariz, com esse argumento purista, reducionista, de achar que a criança tem que ir direto ao original...

Ruth Rocha: Eu acho que teve gente que falou alguma coisa, mas eu não cheguei a ouvir [risos], porque eu recebi o livro do  [poeta concretista] Haroldo de Campos, me dando parabéns, e dizendo que eu tinha que fazer a Ilíada agora, e que o livro estava maravilhoso, que a ilustração, que é do meu marido, aliás, estava linda, e quando você recebe uma coisa dessa do Haroldo de Campos, você não liga para mais ninguém...

Dib Carneiro Neto: E a Ilíada, você está fazendo?

Ruth Rocha: Eu estou... pretendo fazer.

Paulo Markun: E lá vem bomba por aí [risos]. Ruth, nós vamos fazer um rápido intervalo, e o Roda Viva volta já já.

[intervalo]

Paulo Markun: E nós estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando a escritora de literatura infantil, Ruth Rocha. E a Tatiana tinha, tem...

Tatiana Belinky:... uma perguntinha. O que você acha, Ruth, da sacada do Ziraldo [desenhista, chargista, pintor, escritor, jornalista e teatrólogo brasileiro. Ver entrevista com Ziraldo no Roda Viva], que todo mundo conhece, de que ler é mais importante do que estudar?

Ruth Rocha: Olha, eu acho que ele fala isso... é uma sacada mesmo [ri]. Mas eu acho que, evidentemente, é. Porque a leitura é anterior ao estudo, a leitura é condição para o estudo.

Tatiana Belinky: Exatamente.

Ruth Rocha: A leitura, a boa leitura e a leitura clara é a... é a possibilidade de estudar. Quem não lê bem não estuda. Não consegue.

Tatiana Belinky: E quem lê, aprende.

Ruth Rocha: Quem lê, aprende, claro.

Tatiana Belinky: E quem estuda, às vezes aprende, às vezes não.

Ruth Rocha: Às vezes não aprende. É verdade. [risos]

Augusto Massi: Ruth, esse tipo de separação, num país como o Brasil, em que geralmente os escritores criticam muito o aspecto da educação, ele às vezes não é uma facilitação, quer dizer, não é uma visão um pouco... é... também, de proteger a criança, excessivamente, contra uma idéia de que é preciso ter disciplina... até para ler, é preciso criar o hábito, você precisa ver outras pessoas lendo... Quando a gente fala do Harry Potter, eu fico pensando... todas as crianças estão escutando falar daquilo, lendo nos jornais, nas revistas, na televisão. Vai para o cinema. Elas querem acompanhar. E eu sinto que, às vezes, o escritor brasileiro, o intelectual brasileiro... há uma dicotomia, sempre, de fazer um discurso às vezes um pouco... de realmente facilitar essa idéia de que a diversão... mas são excludentes, essas coisas? O estudo não é uma diversão, também? Quer dizer, gostar de ler não é gostar de estudar? Não é um passo, já?

Ruth Rocha: Não, pois é.

Augusto Massi: Quer dizer, são coisas que eu acho que... são perigosas, eu acho...

Ruth Rocha: Não, não. Eu encaro essa frase do Ziraldo como isso mesmo, que é "ler é necessário para estudar". Eu estou inteiramente de acordo que nós, com a modernização do ensino, nós perdemos uma certa disciplina, que era muito importante. O fato de termos eliminado certas coisas ruins da educação, como o "bolo" [Ruth ri], sentar no canto com o chapéu de burro [faz o gesto do chapéu], essas coisas, fez com que a gente também eliminasse outras coisas que são importantes. Eu sou muito crítica quanto a isso, eu acho que a gente tem que ter uma certa disciplina na vida. Na vida, para estudar, para trabalhar...

Augusto Massi: [Interrompendo] Porque eu vejo, por exemplo, uma pessoa, hoje em dia, para ela ler um livro como Ana Kanerina [romance do escritor russo referido em seguida, publicado em 1876, com quase 900 páginas e várias adaptações para o cinema], de Tolstói ; Os sertões [livro de difícil leitura por usar vocabulário incomum e abordar assuntos pesados, como a seca nordestina, publicado em 1902 e também de aproximadamente 900 páginas], de Euclides da Cunha [(1866-1909), escritor e jornalista brasileiro, escreveu Os sertões, clássico da literatura nacional, a partir de anotações como jornalista quando cobria o conflito da Guerra de Canudos como enviado do jornal O Estado de S. Paulo. Foi membro da Academia Brasileira de Letras]... implica um tempo, que ela vai parar, ela não vai conversar...

Ruth Rocha: Um tempo, uma dedicação.

Augusto Massi: ... não vai falar no telefone, não vai atender celular, ela vai ter que estar concentrada. Agora, é imensa a satisfação, depois que você termina de ler um livro desse tipo, o nível de conhecimento... o mundo se amplia de tal modo, quer dizer, você percebe que você saltou à frente dos outros.

Ruth Rocha: Certo, Certo.

Augusto Massi: Você compreende mais as coisas. E isso dá um sentimento, eu acho, não de competição, que a gente fala "ficou melhor", mas um sentimento de que o indivíduo se melhorou, e dá uma certa alegria de olhar as coisas, e o contato real, eu penso que o livro amplia, isso para o adulto e para a criança. Então, falando dessa adaptação, que a Francesca levantou, dos clássicos, eu penso sim, acho que é um defeito dos escritores brasileiros de não pensar os clássicos para vários veículos, eu diria assim. Não há adaptação de clássicos brasileiros para a televisão, quando eles são feitos, são muito bem-sucedidos, as respostas são ótimas. As novelas, as mini-séries... são sempre bem recebidos. E há uma vendagem enorme, as pessoas vão ao livro. Então, eu penso que... com tantos escritores, e eu vejo que a literatura brasileira infantil é, realmente, de ótima qualidade, não seria uma oportunidade, aqui, a gente estando numa televisão, inclusive, de se pensar propostas? Eu fico imaginando você, que sempre foi uma pessoa muito dinâmica. Quer dizer, se você começasse a escrever hoje para crianças, você não teria uma sedução de já partir para... pensar na televisão? Sair também do suporte só do livro...

Paulo Markun: Até para o teatro ela reluta.

Ruth Rocha: É. Eu reluto até teatro.

Augusto Massi: Você não teria essa vontade?

Ruth Rocha: Eu não tenho essa vontade. Eu estou mais ligada, mesmo, ao livro. Eu sou muito ligada ao livro. Eu gosto de escrever, e gosto de livros.

Paulo Markun: E escrever à mão?

Ruth Rocha: Escrevo à mão [Ruth ri], e gosto de livros. Agora, a Tatiana tem também uma experiência muito interessante, de adaptação de clássicos para a televisão. Ela fez...

[Sobreposição de vozes]

Tatiana Belinky: [...] como divulgadora, eu me sentia muito menos escritora do que promotora da leitura. Eu queria que lessem, eu mostrava o livro, mostrava a história, o povão corria o livro [bate uma palma], fazia fila. Então, isso funciona.

Ruth: É. É verdade. Não, eu gosto muito de adaptar. Eu fiz umas adaptações de óperas, que eu acho que foi uma coisa muito interessante, porque as crianças gostaram de ler. Porque nas óperas, eu primeiro perguntei "mas isso...?", me pediram para fazer a Carmen, “mas isso não é assunto de criança! Isso é um dramalhão, é uma coisa que tem morte, que tem tudo...”. Aí, minha filha, que em muitas coisas é mais sabida do que eu, ela falou “Mãe, a Carmen tem tudo para a criança gostar: tem soldado, tem cigana, tem fogueira, tem acampamento, tem [risos] tudo para criança... tem contrabandista... tem tudo para a criança gostar.

Tatiana Belinky: Toureiro.

Ruth Rocha: Tem toureiro! Tem toureiro.

Dib Carneiro Neto: Ruth, por que é que você reluta tanto com teatro? Marcelo, marmelo, martelo foi um musical muito bem feito no teatro.

Ruth Rocha: Bem feito. É.

Dib Carneiro Neto: Procurando firme teve uma montagem muito boa, da Neide Veneziano.

Ruth Rocha: Foi ótimo.

Dib Carneiro Neto: O que é que te incomoda?

Ruth Rocha: Me incomoda é que nem todos são bem feitos [risos]. Me incomoda que, às vezes, a adaptação vai por um caminho que não tem nada a ver com a obra. Eu estou ciente, absolutamente ciente, de que o teatro é uma linguagem diferente e que tem que haver uma modificação. Não é possível o escritor ficar esperando que a obra dele esteja inteira na adaptação, mas não é possível você aceitar certas adaptações que me mandam. Por exemplo, eu recebi uma adaptação do Marcelo, martelo, marmelo , não sei se todos conhecem o Marcelo. Marcelo é uma historinha muito singela de um menino que inventava palavras, de um menino de hoje [enfatiza], que inventava palavras, tinha um cachorro e... E fazem um... a história começa com uma bruxa, que me mandaram. Então, a bruxa vem e fala não sei o quê... mas que... [indignada] que bruxa no meio...? [risos] Não tem nada a ver com bruxa! Não tem nada a ver com o livro!

