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[Programa ao vivo]
Paulo Markun: Boa noite. Ele ganhou prestígio nos Estados Unidos por suas pesquisas em cosmologia, por descomplicar o ensino da física e, mesmo à distância, vem ampliando a comunicação entre ciência e público no Brasil. No centro do Roda Viva esta noite está o físico brasileiro Marcelo Gleiser. Carioca, 40 anos, Marcelo Gleiser é formado em física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e [possui] doutorado em cosmologia pela Universidade de Londres. Está fora do Brasil há 17 anos. Vive nos Estados Unidos, onde trabalhou como pesquisador em institutos de Chicago e da Califórnia; chegou a ser homenageado pelo presidente [dos Estados Unidos] Bill Clinton, de quem recebeu um prêmio de 500 mil dólares em apoio às suas pesquisas sobre a formação do universo. Atualmente Marcelo é professor de física e astronomia na Universidade de Dartmouth, em New Hampshire, onde seu curso foi apelidado de “física para poetas”. Os livros que ele lançou no Brasil – A dança do universo [1997] e Retalhos cósmicos [1999] – ajudam a entender o apelido [aparecem as capas dos dois livros citados]. Com texto acessível ao público leigo, Marcelo Gleiser se dedica mais aos conceitos sobre cosmologia do que a questões matemáticas que envolvem o estudo da formação do universo nesses livros, e procura mostrar o que há de comum entre as modernas teorias sobre a origem do universo e os antigos mitos em torno da criação do mundo. Para entrevistar o físico Marcelo Gleiser, nós convidamos Roberto de Andrade Martins, professor de história da ciência da Unicamp; o colunista da Revista da Folha, Ricardo Bonalume; Luiz Weis, articulista do jornal O Estado de S. Paulo; o editor da revista Galileu, José Tadeu Arantes; Luís Barco, matemático, professor da USP, da Unicamp, e colunista da revista Superinteressante; e a jornalista Mônica Teixeira, apresentadora do programa Opinião Brasil, aqui da TV Cultura. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília, e se você quiser fazer perguntas, pode usar o telefone (0--11) 252-6525; pode também utilizar o nosso fax, cujo número é (0--11) 3874-3454; e ainda pode utilizar o endereço na internet, que é rodaviva@tvcultura.com.br. Marcelo Gleiser, boa noite.
Marcelo Gleiser: Boa noite.
Paulo Markun: Nós estamos chegando na beira do ano 2000, e uma série de previsões – está até na revista Veja desta semana, não estou fazendo aqui nenhuma genialidade – deram com os burros na água [falharam], outras foram completamente superadas pelos avanços da ciência, mas o que eu queria saber de você é se você acredita que neste fim de milênio, se o interesse da sociedade pela ciência está aumentando ou está diminuindo. E faço a justificativa, que é a seguinte: a gente vê muito mais espaço na mídia para questões como suposições fantásticas sobre as mais variadas questões estratosféricas, não no bom sentido, mas no mau sentido, a popularidade impressionante de personalidades que não têm nada o que dizer, e, pergunto, a ciência, nesse meio-campo, tem espaço, esse espaço está crescendo, é o suficiente?
Marcelo Gleiser: Não é o suficiente. Eu acho que, sem dúvida nenhuma, a astrologia é muito mais popular do que a astronomia. Existem muito mais colunas de astrologia do que de astronomia no mundo. Mas esse fascínio que existe com a passagem do tempo, o final do milênio, é uma coisa que, de certa forma, independe do avanço científico. É uma coisa que é tão antiga quanto a humanidade, que é a idéia do ciclo, de renovação, terminar alguma coisa, começar alguma coisa nova, então é uma passagem de tempo que é carregada com um significado que não é científico, que é um significado mais espiritual, de renovação, de novas esperanças para o futuro. E a ciência, obviamente, tem muito a dizer sobre isso, mas não são coisas que as pessoas querem ouvir, de certa forma, no sentido em que, obviamente, essa passagem de tempo é uma coisa que é perfeitamente humana. Quer dizer, a gente constrói como a gente conta o tempo e, de certa forma, dentro do quadro cósmico das coisas, a nossa maneira de ver passar o tempo é completamente irrelevante.
Paulo Markun: Quer dizer, dentro do quadro cósmico, como você diz, o milênio não tem a menor importância?
Marcelo Gleiser: Não tem a menor importância.
Luís Weis: Aliás, seria bom saber: o milênio, todo mundo acha que é o ano que vem, espero que você discorde disso [pois, segundo nosso calendário, o novo milênio começa em 2001, e não no ano 2000].
Marcelo Gleiser: Pois é, depende de como você começa a contar o tempo. Mas eu acho que mais importante do que esse detalhe da contagem do tempo é o significado social e religioso dessa passagem de tempo, que é uma coisa importante, que não pode ser desprezada, vamos dizer assim.
Ricardo Bonalume: É perigoso isso, de certo modo, porque é um tempo em que começam a pulular os charlatães. Então você vê tele-misticismo, você mesmo falou, muito mais astrologia do que astronomia. Agora, que conselho você daria para uma pessoa aprender a distinguir uma coisa da outra? Quer dizer, como você aprende o que é pseudociência, falsa ciência, e como a pessoa pode entender o que é ciência? Um exemplo prático: eu andei pela rua outro dia e vi que tem muita gente que coloca garrafa de água em cima do medidor de eletricidade, achando que aquilo vai fazer baixar a conta de luz, e é óbvio que não. Então, que conselho você daria para uma pessoa que está fazendo isso? Quer dizer, como fazê-la entender que isso não funciona?
Marcelo Gleiser: [Pode-se] Comparar o uso da eletricidade durante uma hora com a garrafa de água e [depois, mais uma hora] sem a garrafa de água, e mostrar que não tem nenhuma diferença. E esse que é o ponto...
Luís Weis: [interrompendo] Pois é, isso deixa claro que as pessoas não têm... há um paradoxo: quanto mais a ciência se expande, quanto mais ela determina objetivamente a nossa vida, menos os não-profissionais [em ciência] têm uma idéia, conseguem ter uma idéia do que seja a atividade científica, como é que a atividade científica chega a conclusões. E isso explica uma série de terrores que vêm acompanhando os mais recentes desenvolvimentos da ciência, principalmente porque eles tocam na biologia, eles tocam na vida. Quer dizer, a engenharia genética [área de pesquisa que manipula geneticamente seres vivos, para fins médicos ou industriais] abre um campo vastíssimo [de estudos e de intervenção científica na vida], e as pessoas recebem isso com terror. Por exemplo, quando os [cientistas] ingleses duplicaram a ovelha, a Dolly [nome dado ao primeiro mamífero clonado de uma célula adulta, em 1996, a partir de glândulas mamárias], imediatamente surgiu a idéia: “não [isso não é sensato], vão fabricar um milhão de Hitlers” [referência a Adolf Hitler, ditador austro-germânico que deflagrou a Segunda Guerra Mundial, criador do nazismo e responsável pelo extermínio de milhões de pessoas, em particular judeus], por exemplo. Quer dizer, tolices... E a impressão que se tem é que os cientistas, eles próprios, não têm tido ocasião, não têm tido traquejo, não têm tido energias para tentar combater isso. [Os cientistas talvez pensem] “Então eu toco a minha vida, e o populacho pense o que bem entender.” Ou, em suma, qual é a responsabilidade do cientista diante dessa dissociação brutal [entre a atividade científica e a forma como a sociedade a entende] que a gente vê hoje em dia?
Marcelo Gleiser: Eu acho fundamental, eu acho que o cientista tem o papel moral de trazer para a sociedade as descobertas da ciência, não só o lado mais glamouroso das coisas, mas também os riscos que existem associados com essas descobertas. Por exemplo, esse problema da pesquisa em engenharia genética, que é um problema muito sério, porque tem várias repercussões diferentes: existe o problema da clonagem, que pode ser muito bom em certas coisas, [como] alimentos, curar, em medicina, mas você pode ter um terrorismo genético, que pode acontecer também.
Luís Weis: Ou o contra-terrorismo genético, também.
Marcelo Gleiser: Ou contra-terrorismo genético, que é uma coisa...
Luís Weis: Porque se parte da premissa de que a soja transgênica contém perigos devastadores.
Marcelo Gleiser: Pois é, aí a questão vira mais econômica, política, de domínio de mercado.
Luís Weis: E, de novo, pergunto, reinsisto na minha pergunta: e o cientista, como é que se comporta nesse momento?
Ricardo Bonalume: Ele deu uma boa dica, a pessoa pode colocar a água e fazer um teste.
Marcelo Gleiser: Exatamente.
Ricardo Bonalume: Agora, como fazer isso com a soja transgênica, por exemplo?
Marcelo Gleiser: Com a soja transgênica. É uma questão. Também [seria necessário] continuar testando. Essa é a questão da diferenciação entre ciência e pseudociência, voltando a sua questão, que é muito simples. A ciência é repetitiva, você pode repetir experiências, e não interessa onde você vai fazer essa experiência; se você reconstruir as mesmas condições, a sua experiência pode ser repetitiva, e isso não é uma coisa que acontece com a pseudociência. O meu orientador de doutorado, por motivos infelizes, se meteu com o Uri Geller [(1946-) israelense que ficou mundialmente famoso nos anos 60, apresentando-se em programas de televisão, nos quais procurava demonstrar supostas habilidades paranormais como a ação de entortar colheres e chaves com leves toques manuais] nos anos 70, e tentou mostrar que o Uri Geller... ele passou em um programa de televisão, ficou impressionado, e tentou mostrar que o Uri Geller tinha poderes [anômalos]. Então ele montou um laboratório em que ele tinha uns garfos, todos com sensores de pressão, para ver se realmente o Uri Geller conseguia fazer alguma coisa. Então, o que aconteceu? No laboratório, quando existiam máquinas capazes de detectar charlatanice, não aconteceu nada. Então a desculpa é que, realmente, “sob essas condições, eu não posso me concentrar e a coisa não vai”, entendeu? Mas o problema é justamente esse, é que a ciência não participa desse processo de não repetição das coisas, a ciência pode ser repetida, e essa é para mim a diferença básica, o método científico que não é aplicável à pseudociência.
Ricardo Bonalume: Agora, você deu um bom exemplo, porque o charlatão, ele sempre vai conseguir dar uma desculpa: “olha, esse teste não funcionou porque eu não estava inspirado” etc. O Carl Sagan [(1934-1996) astrônomo norte-americano que dedicou grande parte de seu tempo à divulgação da ciência. Foi consultor da Nasa desde a década de 1950 e participou dos diversos projetos de exploração do sistema solar] parece que também comentou isso nesse último livro dele [O mundo assombrado pelos demônios – a ciência vista como uma vela no escuro (1996)]. Ele deu um exemplo interessante: como descobrir um dragão que está numa sala. Aí vai fazendo testes.
