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[Programa ao vivo]
Jorge Escosteguy: Boa noite. Hoje, 19 de abril, é o dia do índio; e a partir de agora, com o Roda Viva, a TV Cultura começa uma programação especial em homenagem aos índios brasileiros. Uma homenagem que também é um alerta, uma advertência em relação ao processo cada vez mais brutal e acelerado de extinção dos povos das florestas, de morte das nações indígenas. A partir de amanhã, e até sexta-feira, a Cultura estará apresentando uma série de documentários sobre o tema. E no Roda Viva de hoje nós vamos conversar com um homem que é um símbolo da luta pela preservação da vida e da identidade cultural dos índios. No centro da roda, nosso convidado desta noite é o sertanista Orlando Villas Bôas. Nascido no interior de São Paulo há 78 anos, Orlando Villas Bôas e seus irmãos Cláudio e Leonardo foram pioneiros da causa indígena. Uma história que começou há cinquenta anos com a expedição Roncador-Xingu, e ganhou fama nas décadas seguintes com o trabalho que só descansou, mas não parou de todo, em 1978, quando Orlando se aposentou. Na época, ele era diretor do Parque Nacional do Xingu. Ele dirigiu o parque durante 17 anos depois de passar uma década lutando pela sua criação. Orlando ganhou prêmios nacionais e internacionais, foi indicado para o prêmio Nobel, escreveu e publicou livros. Mas tem ainda muitas outras histórias para outros livros que está escrevendo. Lembramos aos telespectadores que o Roda Viva também é transmitido ao vivo pela TVE da Bahia; TVE do Ceará; TVE do Piauí; TVE de Porto Alegre; TVE do Espírito Santo; TVE do Mato Grosso do Sul; TV Minas Cultural e Educativa; e TV de Pernambuco. Para entrevistar Orlando Villas Bôas esta noite no Roda Viva, nós convidamos: Fernando Gabeira, repórter do jornal Zero Hora no Rio de Janeiro; Rosângela Petta, jornalista da TV Cultura; Ulisses Capozzoli, repórter do jornal O Estado de S. Paulo; Virgínia Valadão, antropóloga do Centro de Trabalho Indigenista; Arley Pereira, colunista do Diário Popular; Ronaldo Brasiliense, repórter especial da revista IstoÉ; Marcos Faerman, editor-chefe da revista Shalom; Maureen Bisilliat, curadora do pavilhão da Criatividade Popular do Memorial da América Latina. Lembramos aos telespectadores que estão em casa, e quiserem fazer perguntas por telefone, que podem chamar 252-6525. A Shizuka, a Cristina e a Márcia estarão anotando as suas perguntas. Na platéia, assistem ao programa um grupo de índios Guarani, da aldeia da Barragem, em Parelheiros, e um grupo de estudantes do curso de jornalismo da TV Cultura, além de amigos de Orlando Villas Bôas. Boa noite, Orlando.
Orlando Villas Bôas: Boa noite.
Jorge Escosteguy: No começo do programa já chegou um recado de um amigo seu, o Bongermino, que diz: "Espero que esta noite você possa dar uma aula sobre o modo de vida do povo indígena; fale sobre a estrutura da família, de sua educação e do respeito que tem pelo semelhante. Conte algum causo de bom humor do índio e do sertanejo. Um abraço do amigo de há 63 anos. Bongermino”. Orlando, hoje, 19 de abril, dia do índio, como é que você se sente cada vez que passa um 19 de abril e as pessoas homenageiam os índios, falam do índio?
Orlando Villas Bôas: Cada vez mais penalizado com a situação do índio no Brasil de hoje. Essa data foi consagrada pelo Instituto Interamericano [do Índio, sediado] no México, que, claro, faz referência aos índios das três Américas. Os de lá eu não sei, mas eu sei que daqui, esta data em que a gente deve comemorar o índio não redime a sociedade brasileira do mal que nós fizemos a eles. Eles estão em processo de extinção por uma coisa puramente simples, que é a omissão do tutor com relação ao seu tutelado.
Jorge Escosteguy: Você diria que nesses últimos anos, nesses últimos 19 de abril, nada melhorou? As coisas tendem a piorar?
Orlando Villas Bôas: Não, pelo contrário, têm piorado. Constantemente piorado. A cada ano piora. E este é ainda o pior de todos.
Jorge Escosteguy: O que você – Orlando Villas Bôas – tem feito em função disso? Você tem conversado com autoridades, tem procurado...
Orlando Villas Bôas: Tenho; [a gente] conversa, grita, chora, esperneia, escreve, fala, mas sem o menor resultado, sem a menor repercussão, porque a salvação, a defesa do nosso índio, a dívida que nós temos para com eles, só um setor pode pagar: é o poder central da República. Ele é o tutor do índio, e a Fundação Nacional do Índio [Funai] exerce essa tutela em nome da União.
Virgínia Valadão: Orlando, eu queria lhe fazer uma pergunta, já que você tocou na questão da tutela, quer dizer, a sua experiência indigenista é de uma época em que a tutela competia inteiramente ao Estado. A partir da Constituição de 88, por um lado houve um avanço, na medida em que o Ministério Público pode... as comunidades podem entrar em juízo por conta própria; por outro, a tutela não ficou definida na Constituição, ela ficou para ser definida ao nível de Estatuto do Índio [lei brasileira 6.001, em vigor a partir de 1973, que regula as relações do Estado e da sociedade com os povos indígenas. Segundo o Estatuto, os povos indígenas são relativamente capazes e devem ser tutelados por um órgão estatal (hoje, a Funai)]. E seguiram-se decretos, 22, 23, 24 etc, em que a Funai, no caso, [faz o papel de] tutor. As questões de saúde, educação etc [dos índios] foram esfaceladas entre os vários órgãos governamentais. Então, a minha pergunta é o no seguinte sentido: hoje em dia pode-se dizer que a Funai basicamente está concentrada na questão fundiária. Qual é a sua visão da tutela... essa tutela, no seu ponto de vista, deveria ser nos moldes em que ela era antigamente, congregando todas essas atividades, ou do que foi, do que passou até agora, qual é a nova proposta de tutela?
Orlando Villas Bôas: A experiência está nos mostrando que ela deveria voltar a todos esses encargos quanto aos índios em relação a um órgão só. Isso deveria ter uma autonomia de tal arte, que é a mesma de um pequeno Estado, de um mini Estado. Porque lidar com gente viva, lidar com sociedades como a do índio é a mesma coisa que governar um pequeno Estado. Ali é preciso ter o trabalho de assistência, educação, segurança, tudo isso. De maneira que isso que está acontecendo agora, em separar em diversas necessidades, diversas assistências que o índio tem, por exemplo, educação: Ministério da Educação; saúde: Ministério da Saúde, isso é uma loucura. Porque a Fundação Nacional do Índio deveria ter uma estrutura tal que tivesse condições de socorrer o índio na sua área. E não esperar que o índio doente venha procurar o socorro fora da sua área. Então, eu acho que é uma loucura. Ele deveria ter uma dotação específica, certa, em primeiro lugar. E, em segundo lugar, ter um administrador capaz de dirigir essa coisa toda sem as coisas que aconteceram no passado com diversos presidentes que passaram pela Funai. No momento, nós temos um presidente da Funai que é um rapaz que conhece o problema e é responsável, e que é incapaz de desviar qualquer tipo de verba. De maneira que é uma judiação isso que está acontecendo: a indiferença do poder, distribuindo, esfacelando essas obrigações da Funai, por diversos órgãos.
Arley Pereira: Esse mini Estado a que você se refere deveria ser entregue aos índios? A direção desse mini Estado, quem deveria dirigi-lo?
Orlando Villas Bôas: Não, ainda é cedo para entregar aos índios. Olha, um próprio civilizado nomeado pelo presidente da República, como é o caso, mas [seria necessário que fosse] uma criatura responsável. Uma criatura responsável e capaz que conheça o problema do índio. E, por sua vez, teria que se cercar de uma série de auxiliares imediatos, que também... O serviço de índios passou, nesse tempo todo... o Serviço de Proteção aos Índios, depois mesmo a Funai, [passou] por direções as mais esdrúxulas possíveis. Você mesmo [Arley Pereira] conhece algumas delas e sabe que o índio nunca foi assistido e nunca esteve no lugar que ele merece, nas atenções do poder central do país.
Arley Pereira: Durante muito tempo nós tivemos homens que conheciam isso de perto, como você e seus irmãos, na liderança deles, [vocês são] grandes sertanistas. Hoje nós teríamos pessoas com esse conhecimento?
Orlando Villas Bôas: Aí, o nosso caso seria o trabalho de campo. No trabalho de campo, pode-se encontrar gente que venha a fazer o que nós fizemos. Agora, na direção do serviço de índios, o índio ainda foi amparado enquanto na vigência do marechal Rondon, de 1910, quando se criou o Serviço de Proteção aos Índios [SPI], até 1927, quando se criou o Conselho Nacional de Proteção aos Índios [CNPI]. Daí em diante o índio começou a cair em mãos de diretores que cediam às pressões dos governadores de estado, e foi quando o Brasil começou a se expandir para o interior. Você vê os pinheiros-do-paraná: dos 70 milhões de pinheiros-do-paraná, hoje restam apenas 1200 pés de araucária [outro nome para pinheiro-do-paraná].
Ronaldo Brasiliense: Eu queria que você falasse um pouquinho sobre o seguinte: o Serviço de Proteção ao Índio e a Funai, durante muito tempo, estiveram nas mãos dos militares. Desde o Rondon a política indigenista brasileira sempre foi muito manipulada pelos militares. Atualmente, tem um sertanista na Funai, cria sua, o [Sydney] Possuelo; mas os militares continuam influenciando muito. Por exemplo, o Projeto Calha Norte [projeto lançado em 1985, durante o governo de José Sarney, que previa a ocupação militar de uma faixa do território nacional situada ao norte da calha dos rios Solimões e Amazonas] agora mesmo está construindo uma estrada que atravessa duas áreas indígenas, lá na área Yanomami de Maturacá [AM] e um parque nacional. Quer dizer, os militares continuam por trás, fazendo, mandando na política indigenista. Tem algumas propostas que dizem que a Funai, que já passou pelo Ministério da Justiça, Ministério do Interior, e agora foi vinculada ao Ministério do Exército... [isso] não seria mais ou menos como colocar a raposa para tomar conta do galinheiro?
Orlando Villas Bôas: Mas é claro, não tem dúvida alguma. Agora esta questão, por exemplo, da influência dos militares dentro da Funai, o próprio presidente da Funai não pode fazer nada, isso depende do poder central. O poder central é que deve prestigiar o presidente da Funai de tal arte que ele possa entrar em desacordo com isso. E, no caso dos índios Yanomami, quando se levantou aquela polêmica incrível, dizendo que não se podia criar a reserva Yanomami por causa da questão de fronteira, que era questão do exército, como se o fato de aquilo ser uma área sob a orientação da Funai não pudesse ter o destacamento militar que quisesse para tomar conta da fronteira, que nada tem que ver fronteira com o índio.