Dib Carneiro Neto: E você mesma adaptar, você não pensa?

Ruth Rocha: Ah, eu não tenho vontade.

Manuel da Costa Pinto: Ruth, você falou em adequação do tema de Carmen, por exemplo, do Mérrimé, do Bizet, para criança. Quando você escreve, que dificuldade você encontra para filtrar certos temas? Quer dizer, existe uma auto-censura? Porque é diferente escrever para o público infantil e o público adulto, obviamente. Qual é o limite, como é que você estabelece? Você já falou de política nos seus livros, já falou, enfim, de temas de crítica social, mas quando entra, por exemplo, em questões de sexualidade, que hoje é uma questão do dia, porque existia uma...

Paulo Markun: [Interrompendo] Morte.

Manuel da Costa Pinto: ... a morte, por exemplo...

Paulo Markun: Morte não é muito a sua praia.

[Sobreposição de vozes]

Manuel da Costa Pinto: Mas hoje em dia com esse problema da pedofilia, que está se transformando em algo de proporções ou dimensões mundiais... o tratamento da sexualidade: até que ponto você acha que isso é legítimo, quer dizer, existe uma auto-censura do escritor ao escrever? E você acha que também deve exister um... e aí até saindo um pouco da sua obra, deve existir uma censura da parte dos pais daquilo que os filhos vão ler? Os pais devem verificar aquilo que deve ser lido pelos filhos?

Ruth Rocha: Na verdade, os pais deveriam saber tudo o que se passa com as crianças, não é? O pai devia estar a par do nível da criança, daquilo que ela compreende, aquilo que ela não compreende, aquilo que é adequado para aquela criança... eu acho, por exemplo, que há crianças que têm medo de contos de fada. Então, quando a criança se assusta com um conto de fada, os pais têm que estar alertas para isso, para não ficar contando histórias de fadas, para elas, de noite, ter pesadelos. Então, sexualidade é um assunto que os pais devem ter um trato de acordo com a criança, de acordo com as perguntas que a criança faz, de acordo com o que ela quer saber... então procura alguma coisa... Agora, eu não gosto muito de... eu acho que, quando você pega um fato como sexualidade, ou ecologia ou...

Paulo Markun: A tragédia do 11 de setembro.

Ruth Rocha: A tragédia do 11 de setembro.

Paulo Markun: Não dá um livro para crianças.

Ruth Rocha: Não dá um livro para crianças. No entanto, você pode explicar para ela. Então, você pode fazer um livro sobre sexualidade com os fatos: como é, como é que nasce criança, como é que é concebida... existem excelentes livros até de figuras [risos], que mostram como é que é, e eu acho que deve levar para a criança, de acordo com a necessidade da criança, com os desejos de saber...

Ricardo Soares: Ruth, deixa eu pegar uma carona no que você está dizendo. Você está tratando desse tema com uns argumentos, vamos dizer, poéticos, singelos, sendo que hoje a mídia é acusada, especialmente os programas infantis, a Fanny Abramovich [professora, jornalista e escritora de livros para o público infanto-juvenil, entre seus livros mais conhecidos estão: Gostosuras e bobices , Quem manda em mim sou eu e Sai pra lá dedo-duro] chega a dizer que a Xuxa [(1963-), apresentadora de programa infantil da televisão brasileira desde 1983. Antes disso, Xuxa figurou em revistas como modelo. Em 1982, estampou a capa da revista masculina Playboy, em que aparece nua] é um serial killer cerebral, né? [Ruth gargalha] ... que ela promoveu uma... a erotização das crianças. Você não acha que as crianças estão muito sabidas, até para a erotização desses programas infantis, para serem tratados esses temas, como a sexualidade, desse jeito que você está falando, de uma maneira singela? Eu colocaria aqui o argumento da Fanny no meio da conversa.

Ruth Rocha: Não, eu acho que sexo é uma coisa singela, é uma coisa simples, é uma coisa objetiva...

Ricardo Soares: Não, eu te pergunto em cima do que as crianças recebem, né?

Ruth Rocha: É uma coisa real... Até natural [risos].

Ricardo Soares: O que as crianças recebem na televisão, quer dizer, a dancinha da boquinha da garrafa...

Ruth Rocha: Bom, isso eu sou contra, né?

Ricard Soareso: Então, mas elas não estão muito mais sabidas, quer dizer...

Ruth Rocha: Não, mas sabidas, quando você fala em "sabidas", eu penso assim: se está sabida, ensina melhor. Eu acho que você pode dizer tudo para a criança, em matéria de sexo. Agora, não acho que deva falar de sexo na ficção. Eu acho... na verdade, eu vejo a necessidade de explicar sexo para a criança porque não tem outro jeito, eu acho que sexo é uma coisa natural, objetiva, e da vida, e o que fizeram foi muita censura, a vida inteira, né? No tempo que eu era criança, minha mãe ficou grávida, botavam umas roupas grandes, assim, para não se ver que ela estava grávida... quando o meu irmão nasceu, ela disse para uma amiga dela "Me dá um travesseiro pra eu botar na barriga, que é porque a Ruth é muito esperta, ela vai logo ver que eu não tenho barriga". Agora, eu era mais esperta do que isso, porque até escutei ela falar [risos]... Nada! Eu estava espiando o que era parto na enciclopédia [faz gesto de folhear]. Quer dizer, eu acho que as crianças são sabidas, e devem ser, é ótimo que sejam, precisa ensinar tudo. É lógico que pedofilia, você tem que chamar seu filho, e tem que explicar direitinho o que é.....

Paulo Markun: Por que é que você tem essa... ?

Ruth Rocha: Mas eu não acho graça de escrever ficção sobre isso.

Paulo Markun: Eu queria retormar a pergunta do Manuel. Você, na ficção, você tem vários assuntos, pelo menos aparece em suas entrevistas: "Aah, eu acho que aquela é uma parte muito pesada da história...". Na própria adaptação da Odisséia [você disse] "Aquilo eu achei que não era assunto para criança, e limei o máximo.".

Ruth Rocha: Por exemplo, eu dei um fim em A vingança de Ulisses. Tem uma coisa, que ele pega todas as empregadas da casa que andavam [risos] de namoro lá, com os pretendentes, e... o filho dele, eu acho que é o Telêmaco, que mata elas todas e pendura... todo mundo pendurado no varal, assim, pelo pescoço [risos, acompanhando o gesto de dependurar], todos pendurados. Eu não achei necessário dizer isso. Sabe? Eu digo que ele deu um castigo horroroso, matou, castigou todos eles, e pronto.

Adriana Vera e Silva: Mas, Ruth, que tipo de leitura... por exemplo, os contos de fadas são, em sua maioria... têm cenas extremamente cruéis...

Ricardo Soares: [Interrompendo] Chapeuzinho vermelho... come... abre a barriga... [risos]

Adriana Vera e Silva: ... todos, isso faz parte da estrutura dos contos de fadas. E como é que se lida com isso, né?

Ruth Rocha: Não, eu acho que conta. Conta essas coisas. Mas você pode contar de muitas maneiras. Você não conta numa de horror, entendeu? [risos] Eu acho. Conforme a idade... crianças de 4, 5 anos...

Tatiana Belinky: [Interrompendo] Criança adora histórias de terror. Adoram.

Ruth Rocha: Adoram [histórias] de terror. Todos me perguntam se eu não escrevo histórias de terror.

Tatiana Belinky: E a minha neta me disse, quando ela tinha sete anos - o filho dela, meu bisneto, já tem mais do que isso -, mas quando ela tinha sete anos ela me disse: "Tati, livro que não dá pra rir, não dá pra chorar, não dá pra ter medo, não dá pra ter raiva, não tem graça". [risos]

Ruth Rocha: Mas eu cito muito sua frase – que nem é sua, é da sua filha, né? Então, eu cito muito essa frase, acho que a história precisa de emoção. Agora, criança tem uma sensibilidade que a gente tem que proteger, criança tem uma sensibilidade mais delicada,

Tatiana Belinky: Exatamente.

Ruth Rocha: Criança não é um adulto, [para a] criança você tem que dizer as coisas e ficar olhando para ver o que é que ela está pensando [Ruht ri], ver se ela está entendendo, ver se ela está alcançando, ver se não está apavorando. Porque a criança tem uma sensibilidade especial, disso eu não tenho dúvida.

Tatiana Belinky: Agora, sentir um pouco de medo é muito gostoso. Chorar é muito gostoso. Rir é muito gostoso.

Ruth Rocha: Eu conto sempre uma história...

Tatiana Belinky: Humor, o que é que você acha de humor?

Ruth Rocha: Ah, eu acho imprescindível [risos].

Tatiana Belinky: [...] Disparate...

Ruth Rocha: Eu acho imprescindível. Adoro disparate. [risos]

Dib Carneiro Neto: Mas você tem uma opção... pelo que eu percebo, pelo final feliz, e pronto. Tem que ter final feliz...

Ruth Rocha: Não, a história minha pára enquanto está bom. Depois eu não sei o que vai acontecer.

Ricardo Soares: Como é que é?

Ruth Rocha: Minhas histórias param onde está bom. Está tudo bem, parou ali. Pode continuar depois.