Marcelo Gleiser: Exatamente.
Ricardo Bonalume: E o charlatão vai sempre dizendo: “não, mas o dragão, na verdade, é invisível”, “mas o dragão não deixa pegadas”, “mas esse dragão não tem cheiro”, quer dizer...
Luís Weis: Mas o ponto é exatamente este: do ponto de vista do leigo, da pessoa comum, a pseudociência, a charlatanice, a mistificação, é muito mais atraente.
Marcelo Gleiser: É óbvio [que sim].
Luís Weis: Se eu acredito que se eu puser um cristal aqui na minha frente, isso vai influir sobre o meu temperamento, ou se o fato de que eu nasci no dia tal de tal, o cosmo todo vai determinar a coisa... isso evidentemente é muito mais sedutor...
Marcelo Gleiser: Claro.
Luís Weis: Do que a área da severa crítica, e controlar a atividade científica. Então, esse é um complicador a mais para vocês [cientistas].
Marcelo Gleiser: Sem a menor dúvida.
Paulo Markun: Eu queria passar [a palavra] para o Tadeu, para a gente democratizar o debate aqui.
José Tadeu Arantes: Eu fico um pouco com medo dessa idéia da ciência como um bloco monolítico, quer dizer, a ciência versus o charlatanismo, quando, na verdade, se a gente estuda a história da ciência, a gente percebe que em cada época existem vários conceitos de ciência, muitas vezes conflitantes. Eu queria justamente pegar um ponto que eu acho que é muito bem abordado em seu livro, porque você se inspira, de certa maneira, no [livro] The sleepwalkers [1959], do [escritor húngaro Arthur] Koestler. E o Koestler faz justamente uma contraposição entre duas visões de ciência: a visão de Kepler, que é uma visão altamente espiritual, e a visão de Galileu Galilei, onde a espiritualidade e a ciência estão completamente cindidas. E é claro que o Koestler escreve sobre o passado com os olhos no presente, porque ele vê uma crise, de alguma maneira um ponto para o qual a ciência está caminhando, que ele acha altamente criticável. E ele, de alguma maneira, quer resgatar essa visão do Kepler, essa imagem do Kepler. Eu queria que você desenvolvesse esse ponto.
Marcelo Gleiser: Sim, mas eu acho que a coisa que o Koestler levanta no livro dele é justamente o papel da espiritualidade na ciência.
José Tadeu Arantes: Exatamente.
Marcelo Gleiser: Que é um processo mais subjetivo: é o que leva o cientista a pensar sobre o mundo. Quando se fala no Newton, por exemplo, que é [visto como] o grande [cientista] – a idéia [que se faz] do Newton é aquele cara racional, frio, que construiu as leis do movimento, a lei da gravitação –, existe todo um outro lado do Newton que é ignorado, vamos dizer, na maioria dos textos, que é o fato de ele ter também estudado alquimia, pelo jeito [durante] mais tempo do que ele estudou a física. Isso por quê? Porque para ele, na cabeça dele, a alquimia e a física não estavam tão separadas assim.
José Tadeu Arantes: Exatamente.
Marcelo Gleiser: [Newton pensava] Que existia uma ordem orgânica no mundo, em que essas coisas se complementavam. Mas na hora de você aplicar as leis do Newton para estudar como que um projétil vai se comportar etc, você tem que usar as leis de Newton, e não a alquimia do Newton. Então é importante separar, vamos dizer, a necessidade espiritual de a pessoa estar criando, que é uma coisa que leva a ciência além da ciência, ela faz parte de um processo de geração de idéias, que é mais, vamos dizer, humanista até, da aplicação da ciência em si. E na pseudociência, o que acontece é o seguinte: é claro que qualquer cientista adoraria saber que ele poderia, ou que ela poderia, falar com pessoas que já morreram, sabe? Eu acho que todo mundo adoraria ter contatos sobrenaturais ou ter experiências assim, mas infelizmente essas coisas não parecem acontecer muito com vários cientistas. Então fica difícil você poder passar a lente do método científico com essas idéias, com curandeiros espirituais. O que existe muito é a fé, a necessidade de você acreditar em certas coisas. É o que você [dirige-se a Luis Weis] estava comentando antes, que é o fato de que a gente não pode oferecer a esperança de uma vida melhor discutindo ciência puramente. Quer dizer, existe um papel da pseudociência, um papel emocional, espiritual, que fica difícil para os cientistas trazerem para as pessoas. Esse é um dos problemas do Carl Sagan, por exemplo, ele fala: “ciência é tudo, ponto final.” Mas não é por aí, as pessoas são multidimensionais, elas têm necessidade de outras coisas também que a ciência não pode prover. Então a gente tem que se policiar...
Luís Weis: [interrompendo] Sim, mas uma coisa é uma questão subjetiva, de foro íntimo, [pode-se dizer] “eu acredito na existência de um ente transcendente”, qualquer coisa assim, a fé, o que é legítimo, muito mais do que o uso de formas “científicas”, para legitimar a crendice perniciosa.
Marcelo Gleiser: Ah, sim.
Luís Weis: Eu gostaria de ouvi-lo sobre um outro ponto, porque eu estava lhe perguntando sobre a responsabilidade do cientista diante disso. E a responsabilidade do divulgador [científico]? Quer dizer, quais são, em seu juízo, os principais méritos e deméritos do jornalismo de divulgação científica? Eu não me refiro a coisas de alto nível como a [revista norte-americana de divulgação científica] Scientific American , mas a coisas de consumo de massa, desde o caderno do Science Times , que sai toda terça-feira no [jornal norte-americano] [The] New York Times , até o noticiário corriqueiro, que a imprensa do mundo inteiro traz sobre os últimos avanços [científicos], sobretudo na área de saúde, que diz mais respeito à vida concreta das pessoas.
Marcelo Gleiser: Eu acho que é uma faca de dois gumes, porque na mesma medida em que a ciência precisa da mídia – a ciência precisa da mídia, a ciência precisa ter exposição, quer dizer, é fundamental que existam...
Luís Weis: [interrompendo] Nos Estados Unidos o cientista precisa da mídia, senão não tem financiamento.
Paulo Markun: Qual é o outro gume? Só para terminar aqui, porque o [Luis] Barco já está na fila. Qual é o outro gume? Porque esse é o lado que ajuda a ciência. Qual que atrapalha?
Marcelo Gleiser: O lado da exposição na mídia é excelente. O que atrapalha é, às vezes, a maneira sensacionalista e deturpada de como isso é feito. Então, por exemplo, no [The ] New York Times, toda semana, sai alguma coisa dizendo que o Big Bang está em crise – que o modelo do Big Bang, da cosmologia, que diz que universo nasceu de uma explosão inicial e vai se expandindo etc –, toda semana tem alguma notícia dizendo que os cosmólogos estão em crise... E a crise, o que eles não dizem, é que a crise faz parte do processo científico. Ou seja, que a ciência tem que estar em crise para poder progredir, porque a gente não sabe todas as respostas. Então, é justamente desses buracos de conhecimentos que nascem as novas teorias. E isso é que não aparece; aparece a crise. Então, as pessoas perdem a confiança nos cientistas, “porque esses caras não sabem o que está acontecendo”.
Paulo Markun: [complementando] “Imagine eu”, não é?
Marcelo Gleiser: Exatamente. Então tem essa faca de dois gumes.
Luís Barco: Eu tinha uma dúvida sobre o que você vem dizendo. É uma coisa interessante. Em geral se coloca a ciência em antagonismo à pseudociência, mas a grande verdade é um problema de educação. Para dizer algo semelhante ao que você tem dito, vamos chamar Newton e Kepler de dois escultores: ambos esculpiram extraordinárias idéias físicas, só que a ferramenta deles era muito rude. Enquanto Kepler levou vinte anos trabalhando com uma ferramenta muito rude, Newton foi afiar a ferramenta e desenvolveu o cálculo. Quer dizer, esse tipo de indagação, esse tipo de construção de ciência era possível. Hoje exige-se, não só do homem comum, que trabalha em qualquer serviço, mas de você, que é cientista, uma produção seriada, muito menos reflexiva, e não se constrói ciência, a não ser algum gênio. E o menino que hoje está na expectativa de fazer escola, ele tem muito mais apelo para o charlatanismo, para as coisas fáceis e rápidas, do que para a construção de ciência, mesmo porque roubaram a poesia da ciência. Você fala com muita clareza. Muito antes que você, um [escritor] brasileiro chamado Monteiro Lobato ensinou, baseado na [personagem] Emília, as frações, só que [para ensinar] as frações, ele dividiu uma melancia e jogava a casca para o [personagem] Rabicó [referência ao livro Aritmética da Emília (1935)]. Os professores de matemática de hoje roubaram a casca das frações, elas não têm mais sabor de melancia. Não falta um pouco de sabor, de casca, de cor, de amor, de poesia, na construção da ciência?
Marcelo Gleiser: Na construção da ciência? Eu acho que não. Eu acho que os cientistas continuam tão apaixonados hoje quanto eram antes pela ciência. O que talvez fique cada vez mais difícil é trazer, vamos dizer, as idéias mais técnicas da ciência, mais avançadas, em uma linguagem que continue tendo poesia para as pessoas não especializadas, entende? Isso é um desafio muito grande, você conseguir trazer ciência de uma forma relativamente clara, porque sempre, sempre que você falar sobre ciência sem usar a linguagem da ciência, principalmente da ciência pura, que é a matemática, você vai ter que mudar um pouco as coisas, você vai ter que...
Luís Barco: [interrompendo] Perdoe, e sem querer ser muito absorvente, só para completar as idéias que vinham aqui, o homem tinha um verdadeiro pavor desse casuísmo, desse charlatanismo, como disse o Bonalume etc, e esperava da fé respostas. As respostas [esperadas] não vieram e [as que vieram] não foram satisfatórias. Hoje a ciência cresceu. Hoje, indiscutivelmente, a velocidade com que a ciência cresce é muito maior do que crescem até os charlatães, talvez menos os corruptos; fora essa raça, todas as outras perdem para o crescimento da ciência. E, no entretanto, o homem é menos feliz, [é] mais inseguro. Não falta um pouco dessa base que os que criam na ciência, os que criavam e tinham uma certa crença, poderiam construir uma ciência mais humanizada, mais com o sentido de finalidade de construção do cidadão do que do especialista em apertar botões ou ler fórmulas?