Ronaldo Brasiliense: Mas mudaram os militares, porque a atuação do Rondon é até hoje elogiada...
Orlando Villas Bôas: No dia em que nós tivermos um presidente da Funai que tenha autoridade e capacidade de sanar esta coisa toda, seria uma coisa formidável. Mas não vai acontecer. O que pode, por exemplo, um presidente da Funai fazer diante de uma desorientação feita pelas forças armadas? A não ser no tempo em que o próprio presidente da Funai era um general do exército, que era o Íris [Pedro] de Oliveira. Aí a coisa era mais contida, porque ele tinha muito prestígio e também era militar.
Rosângela Petta: Agora, de qualquer maneira, Orlando, esse projeto desse mini Estado seria gerido por um civilizado.
Orlando Villas Bôas: Claro, claro...
Rosângela Petta: Você não acredita na organização da própria comunidade indígena [para geri-lo]?
Orlando Villas Bôas: Eu acho que ela não está ainda preparada para isso, não está preparada. Ainda é muito cedo para isso. O dirigente índio pode entender da comunidade indígena, sem dúvida alguma, mas o mundo que o cerca, o mundo civilizado ele ainda não penetrou. Nós temos índios destribalizados excelentes. Nós temos aí o Ailton Krenak [(1954) líder indígena que participou, em 1988, da fundação da União das Nações Indígenas, um fórum intertribal com vistas à representação dos direitos indígenas. Anos depois, passou a atuar na ONG Núcleo de Cultura Indígena, que promove o Festival de Dança e Cultura Indígena, na Serra do Cipó (MG)], temos outros muito bons, mas preparado para tomar conta do destino dos nossos índios, é difícil. Não é fácil, não.
Arley Pereira: Existem lideranças indígenas? Falam tanto por aí [que existem]...
Orlando Villas Bôas: Existe liderança indígena, mas as lideranças indígenas estão fora da comunidade. E outra coisa, eu não acredito em "líder indígena", nem dentro da comunidade. Pelo menos com todos os índios com os quais nós convivemos, não existiu uma só comunidade que tivesse um líder. O líder não existe. O que existe é um conselheiro. O conselheiro, sim, ele é o ponto alto da comunidade.
Jorge Escosteguy: Orlando, o Fernando Gabeira tem uma pergunta.
Fernando Gabeira: Eu queria examinar um pouco essa questão de um ângulo mais otimista, apesar de eu concordar com a situação difícil e com um processo realmente degradante que os índios estão hoje. Nós tivemos agora, em Altamira [PA], há uns dois anos ou três, o Primeiro Encontro das Nações Indígenas [do Xingu, realizado em 1989] que vivem no território brasileiro. Isso já foi um avanço em termos de organização e de contato. Eu observo também que de alguns anos para cá – foi sobretudo naquele momento em que o Juruna [Mário Juruna] foi convidado para ir à Holanda e houve aquela briga pelo passaporte, e ele conseguiu o passaporte –, intensificaram-se muito as relações dos índios que vivem em território brasileiro com os outros países. A referência branca deles, hoje, não são necessariamente só os brasileiros. O senhor não acha que esse processo de relação dos índios com o resto do mundo e o processo de organização deles é uma coisa positiva? Esses encontros [não são positivos]?
Orlando Villas Bôas: Eu acho que a coisa mais extraordinária que assistimos em Altamira foi essa convenção dos próprios índios. A repercussão no exterior quase não nos interessa muito, mas ali nós vimos que os índios são capazes de defender um ponto de vista, de defender uma posição. Foi muito bonita aquela coisa... é verdade que houve algum exagero: aquela índia que tirou um facão, ameaçou a cabeça de um cidadão que estava lá, mas [o encontro] foi uma manifestação muito bonita. Mas essa mesma manifestação morreu aqui na Eco 92, porque nós não vimos nada de concreto na Eco 92, principalmente com relação ao índio.
Fernando Gabeira: Na Eco 92 houve um episódio que eu não sei como é que o senhor analisaria, que foi a denúncia em torno do [Paulinho] Paiakã [líder da tribo caiapó, acusado de estuprar, em 1992, a professora Silvia Letícia - que dava aulas a seus filhos - em Redenção, sul do Pará. A índia Irekrã, mulher de Paiakã, também foi acusada de participar do estupro. Ambos foram condenados pelo crime em 1998], que por acaso foi um dos líderes ou, se o senhor quiser, o grande conselheiro ali em Altamira. Como você analisa aquele episódio com Paiakã? Foi negativo para a luta indígena?
Orlando Villas Bôas: Claro que foi...
Jorge Escosteguy: Desculpe, só para complementar, o Claudinei Montaguini, de Osasco, São Paulo, também pergunta sobre o Paulo Paiakã, e pergunta a você se você acha que ele deveria ser julgado pela lei dos homens brancos ou dos indígenas.
Orlando Villas Bôas: O que eu achar ou deixar de achar não importa, o que importa é o que a lei diz. O índio é protegido pela lei 6001, que é [a lei conhecida como] o Estatuto do Índio. Agora, o Paiakã é um índio destribalizado, é um índio que vive mais fora da cultura tribal do que dentro da cultura tribal. Ele tinha aviões, tinha automóveis, tinha fazenda, ele tinha uma série de coisas. Agora, o que acontece, que a gente precisaria analisar com bastante calma, é o seguinte: o Paiakã pertence aos índios que foram os mais violentos e agressivos do país, que eram os índios Jê. Esses índios Jê eram índios que deram mais trabalho no processo de atração.
Fernando Gabeira: Eram os que se defendiam mais ardorosamente...
Orlando Villas Bôas: Eles se defendiam mais. [Reformulando a resposta] Não, mas eles eram mesmo violentos não só com relação aos civilizados que tentassem pacificá-los, mas também com os próprios outros índios. Nós tivemos no Xingu os mais primitivos grupos Jê do Brasil, que eram os [usa expressão indígena], que foram alcunhados de txucarramãe, que vem a dizer: "homem sem arco". Eles eram tão primitivos que, quando nós os atraímos – eu não falo “pacificamos” porque o Rondon não gostava [deste termo] –, o Rondon dizia: “não pacificava, atrai”. Pois bem, quando nós atraímos os índios txucarramãe, eles não tinham casa, eles não tinham roça, eles não conheciam canoa, eles não tinham arco-e-flecha, a arma mais primitiva do índio. Pois bem, mas eram índios violentos na guerra, tanto contra seus inimigos quanto com os civilizados. E o Paiakã era um índio Jê. Agora, interfere nesta coisa toda a bebida alcoólica... O que a bebida alcoólica fez? Fez que voltasse no Paiakã a violência dos seus antepassados. Isso é o que nós assistimos.
Fernando Gabeira: Existe mais estupro em Nova Iorque, comparativamente, do que no Xingu, mesmo em termos de população. No entanto, a revista Veja, quando apresentou o Paiakã, nessa circunstância, pôs o seguinte título: "O selvagem". Rigorosamente, poderia colocar "O nova-iorquino", porque realmente o estupro é muito mais comum em Nova York do que no Xingu.
Orlando Villas Bôas: Muito mais. E outra coisa também: nós é que emprestamos ao termo “selvagem” esse sentido de violência, essa coisa toda, essa conotação toda, porque ser selvagem é viver na selva, não precisa ter características de ser um sujeito...
Virgínia Valadão: [interrompendo] Era mais do que “o selvagem”, [o título da reportagem] era: “O instinto selvagem”, o que na verdade detona todo um preconceito, como quem diz: "Não se confia no índio, olha lá, o instinto dele sempre volta". Eu acho que foi mais neste sentido.
Fernando Gabeira: Eu acho que é o velho sonho de transformar o Brasil todo em pessoas que tenham carros Volkswagen, ou um Logos, ou Monza, que leiam a [revista] Veja e comam pizza no fim de semana, quer dizer, eles sonham com essa civilização universal.
Orlando Villas Bôas: A falha disso tudo está no Estatuto do Índio. O Estatuto do Índio é que deu essa prerrogativa de que grupos como o do Paiakã, e grupos como o de Mãe Maria, que é o Paiakã, e o grupo de Pombo, a terem uma economia quase própria, independente da fiscalização e da orientação da própria Fundação Nacional do Índio, que seria a Funai. Eles têm, eles negociam, eles vendem castanha, madeira, ouro, mogno, e eles têm uma vida econômica totalmente independente. E os índios gorotire, que eram chefiados pelo Pombo, eram a mesma coisa; só que o Pombo era mais vivo do que o... Porque o Pombo amealhava todo o resultado da coleta que ele conseguia. Eu me dava muito com o Pombo; encontrei uma ocasião com ele e falei: "Pombo, o que você está fazendo com essa dinheirama toda que você está ganhando? Você está distribuindo para o seu pessoal, está levando alguma coisa?". E ele disse: "Não, eu não estou, não. Eles nem sabem disso". E eu falei: "Mas como eles não ficam descontentes?". E ele disse: "Se eles ficam descontentes, eu levo presentes. Na semana passada eu fui a Belém com dois aviões e trouxe 160 guarda-chuvas, e dei de presente para eles. E ficaram contentes andando com o guarda-chuva na rua". Então esse é o índio... Agora, o Paiakã é a mesma coisa: os dois aviões que ele tinha, os automóveis, aquela coisa toda. Tomou aquela bebida, perdeu o controle, voltou a sua violência. Agora, o Estatuto do Índio o protege de tal arte que não se pode mexer com ele. Porque o estatuto diz: a emancipação só pode ser dada quando o índio solicitar. E não foi modificado na Constituição isso. Eu assisti a uma coisa formidável; certa feita, eu acompanhei o ministro até Aquidauana [MS], o [Maurício] Rangel Reis [(1922-1986) foi ministro do Interior entre 1974-1979]. E nós encontramos um índio Terena que falava muito bem português, era o presidente da Câmara Municipal de Aquidauana, tinha vinte e tantas casas de aluguel, e o ministro chegou e disse a ele: "Por que você, com essa independência econômica que você tem, não pede a sua emancipação?". E ele disse: "Ministro, [eu não peço] porque eu não sou burro". E o ministro: "Mas como, por quê?". [Se pedir a emancipação] "Vou dar contas à polícia e pagar imposto de renda". E o Paiakã pensaria da mesma maneira.
Fernando Gabeira: Agora, só mais uma pergunta a mais sobre esse campo: existem ainda alguns grupos não contatados no Brasil...
Orlando Villas Bôas: Existem índios que nunca viram o [homem] branco.
Fernando Gabeira: Exato. Com a sua experiência, e se lhe fosse dado – eu vou lhe fazer uma pergunta difícil –; com a sua experiência, se lhe fosse dada a possibilidade de contatar esses índios, você contataria ou deixaria que eles se perdessem de você e não vissem o branco mais?
Orlando Villas Bôas: Aí não se perdem, pelo contrário. Aí eles sobrevivem. Eu conheço dois grupos...
Fernando Gabeira: Você acha que eles sobrevivem sem contato; eles sobrevivem melhor hoje sem contato?