Dib Carneiro Neto: Isso não tem nada a ver com você, com suas histórias de infância...?

Ruth Rocha: Tem, tem a ver comigo, porque eu sou uma pessoa otimista, eu sou uma pessoa que foi muito feliz na infância, eu tive uma infância muito, muito boa, muito especial.

Ricardo Soares: Contavam muitas histórias para você?

Ruth Rocha: Contavam. Contavam. Eu tinha um avô nordestino, contador de histórias, [que] dançava, cantava, recitava... ele era primo do Castro Alves. Ele recitava... poesia do Castro Alves, ele recitava... aquelas coisas...

Ricardo Soares: [Esfregando as mãos] Tem árvore genealógica bacana. [risos]

Ruth Rocha: Aquelas coisas românticas [enfatiza, estendendo os braços lentamente] não é? Ele cantava, ele dançava, ele era muito engraçado e ele amava [enfatiza] contar história. Não só contava, como adorava. Então, ele juntava a criançada toda, ele morou numa vila lá no Rio, que as crianças das casas todas saíam, ele botava uma... depois que ele se aposentou... botava uma cadeira no meio da vila, as crianças sentavam todas no chão, ele ficava contando histórias o dia inteiro. E ele contou muitas histórias para mim, contou todas, ele conhecia todas! Porque ele conhecia histórias que ele tinha lido, ou sei lá se a mãe contava, eu não sei com quem ele aprendia aquilo tudo, porque ele sabia Grimm [referência aos irmãos alemães Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), escritores de célebres contos como Branca de Neve, João e MariaA bela adormecida e Chapeuzinho Vermelho], ele sabia Andersen [(1805-1875), poeta e escritor dinamarquês que escreveu A pequena sereia, O soldadinho de chumbo, O patinho feio e A princesa e a ervilha], sabia Perrault [(1628-1703), escritor dos contos Barba azul, O pequeno polegar, Rapunzel e O gato de botas. O escritor francês também escreveu histórias coincidentes com as escritas pelos irmãos Grimm, de fundo europeu comum, como Chapeuzinho Vermelho], sabia As mil e uma noites [coleção de contos orientais compilados provavelmente entre os séculos XIII e XVI, cuja estrutura em cadeia, em que cada conto termina com uma deixa para o seguinte, estimula a seqüência de leitura], sabia... e sabia todas as histórias de folclore do interior...

Tatiana Belinky: Vai ver que ele lia livros. Quem sabe? [risos]

Ruth Rocha: Lia muito [sorri].

Ricardo Soares: Quer dizer, esse estímulo familiar é fundamental, então.

Ruth Rocha: Fundamental.

Ricardo Soares: Você falou que cita uma frase da Tatiana, ou da filha dela, e os escritores infantis que eu tive a oportunidade de entrevistar, eu cito uma frase sua, que você falou uma vez num programa, que... é... “leitura, antes de mais nada é estímulo, é exemplo”, igual a educação, é exemplo. Se dentro de casa você vê alguém, o pai e a mãe, lendo, a criança vai ter essa arma... é mais forte do qualquer educação... você acredita piamente nisso?

Ruth Rocha: Eu acredito piamente que a criança... que o exemplo é uma mola muito forte para tudo. Agora, eu acredito, também, que há crianças que nascem com esse destino de ler, que vão procurar um livro. Eu sei de gente que morava no interior, não sei onde, não tinha um livro, achou um livro e abriu um caminho. Eu acredito também que a criança que aprende a ler bem, que é bem alfabetizada, tem outra... outra possibilidade de leitura. Porque eu acredito também muito que a criança.... muita gente que não lê, que não gosta de ler, não gosta porque não sabe.

Paulo Markun: Agora, hoje em dia...

Ruth Rocha: Lê mal. Não compreende, não tem vocabulário, não tem compreensão, também, não tem a leitura da vida, também. Não tem aquela coisa de compreender o que se passa. Eu tive na minha família - eu falo que tive uma infância feliz - eu tive uma mesa numa sala de jantar, onde se conversava. Meus pais conversavam conosco, depois eu tive irmãos menores que eu, conversava-se, a gente batia papo, a gente conversava, nós líamos uns livros que meu pai tinha lido quando era mocinho. Então, a gente descobriu aqueles livros, eram uns folhetins que ele comprou, um montão de folhetins, levou para casa, e nós todos lemos. E a gente discutia aqueles folhetins. Era uma história da França, a história do tempo do reinado da Catarina de Médicis, do Henrique II, depois tinha o Carlos [...], depois tinha o Henrique IV, "Paris vale bem uma missa" [frase atribuída ao rei francês Henrique IV, quando se converte ao catolicismo, abandonando o protestantismo, para ter o apoio necessário à conquista de Paris, realizada em 1594, até então dominada pelos espanhóis], depois tinha... era uma coisa toda descabelada, ótima. Nós discutíamos, meu pai falava "Vai buscar o Larousse [dicionário enciclopédico mundialmente conhecido, publicado entre 1960e 1964, em 10 volumes]", e a gente ia buscar o Larousse para procurar [gesto de folhear], "Ó, ah, isso aconteceu. Foi mesmo, foi fulano de tal matou o rei, matou o rei...". Nós discutíamos aquilo, havia uma conversa em casa...

Paulo Markun: Esse tempo é um pouco diferente do tempo em que as crianças de hoje vivem.

Ruth Rocha: Muito diferente. É.

Paulo Markun: No entanto, as crianças, principalmente de classe média, têm hoje horas e horas por dia no computador, na internet, e elas estão lendo e escrevendo, por incrível que possa parecer, para quem é mais ortodoxo, como eu, que olho às vezes aquelas coisas que os meninos escrevem e não consigo entender metade. [Ruth ri] Porque as palavras são escritas com outra grafia e porque o universo de informações que eles têm à disposição é gigantesco. Você tem, inclusive, uma página sua na internet, que é uma página de demonstração de amor ao livro, e uma espécie de apresentação disso. Você acredita que dessa geração, que não tem mais a conversa em casa, não tem mais o avô que conta histórias em muitos casos, não tem esse universo que você descreve, mas tem o computador, possa surgir alguma geração de leitores e escritores ativos?

Ruth Rocha: Ah, eu acredito! Eu acredito. Eu acho que o mundo muda, e as pessoas mudam, e os escritores mudam, e os interesses mudam, e... e acho que vai ser diferente, de alguma forma. Agora, eu acho que preservar o livro... eu acho que ainda é possível, acho que o livro ainda vai ser companhia para as crianças e para os adultos, também.

Tatiana Belinky: E vai demorar muito, não vai acabar livro, coisa nenhuma.

Ruth Rocha: Eu acho que não vai acabar, embora eu saiba e a gente sabe que pode mudar até o suporte. O suporte do livro pode mudar. Agora, o livro como entidade, quer dizer, um livro que conta um romance. Eu não sei, eu acho que... eu não consigo imaginar um ser humano que não ache graça numa história. Uma história bem contada, contada segundo a nova época, né? Vai ter uma modificação, eu imagino. Mas eu acredito no livro, ainda.

Francesca Angiolillo: Ruth, muda a época, muda naturalmente, também, o modo de o autor se aproximar do leitor. Os temas vão mudar e a forma de abordar também. Na sua geração lia-se, tinha-se muito contato com contos de fada com fundo moral fortíssimo, maniqueísmo... o aprendizado era uma sucessão de agruras. [Ruth ri]. Os seus livros passam longe disso, né? São... sempre... eles induzem a um questionamento que tem por trás esses temas que você julga importante de abordar, vistos pela ótica da criança. Já passou muito... mais de trinta anos, desde que você começou. Como é que você se adaptou, adaptou o seu modo de contar histórias à criança que está hoje aprendendo a ler, começando a ter contato com os livros?

Ruth Rocha: Olha, eu não acho que eu tenha adaptado, não. Eu acho que continuo escrevendo para a mesma criança. E continuo... os primeiros livros que eu escrevi continuam vendendo muito. Marcelo foi... foi das primeiras histórias que eu escrevi, e depois eu publiquei na revista Recreio, né? A revista Recreio era uma revista que vendia muitíssimo, vendia um milhão, por mês, de exemplares, eram 250 mil por semana, e eu publiquei aquelas minhas histórias todas, quer dizer em mil novecentos e... [hesita] sessenta e nove, tá certo? Sessenta e nove, foi. [risos] Comecei em 69. Então.... E hoje, as crianças lêem as mesmas histórias que eu publiquei em 69.

Ricardo Soares: Aliás, até então você não tinha escrito, né?

Ruth Rocha: Não, não.

Ricardo Soares: Aí foi encomenda, não foi?

Ruth Rocha: Foi encomenda. Foi.

Ricardo Soares: Você foi... a diretora de redação era a Sonia Robato, que encomendou...

Ruth Rocha: A Sônia Robato, que me encomendou histórias, eu disse a ela que não sabia escrever...

Paulo Markun: A mando do Eça de Queirós.

[Risos]

Paulo Markun: Ela falou "O Eça de Queirós foi lá e disse: 'olha...'" [risos]

Ruth Rocha: O Eça de Queirós baixou nela... [risos]

Ricardo Soares: Você começou, quer dizer, por certo acaso, vamos dizer...?