Marcelo Gleiser: Bom, no fundo, o objetivo da ciência é o cidadão, é nós nos integrarmos nesse mundo de que nós fazemos parte. Eu acho que é fundamental perceber que a missão da ciência somos nós, é entender o mundo e, portanto, entender a nós mesmos. Mas isso às vezes não é percebido, porque a ciência que está mais distante do dia-a-dia – e no século XX isso foi acontecendo cada vez mais –, fica difícil você estabelecer essa ponte da importância, vamos dizer, das últimas descobertas na física mais abstrata, de supercordas, teorias de unificação, e a vida do dia-a-dia; [o leigo perguntaria] de onde vem isso? Para o cidadão que não é especializado, que tem interesse relativo em ciência... eu não acho que as pessoas tenham olhado para a fé e não tenham encontrado as respostas. Eu acho que as pessoas continuam olhando para a fé e continuam procurando por essas respostas; só que a ciência não pode dar todas as respostas, então existe uma humildade do cientista, que é fundamental também, que é de perceber que existem limites do discurso científico, e isso às vezes não acontece [não é percebido], e aí é que começa a confusão entre o que a ciência pode e o que a ciência não pode fazer.
Luís Weis: Mas por falar em fazer, como é que o não-cientista – aqui há vários jornalistas que são, ou foram, voltarão a ser divulgadores científicos –, como é que eles podem, ao mesmo tempo, não ser chatos na transmissão para informar como é que se faz ciência, o que significam os resultados da atividade científica, e não mistificar ao mesmo tempo, não ceder ao sensacionalismo, ao simplismo. Qual é, como é que se anda nesse caminho muito estreito? Você, que não é jornalista, mas vendo a gente, você citou agora o jornal mais importante do mundo [The New York Times], que, diz você, toda semana inventa uma crise, no seu caderno de ciência, quando fala de cosmologia, sem se dar conta de que essa “crise” faz parte do trabalho normal da ciência. Como é que você nos julga?
Ricardo Bonalume: Você está reclamando de boca cheia, na verdade, porque você está falando do [The] New York Times . No Brasil já teve o caso de uma revista de ciência, de divulgação, que deu na capa que um brasileiro tinha descoberto a cura da aids, certo? Não foi a Superinteressante. Então você vê, há uma questão de responsabilidade social da pessoa que faz [divulgação científica]. Isso me leva a uma pergunta, de carona na sua [refere-se a Luis Weis]: por que você resolveu divulgar ciência também, além de ficar só quieto no seu canto, no seu laboratório?
Marcelo Gleiser: Por causa dessa responsabilidade social. Eu acho que você fazer ciência é você estar gerando idéias, e eu acho fundamental, eu acho que o cientista tem o dever de trazer, de alguma forma, as idéias para o público em geral. E acho também que é fundamental as pessoas, hoje em dia, estarem educadas com relação à ciência, porque a ciência é uma parte fundamental da vida da gente, a gente está dependente da ciência [para lidar com] poluição, energia nuclear, problema de engenharia genética, e o público que não tem educação científica não vai poder tomar as decisões políticas necessárias para poder eleger as pessoas que tomariam as decisões que seriam boas no final, ou importantes no final, para a sociedade como um todo. Então, se os cientistas, os divulgadores de ciência em geral, não tomarem essa iniciativa de trazer essa ciência para o povo, de forma que as pessoas possam entender quais são as conseqüências sociais, morais e éticas da ciência, como que as pessoas vão poder decidir qual vai ser o futuro delas?
Paulo Markun: Marcelo, nós vamos fazer um rápido intervalo, e o Roda Viva com o Marcelo Gleiser volta daqui a instantes, até já.
[intervalo]
Paulo Markun: Bem, estamos de volta com o Roda Viva , que esta noite entrevista o físico Marcelo Gleiser. Ele está no Brasil, entre outras coisas, para participar do Terceiro Congresso de Artes e Ciências, que é organizado pelo Centro Mario Schenberg de documentação da pesquisa em artes, junto com a Escola de Comunicações da USP, e o tema é “Descoberta/Descobrimentos – Terra Brasilis”; vai até o dia 22. Você também pode participar do programa; as perguntas podem ser feitas pelo telefone (0x11) 252-6525; o fax é (0x11) 3874-3454; ou pelo endereço do programa na internet, que é rodaviva@tvcultura.com.br. E o Roberto tinha pedido a palavra antes do intervalo, está com ele.
Roberto de Andrade Martins: Bem, antes do intervalo foi levantada a questão da diferença entre ciência e pseudociência. Eu acho que é importante a gente pensar também que o cientista falha, o cientista não é um ser perfeito, normalmente o cientista é competente em um domínio extremamente limitado da ciência, e quando ele tenta falar sobre coisas que não são da sua própria área de competência, ele pode cometer falhas. No entanto, há uma visão popular de que “o cientista” vai sempre dizer alguma coisa correta. Não há essa percepção de áreas de competência. E esse problema aparece também no caso da divulgação científica. Quando uma pessoa que é especializada, digamos, em cosmologia quer falar a respeito de toda a física, ou talvez de coisas que não pertençam à física, ele pode sair da sua área de competência. Eu acredito que é importante a gente assinalar que as pessoas, por mais bem intencionadas que sejam, cometem falhas, e em particular eu diria que o seu livro tem algumas falhas, e eu gostaria de chamar atenção para apenas um exemplo, que eu acho que é fácil de apresentar. No seu livro, você descreve a construção de um espectroscópio, que é um instrumento para decompor a luz, para analisar o espectro do sol, de outras coisas. Esse texto chamou a atenção de estudantes, por exemplo, que usaram esse texto como base de uma página na internet. O seu livro, embora não tenha a finalidade de ser um texto didático, está sendo usado como texto didático – essa é uma responsabilidade muito grande –, e aqui no seu livro você apresenta a estrutura de um espectroscópio [mostra a página do livro a que se refere], que seria isto aqui [tira um tubo do bolso do paletó e mostra ao entrevistado], um tubo com duas fendas; do outro lado teria ou uma rede de difração ou um prisma. E a descrição que é feita no livro é de que, com este aparelho, eu posso decompor a luz do sol e ver as raias escuras que aparecem no espectro, as raias de Fraunhofer. E eu construí este aparelho aqui. Isto aqui é uma rede de difração; eu recortei uma rede de difração para colocar aqui, e este aparelho não funciona. Quer dizer, se algum estudante tentar reproduzir isto, vai ver que não funciona. Se ele experimentar tirar a rede de difração e colocar um prisma, por exemplo, que é outra possibilidade [tira do outro bolso do paletó um prisma, que mostra ao entrevistado]. Então, se a gente colocar um prisma aqui e tentar ver as raias de Fraunhofer, também não vai ver. E se ele achar, por exemplo, que talvez esse prisma não seja muito bom, porque quando você descreve no seu livro o que é um prisma, você diz que um prisma é um cristal em forma de pirâmide... Isto aqui [o prisma que tem em mãos] não é um cristal em forma de pirâmide. Então [tira do bolso uma pequena pirâmide de cristal] ele teria que ir numa loja de produtos esotéricos e comprar uma pirâmide de cristal para tentar colocar aqui [no tubo] para ver as raias de Fraunhofer, e ele não vai ver. Eu acho que é importante a gente perceber que mesmo as pessoas mais bem intencionadas podem cometer falhas, e que tentar falar sobre toda a física, uma pessoa sozinha, sem o apoio de outras pessoas, pode ser uma tarefa ingrata. Eu queria então que você explicasse por que isto aqui não funciona.
Marcelo Gleiser: Eu acho que o que é importante no livro é que as pessoas que leram o livro e se interessaram por um espectroscópio, se elas não conseguirem construir um desses, elas vão tentar entender melhor como funciona um espectroscópio. Então, o que o livro faz é apresentar, tentar motivar o interesse em aprender mais. É claro que um livro desses, como eu falo no prefácio, não é um livro-texto [livro adotado como texto básico em um curso], não é um manual de construção de equipamentos científicos, e nem tem essa pretensão, mas é um livro que tenta inspirar as pessoas sobre a beleza da ciência, sobre o que é a ciência, sem querer descrever a ciência de forma precisa, quantitativa. E, sem dúvida, é claro que eu sou falível; eu acho que só o papa, segundo decreto, é infalível, e certamente existem erros nesse livro, como existem em vários outros livros, se não me engano, em qualquer livro de ciência. Mas o objetivo do livro não é ser perfeito, o objetivo do livro é inspirar. Eu acho que, nesse sentido, eu fui muito bem sucedido.
Luís Weis: O que é interessante – só uma observação –, que eu acho que nem era a intenção do perguntador, nem era a intenção do respondedor, mas eles, portanto, sem querer, deram ao público uma vaga idéia de como se faz ciência... a ciência contém em si uma contestação que a não-ciência, que se faz passar por ciência, é que é feita de certezas. Eu só quis registrar isso.
Paulo Markun: Registradíssimo, bem registrado. Tadeu.
José Tadeu Arantes: Marcelo, eu queria retomar um ponto. É o ponto, que eu acho que você falou muito bem, que a ciência não pode dar todas as respostas, e acho que de alguma maneira estão lhe cobrando todas as respostas.
Ricardo Bonalume: A ciência nem sabe todas as perguntas, como é que pode dar todas as respostas?
José Tadeu Arantes: Eu digo isso pelo seguinte: acho que está se criando aqui uma contraposição que, do meu ponto de vista, é completamente artificial, entre a ciência e a não-ciência. Eu acho muita onipotência dizer isso, porque a visão de ciência muda o tempo todo. A ciência de uma época não é a ciência de outra, e a ciência da outra não vai ser a da época seguinte. Quer dizer, muito menos condição tem o jornalista de saber o que é a ciência, o que é a não-ciência ou a pseudociência. Eu quero voltar ao exemplo de Newton, que eu acho que você colocou de maneira interessante, mas eu não concordo totalmente. Eu acho que a alquimia de Newton não era, como muita gente pensa, um mero diletantismo ou, vamos dizer assim, a atividade secundária de Newton. Você falou até que, em termos de tempo, ela ocupou mais tempo do que a atividade “científica” [dele], mas o que muitos historiadores da ciência contemporâneos mostram é que a alquimia de Newton foi fundamental para o desenvolvimento da teoria da gravitação universal. Quer dizer, sem a alquimia talvez Newton não tivesse chegado à teoria da gravitação universal, como [o filósofo, físico e matemático francês René] Descartes [1596-1650] não chegou. Descartes era o exemplo oposto a Newton, porque era de um racionalismo absoluto, enquanto que Newton tinha essa abertura, embora ele precisasse, mesmo no contexto da época, esconder esses dados [referentes às suas pesquisas sobre alquimia], porque já não eram aceitos claramente. Eu acho que hoje a gente vive uma situação, eu espero, muito menos totalitária, então a gente poderia olhar de uma maneira muito mais benigna para outras opções, para outros saberes, para outras racionalidades que não aquela ortodoxia oficial que se rotula como ciência. Porque eu acho que um dos grandes problemas da ciência hoje é que ela seleciona os objetos [a serem estudados] de uma tal maneira, que alguns objetos são excluídos a priori . Quer dizer, eles deixam de ser relevantes porque são o que são. Então, alguns temas da maior importância deixam de ser estudados pela ciência; por exemplo, por esse critério que você falou, da replicabilidade – ou seja, do mesmo experimento poder ser reproduzido –, eles são simplesmente excluídos a priori , não se verifica isso.