Orlando Villas Bôas: Claro. Na cultura deles, [o índio] é um sujeito pleno, alegre, que canta e ri o dia inteirinho. Depois que nós abrimos a asa da proteção sobre eles, eles passaram a sofrer.
Fernando Gabeira: Então, se lhe fosse dada [essa possibilidade de contatá-los], você erraria o caminho?
Orlando Villas Bôas: Claro... erraria não; eu voltei do caminho. Existe um índio chamado Agavoto Quenro, no Xingu, que só eu e meu irmão sabemos o ponto onde eles estão, e nunca contamos a ninguém. E por que se chama de Agavoto Quenro? [Significa] "Os homens alegres". Quando eles são vistos por outros índios, eles estão sempre rindo. Eles estão sempre rindo e satisfeitos. Então, atrair um homem desse para quê? Para quê? Para mostrar a eles as coisas de que eles vão ter necessidade no dia seguinte? Temos um outro índio, o Takuxirrai. Takuxirrai, nós sabemos onde eles estão alojados, mas também não levamos ninguém até lá e nem pretendo mostrar caminho.
Rosângela Petta: A atração não foi planejada pela mera atração. Tem que haver um projeto como o Xingu e outras frentes, mesmo ilegais, como a gente vê nas fronteiras o problema do contrabando, o problema do tráfico de drogas, a serra do Surucucu (RR) invadida, quer dizer, não é a atração por si só, as pessoas invadem a terra, elas querem a terra [...], esse que é o problema.
Orlando Villas Bôas: É o despreparo das nossas frentes de penetração.
Ulisses Capozzoli: Você me permite acrescentar uma questão [parecida com a] que ela está levantando? Você fez uma série de observações a respeito da obrigação do poder central em fazer a proteção dos índios. Na verdade, a situação dos índios não é muito diferente da dos não índios que a gente chama aqui de "brancos". Você acha que o Brasil, mergulhado nessa crise profunda, essa verdadeira guerra civil, você acha que é consistente a gente imaginar que a nossa sociedade possa dar uma proteção efetiva ao índio, ou, pelo menos, que a nossa sociedade consiga isolar o índio, de certa forma, para que ele viva a sua própria vida? O garimpeiro que sai desempregado, como é que você enxerga isso?
Orlando Villas Bôas: Não, não. Mas acontece o seguinte: você não pode fazer o termo de comparação. Aqui se trata apenas de duzentos mil índios, do outro lado são milhões [de não índios].
Ulisses Capozzoli: Sim, são milhões, mas, por exemplo, você tem o garimpeiro, que é o desempregado e desenraizado, e que vai fatalmente, impressionado pela miséria desta crise, vai invadir essa terra. O que na verdade eu estou querendo saber é o seguinte: se, sem a gente minimizar pelo menos esta crise profunda que nós vivemos, nós conseguiremos, de fato, dar uma proteção ao índio?
Orlando Villas Bôas: Eu acho que sim, podemos perfeitamente dar proteção aos índios, sem a preocupação de integrá-los na sociedade nacional. O nosso convívio com o índio fez que nascesse uma nova política, que contrariou, de certa forma, a própria política do marechal Rondon. Porque o marechal Rondon defendia a integração do índio à sociedade nacional. Mas os contatos que nós fizemos com os índios foram tais, e de tal maneira nos explicamos, que ele acabou se convencendo e passou a defender a defesa do índio na sua cultura pura. Foi uma coisa formidável, foi o que constituiu e fez com que a Constituição de agora multiplicasse a política indigenista e pregasse o respeito à cultura...
Ulisses Capozzoli: Mas você veja, por exemplo, a situação do Yanomami agora, o caso mais recente. Quer dizer, a polícia vai lá, faz aquela cena toda, retira parte dos garimpeiros, e um pouco depois o pessoal volta. Quer dizer, tem uma pressão, uma miséria no resto do país, que essa invasão é quase que inevitável.
[sobreposição de vozes]
Jorge Escosteguy: Um de cada vez, por favor. O Marcos Faerman tem a pergunta.
Marcos Faerman: Foi levantado pelo Ronaldo Brasiliense ali, a questão dos militares e da Amazônia, dos índios e tudo mais. O que fica parecendo é que primeiro emerge uma figura linda do nosso Rondon. E depois dele, então, a visão dos militares é totalmente diferente do Rondon, em geral. Não parece que essa visão militar e a estratégia militar se sobrepõem a tudo? Quer dizer, [parece que] no fundo todas as discussões, as posições dos intelectuais, dos escritores, as visões sensíveis que emergem na cidade, de repente, por uma penada, em nome da estratégia e da segurança nacional, tudo desaba. E essa intervenção militar, digamos, tem um foro, algo que lhe extrapola, quer dizer... No fundo, no fundo, nós não temos então nem o Congresso Nacional, não temos nem mesmo leis, e tudo é colocado de lado por uma penada que traça a estratégia da Calha Norte ou seja lá o que for. Em nome da segurança nacional, nós continuamos tutelados em plena democracia por um clima que vem até mesmo das regiões ditatoriais do poder?
Orlando Villas Bôas: Você tem toda razão, essa é a visão do militar com relação aos índios.
Marcos Faerman: Além de o índio em geral ser feio, ser burro, e a cultura dele ser inferior, na visão deles.
Orlando Villas Bôas: Os dois trabalhos podem seguir perfeitamente, sem se chocar: que a ação militar de proteger as fronteiras continue sendo a ação militar de fronteira sem intervir nas comunidades indígenas. E não fazer, por exemplo, que os índios Yanomami, que não são índios, são ameríndios, saltem do Brasil para a Venezuela e da Venezuela venham para o Brasil. O que os militares têm a ver com isso? E eles estão fazendo isso há milhares de anos. Por que eles não vão fazer isto com os Tirió, que falam francês, que falam inglês, que vão comprar perfume lá e trazem para cá? Vão fazer isso com o pobre do índio Yanomami, um índio ainda de cultura pura, jogando flecha pelo nariz.
Marcos Faerman: Orlando, para encerrar esta minha intervenção aqui neste momento. Eu estive com Hector Babenco [cineasta nascido na Argentina, em 1946, e radicado no Brasil; entre outros filmes, dirigiu Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977), Pixote, a lei do mais fraco (1980), Carandiru (2003)], em uma entrevista para a minha revista, e o Babenco fez esse filme deslumbrante, Brincando nos campos do Senhor [1991]. Atenção [olha para a câmera]: não percam esse filme. Esse filme é realmente lindíssimo. E [o Babenco] é hoje um homem totalmente apaixonado pelos índios, e ele me disse que a Cláudia Andujar, a magnífica fotógrafa, está proibida de ir às regiões Yanomami. Quem proibiu a Cláudia? Eu queria saber.
Fernando Gabeira: Eu queria ampliar essa pergunta...
Marcos Faerman: Ela cometeu um crime, que foi defender e mostrar a cultura Yanomami, e [isso] talvez seja um crime.
Orlando Villas Bôas: A Cláudia tem uma relação muito boa com os com os missionários de Catrimani (RR). Que eu saiba, ela não fez nada que pudesse prejudicar o índio. Talvez tivesse incentivado o índio a criar alguma resistência com relação àquela [construção da rodovia] Perimetral Norte, que estava realmente molestando as aldeias indígenas. Eu nunca tive notícias...
Marcos Faerman: [interrompendo] A Cláudia estaria ameaçando a segurança nacional [de acordo com a mencionada proibição].
Orlando Villas Bôas: Isso é uma loucura. Isso na cabeça deles, não na nossa!
Maureen Bisilliat: Quando se mencionou a capa da [revista] Veja, com o Paiakã como selvagem, eu acho interessante que, dentro da matéria, [havia a reprodução de] mais uma capa sobre o mesmo Paiakã, de uma revista inglesa. E esta revista dizia no título: “O homem que poderia salvar o mundo”. Então eu acho que isso é uma coisa grave, porque como que um homem não vai perder o seu sentido de identidade se ele está julgado completamente entre dois extremos: ou ogro ou anjo. Então eu acho que isso aí é muito grave. Quando se falava, por exemplo, das viagens dos índios para a Europa e tal, eu acho que foi durante um certo período muito benéfico, mas depois criou-se essa espécie de pessoas exóticas, de pessoas românticas, o que é igual, porque é tão falsa quanto o selvagem; [mas o índio] nem é o selvagem e nem é o homem que poderia salvar o mundo. Então eu acho que isso desnorteia o ser humano. O que você acha?
Orlando Villas Bôas: Eu acho que é claro: se o Paiakã não tivesse feito o que ele fez na semana seguinte ele iria para a Europa com a maior representatividade possível do índio sul-americano, ou seja, nem é do índio brasileiro.
Maureen Bisilliat: Sim, mas não como salvador do mundo, mas como uma pessoa que luta para o seu povo...
Rosângela Petta: Há uma distorção, quando [o índio] é festejado como folclórico, como o próprio passeio do Raoni. Você comentou uma vez comigo que você acha uma bobagem o Raoni ficar se exibindo ao lado do [famoso roqueiro inglês] Sting...
Orlando Villas Bôas: Eu achei...
Jorge Escosteguy: [interrompendo] Orlando, por favor, dois telespectadores, Domingos Ferronato, de São Paulo, e Jairo Gregório, de Guarulhos, perguntam o que você acha do Sting, em relação aos índios brasileiros, se ele está se aproveitando...
Orlando Villas Bôas: Eu acho que o Sting, a intenção dele pode ter sido até boa, no sentido da preservação da terra do índio e essa coisa toda. O que eu fui contrário é que o índio participasse disso, como um chamarisco a essa coisa toda. Baseado no beiço do Sting [referência ao esticado e cortado lábio inferior de Raoni, que circunda um objeto que tem a dimensão de um CD], ele abraçou a rainha, conversou com o Papa [João Paulo II] e almoçou com o [François] Mitterrand [presidente da França entre 1980-1991]. Quando o Raoni voltou da viagem, ele me telefonou e eu perguntei: "Raoni, eu não gostei que você tenha feito essa viagem”. Ele me disse: “Eu gostei pouquinho”. Eu falei: “O que você achou mais bonito nesta viagem?". E ele disse: "Um homem pequenininho, vestido com saia de mulher, que eu bati na barriga dele". Era o Papa [risos].
Ulisses Capozzoli: Posso acrescentar uma coisinha à pergunta do Gabeira? Será que verdadeiramente a nossa sociedade, com esses valores específicos dela, a nossa pressa, o nosso desejo de posse, a gente tem condições de entender o índio? O índio, de certa forma, não é um “alienígena”, esse de quem a gente espera um sinal chegando das estrelas, com rádio telescópio? Existe possibilidade de a gente entender verdadeiramente o índio? E de a gente fazer esse trabalho de que ele [Fernando Gabeira] fala?