Ruth Rocha: É verdade. Foi de encomenda, mesmo.Teve um, dois, três, quatro, cinco... escrevi cinqüenta [gestos largos com os braços] contos!

Ricardo Soares: E ali você já achou a mão, [e disse:] "é isso mesmo que eu quero fazer"?

Ruth Rocha: Foi.

Ricardo Soares: A [revista] Recreio, então, é a responsável pela escritora Ruth Rocha?

Ruth Rocha: Ah, completamente. Completamente. Recreio e Monteiro Lobato.

Ricardo Soares: E Eça de Queirós. [risos]

Ruth Rocha: E Eça de Queirós, e ah bom... Mário de Andrade... Manuel Bandeira, e [risos] ... muita gente.

Adriana Vera e Silva: Ruth, você disse acreditar que algumas crianças nascem com o destino de ler. Então, você acredita que leitura, à parte o instrumental, o incentivo dos pais, da escola... à parte isso, ela é também vocação?

Ruth Rocha: Eu acho que é. Eu acho que é. Evidentemente o instrumental...

Adriana Vera e Silva: [Interrompendo] Então tem gente que, por mais incentivado que seja, não vai ler.

Ruth Rocha: Eu acho. Tem gente que não gosta de ler, não se interessa, não quer e não lê. Agora, acho que é uma minoria, também, assim como esses que lêem de qualquer maneira também são minoria. É esse que descobre o livro de qualquer maneira, mesmo que não tenha estudo, gente que não estudou... autodidata, né? E que descobre a leitura, e lê, e gosta, e tudo... Agora, tem uma grande massa de pessoas que pode ser influenciada pelo exemplo, que pode ser influenciada por bom ensino, por professores bons...

Tatiana Belinky: E não mande ler, jamais.

Ruth Rocha: É não precisa mandar.

Tatiana Belinky: Não mande, com o dedo em riste.

Ruth Rocha: Ah, sim.

Tatiana Belinky: Eu gosto de citar Daniel Pennac [(1944-) escritor francês nascido no Marrocos dedicado à literatura infantil e juvenil. Ganhou o Prêmio Renaudot em 2007 pelo livro Mágoas da escola e, em 2008, obteve, pelo conjunto da sua obra, o Prêmio Metropolis Bleu], você conhece?

Ruth Rocha: Conheço. Conheço.

Tatiana Belinky: Então, ele começa o livro [intitulado Como um romance (1993)] dizendo "O verbo ler não comporta imperativo, como dois outros, amar e sonhar.". Não se manda ler, não se manda amar, não se manda sonhar. É diferente, é outra coisa.

Ruth Rocha: Isso é verdade. Não, mas aí, ó, eu também acho isso tudo, embarco bem nisso. Mas eu acho o seguinte: o educador... eu me considero, eu sou uma educadora, é claro...

Tatiana Belinky: [Interrompendo] Nós somos todos, queiramos ou não.

Ruth Rocha: ... mas eu não me considero com essa responsabilidade. Eu não me considero com a responsabilidade de fazer ler. Eu considero dos professores essa responsabilidade de fazer ler.

Tatiana Belinky: Deixar, dar chances, expor a criança ao livro.

Ruth Rocha: Expor, isso sim. [sobreposição das vozes de Ruth e Tatiana] mas não é o meu trabalho, o meu trabalho é escrever. Agora, eu acredito, também, que criança precisa ter livros.

Paulo Markun: Agora, como é que funciona, no teu trabalho, a parceria com a ilustração? Porque a esmagadora maioria dos seus livros são livros ilustrados.

Ruth Rocha: São. Eu na verdade, não... eu conheço o ilustrador, eu gosto do trabalho dele, e eu entrego...

Paulo Markun: [Interrompendo] Alguns você gosta mais.

Ruth Rocha: É evidente.

Paulo Markun: Tanto que é casada com um. [risos]

Ruth Rocha: Tanto que sou casada com um. E eu gosto de entregar...

[...]: Só para ilustrar... [risos]

Ruth Rocha: Eu gosto de entregar para o ilustrador fazer da cabeça dele. Eu não gosto muito de me meter na ilustração. Eu escolho...

Paulo Markun: [Interrompendo] Mas quando você escreve, você pensa na ilustração?

Ruth Rocha: Não.

Paulo Markun: Você pensa na imagem?

Ruth Rocha: Não. Não. Eu não sou muito... muito visual. Eu, por exemplo, quando fecho os olhos para dormir, eu não vejo nada. Eu não tenho essa coisa visual. Meu marido, por exemplo, diz "Puxa, eu vejo até cor.", fala assim [sorrindo, passa a mão no ar, diante dos olhos] "Agora eu vou ver o amarelo.". Eu não tenho nada disso, eu não vejo nada. Eu só vejo quando sonho, mas não vejo, assim. Então, eu não vejo, não tenho tendência para o visual.

Paulo Markun: Sim, mas quando você fala "Eu criei o Marcelo", ele não tem uma cara, um jeito...?

Ruth Rocha: Não.

Ricardo Soares: O Reizinho Mandão [Título e personagem principal de um dos livros da autora, lançado em 1997] tinha uma cara?

Ruth Rocha: É, mais ou menos, né? Assim... uma coisa bem pequenininha...

Ricardo Soares: Aliás, eu te perguntei isso, uma vez, e você fugiu da pergunta. Em quem é baseado o Reizinho Mandão? Tem que ter alguém, tem que ter alguma figura...

Ruth Rocha: Evidentemente, os meus reis todos foram baseados nos ditadores militares. Isso sem dúvida. Mas não especificamente, quer dizer, eu pensava em autoritarismo, pensei em censura...

Ricardo Soares: Não pensou especificamente na figura?

Ruth Rocha: ... até, uma vez, contei uma história para umas crianças, numa escola, e eles perguntaram para mim... um menino lá perguntou: "Mas esse rei aí, quem é?". Eu falei "‘Bom, esse rei pode ser um pai mandão, pode ser um professor mandão.". [alterando a voz, indicando ser a fala do menino] "É, mas esse aí, é o presidente da República.". Aí eu falei...

Ricardo Soares: [Interrompendo] Está cheio de candidato a Reizinho Mandão.

Ruth Rocha: ... eu falei "é, esse é o presidente da República.". Ele falou "E você não tem medo da polícia?". E eu falei "tenho" - naquele tempo eu tinha muito, porque a gente punha essas coisas e deixava rolar por aí pra ver o que acontecia. [risos]

Augusto Massi: Você já enfrentou algum tipo de censura dessa ordem, com livro infantil?

Ruth Rocha: Não. Eu, não. Mas teve autor de literatura infantil que foi detido. O João Carlos Marinho [(1935-), escritor brasileiro reconhecido por renovar a literatura infanto-juvenil no início dos anos 1970] escreveu uns livros, O gênio do crime, O caneco de prata, ele foi detido, a professora que levou o João Carlos Marinho na escola foi expulsa do serviço público, e... ele ficou detido um dia inteiro lá no... depondo... na polícia. Eu não sei onde.

Adrian Vera e Silvaa: Mas, Ruth, você utilizou mesmo o seu trabalho, a literatura infantil, como instrumento político... uma coisa totalmente deliberada ou não?

Ruth Rocha: Não, não. Eu escrevia aquilo que eu sentia, aquilo que me chateava, aquilo que me revoltava, aquilo que me incomodava, e eu fazia as histórias por causa disso. Não como instrumento político... não era bem isso.

Tatiana Belinky: Mas a política resulta disso, no fim.

Ruth Rocha: É, resulta. Eu sei que resulta e sabia que ia resultar. Mas eu não fazia para isso, eu fazia porque me dava vontade de falar de....

Tatiana Belinky: Mas como você diz, você é educadora; nós somos todos educadores. Quer queiramos ou não. Tudo que a gente faz educa ou deseduca, forma ou deforma, informa, conforma... [Tatiana ri] e assim por diante...

Ruth Rocha: É verdade.

Paulo Markun: Bem, Ruth, nós vamos fazer um rápido intervalo, e o Roda Viva volta já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: Nós estamos voltando com o Roda Viva, esta noite entrevistando a escritora Ruth Rocha. Infelizmente, o programa não permite a participação do telespectador, porque está sendo gravado. Ruth, dessa quantidade imensa de personagens, e de figuras, e de histórias que você produziu, qual é a que ficou como, assim, o carro-chefe, na sua cabeça? Não necessariamente do mais vendido.

Ruth Rocha: Olha, a gente gosta dos livros que escreveu, cada um de uma forma, né? Eu acho que, evidentemente, o Marcelo me deu muita alegria [Ruth ri], porque vendeu muito, as crianças gostam muito. Mas tem outros que eu gosto, tem um que eu gosto muito, que é o Bom dia, todas as cores!, que eu acho um texto bem amarradinho, bem escrito, bem redondinho, bem feito. Tem um que não vende nada, que chama Davi ataca outra vez, que é um dos pouquíssimos livros meus que não vende muito, vende pouco, mas é um livro que eu acho...