Ricardo Bonalume: Quer dizer que aquela piramidezinha que está ali na frente do professor [Eduardo Martins] pode ter algum efeito, de alguma maneira? Se a gente não tiver critérios, aquela pirâmide está passando energias positivas para ele.
Roberto de Andrade Martins: [brincando] Xô!
[Ao mesmo tempo, vários entrevistadores tentam tomar a palavra.]
Paulo Markun: Desculpem, esperem um pouquinho, só um minutinho. Eu queria que o Marcelo Gleiser respondesse à observação, porque senão... ele [José Tadeu Arantes] faz uma longa consideração, e o Marcelo não responde, não está certo...
Marcelo Gleiser: Mas esse ponto aí é bárbaro, porque eu acho que existe uma coisa que é esquecida, em geral, quando se fala sobre ciência, que é a poética da imaginação do cientista, que é fundamental. Eu já toquei nesse assunto um pouco antes. Porque, quando eu falei do Newton e da alquimia, eu falei que ambos faziam parte desse universo, dessa visão orgânica do universo dele, e o pensamento dele não é só a física e a alquimia, são ambos, e ele precisou disso. O Kepler mais ainda; o Kepler era um pitagórico alucinado [simpatizava com doutrinas que aliavam mística e matemática do filósofo grego Pitágoras (séc. VI a.C.)], vamos dizer assim, que tinha uma imagem geométrica do universo, e por razões erradas acabou achando a resposta certa das órbitas planetárias, que eram elipses, as leis do movimento planetário. Então, sem dúvida, a ciência não caminha em linha reta, ela caminha em trajetórias completamente aleatórias, e vai, e volta, por causa da falha dos cientistas, por causa de erros, mas a beleza da ciência é que ela também tem a possibilidade de se autocorrigir.
Luís Weis: Professor, posso fazer-lhe uma pergunta? A gente está discutindo a ciência de uma maneira um tanto quanto abstrata em relação às condições sociais da produção científica. Você sabe que o velho Marx dizia que o homem faz a história, mas não a faz como quer, mas faz sob o peso das gerações passadas, sob o peso da tradição. O cientista faz ciência, mas não a faz como quer; ele faz sob o peso de situações sociais, políticas, econômicas, muito determinadas. Pesquisam-se certos medicamentos para certas doenças porque o retorno que os laboratórios vão ter em pesquisa e desenvolvimento é muito maior do que se pesquisarem medicamentos para doenças que resolverão problemas de enormes populações de baixo poder aquisitivo. Fazer remédio para aids dá mais dinheiro do que fazer remédio para malária... Então eu queria trazer um pouco as pessoas para esse lado, porque falam assim: “a ciência”, mas há constrangimentos de natureza muito concreta que interferem no país onde você vive há 17 anos, e isso é absoluto. A maneira como se obtêm fundos de financiamento, a competição que existe entre vocês passa por aí, passa por interesses muito concretos. Quer dizer, a ciência que nós estamos fazendo é a que mais interessa? Os objetos, as perguntas que os cientistas se fazem hoje em dia são as mais importantes?
Marcelo Gleiser: Ah, essa pergunta é muito difícil. Elas são as mais importantes, porque aí tem um critério de...
Luís Weis: [interrompendo] Porque eu [como cidadão, que paga impostos] financio, eu pago a sua pesquisa, eu, de alguma maneira, estou obrigando você a tentar responder uma determinada pergunta, e não outra.
Marcelo Gleiser: Bom, está [bem]. Então a gente tem que dividir a ciência básica, pura, de ciência aplicada. Na ciência aplicada, por exemplo, a ciência que é financiada por indústria, no laboratório da [empresa norte-americana de informática] IBM, é claro que eles vão estar interessados em descobrir tipos cada vez mais velozes, menores, ou até computação quântica etc. Então eles financiam esse tipo de pesquisa que tem um fim de mercado, um fim de aplicação tecnológica, vamos dizer assim. Mesmo que exista eventualmente uma descoberta fantástica ao nível fundamental, que acontece, o que está motivando essa pesquisa é uma aplicação final, que vai gerar dinheiro para a indústria, seja em farmacêutica como em computação etc. Mas existe também a ciência básica, que, em princípio, tem um orçamento muito menor, muito, muito menor, na Nasa [National Aeronautics and Space Administration, em português: Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço], na National Science Foundation, no CNPq, aqui, que em princípio – é importante esse “em princípio” – você pode fazer a pesquisa perguntando as questões que você julga importantes. Esse é o “em princípio”. Por que é “em princípio”? Porque, na verdade, não funciona assim. Em ciência existem modismos, existem questões que estão na moda, existem os designers da ciência, existem alguns grandes nomes que determinam, realmente determinam o que vai para a frente e o que não vai para a frente. Então, por exemplo, existem questões de astronomia, hoje em dia, que estão ligadas a problemas da matéria escura, que é uma matéria que se chama “matéria escura” porque ela não gera luz. Então, por exemplo, um planeta é uma matéria escura porque o planeta só reflete a luz do sol. Mas a verdade é que as medidas que se fazem hoje em dia em cosmologia mostram que existem muito mais matérias escuras do que aquelas que a gente pode detectar ou achar que sejam possíveis de existir no universo. Então, a questão pode ser: onde está essa matéria escura, como a questão pode ser: a teoria básica que a gente está usando para estudar esse problema, que é a teoria da relatividade geral, não é uma teoria completa, ela pode ser modificada. Então existem pessoas, umas três ou quatro, que publicam artigos em teorias alternativas da gravidade, que resolvem esse problema da matéria escura, mas ninguém dá a menor pelota para esse tipo de problema. Então existem modismos também na ciência básica.
Mônica Teixeira: [interrompendo] Então, eu queria retomar a partir daí uma coisa que você falou no primeiro bloco, que foi o seguinte: a sua queixa de que o dinheiro norte-americano para a pesquisa é finito, eu acho que foi você que disse, que está escasseando. Será que essa sua afirmação não é a de um físico talvez um pouco, vamos dizer, encurralado pelo fato de que, em ciências, em pesquisas relacionadas à saúde se gastaram, no ano passado, 56 bilhões de dólares, segundo um dado que eu li na revista [inglesa] The Economist? Quer dizer, me parece, olhando por esse ponto de vista, que a biologia vai ser a ciência do século XXI, isso é quase um chavão já, está certo? E a física, que foi a ciência do século XX, está perdendo o espaço dela, e me parece também que vocês [físicos] se queixam um pouco que não há instrumentos para medir os problemas aos quais vocês estão se dedicando. Eu queria que você comentasse um pouco isso: se há mesmo dinheiro escasseando – de onde eu vejo não me parece –, acho que a atividade científica é na verdade uma atividade econômica em expansão muito próspera; se a física está deixando de ser mesmo a ciência, a mãe de todas as ciências, se vocês vão parar de dizer que todas as ciências são ramos da física, que no fim chegaríamos à conclusão de que a biologia é ramo da física, de que a química é ramo da física.
Marcelo Gleiser: Eu não me incluo nesse grupo, não [risos].
Mônica Teixeira: Eu estou brincando. Mas, enfim, se não é, então há esse momento um pouco paradoxal para a física, em que talvez ela não esteja conseguindo andar tão depressa para oferecer às pessoas essas coisas que talvez elas gostam de ouvir...
Ricardo Bonalume: A física forneceu a bomba atômica às pessoas, está certo?
Marcelo Gleiser: Pois é.
Ricardo Bonalume: Não é uma coisa muito bonita do passado dos físicos...
Luís Weis: [Mas forneceu] A luz elétrica também.
Ricardo Bonalume: Tudo bem [risos].
Marcelo Gleiser: Eu acho que o problema não é a questão de a física estar em decadência; eu acho que não está, de maneira alguma, muito pelo contrário.
Mônica Teixeira: Eu não disse em decadência, mas pelo menos está fora de moda. Vamos dizer, não que tenha menos financiamento, mas é um pouco em cima dessa sua idéia do modismo mesmo.
Marcelo Gleiser: Eu acho que o problema é que ciência custa caro. Mas outras coisas também custam caro. Então, se a gente fizer uma metáfora de que o orçamento da União é um bolo, cada um fica com uma fatia, vamos dizer assim. Então, a questão... certos cientistas – aqui no Brasil também – se queixam com razão, é quem está cortando o pedaço da fatia de quem. Se você alocar uma quantidade X: “olha, isso aqui vai ser o dinheiro para fazer pesquisa em ciência, e aí vocês dividem em biologia, química etc”, aí realmente a biologia está se expandindo, porque deve expandir, porque ela tem desafios fundamentais pela frente. Os físicos espertos vão fazer biofísica, hoje em dia, porque realmente tem questões muito importantes que ligam biologia com física. Mas eu acho que o problema não é esse, o problema é como esse bolo está sendo cortado. Então quando você observa, nos Estados Unidos, eles têm esses bombardeiros aí, esses B-2 [refere-se ao avião de guerra Northrop-Grumman B-2 Spirit ], que são aqueles que iludem o radar, são os que custam dois bilhões de dólares, e você pensa que um acelerador de partículas [equipamento utilizado na pesquisa em física de partículas] também custa dois bilhões de dólares, você se questiona: por que a força aérea americana tem que ter 250 desses aviões, ou 100? Então a questão é de onde que [a fatia do orçamento] é cortada. Eu acho que os cientistas, como um todo, têm que se mobilizar com relação a isso.
Luís Weis: Ou seja, é possível fazer ciência sem fazer política?
Marcelo Gleiser: Não.
Luís Weis: Você faz política?
Marcelo Gleiser: Eu tento.
Luís Weis: Como? Não, é muito interessante. Como é que um brasileiro radicado nos Estados Unidos há 17 anos, que é um cientista reconhecido, tal, e que parte da premissa de que não é possível fazer ciência sem fazer política, como é que ele faz política?
Marcelo Gleiser: Eu acho que aí a política é uma política de proselitismo, a questão de você contar para as pessoas o quanto é importante fazer ciência.
Mônica Teixeira: Bom, mas você não respondeu, desculpe, que papel caberá à física no século XXI? Você acha que o século XXI será o século da biologia? Quer dizer, todas as ciências serão ramos da biologia?