Orlando Villas Bôas: O problema é o seguinte. A grande argumentação nossa junto ao marechal Rondon, com relação à política indigenista, era exatamente essa. Dois pontos principais. Primeiro, não há lugar para o índio na sociedade brasileira de hoje. Segundo, o índio só sobrevive na sua própria cultura. Quer dizer, atrair o índio para a sociedade nossa seria um erro incrível e nós estávamos trazendo um povo à destruição. Nós temos aqui os sessenta ou quarenta mil índios na faixa litorânea reduzidos hoje a mil índios. [Eles] desapareceram no processo integrativo. Não tenha dúvida alguma. Agora, a nossa coisa ideal em relação aos índios seria, se possível, o contato do povo para povo, sem a preocupação de integrá-los à sociedade nossa, dando a eles os recursos de que eles necessitam para combater os males que nós mesmos levamos. Agora, deixar o índio tranqüilo. Quando nós estivermos preparados para receber o índio... Agora o que acontece? O índio é catequizado pelo civilizado com visita; então ele é trazido para cá, e ele aqui é presenteado... Houve uma época em que os aviões não faziam outra coisa senão trazer radinho de ouvido para os índios do Xingu. Você testemunhou isso.
Fernando Gabeira: Mas minha pergunta ainda não foi respondida. Minha pergunta é a seguinte: qual seria o papel dos chamados estrangeiros, quer dizer, dos povos de outras nacionalidades nessa tarefa? Quais são os limites e as possibilidades disso?
Orlando Villas Bôas: Isso aí foi um ponto fabuloso, porque em 1967, quando o ministro Albuquerque Lima resolveu criar a Funai, em substituição ao Serviço de Proteção aos Índios, vieram jornalistas europeus e americanos em quantidade para o Ministério do Interior, no Rio de Janeiro, um grupo enorme. E todos eles manifestavam a mesma coisa, e o ministro disse a eles naquela ocasião: "Então, por que vocês, nos seus países, vocês não falam? Se vocês acham que essas coisas todas devem ser feitas, por que não trazem recursos de lá para auxiliar o índio?". E eles disseram: "Ah, isso não". Todos eles deram para trás. O índio para eles era uma figura folclórica, mais nada. Ninguém estava preocupado em salvar o índio coisa nenhuma, porque quando eles ouviram: "Vamos pegar recursos de fora para atender aos nossos índios aqui", eles debandaram, não se falou mais nada, cada um foi para o seu lado e acabou.
Arley Pereira: Pegando esse gancho de “salvação do índio”, eu posso falar como testemunha ocular da história. Eu acho que você fica tão bem respondendo às perguntas aqui, elegantemente trajado, ou sem camisa na proa de um barco no Rio Xingu e, portanto, tem o conhecimento dos dois lados. Você sabe a coisa de gabinete e sabe a coisa de campo. Então eu gostaria de fazer uma pergunta de repórter, uma pergunta de povo: o índio brasileiro tem salvação ou vai desaparecer?
Orlando Villas Bôas: Se nós continuarmos com a política vigente, a política de hoje, ele não tem salvação. Nós vamos reduzir essa gente a meia dúzia de indivíduos gravitando em torno de uma sociedade na qual eles não podem ser integrados.
Arley Pereira: Quanto tempo você calcula [para que isso aconteça]?
Orlando Villas Bôas: Isso é difícil, porque nós temos ainda muito índio em estado de cultura pura, com sua cultura original, e que não teve ainda contato com a sociedade nacional.
Marcos Faerman: E que estão incomodando. Estão incomodando aqueles que querem tomar conta da terra deles...
[sobreposição de vozes]
Jorge Escosteguy: Orlando, por favor, o Ronaldo tem uma pergunta para você, e a Regina depois.
Ronaldo Brasiliense: Você está falando aí de civilização, do [homem] civilizado. Os jesuítas chegaram aí no século XVI, naquela região do Amazonas e todo mundo sabe [o que aconteceu]... até hoje eles fazem um mea-culpa. Eu queria que você analisasse, por exemplo: no Alto Rio Negro [AM] tem as missões salesianas lá, que já estão há mais de oitenta anos. Tem uma missão salesiana em Maturacá, em área Yanomami; tem Meva [Missão Evangélica da Amazônia] em novas tribos, também em área Yanomami; tem Meva em [área] [...], em que os missionários protestantes entraram na área indígena sem autorização da Funai, sem autorização da Justiça... Você falou da descaracterização da cultura indígena, quer dizer, hoje a gente vai em muitas aldeias, Caiapó, Munduruku, Uru-eu-uau-uau ou [...], você mesmo citou o caso do Tirió, e tem índio rezando, tem índio fazendo o sinal da cruz, andando com crucifixo. E a Meva está traduzindo a Bíblia para a língua Yanomami. Eu queria que você analisasse isso, você não acha que as missões religiosas estão descaracterizando a cultura deles?
Orlando Villas Bôas: Eu respondo a essa pergunta com apenas uma coisa que eu ouvi, e eu não sei se tem alguém ainda vivo que tenha ouvido. Quando o padre Cobalquine e o padre Bizetti fizeram a atração dos índios Bororo, no Rio das Mortes [MT], eram cinco mil Bororo; quando eles morreram, eram 170 Bororo. E eles falavam com a maior sem-cerimônia: "É uma pena: um irmãozinho tuberculozinho que veio da Itália e morreram oitocentos bororinhos".
Jorge Escosteguy: Orlando, essa questão sobre o que você acha da ajuda... essa pergunta, o José Luiz de Souza, de Mogi das Cruzes; Valéria Balemburg, de São Paulo; Paulo Ribeiro, de São Paulo e Wagner Bortoleto, de São Caetano, perguntam justamente: o que você acha da ajuda dos missionários, da presença dos missionários junto aos índios?
Orlando Villas Bôas: Eu acho que os missionários, se eles resumissem sua ação – como a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] recomenda – apenas no trato do índio, sem a preocupação com a catequese religiosa [seria bom], mas a Constituição apóia essa gente. A Constituição diz que a pregação religiosa é indiscriminada; ela pode ser dada, pode ser feita. Agora, se eles se limitassem, conforme a CNBB aconselha hoje, à assistência ao índio sem a preocupação da catequese religiosa seria uma coisa muito boa, sem dúvida alguma.
Virgínia Valadão: Olha, eu queria colocar duas coisas, a primeira você comentou que os garimpeiros invadem, tem a massa pobre etc. Eu só queria dizer que a questão da madeira na Amazônia hoje é uma questão gravíssima e representa uma importantíssima economia, no que diz respeito às áreas indígenas, os contratos ilegais de madeira começaram a ser inaugurados pelo próprio presidente da Funai, Romero Jucá, depois governador de Roraima. Ele tinha uma postura de que os índios deveriam sustentar a assistência dada pelo Estado, quer dizer, e a partir daí ele começou a estabelecer os contratos legais de madeira e se perdeu completamente o controle deste processo. Agora, em segundo lugar, eu queria dizer o seguinte. Essa política integracionista do índio à sociedade nacional foi uma política pública dos anos setenta acoplada ao processo desenvolvimentista da Amazônia. Eu queria voltar um pouco para saber de que índio a gente está falando, porque a reprodução étnica, quer dizer, das culturas... O mundo está atravessando uma convulsão étnica, então a reprodução cultural passa pelos mais variados níveis; então a gente está falando do índio isolado ao índio que, por uma série de motivos, atravessou essa integração forçada e que, de repente, como é que está a situação deles? Porque autogestão, no meu ponto de vista, não é apenas a condição de "puro", neste sentido que a gente está dizendo, é o sinônimo de cultura, ou de preservação étnica, quer dizer, o que os índios precisam é a intervenção no sentido de que eles possam fazer a sua autogestão, ou seja, definir o seu próprio destino. Então, um pouco a minha questão é a seguinte: nós estamos radicalizando as coisas; nós estamos colocando o índio em estado puro, e a questão indígena é muito maior do que esta. Então, o processo de autogestão, das duzentas sociedades que a gente tem aqui dentro, dos duzentos grupos culturais diferentes, passa por uma avaliação, no meu ponto de vista, muito mais complexa, uma vez que a gente considere que o conceito de integracionismo está superado, que nós estamos agora tendo um outro problema para enfrentar, que é como fazer para que esta autogestão possa ser realizada.
Orlando Villas Bôas: Eu acho que não houve nenhum processo orientado de integração do índio à sociedade. O que houve foi um contato indiscriminado, descontrolado, e a que nós assistimos com isso tudo? Assistimos que a faixa litorânea nossa, de sessenta mil índios, hoje tem cem índios; os Karajá eram 15 mil arcos e hoje não chegam a mil índios; os Bororo eram cinco mil índios e hoje são 170 índios. Esse é o processo que acabou no contato com a nossa sociedade.
Virgínia Valadão: É, do extermínio puro e simples há uma política pensada. Eu acho que são momentos históricos diferentes, quer dizer, no extermínio puro e simples a gente pode caracterizar o Brasil Colônia [e o Brasil] Imperial, inclusive os decretos de Dom João VI, da "caça aos bugres" etc.
Orlando Villas Bôas: Declarando a guerra aos índios do Vale do Rio Doce [MG]. O rei de Portugal declarou guerra de extermínio aos índios do Vale do Rio Doce; declarou guerra contra os índios de São Paulo e os Xoclengue, de Santa Catarina, então era essa a política. O que acontece é que o único remédio para isso é se nós tivéssemos condições de convencer o índio de que ele evite o contato com o civilizado, porque nós não estamos preparados para recebê-los, e nem tampouco eles estão em condições de participar da nossa civilização.
Ronaldo Brasiliense: As frentes de atrações, por exemplo, você está fazendo um mea culpa ... A BR 364, em Rondônia, provocou uma frente de colonização que passou por várias áreas indígenas. A BR 174 [...], construída pelo Exército, teve problemas com os [índios] Uaimiri-atroari. A [rodovia] Transamazônica [também teve problemas desse tipo com os índios] Arara [e com os] Araweté. Quer dizer, a própria Funai não foi colocada à frente também dos projetos de desenvolvimento? A Funai ia atrair índio porque o governo queria construir uma hidrelétrica e tinha que remover [índios] para Canaã...
Orlando Villas Bôas: Mas você acha que a Funai podia julgar alguma coisa? A Funai é determinada pelo governo; o governo manda que você faça vanguarda daquilo. Nós fizemos a vanguarda nos índios Kranhacãcore para poder passar a estrada Cuiabá-Santarém. Então, como é que eu ia convencer o Exército para não fazer essa estrada? Como ia convencer o presidente da República de que aquilo não deveria ser feito? Tínhamos que aceitar aquela determinação como o único remédio possível, que era tentar atrair esses índios e afastá-los do avançamento. Como eu vou convencer o batalhão rodoviário do Exército a suspender a coisa? Porque era uma determinação que vinha aqui de cima, e [como eu] ia convencer o presidente da República de que aquilo lá não estava correto? A nossa função era servir de intermediário entre essa coisa nova que chega para destruir a comunidade indígena enquanto o índio está despreparado para recebê-los.