Paulo Markun: Mas esse "‘vende pouco" não é o que vendeu 140 mil? [sorri]

Ruth Rocha: Não, vende... vendeu uns 20 mil, só.

Paulo Markun: [Em tom de ironia] Só?

Ruth Rocha: Não mas para... [sorri] é...

Paulo Markun: Para Ruth Rocha, é pouco.

[...]: Para a Ruth Rocha é pouquíssimo. [risos]

Ruth Rocha: É pouco. Então, mas eu gosto muito de Davi ataca outra vez, porque tinha uma história, realmente, do tempo da ditadura, que tem um menino que escreve na parede, e ele escreve as coisas ao contrário, como muitas crianças quando aprendem a escrever, [faz gesto de escrever] escrevem um “erre” ao contrário, escrevem umas letras ao contrário. Então, passa uma pessoa, um delegado, e acha que aquilo é russo [franze a testa], e que então aquilo é um complô que está havendo, que ele vai descobrir o complô. Mas eram nada. Eram recados de uns meninos para os outros. E eu gosto muito dessa história. Gosto... gosto muito de um livro que se chama Quando eu comecei a crescer, porque esse livro foi um fato da minha infância e que, naturalmente, eu fiz um ar bonitinho, mas é um fato que aconteceu comigo. E foi uma passagem minha, passar de criança para mais velha. Eu descobri que não existia Papai Noel, porque escutei quando minha mãe botou uma bicicleta, fez barulho, eu escutei e vi que ela é que estava pondo a bicicleta e deixei de acreditar em Papai Noel.

Paulo Markun: Pelo visto, sua mãe não dava sorte com você.

Ruth Rocha: [Ruth ri] Eu descobria tudo.

Paulo Markun: Descobriu o negócio da gravidez, daí o da bicicleta... [vozes sobrepostas]

Ruth Rocha: Mas eu era realmente, eu era muito enxerida, descobria tudo. E aí... mas eu já tinha uns sete anos, já estava na hora de descobrir.... e eu gosto desse livro por isso, porque é um rito de passagem, né? A criança que deixa...

Paulo Markun: E tem algum que você não conseguiu... alguma história que você não conseguiu ainda escrever?

Ruth Rocha: Tem, eu tenho vários começados, que ficam meio assim... eu tenho uma história que é uma história que eu queria fazer uma história sobre ética. Mas ética de jovem, né? É uma escola, eles resolvem fazer um grêmio, e eles então se juntam, e eles começam a discutir. Então tem aquelas discussões de estudantes, né? Para fazer trabalho de grupo, aí os meninos largam tudo na mão de um só. Isso acontece todo dia, né? E eles ficam danados, brigam uns com os outros... botar um pouco de discussão ética no meio desses acontecimentos. Tem um namoro e tal, mas a minha intenção é discutir um pouco de ética.

Paulo Markun: E quando acontece isso, você deixa de lado a história? Deixa ela acalmar ali?

Ruth Rocha: Está um pouco parado, esperando. De vez em quando eu pego esse livro, dou uma olhada, leio e falo "gente, está tão bom, eu preciso acabar esse livro." [Ruth ri]

Dib Carneiro Neto: Mas, por favor, esse de ética é urgente, Ruth.

Ruth Rocha: Esse é urgente, né? É.

Dib Carneiro Neto: Você tem que fazer para os jovens quando forem adultos usarem a ética. Eles vão aprender com seu livro.

Ricardo Soares: Usarem agora! [risos]

Ruth Rocha: Usar agora também, né? Falar sobre cola, por exemplo, né? Sabe que tem um livro lindo do Ricardo Ramos [(1929-1992), escritor, filho do também escritor Graciliano Ramos, de extensa produção literária, incluindo contos, romances e novelas. Destacou-se também como homem da propaganda, professor de comunicação e jornalista], para adolescentes, que ficou esquecido, depois que ele morreu, ninguém mais falou nesse livro, que chama... [põe a mão no rosto, tentando se lembrar] Desculpem a nossa falha. E é um livro lindo sobre ética. Porque é um livro sobre uma escola que descobre uma coisa mal-feita das crianças, e pune com violência. E eles, depois de anos, se reúnem, e discutem essa punição. E é sobre ética da escola, em relação aos alunos.

Ricardo Soares: Você falou desse livro do Ricardo Ramos, que passou no tempo e ficou esquecido, e aí não é nem uma impressão, é quase uma constatação, e eu queria saber a sua opinião a respeito. Muitos escritores, inclusive os vinte que você enumera, que são os bons escritores de literatura infanto-juvenil no Brasil, alguns, ou a grande maioria, reclamam do pouquíssimo, ou do quase-nulo espaço que a mídia dá para a literatura infanto-juvenil, tratando como gênero menor. A gente tem, aqui, representantes da mídia e eu queria, quer dizer, é lógico que não são eles que determinam as regras, a política...

Paulo Markun: Nós, não se exclua disso, por favor. [risos]

Ricardo Soares: Agora, por que, Ruth, você acha que... as pessoas sabem quem é Tatiana Belinky, quem é Ruth Rocha, quem é Ricardo Azevedo... sabem quem são. Agora, existe uma grande quantidade de autores que são lançados todos os anos, e nenhum órgão de imprensa, nenhum, nenhuma publicação ligada à literatura dá espaço à literatura infanto-juvenil. Ela trata como gênero menor.

Ruth Rocha: É verdade...

Ricardo Soares: E os autores se ressentem disso, que não é o que acontece no exterior...Por que acontece isso no Brasil, por que é que a mídia ignora, despreza, tem preconceito contra a literatura infanto-juvenil?

Ruth Rocha: Porque tem preconceito, ignora e despreza a criança. Porque criança... nós não resolvemos o nosso problema de criança porque a sociedade não quer, não procura, não encontra jeito de resolver. Eu acho que... tudo o que é feito para crianças... agora descobriram como mercado, então tome Xuxa para vender coisas. Mas não porque tenham respeito pela criança. Quer dizer, todos os jornais... a Folha [de S.Paulo], por exemplo, tem a Revista da Folha que tem até uma seção que é GLS, né? Que é uma seção destinada para gays, lésbicas e simpatizantes. Tem uma seção que chama Macho, e não tem uma seção chamada Criança. No próprio jornal, a Folha [de S. Paulo] não tem uma seção Criança, onde fale de [gesto de enumeração com os dedos] saúde, onde fale de educação, onde fale de tratamento que os pais devem dispensar aos filhos...

Paulo Markun: E quando tem tratam a criança como destinatário da mensagem, não como objeto de discussão.

Ruth Rocha: Pois é.

Paulo Markun: Quer dizer, não há um caderno de criança que não seja para a criança mesmo.

Ruth Rocha: Tem a Folhinha, para a criança ler, mas não tem um lugar onde os pais...

Ricardo Soares: Mas eu digo mesmo o espaço, por exemplo, se um autor, como por exemplo o Jostein Gaarder [(1952-), escritor norueguês, autor de romances, contos e histórias infantis], que escreve lá O mundo de Sofia [obra de grande sucesso do escritor, traduzida para 53 línguas]... qualquer autor internacional lança um livro, mesmo que de qualidade... não estou citando ele como... de qualidade inferior, tem espaço na mídia.

Ruth Rocha: Tem. Tem. [assente com a cabeça] Os brasileiros têm pouquíssimo.

Ricardo Soares: Agora, livros como o do Ricardo Ramos existem aos montes, bons livros infanto-juvenis, e vendem muito, alguns.

Ruth Rocha: Vendem. Tem muita gente que vende de montão.

Ricardo Soares: E não sai uma única linha na imprensa.

Ruth Rocha: Não sai.

Ricardo Soares: Qualquer poeta sub-concreto que vende três livros em qualquer... três livros... recebe páginas de resenha... todos os cadernos de leitura... autor que vende cem exemplares, pode ter amigos na mídia, tem espaço, agora, autor infanto-juvenil não tem. Você acha, também, que é porque se publica muita coisa ruim, que tem esse preconceito... porque é um descompasso...

Ruth Rocha: Não, não é por isso, não. Não é por isso porque podia ter... E olha... e eu posso falar bem, porque eu sou... eu sou queridinha da mídia. Eu saio muito...

Ricardo Soares: Excetuando você, a Tatiana e mais dois ou três, não se fala...

Ruth Rocha: Então eu fico à vontade para falar, porque tem outros excelentes, como você diz. Eu nunca vi uma matéria sobre o Ricardo Azevedo...

Ricardo Soares: É raríssimo.

Ruth Rocha: Quer dizer, um autor respeitabilíssimo, não é?

Augusto Massi: Mas eu penso que isso, quer dizer, não há nenhum impedimento, isso é uma coisa que normalmente, é uma prática também, eu diria, brasileira, nós computamos um pouco entidades abstratas, eu sem querer puxar a sardinha, aqui, assim, para o meu lado, mas eu tive uma experiência com a Tatiana Belinky, quando eu trabalhava dirigindo a página de livros da Folha de S. Paulo, e eu convidei ela, ela escreveu várias coisas, a Fanny [Abramovich] escreveu, e começaram... quer dizer, o tempo que eu estava lá, o jornal gostou, os pais gostaram muito...