Marcelo Gleiser: Eu acho que a biologia vai se desenvolver muito no século XXI, porque tem que se desenvolver muito no século XXI. Quer dizer, esse processo aí do genoma, você estar reconstruindo o genoma humano, a questão da origem da vida, a questão da origem do consciente [devem ser muito estudados]. Acho que não é bem a biologia em geral, acho que é muito a parte, por exemplo, da neurobiologia, que é uma área superimportante, fascinante, que está em aberto; é como se fosse a física da passagem do século [XIX para o XX], vamos dizer assim, é o que está acontecendo com a biologia. Existem todas as perguntas, existem dados, e ninguém tem a menor idéia do que está acontecendo.
Luís Barco: Porém, Marcelo, eu queria lhe fazer uma pergunta um tanto prosaica, e até quase ingênua. Discute-se muito se [a ciência mais importante] é a física ou é a biologia, e nesse mesmo ambiente eu vi esse pessoal entrevistando o sociólogo italiano [Domenico] de Masi [entrevistado no Roda Viva em 1998 e 1999]. Ele falava da importância do ócio – não o ócio de preguiça, mas algo assim. E numa das entrevistas que ele deu, ele falou uma coisa muito interessante. Os gregos, no século V a.C., numa cidade de 60 mil habitantes, produziram um acervo cultural que é maior do que o acervo cultural que qualquer nação moderna, com toda a sua física e biologia, consegue construir quase em mil anos. Então, a pergunta que eu lhe faço é a seguinte: havia no passado algumas evidências de que a criança – hoje há uma tese de um doutoramento numa universidade de Londres, sobre matemática –, submetida a um ambiente de alta musicabilidade, raciocina melhor do ponto de vista matemático. As artes, a cultura, aquilo que parecia supérfluo... Vá à Fapesp [ Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo ], vá ao CNPq, e veja a dotação [verba destinada a financiar pesquisas] de engenharias, de biologia etc, e veja em humanidades. É muito fácil. Acredito que isso não seja muito diferente, só multiplicar por algum número, nos Estados Unidos ou nos países europeus. Não falta um pouco, sem pensar naquele negócio assim... afinal de contas, Deus joga dados? Esta é aquela pergunta que o Einstein fez e que o Ian Stewart [pesquisador e divulgador científico inglês, da matemática e área afins, colaborador da revista Scientific American e autor, entre outros livros, de Será que Deus joga dados?] tenta responder, falando de uma ciência, quase que de uma geometria, que foge à ortodoxia. Não falta isso? O que você acha? Ou é muita tolice ou muita ingenuidade pensar que falta essa separação?
Marcelo Gleiser: Você sabe que o Niels Bohr, quando o Einstein falava essa história, se Deus joga dados [refere-se a uma famosa frase de Einstein: “Deus não joga dados com o universo”, dita em uma época em que Einstein colocava em dúvida idéias que sustentavam a física quântica, que estava surgindo], o Niels Bohr , um dos arquitetos da física quântica, dizia: quem é você para dizer o que Deus joga ou não joga? Então eu acho que...
Luís Barco: [interrompendo] Foi a resposta que ele deu?
Marcelo Gleiser: É como fazer prognóstico da física no século XXI. Eu não sei, mas eu acho que dentro do que a gente está vendo hoje em dia, tem uma área da física que vai crescer muito, fora a área de miniaturização, que faz as coisas bem pequenininhas, que está se desenvolvendo muito, por motivos óbvios, é a astrofísica. E você vê que interessante, por que a astrofísica? Porque, afinal de contas, a astrofísica não tem aplicação básica nenhuma, você entender como [o universo] funciona, se existe um buraco negro, quais os mecanismos para o buraco negro sugar a matéria, [isso] não vai fazer você ficar mais feliz aqui na Terra, ou melhorar, curar alguma doença e tal. Mas eu acho que esse é o outro lado da ciência, que é o que você está levantando, que é o lado da curiosidade humana.
Mônica Teixeira: Então, como é que... Você está estudando isso há bastante tempo, esses assuntos, qual é a sua concepção de universo, como é que você me contaria o que a ciência sabe hoje ou como é que a ciência descreve o universo?
Ricardo Bonalume: [brincando] Perguntinha simples, hein?
Mônica Teixeira: É, mas ele deve ser capaz de responder...
Ricardo Bonalume: [ainda brincando] Resuma o universo em trinta segundos [risos].
Mônica Teixeira: Não, não, não é em trinta segundos...
Paulo Markun: Quarenta e cinco?
Mônica Teixeira: É... [risos.]
Marcelo Gleiser: O universo é grande à beça.
Mônica Teixeira: Então, isso é uma primeira coisa.
Marcelo Gleiser: Extremamente complicado, e em expansão. Ou seja, ele é uma entidade dinâmica, é uma coisa que está se transformando. Isso é uma grande mudança de atitude com relação ao universo como um todo, que aconteceu neste século [XX], é justamente a descoberta de que o universo, como um todo, muda, se transforma, evolui, e que as estrelas etc também mudam, nascem, crescem, morrem. E que nós estamos aqui porque, provavelmente, uma estrela explodiu na nossa vizinhança há cinco bilhões de anos. Então, essa dinâmica do universo, que eu acho que é belíssima, é uma coisa que motiva as pessoas. Você me pergunta o que é o universo. É uma coisa muito complicada.
Mônica Teixeira: E como é que vocês descrevem [o universo]?
Marcelo Gleiser: O que é importante não é o que é o universo, é como nós compreendemos o universo.
Mônica Teixeira: É claro, porque é só essa a resposta que nós temos...
Marcelo Gleiser: A nossa versão da história...
Mônica Teixeira: É só essa versão que nós temos, não temos nenhuma outra disponível.
Paulo Markun: O Roberto tinha pedido [a palavra].
Roberto de Andrade Martins: Eu queria aproveitar esse ponto dessa área de astrofísica, cosmologia, e colocar algumas perguntas em relação à diferença entre Brasil e Estados Unidos. Então seria o seguinte, quando os meios de comunicação divulgam que um brasileiro foi para os Estados Unidos, está tendo sucesso etc, isso tende a passar a imagem de que todo mundo deve fazer a mesma coisa. E você está então no Dartmouth College, que não era conhecido no Brasil, agora todo mundo sabe que existe, e a sua instituição está fazendo uma campanha, distribuindo cartazes aqui pelas universidades brasileiras para atrair pessoas para fazer pós-graduação lá, e eu sinto uma preocupação em relação a isso. Quer dizer, [preocupação] de que os estudantes podem começar a pensar: “bom, aqui [no Brasil] não dá para fazer nada; ou a gente sai para fazer alguma coisa ou não faz nada”. Então, eu gostaria que você comentasse alguma coisa... se você tentar comparar a sua instituição, em primeiro lugar, com as outras instituições norte-americanas, será que é o paraíso, será que você tem que estar na melhor instituição para fazer alguma coisa? Dartmouth College, dentro do ranking , por exemplo, do National Research Council, é a melhor pós-graduação em física nos Estados Unidos ou está entre as vinte melhores? E como é que você compara a sua instituição com as brasileiras, de um modo bem neutro, certo? Será que uma pessoa que está estudando no Instituto de Física Teórica, em São Paulo, ou no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas [no Rio de Janeiro] está em uma [instituição] pior comparada com a sua instituição?
Paulo Markun: Olha, eu só queria pedir licença aqui, tem três perguntas de telespectadores exatamente nessa direção; são um pouquinho distintas. Marconi Libório, de Fortaleza, no Ceará, pergunta quais os motivos, além da disparidade de condições de pesquisas, que o levaram a deixar o Brasil, e se não acha que você poderia estar lecionando aqui. Sinésio Amain, de Recife, como é que está a situação do Brasil em termos de avanço científico, como é que é vista a situação do Brasil a partir do exterior, e o que a gente poderia fazer para melhorar? E, finalmente, a outra pergunta, também do Sinésio, qual é a situação do país em termos do cenário científico? Que eu acho que complementa aí essa avaliação.
Marcelo Gleiser: Bom, a minha universidade, nos Estados Unidos, não é um dos melhores departamentos de física dos Estados Unidos. É um bom departamento de física, mas é relativamente pequeno, mas ela é considerada uma das melhores universidades nos Estados Unidos como um todo. E eu acho que os alunos brasileiros têm condições excelentes de fazer doutorado no Brasil com pessoas de altíssimo gabarito, que poderiam estar no meu lugar [lecionando e desenvolvendo pesquisa nos Estados Unidos], ou em outras universidades, e alguns estão em outras universidades (outros brasileiros). Então, não existe uma necessidade de sair. Eu saí, na minha época, a maioria dos alunos saíam porque tinham financiamento suficiente para isso, e 95% desses alunos voltaram. Eu fiquei por motivos pessoais, que nem sempre a gente... a gente escreve a vida até um certo ponto, às vezes a nossa vida também é escrita por outros motivos, você vai ficando, vai criando raízes por motivos de família etc. Mas eu resolvi, coincidentemente, ficar, mas manter um pé no Brasil de alguma forma. Então, eu tenho artigos publicados com cientistas brasileiros este ano mesmo. Eu venho, obviamente, para cá com bastante freqüência, participo de conferências, dou palestras e tal. E eu acho que esse trabalho de divulgação científica, de certa forma, está aqui para inspirar as pessoas não a sair do Brasil e tentar retraçar os meus passos, porque eu acho que não é nada disso, mas a fazer ciência aqui mesmo, porque é possível. E você pode fazer coisas muito boas. O problema que é maior com a ciência brasileira é quando a coisa é mais experimental, em que você precisa de altas verbas para financiamento, e realmente fazer pesquisa experimental no Brasil é um desafio enorme, e eu acho que existem vários heróis aqui no Brasil que conseguem obter resultados muito importantes com o que eles têm. Eu me lembro de um amigo meu, da UFRJ, que tinha que construir um calorímetro, que é um equipamento, com lata de goiabada, porque eles não conseguiam [verba para] fazer de outra forma. Então, aí é que a competição é desleal. É claro que em um país em que existem verbas, onde as próprias universidades dão verba para pesquisa, fica difícil competir. Os alunos podem fazer o que vários alunos estão fazendo no Brasil, tanto da Unicamp, quanto no Rio de Janeiro, na USP, que é fazer o que eles chamam de bolsa-sanduíche, quer dizer: você faz uma tese experimental, você sai, você obtém os dados em um laboratório no exterior, volta, e aí conclui a tese aqui. Então existem fórmulas que podem ser usadas nesse sentido.
Paulo Markun: Marcelo, nós vamos fazer um intervalo rápido; não vai dar [tempo] para comer um sanduíche, mas a gente volta já já.