Fernando Gabeira: Só completando a pergunta dela [Virgínia Valadão], porque eu acho que você respondeu uma parte da pergunta dela. Ela disse que nós temos uma tendência de tratar o índio em estado puro, e a sua resposta foi: "Bom, então sem contato com índio em estado puro”. Mas existem aí índios que vivem em contato com os brancos, e é inexorável esse contato, quer dizer, como é que seria essa política de autogestão? Não estaria faltando, até neste encontro [no Roda Viva], a opinião... Porque eu creio que depois de Altamira, depois de várias lutas que já houve aqui nas grandes cidades com a presença de algumas lideranças indígenas, ou se quiser, de alguns conselheiros, os índios já têm uma posição. Como é que você vê essa possibilidade de autogestão, e como você vê o que eles estão dizendo hoje, que seria bom para eles?
Orlando Villas Bôas: Nós estamos aí com dois índios, o índio em fase de aculturação e o índio de cultura pura, que é o maior número ainda no Brasil: índio que não tem contato com a civilização, índio que não está interessado na nossa vida, índio que não está interessado absolutamente com a nossa presença. Esses índios...
Marcos Faerman: [interrompendo] Qual é a porcentagem deles? Digamos assim, do conjunto dos índios, desses segmentos que estão querendo...
Orlando Villas Bôas: Nós temos ainda no Brasil 250 mil índios; é uma estimativa que se faz. Índios em estado de cultura pura, talvez, em torno de cem a 120 mil índios.
Marcos Faerman: Então é menos da metade.
Orlando Villas Bôas: O resto são índios em processo de aculturação; são índios que só estão sobrevivendo porque estão tribalizados, mas economicamente dependendo da economia regional. É o que estamos assistindo agora, são os remanescentes dos trinta mil índios que havia na faixa litorânea. Agora, recentemente, fui convidado para ir ao litoral, fui a Bertioga. Bertioga está tomando para si um encargo de reunir e representar toda a questão indígena da faixa do litoral. E é uma coisa linda, uma beleza, aqueles Guarani ainda dançando, cantando, alegres, mas gente sofrida. Uma sociedade que está em extinção com uma rapidez incrível. E o esforço da nossa gente com relação a esses índios é da maior boa vontade possível. O senhor prefeito junto com os índios, os vereadores, todos eles se confraternizando com os índios... Seria uma coisa formidável se essa coisa se repetisse em toda a nossa faixa litorânea.
Jorge Escosteguy: Orlando, nós vamos precisar fazer um rápido intervalo e nós voltamos a esse assunto. O Roda Viva volta daqui a pouco, entrevistando hoje o sertanista Orlando Villas Bôas, até já.
Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva que hoje está entrevistando o sertanista Orlando Villas Bôas. Você que está em casa e quiser fazer perguntas por telefone, pode chamar 252-6525. Orlando, eu tenho aqui perguntas de vários telespectadores, mais ou menos sobre o mesmo tema, com pontos de vista diferentes. Eu vou ler para que você faça o seu comentário; é sobre a questão das terras indígenas. Solange Guimarães, do curso de jornalismo, que está aqui no estúdio: "A quem interessa a criação de um estado Yanomami no Brasil, ou melhor, na riquíssima Amazônia?". Fernando Cruz, de Mogi Mirim, São Paulo: "Se demarcassem as terras indígenas, os índios poderiam viver em paz?". Itamar Ferreira dos Santos, de Carapicuíba, São Paulo: "Qual o interesse de grupos estrangeiros na demarcação da reserva dos Yanomami?". Caíque Martins, Indaiatuba: "Com sua experiência grande, você acha que, honestamente, os índios precisam de tanta terra para viver?". Antônio Carlos Estelmilho, aqui de São Paulo: "O senhor não acha que a demarcação das terras indígenas não cria um novo país dentro do Brasil, em alguns anos?". E Israel Fisherman, de São Paulo: "Tem idéia do que os tão poucos índios vão fazer com tantas terras? Existe algum outro interesse por trás disso?".
Orlando Villas Bôas: Bom, vou fazer uma apreciação que responde a grande parte... Os índios não têm grandes terras, não. Os índios têm as terras de sua perambulação e aquelas de que eles necessitam para a sua sobrevivência. O índio semi-nômade, o índio nômade, o índio não-agricultor, que vive da caça e pesca, ele tem uma área maior de perambulação do que aquele que é um índio aldeado. Não há um absurdo de área, não existe nenhum índio com áreas tão enormes assim que possam afrontar ou impedir o nosso desenvolvimento, absolutamente. A demarcação da terra do índio é a coisa mais importante que nós temos. Quando o Estatuto do Índio foi criado, em 1972, o ministro Temístocles Cavalcanti, quando ele redigiu, ele nos chamou, ele chamou o Noel e a mim. Nós dissemos a ele: "Ministro, as demarcações de terras do índio, que o senhor pôs aí em cinco anos, deve ser vinte anos, porque em cinco não se fará nada". E ele disse: "Não, vamos deixar assim mesmo para pressionar o governo". E não adiantou nada, porque não saiu disso. Nós não demarcamos ainda nem um terço das áreas indígenas. E isso foi em 1972, e nós já estamos em 1993. Não existe nenhum índio ocupando grandes áreas de terras, absolutamente.
Jorge Escosteguy: Orlando, o Marco Garcia, aqui de São Paulo, pergunta como você explica ou a quem você atribui o suicídio dos índios naquela região de Dourados [MS].
Orlando Villas Bôas: É o seguinte, é o pouco caso que nós fazemos da cultura indígena, pensando que ela é uma cultura absorvente que se derrete em contato com outra cultura qualquer. Quando o índio perde suas motivações de vida, ele resolve não viver mais. Os índios Terena e os índios Caiuá, do sul de Mato Grosso, de uma das terras mais ricas do país, são envolvidos não só pela cidade, mas por uma população flutuante, rural, que procura emprego e não acha emprego, e sai em torno da cidade, e que acha a aldeia do índio um lugar melhor de divertimento. Então a prostituição é levada às aldeias Caiuá. E as meninas de 14, 15 anos, em vez de se prostituírem, preferem se suicidar, porque perdendo as motivações de vida, o índio não quer viver mais.
Fernando Gabeira: Uma pergunta que eu acho que vale a pena fazer para muita gente que não conhece, eu mesmo sou muito interessado em ouvir a história da expedição Roncador-Xingu. Como é que foi, o que significou, e como é que foi, você que é... É uma experiência histórica singular, que todos nós deveríamos conhecer muito bem. Como é que foi isso?
Orlando Villas Bôas: Foi o seguinte. Desde a Primeira Guerra Mundial vinha vindo um movimento no Brasil de interiorização, não da sociedade brasileira, mas da retirada da capital da faixa litorânea, tanto assim que, em 1920, companhias imobiliárias vendiam pelo país, principalmente São Paulo, as terras onde seria a nova capital, em 1920. Eu tenho em casa um punhado deste tamanho [gesticula com as mãos] de parentes meus de Botucatu que compraram terras que, por uma coincidência enorme, quando veio [a cidade de] Brasília, essas terras foram exatamente onde estão... Esses parentes meus que compraram essas terras... os lotes comprados por eles, o exército está todo lá em cima [dos lotes]. Eles perderam o direito de tudo. Então, queria se tirar daqui [do Sudeste] a capital federal. Aí terminou a Primeira Grande Guerra, a coisa seguiu, ninguém mais falou disso, o mundo entrou em paz, e veio a Segunda Grande Guerra. Nós tivemos um premiê francês que fez um pronunciamento, que depois jurou por Deus que nunca tinha dito aquilo: "Já que a tônica da guerra é um espaço vital, por que não ocupar os [espaços] brancos do Brasil central com as populações descendentes da Europa?". Ele veio a São Paulo, ele veio ao Brasil, e ele desdisse, disse que jamais ele falaria uma coisa dessas. Mas o fato é que o [Lucas Nogueira] Garcez, aqui, o governador [de São Paulo entre 1951-1955] não quis recebê-lo, por causa do pronunciamento dele. Então, a marcha para o oeste [refere-se à expedição Roncador-Xingu] voltou... Quer dizer, não recrudesceu por causa das declarações do [político francês] Paul Raynaud [1878-1966]. Mas voltou, com [o poeta e jornalista] Cassiano Ricardo [1895-1974], falando da marcha para o oeste [Cassiano Ricardo escreveu o livro Marcha para oeste (1940)], e o Getúlio resolveu então criar dois organismos: expedição Roncador-Xingu e Fundação Brasil Central. A primeira seria um órgão de vanguarda, que escolheria os pontos ideais para os futuros grupos de povoamento, e a Fundação Brasil Central vinha implantando esses núcleos de povoamento. Então a coisa aconteceu, mas o Getúlio recomendou que tal coisa se fizesse sem pesar no erário: "Vão a São Paulo, porque aquele povo é fácil para dar as coisas". Aqui [em São Paulo] foi criado o acervo da expedição. Sinhá Junqueira deu oitenta mil litros de álcool motor; [a indústria de calçados] São Paulo Alpargatas deu dois mil metros de lona; a [indústria de bebidas] Antarctica deu vinte mil litros daquele refrigerante que ela tinha, que era o conhaque e o rum, o sujeito tomava e caía trancado [risos].
Jorge Escosteguy: Nem uma cervejinha a Antarctica deu?
Orlando Villas Bôas: Não, não, só o rum. E a [indústria de alimentos] Swift Armour doaram 30 mil galões de corned beef [tipo de carne processada, salgada e, às vezes, enlatada], e a nossa expedição passou a ser chamada de "expedição dos corned beef". De tal arte aquilo foi se tornando uma coisa horrorosa, e quando nós sobrevoávamos as aldeias xavantes e não tínhamos mais o que jogar, nós jogávamos aquelas latas de corned beef . E os Xavante vinham e estraçalhavam aquilo a porrete. Quando a primeira lata se abria e saía aquela coisa vermelha, eles saíam correndo desesperados [risos]. Pois bem, nessa mesma altura, as senhoras paulistas teceram uma bandeira com filigranas de ouro que foi doada ao chefe da expedição na hora da saída. E a expedição partiu. Naquela época, a boca do sertão era Uberlândia. Dali em diante, era uma estrada de terra que ia serpenteando e ia até as margens do [rio] Araguaia. No início, o Brasil tinha 45 milhões de habitantes. A faixa litorânea nossa era habitada; o interior do Brasil era desconhecido. No Araguaia tinha um lagote de garimpeiros em Deixado, em Poxoréo [MT]; no rio das Garças [havia] outros garimpos. E a expedição chegou às margens do rio Araguaia e teve que lançar mão dessa gente para a entrada para além do rio Araguaia. O rio Araguaia era um rio deserto.
Fernando Gabeira: A partir daí havia comunicação ou já se havia perdido a comunicação com a capital?
Orlando Villas Bôas: Naquela época, aquela gente não sabia... Quase toda a população do rio Araguaia, a população garimpeira, é toda vida pelo Vale do Rio do Peixe, da Bahia para cá...
Marcos Faerman: Vocês tinham serviço de rádio, de comunicação?
Orlando Villas Bôas: Tinha serviço de rádio, comunicação, e nós então entramos nessa área e fomos recrutar os trabalhadores que participariam da avançada.