Ricardo Soares: [Interrompendo] Mas é uma experiência isolada, Augusto. É uma coisa completamente...

Augusto Massi: Mas eu digo, assim, penso que isso é uma falta que não vem de nenhuma determinação do jornal [sobreposição de vozes], isso faz parte de nosso mau jornalismo, isso faz parte de um certo acomodamento dos nossos editores de caderno, e muitas vezes...

[Sobreposição de vozes]

Augusto Massi: ... não toma iniciativas.

[...]: Manuel, você está indignado, é isso?

Manuel da Costa Pinto: Não, eu acho que é um pouco diferente. Eu não queria tornar isso um debate, porque o centro é a entrevista com a Ruth Rocha, mas me parece uma coisa... um raciocínio, talvez um pouco acaciano [tolo, ridículo, por manifestar-se em tom convencional e vazio de sentido ou em pomposa gravidade das maneiras, lembrando o Conselheiro Acácio, personagem de Eça de Queirós no romance O primo Basílio], meu, de que quem lê um caderno de cultura de um jornal, um adulto, está em busca de literatura adulta, assim como livros de economia ou livros de direito não saem na Ilustrada, no Mais ou no Caderno 2.

[Sobreposição de vozes]

Manuel da Costa Pinto: E o livro infanto-juvenil sai na Folhinha!

Ruth Rocha: Mas não é para a Folhinha. A Folhinha é para a criança ler. Não é para os pais lerem.

Manuel da Costa Pinto: Mas, mas é que o pai, muitas vezes, lê... quando o pai está interessado na literatura que o filho lerá, ele pode procurar isso na Folhinha. Agora, para ele...

Ruth Rocha: Não, mas nós não queremos isso. Nós achamos que...

[Sobreposição de vozes]

Ruth Rocha: Não. Nós queremos crítica. Nós queremos crítica. Por que é literatura.

[...]: Eu acho que há o aspecto pedagógico.

Ruth Rocha: Há o aspecto pedagógico, há o aspecto crítico, literário...

[Sobreposição de vozes]

Augusto Massi: Tem que ser discutido pelos adultos, o livro infantil, também.

Ruth Rocha: Pelos adultos. Tem que ser discutido pelos adultos. Tem que ser lido pelos adultos.

Augusto Massi: Eu acho que deveria ter resenhas das crianças também. A criança deveria resenhar

Ricardo Soares: Por isso que eu fiz um parêntese. Não é em relação à [revista] Cult ou à Folha [de S. Paulo], quer dizer, é um comportamento do mercado jornalístico, de não dar espaço. É uma constatação, Manuel, não é opinião. Você pode... Agora, eu não estou culpando A, B ou C. O problema é que, muitas vezes...

Manuel da Costa Pinto: Eu acho que é uma falta de criatividade.

Ricardo Soares: É... o pai da criança não tem acesso à boa literatura infanto-juvenil, porque ninguém se dá ao luxo de saber o que é bom e o que é ruim.

Ruth Rocha: [Interrompendo] Aliás, não se dá ao luxo de publicar outras coisas, como o problema de doenças, de vacina, de educação, de escola... de vez em quando, uma... um... uma revista ou um jornal faz uma... matéria sobre escolas, por exemplo. "As escolas... como escolher uma escola para o seu filho”. Mas aquilo sai uma vez e acabou. Eu acho que devia ter uma coluna, como tem, por exemplo, para culinária, não é? Aliás, eu adoro a coluna da Nina Horta [cozinheira, escritora, proprietária do buffet Ginger, escreve semanalmente sobre gastromonia, no caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo. Um de seus livros, Vamos comer, teve 250 mil exemplares distribuídos pelo MEC para as escolas públicas do Brasil]...

Paulo Markun: Cães & Companhia [nome de revista brasileira sobre animais de estimação, de grande circulação na América Latina].

Ruth Rocha: ... a Nina Horta eu não perco, agora eu...

Paulo Markun: Devia ter “Filhos e companhia”?

Ruth Rocha: Devia ter “Filhos e companhia”.

Paulo Markun: "Filhos e sobrinhos".

Ruth Rocha: Devia ter.

Dib Carneiro Neto: Agora, fica muito a literatura infantil como vítima... É perigoso, também, isso. Porque acho que diminuiu o espaço, na imprensa, para a literatura em geral, não é...

Ruth Rocha: Não, não. Tem muito mais para literatura para adulto. Não...

Augusto Massi: Eu acho que isso são preconceitos que nós desenvolvemos com os anos, e que alguém cria uma regra abstrata, quer dizer, por que é que não deve ser lido por criança... O ideal é que fosse lido por criança, por adulto, e que houvesse interação, que um pai pudesse ler no caderno de cultura um livro infantil, e que a criança pudesse ler alguns livros adultos na Folhinha. Quer dizer, que você tivesse exatamente esse diálogo e não o que o mercado faz, que é standard. Então, nós, que temos uma preocupação cultural, como escritores, como jornalistas, como professores, nós temos que arrebentar um pouco esse sistema.

Ricardo Soares: Havia o Edmir Perrotti [professor da ECA/USP, formado em letras e com doutorado em educação, desenvolveu um curso de especialização em ciência da informação com reflexões voltadas para o campo da literatura infantil e juvenil, e para a promoção da leitura. Preocupa-se com a preservação da memória das cantigas de roda e contos de tradição oral] escrevendo antigamente, havia a Fanny [Abramovich] [...], a Anna Flora [historiadora pela PUC de São Paulo e mestre em teatro pela USP, a escritora Anna Flora publicou, em parceria com Ruth Rocha, a coleção Escrever e Criar: é só começar, série de livros de redação que recebeu, em 1997, o prêmio Jabuti na categoria "Melhor Coleção Didática", e, em 2001, na categoria "Melhor livro do ano"].

Ruth Rocha: A Anna Flora...

Ricardo Soares: Esse espaço não tem mais, não tem mais.

Tatiana Belinky: Eu escrevi sete anos sobre livro infantil, duas colunas por semana. Na Folha, no Estado e no Jornal da Tarde.

Ruth Rocha: Antigamente, no Rio, tinha mais. Tinha a Eliane Nunes, que escrevia...A Laura continua escrevendo, mas é resenha. Agora, crítica...

Dib Carneiro Neto: [Interrompendo] Agora, gente, isso é menos um problema com a literatura infantil, e mais... a gente tem que começar um debate sobre a formação, hoje, do... do... do jornalista, que... que é mal formado, que não sabe escrever...

Ricardo Soares: O que nós estamos falando aqui, que a escritora que mais vende no Brasil, eu queria saber a opinião dela sobre essa constatação...

Ruth Rocha: Eu tenho, desde o começo de minha carreira eu guardei os recortes de jornal, eu tenho muito recorte de jornal. Antigamente, havia crítica de literatura infantil, hoje existe entrevista comigo. Então, fazem entrevistas, o que você acha disso, o que você acha daquilo, uma porção de perguntas, mas a crítica não existe mais.

Adriana Vera e Silva: Funciona atrás do mercado. Vai lançar um livro, a gente sabe, as editoras bombardeiam as redações...

Ruth Rocha: Dá notícia e tal, mas [com o dedo em riste] crítica, não.

Adriana Vera e Silva: ... com lançamentos de livros.

Ricardo Soares: Se a Xuxa lançar um livro infantil, todo mundo vai dar...

Adriana Vera e Silva: Qualquer lançamento de livro infantil, nos veículos que vão dar espaço para eles, eles são divulgados...

Ricardo Soares: Eu não conheço nenhum lugar que dê espaço para livro infanto-juvenil.

Ruth Rocha: Eles divulgam muito pouco. Divulgam muito pouco. Eu não me queixo, porque eu tenho divulgação, eu não me queixo. Mas eu acho que divulgam muito pouco.

Adriana Vera e Silva: Ruth, você estava dizendo que você acha que existe uma... a sociedade escamoteira, o Brasil escamoteia a infância, é isso? O Brasil tem dificuldade de lidar com a criança, o país...?

Ruth Rocha: Tem dificuldade de lidar com o problema criança, com o papel da criança no país. Aliás, tem dificuldade da criança e da família, não é? A família brasileira não existe para as discussões de política. Existe homem, mulher, criança, não sei o quê... a família, por exemplo, o apoio da família que tem criança na rua, coisas desse tipo... porque a assistência necessária para a criança é muito grande. Não adianta assistir só a criança. Ou você assiste a criança e a família, ou a criança... não adianta a assistência.

Augusto Massi: E o livro que você adaptou, aquela declaração...

Ruth Rocha: Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Augusto Massi: Qual a resposta que você teve?

Paulo Markun: Pegando uma carona aí, é fato que a ONU tungou, ali, os direitos autorais...?

Ruth Rocha: É fato. [risos]

[...]: Tungou... [risos]

Ruth Rocha: Faz 10 anos que não me paga, está na lista dos dez mais vendidos da Amazon Books [grande empresa de comércio eletrônico de livros e outros produtos, criada em 1995] ...

PauloMarkun: Você e o Otávio Roth [(1952-1993), pintor, professor e gravador, produziu, a convite da ONU, uma edição de gravuras sobre o tema ambiental. Como ilustrador, destacou-se pelo trabalho no livro Direitos humanos para crianças (1984), de Ruth Rocha]?