[intervalo]
Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva , esta noite entrevistando o físico Marcelo Gleiser. Para participar do programa, você pode usar o telefone (0x11) 252-6525, o fax (0x11) 3874-3454, ou então o endereço do programa na internet, que é rodaviva@tvcultura.com.br. Marcelo, diversas perguntas de telespectadores sobre o mesmo tema, que eu acho indispensável abordar aqui. Luís Antônio, de Araçatuba, em São Paulo , [pergunta] “O professor encontra Deus na formação do universo?” Carlos Augusto, de Muriaé, de Minas Gerais: “Acredita que Deus foi o criador do universo? Se não, acredita que a matéria é infinita e que não pode acabar, isto é, não teve início e sempre existiu?” Manoel Cosmo de Araújo Neto, advogado de Araçatuba: “É possível definir religião através da ciência?” Quer dizer, aí não é exatamente a mesma [dúvida], mas está... e Lílian Cristina Barco, engenheira civil: “Qual o tipo de orientação...” [É sua] parente, [Luís] Barco?
Luís Barco: É minha filha.
Paulo Markun: É? Então está bom. “Qual o tipo de orientação religiosa que você recebeu em casa dos seus pais? Tem filhos? Se vier a tê-los, que orientação passaria para eles, religiosa? Seu posicionamento é feito de forma a não limitar a curiosidade científica deles?” E, finalmente, na mesma linha, [uma pergunta] de Marina Martins: “Você acredita que, de alguma forma, a energia dos corpos de pessoas, plantas e animais, após a morte, pode voltar ou ir fazer parte da grande energia cósmica?”
Marcelo Gleiser: Ciência e religião. Bom, eu acho que essa pergunta, se eu acredito em Deus, é uma pergunta bastante comum, eu acho que sempre se faz isso a cientistas, porque existem questões...
Paulo Markun: [interrompendo] Se faz a todo mundo, a jornalista também.
Marcelo Gleiser: É verdade; boa [observação]. Mas como nós estamos lidando com certas questões, que eu falo dos problemas das três origens: a origem do universo, a origem da vida, a origem do consciente, que tem a ver com a alma etc, é óbvio que as pessoas têm curiosidade em saber como um cientista pensa sobre isso. E a verdade é que existem tantas respostas quantos cientistas. Existem cientistas que são altamente ortodoxos nas religiões deles, e continuam fazendo a pesquisa deles exatamente como os que são ateus fazem. Quer dizer, existe uma separação. A maioria dos cientistas são religiosos, separam bastante claramente o produto do trabalho científico deles das motivações quaisquer que eles queiram. Então, essa pergunta é uma pergunta mais ou menos antiga, porque os gregos já começaram com essa tradição de você se questionar sobre o mundo e, através desse questionamento, você tentar entender a mente de Deus ou tentar entender quem foi o arquiteto divino. O [filósofo grego] Platão [428-348 a.C.] falava do demiurgo dele. E essa questão da racionalidade das pessoas, do pensamento humano entender a obra divina é uma questão que pode até motivar vários cientistas, mas é uma questão que é separada do trabalho final deles. Então, no meu caso, eu acredito, não em Deus, um Deus criador que tenha feito o universo, moldado com um material, ou do nada, que é a tradição da primeira versão do Gênesis [primeiro livro do Antigo Testamento, da Bíblia ], porque o próprio Gênesis tem um conflito ali, tem duas histórias de criação. Mas eu acredito que existe o mistério do desconhecido, ou seja, as coisas que nós não conhecemos sobre o universo, sobre o mundo, e que faz parte da condição humana, na verdade essa curiosidade pelo desconhecido define o ser humano. Então, o processo criativo, as pessoas que se expressam de alguma forma, cientificamente, artisticamente, ou na cozinha, criando alguma coisa etc, de certa forma estão fazendo parte desse processo de questionamento do que é o mundo, de como funciona o mundo, e a ciência é uma das respostas.
Paulo Markun: Mas você não respondeu a questão nem da...
Marcelo Gleiser: Eram várias [perguntas].
Paulo Markun: Não, duas aqui, basicamente. Essa coisa da energia que volta de alguma forma e a orientação religiosa.
Marcelo Gleiser: Sim, está bom. A energia, não, eu realmente acho que não. Eu acho que uma vez que nós vamos, nós vamos, e o nosso corpo vai se deteriorar e vai fazer parte do universo de uma outra maneira. Quer dizer, eu acho que essa energia não vai continuar coerente como um ser, vamos dizer assim, um ser humano, depois da morte. Infelizmente, porque eu adoraria falar com várias pessoas que já foram embora. Quanto a minha orientação, eu sou judeu de formação, não é uma família ortodoxa, mas uma família tradicional, vamos dizer assim. Hoje em dia eu tenho um ponto de vista um pouco mais liberal com relação a isso. Os meus filhos também são judeus. Mas o que é mais importante para mim não é a teologia da religião judaica, mas a tradição do judaísmo de cultura, de interesse, de querer entender bem como são as coisas, quer dizer, é uma coisa mais de tradição cultural mesmo, que é passada de geração para geração, e não a ortodoxa.
José Tadeu Arantes: Marcelo, eu queria pegar esse ponto do mistério do desconhecido e abordar um tema, que eu estou querendo lhe fazer essa pergunta já faz tempo, que é sobre a matéria escura. Se eu não estou enganado, apenas um terço do conteúdo material do universo corresponde àquela matéria convencional que a física estuda. Os outros dois terços seriam constituídos por uma matéria completamente diferente. Está certo esse número?
Marcelo Gleiser: É pior ainda, são 10% [a parcela da matéria convencional no universo].
José Tadeu Arantes: Dez por cento? Então, eu lhe pergunto o seguinte: que impacto isso deveria ter na construção de uma nova visão de mundo? Quer dizer, não é muita prepotência ou muita onipotência querer ter um modelo acabado sobre o mundo, quando na verdade você conhece apenas 10% do conteúdo material desse mundo?
Marcelo Gleiser: Eu acho que é de profunda humildade. Na verdade, você pode resumir a história do conhecimento humano com relação ao universo com uma história de humilhações crescentes, porque no início nós éramos o centro de tudo, a Terra era o centro do universo; depois o Sol passou a ser o centro, mas a gente ainda estava ali pertinho e tal; depois do Sol, a nossa galáxia era o centro, era a única galáxia que existia; mas depois a nossa galáxia deixou de ser – existem cem bilhões de galáxias, a Via Láctea, onde nós estamos, é mais uma dessas cem bilhões –; e agora, para acabar de vez com a revolução copernicana [referência a uma das mais radicais revoluções científicas, realizada por Nicolau Copérnico (1473-1543), com a teoria que alterou completamente o entendimento que se tinha sobre o Cosmos], que é a que moveu a Terra do centro, nós não somos nem feitos da matéria que é realmente importante para a dinâmica do universo [refere-se à matéria escura]. Nós somos o fim do fim do fim. Mas então eu acho que o que traz isso tudo é humildade, é você saber que não é questão de prepotência de encontrar as questões finais, as respostas finais, é uma questão de fazer parte do processo de descoberta que está sempre continuando. A prepotência é achar que ele vai chegar ao fim.
José Tadeu Arantes: Exatamente. Esse é o ponto que eu queria pegar. Quando a gente fala assim: “a ciência”, está implícito, entre parêntesis, a resposta final. Acho que é muito importante que você, como um divulgador de ciência, que se tornou uma pessoa bastante famosa e que passou a ser referência para muita gente, mostre essa limitação do conhecimento científico. Quer dizer, na verdade, a ciência – eu diria, não sei – está apenas engatinhando. Quer dizer, está muito longe de chegar a um conhecimento satisfatório da realidade.
Ricardo Bonalume: Agora, por outro lado, a prepotência não existia antes na religião? Porque todas as religiões são monolíticas nesse sentido, quer dizer, as religiões partem do princípio de que tudo já se sabe...
Paulo Markun: [interrompendo] A prepotência, desculpe, continua existindo na religião.
Ricardo Bonalume: Pois é, [visto] que [a religião] é uma revelação. Veja, [supõe] “eu sou sacerdote, eu revelo para vocês como é o universo: olha, você foi feito à imagem e semelhança de Deus”. Para a religião, o mundo já está todo pronto. Não foi a ciência que dinamitou essa prepotência, como você falou, Darwin, Newton, e agora mesmo essa humildade?
Marcelo Gleiser: É, eu acho que a ciência tem essa missão de questionar a autoridade, faz parte. Na ciência, como deve ser feita, não existe autoridade, não existe. Infelizmente eu falei de modismos em ciência antes, que existem, mas a verdade é que em princípio não deveriam existir. Ou seja, a ciência não tem essa coisa... O Einstein errou algumas vezes na vida, não era tudo que ele falava que era sagrado ali, aquela coisa final. Então, quer dizer...
Ricardo Bonalume: Já o Papa é infalível em matéria religiosa.
Marcelo Gleiser: Pois é...
José Tadeu Arantes: Muitas vezes a academia de ciências também se considera infalível. Porque, veja, eu acho que se a ciência contestou a autoridade, de fato contestou, eu acho que, infelizmente, dentro da própria ciência a autoridade foi trazida.
Marcelo Gleiser: A ciência se autocontesta também.
José Tadeu Arantes: Pois é. Então, eu acho que essa dicotomia é muito pobre, ciência [ versus ] religião, aliás é muito antiga e muito ultrapassada. Quer dizer, eu acho que hoje...
Ricardo Bonalume: [interrompendo] O Papa continua se achando o maior gostosão, e nos Estados Unidos principalmente...
José Tadeu Arantes: [rindo] [Quanto a] Isso você vai se acertar com o Papa.
Ricardo Bonalume: Tem coisa pior: tem os protestantes neofundamentalistas, nos Estados Unidos, que querem impor a sua visão religiosa.
Marcelo Gleiser: Você vê que eu já estou me mexendo na cadeira aqui. É porque realmente é uma situação... é uma tragédia isso que está acontecendo nos Estados Unidos. Eu até escrevi uma coluna para a Folha [de S.Paulo]. Eu tento, na medida do possível, trazer essa idéia do processo, da ciência em andamento. Até a minha coluna de ontem [publicada na Folha de S.Paulo de 17 de outubro de 1999] foi sobre o que a gente não entende sobre as coisas, vamos dizer assim. Mas...
Ricardo Bonalume: Não está no [seu] livro ainda então?
Mônica Teixeira: A palavra sempre é “ainda”, né? Quer dizer, a ciência “ainda” não sabe, mas saberá, é isso que o...
Luís Weis: [interrompendo] Mas o meu ponto, o ponto da minha pergunta é como se pode usar perversamente uma coisa que é legítima, que o cientista é o primeiro, o cientista coerente e digno desse nome, é o primeiro a dizer – é o “ainda” –, hoje a verdade é essa, amanhã poderá ser outra. Mas a isso se apegam pessoas, grupos, que são o atraso, da noite, das trevas, está certo? E que invocam isso [a impermanência das explicações científicas] para justificar, pôr no mesmo plano uma explicação literal da Bíblia com uma coisa que tem um relativo fundamento empírico, que é a teoria da evolução.
Marcelo Gleiser: Certo.
Luís Weis: Quer dizer, eu não estou vendo muito a sua manifestação.