Ulisses Capozzoli: Como é que vocês entraram; como os irmãos Villas Bôas entraram nessa expedição?
Orlando Villas Bôas: O que acontece é que, quando nós chegamos a Xavantina [MT], que foi a primeira etapa vencida, rio das Mortes... A expedição era para avançar em direção à serra do Roncador. E estava tudo indo bem etc., até que começaram a surgir colunas de fumaça. Então, constatou-se que ali não era uma área deserta, vivia alguém. A primeira medida a ser tomada foi um acordo do chefe da expedição com o governo de Goiás, onde o seu Ludovico seguia a expedição com 12 homens armados de mosquetão, e a nossa expedição era paramilitar também; tanto era assim que todos nós tínhamos um mosquetão, e esse destacamento militar servia para abrir o caminho. E a coisa estava toda acertada, o major comandante já tinha chegado, estava em Xavantina. Pois bem, então foi a ocasião em que nós fizemos a primeira coisa mal... não mal feita, bem feita: nós recebemos a visita do Costa Rego, aquele velho jornalista do Correio da Manhã . Quando ele ia regressar ao Rio, nós demos uma carta a ele e dissemos: "O senhor entregue isso aqui ao marechal Rondon".
Ulisses Capozzoli: Mas o pessoal que fazia parte da expedição não era todo analfabeto? Como é que você escreveram essa carta?
Orlando Villas Bôas: Eu escrevi...
Ulisses Capozzoli: O chefe militar, se eu não me engano, que tinha dirigido a expedição, ele queria caboclos analfabetos, não é isso? Vocês não se inscreveram como sendo analfabetos?
Orlando Villas Bôas: Nós nos inscrevemos como sendo analfabetos, mas na hora... Não, mas nesta altura já não éramos mais analfabetos [risos]. Nós fomos denunciados como alfabetizados em Aragarças [GO]...
[...]: Denunciados!? [risos]
Orlando Villas Bôas: Acontece o seguinte: o chefe da expedição dizia o seguinte: "Não vou contratar..." – da maneira gaúcha que ele falava – [a partir daqui, imita o sotaque gaúcho] "...não contrato gente da cidade, porque gente da cidade não tem resistência; só vou contratar analfabeto, porque analfabeto tem mais resistência”. Pois bem, então nós entramos como analfabetos com a expedição. Eu fui ser ajudante na construção do primeiro hotel, como auxiliar de pedreiro, e os meus dois irmãos foram trabalhar na enxada, fazendo o primeiro campo de pouso.
Ulisses Capozzoli: Como se fossem analfabetos.
Orlando Villas Bôas: Como se fosse, não, éramos [oficialmente] analfabetos, na ficha e tudo. Um dia atolou um avião, e o piloto chamou os dois trabalhadores mais próximos: era o Cláudio e o Leonardo [irmãos de Orlando], e conversa vai, conversa vem, ele vai e diz ao chefe da base: "Você está com dificuldade com gente alfabetizada, e no campo tem dois sujeitos que são alfabetizados". Quem respondia pelo acampamento era aqui de São Paulo, o engenheiro Francisco Lane, da família dos Lane aqui, aqueles que doaram [um amplo terreno] ao [Instituto Presbiteriano] Mackenzie. Pois bem, aí o Lane, com o Cláudio e o Leonardo, eles confessaram que sabiam ler e escrever e me denunciaram. Então, no dia seguinte, eu, que era auxiliar de pedreiro, que andava com o carrinho carregando o tijolo, passei a ser o secretário da base; o Leonardo, chefe de pessoal; e o Cláudio, chefe do almoxarifado. Aí veio a segunda etapa. A segunda etapa foi quando caminhamos em direção ao rio das Mortes. Cláudio e Leonardo caminharam por terra, e eu fui por água, descendo o rio Araguaia e subindo o rio das Mortes: 28 dias, cem léguas de descida e oitenta léguas de subida.
Arley Pereira: Orlando, com essa sua verve de contador de história, conte a história verdadeira de como o comandante da expedição foi indicado, por que indicaram o coronel [Flaviano de Mattos] Vanique [para chefiar a expedição]? Conte a história verdadeira... [risos]
Orlando Villas Bôas: Não, isso aí é avançar na história que não está na história. Sabe, isso pode ser inventado pelo povo; o povo é um bicho danado, e falam que a memória do povo é que nem rastro na areia: em dia de vento apaga rápido. Diziam que o chefe da expedição, que era um tenente-coronel, havia entrado em desentendimento com a dona Darci, e a dona Darci...
Arley Pereira: Vargas.
Orlando Villas Bôas: A dona Darci Vargas [esposa de Getúlio Vargas]. E o Getúlio ficou naquela "bananosa" [situação complicada], entre o chefe da guarda e a dona Darci.
Marcos Faerman: Ele era o chefe de segurança do Getúlio, não?
Orlando Villas Bôas: Ele era chefe de segurança do Getúlio. E, nessa época, ele também aceitou, porque já tinha vindo o Gregório [Fortunato, que assumiu a chefia da guarda pessoal de Getúlio Vargas]; porque aí foi oferecido a ele uma série de coisas: [cargo de] embaixador na França, na Itália, e ele recusava tudo. Aí o Getúlio mandou buscar o Gregório, e gostou. E o Gregório então hostilizava o comandante. Então ele resolveu aceitar, e o [ministro] João Alberto [Lins de Barros (1897-1955), tenente pernambucano que foi nomeado pelo presidente Getúlio Vargas como interventor do Brasil em 1930], criou uma caçada de pato no Brasil central e caminhou para o oeste... Isso é o que falam, mas a verdade não deve ser essa, não. A verdade é que foi oferecido a ele o cargo de chefe da expedição e ele aceitou, e foi até Xavantina. E em Xavantina a expedição... quando o Rondon recebeu aquela carta, chamou o ministro João Alberto e disse: "Isso aqui não pode acontecer, esse destacamento militar na frente da vanguarda não pode acontecer". Então, em Xavantina, o João Alberto reuniu todo mundo, fez um discurso e disse: "A vanguarda militar está suspensa. Agora, para chefiar a vanguarda da expedição...". Eu não sei se o ministro fez aquilo para castigar um pouco, pela carta que fizemos, ou se fez porque... [retoma a fala do ministro] "A vanguarda da expedição vai ser efetuada pelos irmãos Villas Bôas".
Marcos Faerman: Orlando, eu acho importante esse momento, essa intuição que vocês tiveram naquele momento, porque ali a aventura ia virar uma tragédia. Porque os índios começam a aparecer, e aquele destacamento de homens rudes, armados, ia provocar um massacre. E, então, eu acho que esse é um momento histórico da ação de vocês, porque é o primeiro momento em que vocês agem como pacificadores.
Orlando Villas Bôas: Aí nós tivemos que criar o nosso corpo de auxiliares: os homens que faziam o picadão a machado, facão, os da foice, aquela coisa toda. Dos homens recrutados, tinha o velho Piauí, que tinha 28 mortes; o Félix tinha 22; o Zacarias tinha 16. O mais humilhado lá era o Antenor, que só tinha oito. E nós entramos com essa gente. Eram os homens sem lei do Brasil central. E eu conhecia até um passado deles, que era muito engraçado, porque era uma cidadezinha às margens do rio Araguaia, um tesouro, era uma área de garimpo, e o pessoal lá da cidade resolveu se confraternizar com os outros garimpos, e abriram o convite para todos eles. Então nessa cidade se reuniram, mais ou menos, umas duas mil criaturas. Cachaça de manhã e viola de noite. Cachaça de noite e viola de dia, e a coisa foi indo. Primeiro dia, segundo dia, terceiro dia. E tem aquela velha coisa que diz: visita é que nem peixe, depois de três dias não está bom, porque fede mesmo. Passaram os três dias, e os donos da festa já estavam horrorizados com os visitantes, até que um visitante resolveu cantar um verso para as moças da região, e eles cantaram: “As moças de Tesouro não agüentam desaforo; deitadas em cama de vara, colchão de banda de couro; os olhos cheios de remela, mas a boca cheia de ouro". [Logo depois disso] Mataram vinte! [risos] E eu acompanhei um, que vinha no Araguaia, gordalhão, com um bruto de um revólver 38 em cima do peito, o cadáver, o finado, água abaixo. E nós caminhávamos com uma canoa do lado, e um sujeito dizia: "Ô Villas Bôas, vou pegar esse revólver...". E eu falei: "Pega não, debaixo dele tem uma arma ruim". E o caboclo quase chorou, e aquele sujeito foi indo e, quando nós chagamos na barra do rio das Garças, existe assim um turbilhão de água, um rebojo, no encontro dos dois rios, e o rapagão foi para o fundo com o revólver e tudo. Mas era essa gente que estava conosco.
Fernando Gabeira: Orlando, uma pergunta: os aventureiros, as pessoas que vão para uma aventura, mesmo que não seja uma aventura, mas uma coisa tão difícil como essa, eles encontram dificuldades, mas antes de encontrar dificuldades eles fantasiam muitas coisas. O que você tinha na cabeça sobre a Amazônia e sobre o que estava no meio da selva, antes de ver realmente o que estava?
Orlando Villas Bôas: Nós líamos muito, nós conhecíamos todas as conferências do marechal Rondon, nós líamos os livros de Amilcar Botelho de Magalhães [autor de Impressões da Comissão Rondon (1929); Pelos sertões do Brasil (1930); Rondon: uma relíquia da pátria (1942)], mas é claro que o que nos levou para a frente foi muito a coisa da aventura, entrar no desconhecido, essa coisa toda. E foi isso que nos levou a avançar com a expedição.
Marcos Faerman: Orlando, você já tinha o espírito da aventura quando foi para lá, evidentemente...
Orlando Villas Bôas: Tinha. Essencialmente era o seguinte: nós morávamos em São Paulo, mas éramos criaturas de formação do interior, sem dúvida alguma. Quando a vinculação nossa com a cidade grande acabou, com o falecimento dos pais, não havia razão de a gente continuar aqui. O Cláudio, meu irmão, era funcionário da telefônica [Telesp, companhia estatal de telefonia]; pediu férias, saiu e nunca mais voltou. O Leonardo fez a mesma coisa, e eu não conseguia sair da Stander, porque era proibido sair, no tempo da guerra, de uma companhia multinacional. Eles não queriam de forma nenhuma. E aí eu tive que fazer uma loucura lá dentro para eles me porem na rua, e eu saí com dinheiro suficiente para comprar um revólver e um facão.
Jorge Escosteguy: Que loucura você fez?
Orlando Villas Bôas: Eu fiz um desaforo lá para o presidente da entidade e ele me tocou na rua.
Rosângela Petta: Orlando, em que momento da expedição que vocês começaram a perceber, começaram a se ligar mais na causa indígena, a fazer contato? Quando é que vocês começaram a perceber que o barato de vocês era mais...