Ruth Rocha: Eu e o Otávio Roth.

Paulo Markun: E você não vê a cor do dinheiro...

Ruth Rocha: A cor do dinheiro faz 10 anos. Já mandei carta pela mão do Celso Amorim, que era embaixador da ONU, ele levou [enfática] em mãos, me mandou recibo dessa carta. Nunca me responderam. Eu, agora, mandei uma intimação judicial. E estou esperando uma resposta.

Paulo Markun: Bom, agora então vamos mandar uma cópia do Roda Viva para as Nações Unidas.

[Risos largos de Ruth]

Augusto Massi: Nas escolas tem muito debate em torno disso?

Ruth Rocha: Muito.

Augusto Massi: Esse, por exemplo, é um livro que você foi chamada...?

Ruth Rocha: É dos mais discutidos nas escolas.

Paulo Markun: [Interrompendo] O que você acha que falta, desculpe interromper, o que é que falta nas escolas em termos de matéria-prima, para a garotada ler, o que é que você acha que mais se demanda, além da boa literatura, que eu acho que sempre vai fazer falta, da boa poesia etc. Eu digo, falta matéria para essa, para essa...?

Ruth Rocha: Não, tem muita coisa para ser lida [cruza os braços]. Claro que falta... a gente, examinando, tem sempre uns assuntos que ninguém fala, e que podia falar e tal... mas aí seriam livros... não de ficção, não é? Porque de ficção, a gente não pode dizer que falta. Falta o que não existe [risos], que a gente não sabe dizer o que é. Agora... o livro de fatos, o livro de divulgação, esse livro falta um pouco no Brasil. No exterior, nos Estados Unidos, principalmente nos Estados Unidos, tem muito livro de divulgação muito bonito, bem feito, que no Brasil agora estão traduzindo muito... porque agora também entrou esse... entrou essa... outra vez, de novo, o livro estrangeiro, barato, que estão publicando bastante, e vocês podem notar que os livros estrangeiros vêm em edições lindíssimas, e os nossos livros, não. Nossas edições são pobres, são mal-feitas, são às vezes feias...

Ricardo Soares: Como é que você vê essa...

Ruth Rocha: ... e os estrangeiros recebem capa dura...

Augusto Massi: Você não acha que a [editora] Companhia das Letras, por exemplo, nesse quesito, mudou um pouco o perfil editorial.

Ruth Rocha: Mudou.

Augusto Massi: Eu acho que ela faz...

Ruth Rocha: A Companhia das Letras é uma excelente editora, né? Eles editam bem.

Dib Carneiro Neto: [Interrompendo] Ruth, como é seu contato... desculpa, os seus livros são lançados em mais de quinze idiomas; como é o seu contato com os leitores estrangeiros, com crianças de outros países...?

Ruth Rocha: Muito pouco. Eu tenho pouco.

Dib Carneiro Neto: Nem por email, agora...?

Ruth Rocha: Eu tive contato, numa ocasião, eu estive na Argentina, tive contato até com o jornalzinho de uma escola que tinha citado um livro meu, eles me trouxeram, e eu tenho muita vendagem na Espanha. Agora, as outras línguas nas quais eu... você sabe, fica muito difícil o contato com crianças que falam hindu [risos] Falam hindu, falam chinês, falam vietnamita, falam gujarati, falam hindi...

Ricardo Soares: Em quantos idiomas foram traduzidos seus livros?

Ruth Rocha: Olha, mais ou menos uns vinte, porque tem seis idiomas na Índia, quatro na Espanha, e depois tem outros...

Ricardo Soares: E prestam direito autoral direitinho para você, como é que funciona?

Ruth Rocha: Não, eu... esses livros, eu fiz o pior contrato que uma pessoa pode fazer. Então, ganhei um dinheiro, e acabou.

Ricardo Soares: [...] por um pacote...

Ruth Rocha: Por um pacote, pouco, e acabou.

Manuel da Costa Pinto: Mas você pertence ao seleto grupo de escritores que vive de direitos autorais no Brasil, né?

Ruth Rocha: É verdade.

Manuel da Costa Pinto:... o que é uma coisa bastante rara, não é?

Ruth Rocha: Muitos autores da literatura infantil, né? Ana Maria Machado, o Ricardo Azevedo... [dirigindo-se a Tatiana Belynk] Tatiana, você vive de direito autoral? [risos]

Tatiana Belinky: Tem a Ana Maria Machado, não?

Ruth Rocha: Ana Maria Machado, sem dúvida.

Tatiana Belinky: Last but not least, o que é isso?

Ruth Rocha: É … a Marina Colassanti.

Augusto Massi: A Lígia Bojunga...?

Ruth Rocha: A Lígia Bojunga? Eu acho que não. A Lígia eu acho que não.

Augusto Massi: O Ziraldo...

Ruth Rocha: O Ziraldo, sim. Sem dúvida.

Francesca Angiolillo: Ruth, os problemas da... as questões das crianças que falam chinês são as mesmas das crianças que falam...

Ruth Rocha: Eu não sei, porque eu não consigo me comunicar...

Francesca Angiolillo: Você não tem nenhum retorno, assim?

Ruth Rocha: Nenhum retorno.

Francesca Angiolillo: Mas vendem bem os livros lá, também?

Ruth Rocha: Já venderam. Venderam uma maçaroca. Eu vendi dois milhões e quinhentos mil livros para o exterior. Mas não tem um retorno, assim. Eu tenho retorno da Espanha. Eu tenho muitos livros e muitas edições...

Dib Carneiro Neto: Ruth, você acha importante entrar para a Academia [Brasileira] de Letras, você tem vontade, tem aquele pique de fazer campanha?

Paulo Markun: Vontade ela já disse que tem. Ela não vai fugir agora.

Ruth Rocha: Vontade, eu tenho. Eu acho divertido. Agora, acho... o pique de fazer campanha... eu não sei se eu tenho. Mas...

Dib Carneiro Neto: Tem que tomar chá, visitar os escritores...

Ruth Rocha: Tomar chá... é... Não, eu acho que eu tenho, viu? Eu sou capaz. Um dia desses eu... eu faço isso, um dia desses eu vou fazer. [sorri]

Adriana Vera e Silva: Ruth, os seus livros que vendem mais costumam ser os mais antigos, ou os mais antigos continuam vendendo sempre, ou você escreve sempre para a mesma criança? Agora, no seu contato com essas crianças, essas aqui do Brasil que você tem contato, desde que você começou a escrever para cá, o país mudou muito, e a vida das crianças mudou muito...

Ruth Rocha: [Interrompendo] E as crianças sentam na sua frente...

Adriana Vera e Silva: ... quais são as diferenças que você sente?

Ruth Rocha: ... você senta na frente de numa classe de crianças e elas fazem as mesmas perguntas.

Tatiana Belinky: Exatamente. Criança é criança.

Ruth Rocha: As [escandindo as sílabas] mesmas perguntas, há trinta anos.

Tatiana Belinky: Exatamente. E se emocionam com as mesmas coisas...

Ruth Rocha: Acham graça nas mesmas coisas.

Tatiana Belinky: Os sentimentos são os mesmos, os problemas são os mesmos, com computador, sem computador, com vídeo-game, sem vídeo-game, criança é criança, nasce pelada, banguela...

Ruth Rocha: ...e careca.

Tatiana Belinky: ...e careca. [risos] E analfabeta. [risos]

Dib Carneiro Neto: Mas então se é assim, porque os editores querem que os livros tenham frases mais curtas, ação, aventura, por causa desse [faz sinal de aspas com as mãos] chavão da geração vídeo-game? Se é a mesma coisa...

Ruth Rocha: Porque eles não sabem nada.

[Risos gerais]

Tatiana Belinky: Ação e aventura, sempre teve. Sempre teve.

Ruth Rocha: Os editores, olha... poucos editores sabem das coisas.

Ricardo Soares: Ruth, falando de editores, tem muitos escritores infanto-juvenis no Brasil preocupados com a entrada das editoras estrangeiras juntos... comprando, aqui... vamos dizer, a Editora Moderna foi comprada pelos espanhóis... entende? Você vê isso com preocupação...

Ruth Rocha: Alguma.

Ricardo Soares: ... você vê isso com naturalidade? Eu queria que você falasse um pouco da...

Ruth Rocha: Alguma. Eu não sei o que vai acontecer, eu não tenho idéia.

Ricardo Soares: Está apreensiva?

Ruth Rocha: Não, muito apreensiva, não. Mas eu fico pensando o que é que pode acontecer, porque, por exemplo, a Editora Moderna comprou a Salamandra, né? E foi vendida, a Editora Moderna, e foi... então, saíram justamente o pessoal da Salamandra, que foram meus editores muito chegados, eu sou muito [enfatiza] amiga deles, então era uma... era um pessoal que eu tinha maior confiança, que me... ah, me fizeram coisas maravilhosas, me davam festas, me faziam... davam presentes... era uma maravilha, eram meus amigos, né? E agora não tem mais isso, porque agora eu nem conheço... eu conheci, fui num coquetel deles, me apresentaram tal, mas eu não tenho intimidade nenhuma com eles. Ao mesmo tempo, foi vendida a Ática e a Scipione, foram vendidas também, eu também nem conheço. Eu conheço os diretores que estão lá sentados, mas não conheço os donos. Então, alguma apreensão, tenho, mas...