Marcelo Gleiser: Não, eu ainda não consegui...
Ricardo Bonalume: Aliás, o Big Bang também. Eles [os religiosos criticados] também são contra o Big Bang. E aí já entram na sua seara.
Marcelo Gleiser: Não, mas a minha seara é essa deturpação da ciência em geral. Quer dizer, tanto o Big Bang quanto esse plano do criacionismo é um problema muito sério, e eu não acho que também está tão longe, se você for conversar com os evangélicos, os evangelistas aqui no Brasil, você vai também ter o mesmo tipo de resposta, que é um problema de cegueira mesmo, de você querer bloquear o avanço científico. Você fala do cristianismo científico, que as pessoas ficavam rezando para, em vez de dar remédio para as crianças, eles ficavam rezando, e as crianças morriam. [E diziam] “Ah, mas tudo bem, porque Deus quis assim”. Quer dizer, você negar o avanço científico é um crime, eu acho que é um crime. Eu acho que o que está acontecendo nos Estados Unidos está mobilizando a comunidade científica sim, estão existindo vários debates, cartas, etc, programas de televisão, tentando inverter essa decisão do Kansas, no estado de Kansas, que foi o primeiro [estado a excluir a teoria da evolução de Darwin das provas de ciências em escolas públicas], mas não vai ser o último. Com relação ao problema do “ainda”, de a ciência ter todas as respostas, de maneira alguma, porque não existem todas as perguntas. Uma vez...
Mônica Teixeira: Eu também acho que não; os cientistas é que dizem “ainda”. Eu duvido...
Marcelo Gleiser: Mas os cientistas não devem dizer...
Mônica Teixeira: Mas eles dizem.
Marcelo Gleiser: Não, você está trabalhando em uma área...
Mônica Teixeira: Essa é a concepção que o conjunto da sociedade e os cientistas têm a respeito da ciência, que a ciência “ainda” não tem respostas, mas que ela encontrará as respostas, perguntas, tudo. Terá todas as explicações, a resposta final, que o Tadeu falou.
Marcelo Gleiser: É um processo, algumas respostas...
Luís Weis: [interrompendo] Olha, você dirá que o retrospecto joga a favor da ciência, se você olhar a história retrospectivamente, ou não?
Marcelo Gleiser: Está aqui o professor de história da ciência [Roberto de Andrade Martins] para comentar sobre isso. Eu acho que a ciência é construída a partir do conhecimento passado. Você dizer, por exemplo, que a teoria da relatividade modificou as idéias do Newton sobre como funciona o movimento não significa que provou que Newton estava errado. O Newton está perfeitamente certo dentro do limite de validade da teoria [newtoniana]. Então, a coisa é uma espécie de cebola, as coisas vão crescendo, crescendo, e a parte de fora depende da parte de dentro.
Paulo Markun: Só para a gente tocar a bola para diante e deixar claro como é realmente a diferença do processo científico para qualquer outro processo, eu não sou cientista, me sinto à vontade para falar sobre o assunto, mas na linha do que o [Luís] Weis disse, da observação, da polêmica, e como o contraditório funciona, o professor doutor Norberto Gonçalves, do Departamento de Química da Universidade Federal de Santa Catarina, mandou um e-mail dizendo o seguinte: “o espectroscópio descrito pelo professor Marcelo Gleiser funciona desde que...” – eu não vou querer que a gente transforme isso no debate do espectroscópio, é só para registrar a coisa – “...desde que, ao focalizá-lo para a fonte luminosa, o olho deve olhar para a direita ou a esquerda, quando então o espectro de primeira ordem será visualizado. Se olharmos para a frente, veremos apenas o espectro de ordem zero, que corresponde à luz transmitida, e aí”..., por aí vai. Não vou entrar no mérito. Eu só digo que é o registro de como a coisa no campo da ciência avança. Quer dizer, quando alguém diz uma coisa, e essa coisa ou não é correta ou outra pessoa diz: “olha, está totalmente errado”, vai vir uma terceira, e assim as coisas chegarão a vários avanços no sentido sempre de comprovar as coisas pela experimentação.
Luís Weis: Nessa linha me ocorreu uma paráfrase. O [pensador e político inglês Winston] Churchill [1874-1965] dizia que a democracia é o pior dos regimes possíveis, com exceção de todos os outros. Talvez pudessem dizer que a ciência é a pior forma de descobrir alguma coisa, com exceção de todas as outras.
Paulo Markun: Eu queria passar para o professor Roberto, justamente porque havia pedido a palavra antes de a gente entrar [no terceiro bloco do programa].
Ricardo Bonalume: Quer dizer que funciona então o negócio ali [o espectroscópio]?
Paulo Markun: [Segundo] Diz o professor Norberto Gonçalves [risos].
Roberto de Andrade Martins: Eu queria ficar nesse tema da questão da verdade científica. Eu acho que, infelizmente, ocorre a tendência de substituir a certeza religiosa por uma certeza científica no ensino, na divulgação científica, e aí você substitui os profetas pelos cientistas geniais, que sempre acertam, que mostram que os outros anteriores eram idiotas.
Paulo Markun: Nas ciências econômicas, então... [risos].
Roberto de Andrade Martins: Mas isso é uma visão distorcida, porque os cientistas, em todas as épocas, continuam sendo cheios de problemas, cheios de defeitos, não é? E esse, eu acho que é um problema da divulgação científica em geral. E inclusive no seu livro, quando você vai apresentar, por exemplo, a questão do Galileu, você passa essa visão. Havia os idiotas, que apenas por causa de tradicionalismo, por seguir a religião, por seguir a Igreja, acreditavam no sistema geocêntrico, e Galileu era o iluminado, ele estava certo, a argumentação dele era boa etc, mas havia os idiotas que não concordavam com ele. E não era isso, não era isso. Galileu não tinha bons argumentos para grande parte dos problemas. Ele tinha uma porção de argumentos errados a respeito do movimento da Terra; os outros, opostos, tinham argumentos excelentes em muitos pontos para dizer que a Terra não podia estar se movendo. Havia, em grande parte, um equilíbrio.
Ricardo Bonalume: [irônico] Correndo o risco de ser queimado [pela Inquisição], ele [Galileu] não fez bons argumentos...
Roberto de Andrade Martins: Galileu não se convenceu do sistema; ele se converteu, que é uma coisa irracional, diferente, antes de ter qualquer argumento novo. E essa passagem da idéia desses grandes cientistas, os heróis, que eles estão certos, os anteriores estavam errados, é prejudicial a essa idéia da dinâmica da ciência como uma coisa que está sempre, o tempo todo, em discussão.
Marcelo Gleiser: Eu queria só argumentar que, na verdade, eu acho que eu fiz justiça aos erros do Galileu no meu livro. Eu fiz, por exemplo, o problema da prova dele das marés, eu argumentei dizendo que era um argumento errado, motivado pela crença dele no sistema copernicano, e também falei que ele não aceitava, por exemplo, as leis de Kepler, ele falava sempre em órbitas circulares. Então, eu acho que existem leituras e leituras.
Luís Barco: Marcelo, eu gostaria de lhe fazer uma pergunta, vai mais ou menos nessa linha. Tanto quanto a religião obscureceu uma série de coisas, a escolaridade – não tomando a escolaridade no sentido acadêmico –, nessa idéia de que nas escolas estão as verdades, não ocorre um grande defeito? Quer dizer, nós estamos chegando, não [me refiro] àquele problema avassalador de “desescolarizar” a sociedade, mas tal como era conveniente, o homem precisa, como do ar, da água, da transcendência. Você chame do jeito que quiser, mas há uma necessidade de elevação – aliás, fazer cosmologia nada mais é do que procurar a transcendência –, só que alguns espertos, na Idade Média, diziam: “para chegar à transcendência, você tem que passar pela Igreja”. E outros espertos agora, e não estou falando das escolas particulares também, [dizem] “para chegar à transcendência, tem que passar na escola”. Quero dizer: a criança tem sido escolarizada em excesso. No meu tempo de jovem, você não acredita mas eu já fui jovem, era gostoso correr atrás de bola, passear. Agora virou escola. O aluno vai cedo na escola, e depois ele tem escola de informática, escola de inglês, escola de judô, e agora escola de futebol. Pasme, isso. Já pensou o cara ficar para segunda época em futebol, deve ser uma humilhação. Então, o que eu penso é o seguinte: você é um jovem com idéias claras sobre esse “ver além”. A nossa escola ainda é tradicionalista. Se você sair daqui agora e entrar numa grande livraria, você pega um livro belíssimo de geografia, extremamente ilustrado, provavelmente tem uma foto da Terra, mas lá dentro está escrito: “a prova de que a Terra é redonda, você vai no mar, olha, primeiro você vê a vela etc”. Quer dizer, a prova mais anticientífica; 500 anos antes de Cristo, os gregos já diziam: “a sombra que ela [a Terra] projeta na lua é redonda”. Você pode dizer: mas é a esfericidade da lua. Mas você há de convir que [essa solução dos gregos] é muito mais ciência do que alguém ficar olhando para o mar e chegar à conclusão de que a Terra é redonda, mesmo porque, se ele tiver a capacidade visual... Isso é a anticiência. Mas a escola caminha devagar. O nível de liberdade da escola... Você foi um jovem que passou pela escola alegremente ou ela foi pesada para você?
Marcelo Gleiser: Eu acho que para todo jovem a escola é pesada, eu acho que não tem saída. É raro você não ter essa relação difícil com a escola em geral, com a coisa disciplinar e tal, muito estruturada, porque a criança não é estruturada por natureza, a criança vai para qualquer lado, e a escola não, [a escola diz] “olha, vai para cá”. Mas eu acho que o problema é mais fundo. O problema é um problema da educação, é um problema da formação dos professores, é um problema do que os professores sabem, [porque há] professores que são formados em uma área e ensinam em outras em que não são formados; [também há] o problema da paixão do professor ensinar com um salário miserável. Quem é que vai querer? É uma coisa heróica você ser professor primário no Brasil, e nos Estados Unidos também, acredite se quiser, porque os salários são péssimos. Então, claro que a qualidade do ensino vai sofrer com isso e a escola vai se tornar cada vez menos escola.
Luís Barco: Pois é, mas aqui o bom professor morre professor. Ele precisa ser meio ruim para virar diretor, precisa ser péssimo para ser secretário da educação e quase um bandido para ser ministro [risos]. Quer dizer, há uma inversão na educação brasileira. Acredito que, nos Estados Unidos, pelo menos quem cuida dos destinos da educação tem uma idéia mais clara sobre o papel da educação, porque formar médico, engenheiro, físico e jornalista, é fácil, é difícil formar cidadão.