Orlando Villas Bôas: Quando nós atravessamos a região Xavante, os Xavante fizeram 18 ataques. Nós tivemos a sorte de não ter sido magoado ninguém, e nós levamos 11 meses atravessando a região Xavante. Aí, logo adiante, nos encontramos na região do Alto Xingu. Aí começamos a encontrar outros índios. Aí a questão do índio foi conquistando a gente; pacifica um, outro, e outros, e nós começamos então a trabalhar e nos empolgamos pela causa indígena. E nasceu mais tarde a idéia da criação do Parque Nacional do Xingu.
Jorge Escosteguy: Você lembra quando você viu o primeiro índio na sua frente?
Orlando Villas Bôas: Um Xavante.
Jorge Escosteguy: E como é que foi?
Orlando Villas Bôas: Quando nós entramos na região do Roncador, os Xavante nos atacaram diversas vezes. E aí teve passagens engraçadíssimas; um sertanejo que ficou abobalhado com aquele ataque Xavante, jogando pedra, jogando pau, e nós gritávamos: "Ninguém atire, ninguém atire". E ele disparou um tiro, e os índios então fugiram. Nós nos zangamos com a coisa porque nós não queríamos que fosse dessa forma a retirada dos índios. Chamamos a atenção do trabalhador, tiramos a arma dele e, no dia seguinte, ele recebeu o maior castigo que ele poderia receber na vida na hora do café. Aquele silêncio, e um maranhense dá um passo à frente e chega perto do atirador baiano e diz: "Baiano, pegaram uma arma temerosa, no meio da sociedade, e dar um tiro é muito suscetível" [risos]. Já que estamos contando coisas de caboclo... [...] Chegou uma época, em uma ocasião, e ele teve uma disenteria incrível, e ele gritava então: "Me ajuda, companheiro, que eu estou com soltura". Então viu dois trabalhadores, sempre o Elias, que era o mais solícito, e um pegava no ombro e o outro nas pernas, e tiravam ele na horizontal para ele se aliviar. E ele fazia um esforço, quase sempre sem nada, mas, de repente, saía alguma coisa, e o Elias falava: "Tanta labuta por uma bestagenzinha!" [risos].
Maureen Bisilliat: Orlando, todas essas memórias, você está escrevendo, não? Você uma vez falou que a coisa mais importante era você poder transmitir para os jovens. Esses livros de vocês são como? Explique um pouco.
Orlando Villas Bôas: Ah, jovem não quer mais livro, hoje [faz um gesto para representar um jovem correndo]. Nós fizemos um livro porque nós queríamos atingir... porque nós éramos muito solicitados para dar informações sobre o índio, principalmente para essa faixa do adolescente de 12 até 14, 15 anos. Então fizemos um livrinho com o dia-a-dia em uma aldeia, para aqueles que se interessassem pelo assunto indígena; eles poderiam encontrar algum subsídio ali dentro. E depois foi indo, por falta de o que mais fazer nós começamos a escrever uns livrinhos com umas notícias, e assim é que nós estamos na presença de um cidadão que me aconselhou a fazer o penúltimo – eu não vou dizer que é o último, porque livro é que nem cachaça: nunca se toma a última. Ele que sugeriu o último livro com nome de Almanaque .
Arley Pereira: Orlando, é verdade que você já teve um rei como auxiliar de cozinha?
Orlando Villas Bôas: Sim. O rei Leopoldo III da Bélgica chegou com dor de dentes, e a Marina, a minha cara-metade, curava toda tarde o dente do rei. E o rei foi ficando. Ele veio para passar dois dias e ficou 58 dias. Ele estava lá no dia em que ele recebeu uma comunicação do [Dwight David] Eisenhower [presidente dos Estados Unidos entre 1953-1961], pedindo que ele passasse pela América, no retorno à Europa. Foi quando o rei fez um ato altamente indelicado, ele fez assim [gesticula, querendo dizer que o rei desdenhou o pedido de Eisenhower]. E não foi. Mas o rei foi se cansando, cansando, e disse: "Ô Villas Bôas, eu quero ajudar na cozinha". E eu falei que não era preciso, e daí ficou naquele vai, não vai, vai, não vai, mas tanto insistiu, que eu levei ele na cozinha. O nosso cozinheiro era um indiozinho, Patacum, de 1,55 m, com um penacho enorme na cabeça, nu, mexendo o feijão, uma panela enorme [risos]. E eu indiquei ao Patacum que o rei seria o auxiliar dele, e ele mandou o rei se sentar. O rei se sentou e ele pegou uma abóbora, um facão e deu para o rei. E o rei, com aquele facão e aquela abóbora, ficou atrapalhado e começou a querer descascar a abóbora como quem descasca uma laranja. E batia o facão assim e não dava certo. E o Patacum veio, repreendeu o rei, arrancou a abóbora, cortou em quatro pedaços assim, tirou a casca... E o rei olhou e disse assim: [imitando o sotaque do rei] "Pa-tá-cum bra-vo" [risos].
Marcos Faerman: Eu sugeriria que você escrevesse realmente um almanaque com todas as suas histórias, porque eu acho que todo mundo vai se divertir com esse almanaque. Aquela história do eclipse de 48 entra nesse almanaque?
Orlando Villas Bôas: Ah, entra.
Marcos Faerman: Então conta essa história do eclipse de 1948...
Orlando Villas Bôas: Nós tínhamos notícia... aliás, os jornais anunciaram com bastante antecedência de que, no Brasil central, o eclipse ia ser uma beleza, em Bocaiúva, Minas Gerais, e Pernambuco. Então nós tivemos a visitação de cientistas do mundo inteirinho. Bocaiúva... fizeram uma cidade aqui em Minas Gerais, por causa do eclipse. E, no Xingu, nós convocamos os índios. E os índios chegaram cedo; tinha lá mais ou menos uns quatrocentos índios abivacados por ali, conversando. E quando o sol começou a apagar começou a ter um certo mal-estar, os sertanejos [estavam com] mais mal-estar do que os índios, só que não denunciavam. E os índios começaram a preparar flecha com algodão e cera, punham fogo para acender o Sol. As mulheres começavam a provocar vômito e bater nas crianças, passavam cinza nas crianças e batiam, para poder o Sol voltar. E foi uma cena extraordinária, porque nós fizemos através do [noticiário de rádio] Repórter Esso uma comunicação internacional. Nós falávamos com Aragarças [GO]; Aragarças [falava] com o Rio de Janeiro; e no Rio de Janeiro o Repórter Esso transmitia para o resto do mundo. E dizem que a reação observada com relação ao eclipse, no mundo, a mais interessante foi a do Xingu. Mas foi uma gritaria, aquela choradeira, mulher rolando pelo chão, provocando vômito e criança apanhando. E os homens jogando flecha ao Sol para acender o Sol.
Ulisses Capozzoli: Orlando, queria fazer uma pergunta. Eu sempre achei um pouco estranho isso e não contenho a minha curiosidade. Eu li algumas vezes, uma vez eu acho que foi o Edenilton Lampião que falou disso, de óvnis que vocês tinham visto, que vocês tinham relatado. Como é que é isso?
Orlando Villas Bôas: Eu, não. Foi o Cláudio [quem viu].
Jorge Escosteguy: Essa pergunta é feita por mais três telespectadores: Francisco Xavier, de São Paulo, João Ronaldo, São Paulo, e Marcelo Mateus. Os três perguntam se você... alguma vez eles leram em algum lugar, ou ouviram comentários, de que vocês teriam tido experiências extraterrestres.
Orlando Villas Bôas: Não [foi bem assim]. Correu a notícia de que um Villas Bôas teve uma experiência extraterrestre, mas era aqui em Campanha, em Minas Gerais. Nós, não. O objeto, este objeto voador, isso não é estranho aos índios, não. Os índios dão notícia disso, mas como se fosse uma coisa nossa, do civilizado. Agora, meu irmão Cláudio, ele costumava sair muito cedo, para matar macuco [uma ave] na mata e tinha que atravessar o campo de aviação. E numa das manhãs em que ele caminhava, ainda no lusco-fusco, ele viu uma coisa estranha na cabeceira do campo. Ele caminhou naquele sentido. Quando estava a cem metros ele viu que o capim estava todo dobrado com o vento, e ele caminhou. E aí ele percebeu que era uma coisa estranha. Ele tirou as armas e pôs no chão, e caminhou mais um pouco. E quando ele estava a uns oitenta metros de distância a coisa levantou e foi embora. Eu não vi. Eu não tenho razão nenhuma para não acreditar no que ele me informou, porque ele tem horror de falar nisso, não gosta. Ele acabou fazendo uma reportagem para aquela revista Planeta, e aquilo deu tanto pano para a manga, tanto telefonema e tanta pergunta que ele hoje tem verdadeiro horror disso.
Jorge Escosteguy: Orlando, o Rodrigo Nascimento, de Belo Horizonte, telefonou dizendo que, há dez anos, ele ouviu de você uma história sobre uma criança desaparecida na selva do Xingu. Ele diz: “Achei a história mágica e gostaria que você contasse novamente”.
Orlando Villas Bôas: [É uma história sobre] Duas crianças que desapareceram no Xingu, uma com sete anos e outra com nove. Elas estavam com o pai, que estava com uma peneira, pegando peixinho e pondo em um caldeirãozinho de uma das meninas, que era a mais velha. E o pai entrava na lagoa, mas não deixava as filhas entrarem, porque ali tinha muita arraia. Aí uma hora ele voltou e não viu mais as crianças. Gritou, e as crianças não responderam. E ele ficou aflito, correu para a aldeia, voltou com quarenta índios e começaram a procurar as crianças. Primeiro dia, segundo, terceiro dia, e tinha mais ou menos uns duzentos índios procurando as duas crianças. O nosso posto era do outro lado do rio; nós tínhamos um [avião] teco-teco. Então nós tínhamos, de chão a chão, de três a quatro minutos só. Vieram nos avisar, e nós mandamos para lá o nosso piloto. Constatamos, verificamos que as crianças tinham desaparecido. E os pajés começaram a chegar, reuniram 12 pajés num rancho enorme, fumando, entrando em transe, rolando pelo chão. Uns diziam que as crianças estavam mortas, outros diziam que elas tinham fugido, e aquela coisa toda. Foi quando eu aconselhei ao pai da criança que chamasse um índio chamado Tacumã, que era o grande pajé do Xingu. E o Tacumã foi com quatro assistentes. Agora, o dono das crianças ficou apavorado, porque o Tacumã era um índio caro. E eu me prontifiquei a ajudar a pagar o Tacumã com espécies e coisas. E o Tacumã entrou na dança dos pajés. No primeiro dia em que ele entrou em transe, ele gritou que as crianças iam aparecer na roça no período da tarde, mas nada disso aconteceu. Foram mais de quinhentos índios para a roça, e voltaram numa frustração incrível, porque as crianças não tinham aparecido. Houve um certo riso por parte dos primeiros pajés, que não queriam aceitar o Tacumã, e aceitaram por causa da minha insistência. E [por causa de] um certo ar de riso, o Tacumã ficou aborrecido e quis ir embora. A mim já não estava interessando mais as crianças. Porque eu já tinha composto uma expedição com oito índios, Juruna, Caiabi e Txucarramãe, e pus [os índios] no rastro das crianças, e eles andaram [muito]. Depois nós constatamos, de teco-teco, [que eles haviam percorrido] mais de cem km . E disseram: “Lá não tem sinal de criança nenhuma, nem de rastro de gente”. Então eu perdi a crença de que as crianças estavam realmente perdidas. Mas eu insistia com o Tacumã, porque eu estava interessado que não houvesse nenhuma rixa entre as aldeias.