Ricardo Soares: Essa sua apreensão é em relação a quê, ao pragmatismo de mercado, que eles possam interferir na... o tipo de preocupação é essa?

Ruth Rocha: É, é... Agora, eu não tenho muita preocupação, porque meus livros vendem bem, sempre venderam bem, então eu não acredito que eu vá ter algum prejuízo.

Paulo Markun: Mas você teve uma... uma experiência, ou tem ainda, uma experiência de editora, né? Quer dizer, você...

Ruth Rocha: Eu tive uma editora, não tenho mais.

Paulo Markun:Como é que chama? Me deu um branco.

Ruth Rocha: Quinteto. Eu vendi para a FTD, a FTD comprou.

Paulo Markun: Você vendeu para a FTD.

Ruth Rocha: É, e...

Paulo Markun: E como é que você foi, como editora? Como foram vocês?

Ruth Rocha: Olha, eu não sou muito editora, não. Eu... Acontece o seguinte: nós tínhamos cinco amigos, que nos associamos. Tinha a Fanny, tinha o João Nouro, tinha o Walter Ono e tinha o Adalberto Cornavaca. Logo de cara, o Adalberto quis sair. Não quis mais ficar.

Paulo Markun: Já virou quarteto.

Ruth Rocha: Já virou quarteto. Logo depois, a Fanny quis sair. Ficamos os três. Aí, o João Nouro resolveu mudar para a Espanha. E ficamos só eu e o Walter Ono. Nós convidamos a Ana Maria Machado, que entrou... e... mas nós não tínhamos, assim, um administrador. Porque o Walter Ono fazia a administração, mas com muito prejuízo para ele, muito... era muito chato, ele não gostava. Ele fazia, mas não estava contente da vida. Então, nenhum de nós tinha saúde para ficar sentado, administrando.

Ricardo Soares: Você revelou algum autor legal? Chegou a dar tempo de revelar alguém interessante?

Ruth Rocha: Olha, eu lancei, botei autores que eu já conhecia do meu tempo de [editora] Abril, não é? Eu chamei a Silvia Ortoff, [(1932-1997), escritora de livros e peças de teatro infantis, ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura em 1983] que eu já tinha... ela... os primeiros... as primeiras histórias dela foram publicadas por Recreio. Eu chamei o Walcyr Carrasco, que é um excelente escritor para crianças. Eu chamei o Flávio de Souza, que também é um excelente escritor para crianças. Eu chamei o Mário Prata. Eu chamei... todos eles estavam mais ou menos no começo, de livros infantis, não estavam ainda muito conhecidos. Bom, a Ana Maria Machado, que está sempre comigo, Marina Colassanti.... publiquei bastante gente.

Dib Carneiro Neto: [Interrompendo] E hoje há autores novos....

Ruth Rocha: A Ana Flora.

Ricardo Soares: A Ana Flora, que é sua parceira, você ganhou o [prêmio] Jabuti com ela.

Ruth Rocha: Foi minha parceira. A Ana Flora é uma figura maravilhosa.

Dib Carneiro Neto: [Interrompendo] E hoje, você recebe livros de autores novos, para avaliar, para... os autores mandam...?

Ruth Rocha: Olha, hoje eu não recebo mais, porque eu comecei a não... a não receber. Eu não tenho tempo, eu não acho que seja trabalho de escritor julgar outro escritor. Eu acho que isso é trabalho de editor.

Dib Carneiro Neto: Agora, você sabe que essa coisa de editor chegou num ponto que um autor novo liga para um editor para mandar um texto, e ele diz, ele pergunta: "Quantas páginas tem seu livro?'', [ao que o autor responde:] "Mas como assim?", [e o editor diz:] "Não, quantas páginas?". Aí, o autor responde: "Cinqüenta e duas". E ele fala: "Ah, não. Eu só avalio até cinqüenta páginas. Você tem que falar com outro editor, porque mais de cinqüenta páginas já é na faixa etária tal.". A coisa ficou tão segmentada, Ruth, você acha que... que... isso na sua carreira... nunca aconteceu, assim?

Ruth Rocha: Não.

Dib Carneiro Neto: Você não tinha mais liberdade no começo para escrever, pensando em escrever e só, não importa para que faixa etária...?

Ruth Rocha: Tenho até hoje.

Dib Carneiro Neto: E o mercado não te importuna, hoje?

Ruth Rocha: Não. Nada. Jamais.

Paulo Markun: Agora, Ruth, nosso programa está chegando ao fim e eu queria colocar uma questão que me persegue.... que não só em relação ao livro infantil, e acho que talvez até a literatura infantil tem menos esse problema, que é a sensação de que livro, no Brasil, sofre a "Síndrome do Tostines" [referência ao comercial de televisão da marca de biscoitos Tostines, veiculado nos anos 1980 e conhecido pelo slogan "Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?"

Ruth Rocha: [risos] Ele não é lido porque ele é caro...

Paulo Markun: E ele é caro porque não é lido.

Ruth Rocha: E ele é caro porque ele é pouco.

Paulo Markun: Quer dizer, você tem tiragens de três mil exemplares, de cinco mil exemplares quando o autor é bem-sucedido, e por isso o livro custa caro, e como custa caro, vende pouco, não é?

Ruth Rocha: Agora, eu não acho que o livro venda pouco porque custa caro. Eu acho que quem gosta de ler compra livro. Eu acho que... eu acho que as pessoas realmente não querem ler. Não ligam para ler, não aprenderam a ler direito, não... não existe no Brasil um grupo tão grande que goste tanto de ler, que faça esse público amplo, não é? Que nós precisávamos. Eu não sei exatamente o porquê. Eu não sei dizer [nega com a cabeça].

Ricardo Soares: A otimista, nessa hora, balança, então? [risos]

Ruth Rocha: É, eu sou otimista, em termos. [sorri]

Paulo Markun: Em termos, mas tem um pé no chão, é isso?

Ruth Rocha: Não, eu, por exemplo, acho que não se escreve livro para criança que seja triste. Eu acho que você pode escrever um livro tristinho, mas que de repente dá uma esperança... Criança tem que ter esperança.

Adriana Vera e Silva: A hora que aparecer a esperança, acaba a história. [risos]

Ruth Rocha: Não, o problema é que se a criança não tem esperança, a criança não... viceja. A criança precisa... precisa esperar da vida. É da... eu acho que é da nossa obrigação estimular a esperança da criança.

Ricardo Soares: Então, você acredita na moral da história, aquela coisa de antigamente...

Ruth Rocha: É, antigamente, tinha a moral da história.

Augusto Massi: E o livro de memórias, um livro para adulto? A Tatiana escreveu um livro muito bonito, contando a história dela, e...

Paulo Markun: [Interrompendo] Numa entrevista recente, você ainda falou em fazer um...

Tatiana Belinky: [Interrompendo] Mas é para adulto e é para criança de oito anos também.

Ruth Rocha: É, eu tive um tempo namorando a idéia de fazer memórias, mas aconteceu uma coisa muito curiosa. A Editora... [silencia, olha para cima tentando se lembrar] como é que ela chama? Não sei, uma editora aí, que era.... e eles fizeram uma série de biografias, e os biografados foram morrendo [risos]. Morreu o José Paulo Paes, morreu Marcos Rey, morreu Silvia Orthof...

Augusto Massi: Que é um livro lindo do José Paulo Paes...

[...]: Lindo mesmo

Ruth Rocha: Muito bonito. É.

Paulo Markun: Aí quiseram encomendar o seu e você falou "Negativo".

[risos]

Augusto Massi: Mas você podia escrever fora da coleção.

Ruth Rocha: É, fora da coleção. Quem sabe, um dia.

Paulo Markun: Para a gente encerrar o programa. Se a obra da Ruth Rocha tivesse uma moral da história, qual seria?

Ruth Rocha: [Ruht silencia e sorri]

Tatiana Belinky: Eu tinha uma raiva de moral da história...

[risos]

Ruth Rocha: É, eu também não gosto muito de moral da história, mas eu acho que... eu acho que eu escrevi...

Paulo Markun: [Interrompendo] Uma epígrafe, né?

Ruth Rocha: ... eu escrevi o que eu acredito, eu disse sempre a verdade, e eu acredito muito em justiça. Essa é a epígrafe da minha obra.

Tatiana Belinky: Justiça poética.

Ruth Rocha: E eu não falei de poesia, hein?

Tatiana Belinky: Justiça poética! Aquela que é a verdadeira, que não é a da lei.

Ruth Rocha: Acredito em JUSTIÇA [enfatiza], com letra grande. Acredito.

Paulo Markun: Obrigado, Ruth Rocha, obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. O Roda Viva volta na próxima segunda-feira, sempre às dez e meia da noite. Uma recomendação para quem gosta de ler: se você gosta de ler, recomende os livros da Ruth Rocha para os seus amigos. Se você não gosta de ler, recomende para os seus inimigos. [risos] Até lá.

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