Marcelo Gleiser: Mas é o exemplo do Kansas. Essa decisão de você ter o criacionismo, e não fazerem mais perguntas nas provas sobre a [teoria da] evolução, foi tomada pelo secretário da Educação do Kansas. E o governador do estado está desesperado, porque ele acha que os jovens mais bem preparados não vão mais se mudar para o Kansas para trabalhar lá, porque não querem que os filhos cresçam nessas escolas.
Luís Barco: Periga desse cara virar ministro.
Paulo Markun: Marcelo, perguntas de telespectadores nessa linha. Maria José Pereira, do Parque Jabaquara, aqui de São Paulo, pergunta se você concorda que a ciência física deva ser ensinada nas escolas a partir dos primeiros anos. Eu vou fazer as três em seguida. Teodoro Brandão Moura, professor de física no ensino médio, pergunta que física você acha que deve ser ministrada no ensino médio. E finalmente o professor Letinho, de Carangola, de Minas Gerais, [quer saber] como mostrar o lado poético da física e da ciência para estudantes do segundo grau.
Ricardo Bonalume: Você vê que nós temos professores interessados no tema, né?
Marcelo Gleiser: Pois é, graças a Deus, sem dúvida. Eu acho que sim, que a física, as ciências naturais têm que ser ensinadas no começo, e isso pode ser feito de várias maneiras diferentes. Aliás, é uma coisa que é feita nos Estados Unidos. Sempre que as minhas crianças vão para a escola, eu acompanho... é com experiências [que se ensina], [observa-se que] o girino que vira sapo, coisa desse tipo, a lagarta que vira borboleta, eles fazem isso no primeiro, segundo ano [do período escolar].
Paulo Markun: Mas não de física?
Marcelo Gleiser: Não de física. [O ensino de física] vem no terceiro ano...
Paulo Markun: A pergunta é sobre física.
Marcelo Gleiser: Sim [é possível estudar física desde cedo], por que não? Eu acho que você estudar, por exemplo, a decomposição da luz usando prismas que funcionem [refere-se, com bom humor, à crítica de Roberto de Andrade Martins, feita no início do segundo bloco do programa], ou o movimento do pêndulo, mostrar que o período do pêndulo não depende da massa, coisas desse tipo. Existem certas coisas simples que podem ser feitas, e que devem ser feitas [no início do ensino da física na escola].
Mônica Teixeira: Mas provavelmente estão sendo feitas, porque esses exemplos... Desculpe, Marcelo, mas esses exemplos, isso que nós estamos falando, é tudo muito simples, não é?
Marcelo Gleiser: Mas é simples que tem que ser.
Mônica Teixeira: Pois é, mas os professores não são tão ruins assim.
Marcelo Gleiser: Mas não é questão dos professores, é questão do currículo, de como é...
Mônica Teixeira: [interrompendo] Não, eu não concordo com isso. Quer dizer, eu conheço um monte de experiências muito interessantes. Eu vou citar a Experimentoteca, que é a primeira que me ocorre. Eu acho que vocês estão passando uma visão da escola brasileira que não corresponde à verdade. Ela não é esse horror. Quer dizer, eu suponho que o pêndulo freqüente a sala de aula. Não, professor Barco?
Luís Barco: Freqüenta.
Luís Weis: Os resultados [das escolas brasileiras] infelizmente não dão razão [às observações de Mônica Teixeira], mas não vamos debater isso agora.
Paulo Markun: Só mais um pouquinho, nós vamos ficar aqui na linha dos telespectadores que abordam, três deles, um outro tema bastante amplo. Gilberto Borborema, de Cascavel, no Paraná, diz o seguinte: “Foi publicado há alguns dias que cientistas próximos a Nova Iorque estão criando em laboratório as condições para reproduzir o Big Bang. Como explicar isso, se as temperaturas seriam altíssimas, e quais as garantias para a segurança da Terra?” Ênio Petrônio, de Pernambuco: “O que você acha da reconstituição da explosão do Big Bang, como surgiu o mundo?” E, finalmente, Felipe Adar, que é de Porto Alegre: “Em primeiro lugar, boa noite. A experiência que está sendo dita por aí sobre reconstituir em laboratório o Big Bang, fazendo dois núcleos de ouro se chocarem... e também saber se a energia liberada nesse experimento é uma energia que pode ser controlada e se esse experimento pode realmente ser feito.”
Marcelo Gleiser: Bom, o primeiro comentário é que está errada essa afirmativa. Ninguém está fazendo uma experiência nos Estados Unidos que vai simular o Big Bang. Não é nada disso, o que eles estão fazendo...
Paulo Markun: Erro de jornalista?
Marcelo Gleiser: Eu não sei onde eles leram essa informação, eu não posso dizer nada. O que está sendo feito é que, realmente, um laboratório lá está fazendo uma pesquisa em que eles estão acelerando núcleos de ouro um contra o outro a velocidades muito altas, próximas da velocidade da luz, para estudar a composição da matéria dentro dos prótons, que estão no núcleo do átomo. E isso não tem nada a ver com o Big Bang em si. Mas você pode argumentar que você está reconstruindo, por frações de segundos, as condições de temperaturas que existiam, não no Big Bang, mas em um tempo depois do Big Bang. Então, você está tentando voltar atrás na história do universo, mas está muito longe da explosão inicial, vamos dizer assim.
Paulo Markun: Em termos de segurança, evidentemente, suponho...
Marcelo Gleiser: Não tem o menor problema. Isso aí teve uma comissão que foi averiguar, estudou com cuidado isso. A comissão publicou, na semana passada, aliás, o parecer dela, e não tem perigo nenhum: a Terra não vai acabar...
Paulo Markun: Weis.
Luís Weis: Professor, o [cineasta, músico e escritor norte-americano] Woody Allen uma vez disse que as grandes questões que perseguem a humanidade são o que somos, de onde viemos, para onde vamos, e onde será que a gente acha um bom restaurante aberto a essa hora da noite? Ou seja, [apesar de] toda a forma de transcendência a que aludiu o professor Barco, as pessoas também têm uma fome, cobram da ciência respostas para uma fome muito mais concreta, ou seja, que restaurante bom que está aberto a essa hora? No fundo, era no sentido da piada do Woody Allen... Quer dizer, apesar de tudo, o que as pessoas cobram da ciência são respostas para questões imediatas do seu cotidiano. E isso já foi abordado, de alguma maneira eu queria fechar a minha participação aqui com isso. Como é que a ciência, pelo próprio caminho que ela tomou, cada vez mais dá respostas de longo alcance e cada vez menos dá respostas que sejam percebidas como tais pelo comum das pessoas?
Marcelo Gleiser: Eu não sei se eu concordo que elas são percebidas de maneira tão distantes assim das pessoas. Por exemplo, de dez, quinze anos para cá, o interesse no Big Bang, na teoria do Big Bang, que é de 1948, multiplicou milhões de vezes, porque com o trabalho de divulgação científica as pessoas perceberam que existem maneiras racionais, científicas, de se questionar sobre o universo, que antes provinham só da religião. Então, eu acho que a atração... é o que você falou das questões fundamentais, de onde nós viemos, para onde nós vamos etc, e o comentário: em Nova Iorque, achar um restaurante tarde é fácil à beça...
Paulo Markun: Aqui em São Paulo também. Não vou citar [os nomes dos restaurantes] por razões... [risos, porque é quase meia-noite e os entrevistadores estão com fome.]
Marcelo Gleiser: Então, eu acho que é o problema das três origens que eu comentei antes, que cada vez mais estão fazendo parte do discurso científico. Mesmo que não tenhamos respostas para nenhuma delas – não sabemos como o universo surgiu, não sabemos qual é a origem da vida, não sabemos a origem do inconsciente, mas nos perguntamos sobre isso –, então obviamente as pessoas querem essas respostas, porque se a religião está dando metade das respostas, podemos dar uma resposta inteira, uma resposta em que existe argumentação científica; é claro que seria muito interessante. O que os cientistas estão fazendo é se aproximar dessas respostas. Se a gente vai chegar até elas algum dia, é uma coisa que eu realmente não sei.
Paulo Markun: Entre as respostas – o nosso tempo acabou –, mas entre as respostas, ou as perguntas que a ciência discute e que os telespectadores têm interesse de saber, existe uma que Rodrigo Costa Monteiro, de Bauru, Maria da Paz Ribeiro Dantas, de Recife, e Marcelo do Nascimento Barbosa, de São Caetano do Sul, querem saber é o seguinte: a questão da vida em outras partes do universo; como é que a ciência encara isso? Nós temos um minutinho, mas eu acho que dá para dar um fecho nessa história.
Marcelo Gleiser: Como que é a ciência encara isso? Depende de com quem você conversa. A maioria dos físicos e astrônomos acham que, com certeza absoluta, dentro do que existe em probabilidade, obviamente, existe vida em outros lugares do universo, simplesmente porque o universo é tão gigantesco que existem tantas galáxias... Nós estamos aqui em uma estrela na Via Láctea, o Sol, seus planetas etc. Existem centenas de bilhões de estrelas na nossa galáxia, existem centenas de bilhões de outras galáxias no universo com centenas de bilhões de estrelas. Então, a probabilidade de que se repitam essas condições [que possibilitaram a vida na Terra] de ter uma estrela não muito quente nem muito fria, como o Sol, com o sistema solar, que tem um planeta perto o suficiente para ser quente, mas não muito longe para não ser muito frio, é grande. E a vida é um acidente, vamos dizer assim. Ninguém sabe exatamente de onde veio, como começou a coisa, mas se acredita hoje em dia que a vida é uma coisa que aconteceu acidentalmente: as moléculas orgânicas foram se combinando de forma cada vez mais complexa, até que em algum momento, que ninguém entende como, uma molécula orgânica resolveu se reproduzir e se alimentar de outras, por exemplo. Agora, isso não diz nada sobre a questão da vida inteligente.
Paulo Markun: Muito menos sobre homenzinhos verdes que venham de Marte.
Marcelo Gleiser: Isso aí, certamente não vieram. Mas a outra questão – isso [que disse antes] são os físicos e astrônomos –, os biólogos já pensam de forma muito diferente. Quer dizer, não todos, mas vários deles acham que a vida é uma coisa extremamente rara, é um acidente, talvez não o único, mas possivelmente único sim, porque várias coisas aconteceram aqui na Terra para gerar as condições necessárias para que a vida tenha se desenvolvido, e não é claro que essas coisas tenham acontecido [em outros planetas]. A vida é um processo que depende de uma história, e se essa história é repetitível ou não, não é uma coisa clara.
Paulo Markun: A vida não tem começo, pelo jeito, pelo que a gente saiba direito, como começou e, certamente, até o momento não tem fim. O Roda Viva tem. Obrigado ao Marcelo Gleiser, aos nossos entrevistadores, a você que está em casa, e até a próxima segunda-feira, sempre às dez e meia da noite. Uma boa noite, uma boa semana, e até lá.