Fernando Gabeira: Qual a nação do Tacumã?
Orlando Villas Bôas: O Tacumã era Camaiurá, e o índio [pai das crianças desaparecidas] era Kalapalo. Estavam junto com os Matipu, com os Nafuquá, com Aipatse e com o Kuikuro, que eram parentes. Aí eu convenci o Tacumã de ficar mais um dia, e ele ficou. E, nesse dia, ele começou a fumar de madrugada, e quando chegou dez horas da manhã...
Fernando Gabeira: O que ele fumava?
Orlando Villas Bôas: Ele fumava um cigarro de palha...
Fernando Gabeira: É aquele cigarro que eles fumaram para o [George] Bush [presidente dos Estados Unidos entre 1989-1993], naquela pajelança?
Orlando Villas Bôas: Isso, o daquela pajelança. É uma folha de caité com fumo nativo. E eles entraram em transe, caíram, rolaram, e aí o Tacumã começou a gritar que fechassem a aldeia, que não deixassem ninguém fora. Todas as casas [deveriam ser] fechadas. Só aquela em que estavam os pajés é que ficaria aberta. Era uma casa enorme. E começou a gritar e chorar, gritar, gritar, e disse que as crianças, ao meio-dia, iam entrar na casa. E quando foi meio-dia, as duas crianças entraram na casa... [Sorrindo, fala com assombro] E daí? Eu não tenho explicação. O nosso piloto, que estava com o teco-teco em uma linha reta até a aldeia – era um velho muito sistemático... E ele estava lá, lendo, e quando ele viu aquela balbúrdia, aquela gritaria na aldeia, as portas se abriam e os índios saíram todos correndo pelo pátio, ele correu para lá, pegou as duas crianças e trouxe para casa.
Fernando Gabeira: Por que você levou o Tacumã? Você confiava no poder de visão dele?
Orlando Villas Bôas: Porque o Tacumã já tinha feito algumas coisas paranormais.
Fernando Gabeira: Você confiava?
Orlando Villas Bôas: Eu confiava no Tacumã.
Ulisses Capozzoli: Qual é a diferença entre um curandeiro e um pajé, Orlando?
Orlando Villas Bôas: O curandeiro é um pajé. A diferença que existe é entre o pajé e o feiticeiro. O pajé é um elo de ligação do sobrenatural com a comunidade. E o feiticeiro não; há uma força intrínseca nele. E ele se beneficia desta condição de feiticeiro para manter a aldeia toda em alarme.
Ulisses Capozzoli: E como são substituídos, é uma revelação?
Orlando Villas Bôas: Tanto os pajés quanto [...], não tem importância nenhuma. A questão é que é preciso ter manifestação, e o aprendizado... mas ele [o possível futuro pajé] precisa ter visões, sonhos, que ele conta aos outros pajés e os pajés então o convencem de que ele devia ser um pajé também. Mas, na realidade, uma aldeia tem dez, 15 pajés, mas [o que é difícil de explicar é por que] sempre são dois grandes pajés.
Marcos Faerman: Como é que pajés e médicos se relacionam, porque eu sei que tem toda uma transa entre eles...
Orlando Villas Bôas: Quem poderia responder a isso, um dia neste programa, são os médicos da Escola Paulista de Medicina. Eram os médicos da Escola Paulista de Medicina.
Marcos Faerman: Eles têm histórias fantásticas [sobre os índios], não é?
Orlando Villas Bôas: Um doutor chamado Roberto Baruzzi... quando os médicos paulistas começaram a chegar naquela área, aí eu tenho que fazer um parêntese: é o único hospital e escola que atende índio indiscriminadamente de todo Brasil. Chegamos, no Hospital São Paulo, a ter 1800 dias-leito [por ano] dedicados a índio; formaram agora um ambulatório exclusivamente para o atendimento de índio, que não são só os índios do Brasil central, porque o primeiro convênio, assinado há 28 anos atrás, quem assinou fui eu com o doutor [Walter] Leser. Depois esse convênio passou ao substituto do doutor Leser, o doutor Baruzzi, e ele vem permanecendo até hoje. Há 28 anos ele existe.
Marcos Faerman: Agora, há todo um respeito recíproco, não é?, entre os pajés e os médicos.
Orlando Villas Bôas: É claro, os médicos não queriam porfiar com os pajés. A cura, eles transferiam aos pajés. Sempre que isso acontecia, eram os pajés que tinham curado. E os médicos jamais puxaram a si a glória da cura.
Jorge Escosteguy: Orlando, desculpe-me interrompê-lo, mas o nosso tempo está esgotado. A conversa está muito boa e eu vou lhe fazer uma última pergunta; são duas, na verdade. Uma é do Cacá Verá, um dos índios guaranis que está aqui no estúdio. Ele diz: "Meu nome é Cacá Verá. Em 1953, meus parentes o arrastaram, quebrando-lhe a perna, em sua aventura de abrir caminhos para a chamada civilização. Quero lhe dizer que o mal que meu povo lhe causou, para se preservar, não é sequer 1% do mal causado pela mentalidade que se seguiu ao seu desbravamento. Pois esta tem sido o extermínio de animais, águas e florestas, e que persiste até hoje, matando [em 1983] o líder guarani Marçal Tupã-Y, por defender o seu povo, expulsando o povo Xavante que vem se tratar em São Paulo, na Casa do Índio; e agora [esta mentalidade está a] ponto de destruir o próprio planeta. Gostaria que o senhor, na categoria de ancião de seu povo, portanto portador da sabedoria, fizesse neste dia sagrado uma reflexão desses atos, conseqüência desta mentalidade”. A segunda [pergunta], em síntese: o Antônio Carlos Batista, de São Paulo, pergunta se hoje o senhor não se arrepende de ter trazido os índios até o homem branco.
Orlando Villas Bôas: Absolutamente não. Eu nunca falei que os índios quebraram a minha perna. Nós fomos realmente comboiados por eles, agarrados e caminhamos na direção da aldeia. Eu caí de uma pedra. Eu tinha um braço seguro por um índio e o outro [braço], por outro [índio], e caímos nós três de uma pedra enorme, e nós tínhamos que atravessar a nossa trilha indiana. O que aconteceu é que eu bati o joelho e fraturei o joelho, mas não foram os índios que fraturaram o meu joelho, absolutamente não. Realmente nós fomos pegos por eles, fomos levados até dentro da mata, um quilômetro mais ou menos, e ali as mulheres tinham fugido, e eles nos cercaram, fizeram um fogo e pediram que nós chamássemos as mulheres. E nós chamávamos as mulheres na língua deles. Eu gritava: [diz frase em língua indígena] "Mulheres, venham cá, civilizado é bom". [Diz nova frase em língua indígena] "Venham, que nós temos presentes para dar". Acontece que, no meio dos quatrocentos [índios], havia um gaiato que gritava: [Diz um outra frase em língua indígena] "Mata, mata, que branco não presta". E isso aí contagiava todos. E ele gritava: “Mata”, e todos os quatrocentos índios gritavam: “Mata”. Os prisioneiros eram o Cláudio, eu, um índio Juruna e um outro índio Juruna, dois Juruna. E a coisa foi indo, o fogo apagava e eu gritava [usa expressão indígena], e o índio vinha e acendia o fogo, clareava, não queria que ficasse escuro o ambiente, porque era quase meia-noite. E aí aconteceu que quando eu chamei o índio para acender o fogo, ele veio e deu um pontapé e acabou a roda, e as bordunas [armas indígenas] assim [gesticula, sugerindo que os índios estavam prestes a atacar], e os Juruna mandaram que nós nos abaixássemos e nós nos abaixamos. E borduna, aquela coisa toda, até que um índio gritou: [usa expressão indígena] "Uma velha, uma velha". Entre os índios Jê, a velha tem uma força extraordinária. Ela é ouvida. Jamais um índio replica o que diz uma índia mulher, e muito menos uma índia idosa. Quando ela apareceu, eu fui lá e agarrei a índia. O índio de cultura pura Jê, ele acha que a saliva é medicamentosa, então ela cuspia e passava no meu rosto. O único mal da coisa foi esse: ela cansou de cuspir na minha cara e passava a mão. E o fato é que ela gritou, gritou, e as mulheres apareceram, as mulheres que estavam fora do acampamento. Eram 228 mulheres, sendo que tinha 60 mulheres com criança no colo. Mas tudo correu muito bem, não aconteceu nada.
Jorge Escosteguy: Quer dizer, sobre o seu trabalho, encerrando enfim o que pergunta o Antônio Carlos Batista e o Cacá, que pedia também que o senhor fizesse uma reflexão sobre esse comportamento contra os índios e a destruição do meio ambiente etc.
Orlando Villas Bôas: Isso é uma coisa altamente negativa. Vocês podem imaginar que essas frentes pioneiras, despreparadas da maneira que são, continuam avançando à revelia da própria Funai. E por que à revelia da Funai? Porque a Funai, apesar de todos os esforços que faz, ela não tem absolutamente recurso nenhum, recurso nenhum para ela atender a essa coisa toda. Haja vista o que aconteceu aqui em São Paulo, que os índios doentes, no dia 28 agora, iam ser despejados da Casa do Índio aqui, que serve de triagem para a Escola Paulista de Medicina. E como os aluguéis estavam atrasados, os índios iam ser despejados agora. Mas nós tivemos um apoio muito grande por parte do diretor – sei lá que função ele tem no meio ambiente [referência ao Conselho Municipal do Meio Ambiente] –, o [médico e político Antônio] Salim Curiati [que entre 1993-1994 foi Secretário Municipal da Família e Bem-Estar Social, na cidade de São Paulo]. O Salim Curiati está se revelando uma beleza; ainda ontem eu recebi um recado dele: "Venha aqui que a prefeitura vai dar uma casa para os índios". Mas nós estamos contentes com isso.
Jorge Escosteguy: Nós agradecemos, então, a presença, esta noite, aqui no Roda Viva, do sertanista Orlando Villas Bôas. Agradecemos também os companheiros jornalistas que nos ajudaram na entrevista e ao telespectador, lembrando que as perguntas que não puderam ser feitas ao vivo serão entregues ao Orlando após o programa. O Roda Viva fica por aqui e volta na próxima segunda-feira em novo horário: às 10h30 da noite. Até lá, uma boa noite e uma boa semana a todos.
Orlando Villas Bôas esteve no centro do Roda Viva também em 1987 e em 1999. Essas entrevistas também estão disponíveis no site Memória Roda Viva. O sertanista faleceu de falência múltilpa dos órgãos em dezembro de 2002, em São Paulo.