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Memória Roda Viva

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Cacá Diegues

28/9/1987

Apaixonado pelo seu trabalho, o cineasta comenta as dificuldades de se fazer cinema no Brasil e diz que a "diminuição do planeta", como chamou a "globalização", dificultou a identificação da nacionalidade dos filmes

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[Programa ao vivo, permitindo perguntas dos telespectadores]

Augusto Nunes: Boa noite. Estamos começando mais um Roda Viva. Programa apresentado pela TV Cultura de São Paulo. Este programa é transmitido simultaneamente pela rádio Cultura AM e retransmitido pelas TVs educativas dos seguintes estados: Minas Gerais, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Bahia e Piauí. Lembramos que, como este programa é apresentado ao vivo, nós poderemos receber perguntas dos nossos telespectadores, encaminhadas às nossas três telefonistas: Geane, Lúcia e Maria. Nosso convidado de hoje é uma das cabeças mais brilhantes do cinema brasileiro e um dos seus diretores mais importantes: é Cacá Diegues. Certamente, muitos de vocês assistiram a filmes como Xica da Silva [lançado em 1976, com Zezé Motta e Walmor Chagas nos papéis principais, o filme narra a vida da escrava Chica da Silva, personagem da história brasileira] ou Bye Bye Brasil [longa-metragem lançado em 1979, que conta a história de três artistas mambembes - Salomé, Lorde Cigano e Andorinha - que atravessam o país integrando a caravana Rolidei] e terão assistido agora a última realização de Cacá Diegues, a mais recente, em cartaz no cinema de São Paulo, que é Um trem para as estrelas. Para falar da sua obra, dos seus filmes passados, desse filme que está sendo apresentado agora, e também para discutir aqui conosco as suas muitas idéias, Cacá Diegues estará sentado nos próximos minutos ou nas próximas horas, ao centro de uma Roda Viva formada pelos seguintes entrevistadores: Marco Antônio de Lacerda, editor da revista Vogue; Dirceu Soares, jornalista da revista Afinal; Ninho Moraes, editor do programa Olhar Feminino e cineasta; o cineasta Sérgio Toledo, autor do longa metragem Vera; Luiz Fernando Emediato, editor do Caderno Dois do jornal O Estado de S. Paulo; José Márcio Penido, jornalista da Editora Globo; Luciano Ramos, crítico de cinema e apresentador do programa Panorama, da TV Cultura. Também foi convidado, mas não está ainda presente aqui entre nós, o jornalista Marcos Augusto Gonçalves, que é editor de opinião do jornal Folha de S. Paulo. Vamos ver se o Marcos chega a tempo. Estão presentes também como convidados da produção alunos da Escola de Comunicações e Artes da USP, a ECA. Cacá, você é autor de pelo menos uma unanimidade nacional em matéria de boa receptividade por parte da crítica, que é o Bye Bye Brasil. Já o seu último filme, Um trem para as estrelas, não foi tão bem recebido por alguns críticos, e o filme até sofreu algumas críticas ásperas. Como é que você reage em casos assim? Você, nesse caso específico do seu filme mais recente, você concorda com alguma restrição que foi feita por um desses críticos que não gostaram do filme?

Cacá Diegues: Olha, devo até fazer um reparo aí. Mesmo Bye Bye Brasil não foi unanimidade de crítica, houve muita gente que não gostou. Olha, eu acho que é o seguinte: eu devo lhe dizer que, de um modo geral, embora haja toda uma onda das relações entre os críticos e os criticados, eu acho que até a imprensa, de um modo geral, na minha carreira, me tratou até com muita generosidade. Eu me sinto muito mais tratado com generosidade do que de uma maneira persecutória. Eu acho que, por algum motivo que eu não sei explicar direito - ou até poderia explicar, mas seria muito longo - os meus filmes não provocam unanimidade, são filmes que produzem uma certa polêmica, e as coisas que eu digo, também às vezes produzem certas... Mas o que eu quero dizer, que eu quero ficar claro de saída, são duas coisas. A primeira é que eu não tenho contas a ajustar com ninguém, eu não tenho nenhum ressentimento, nenhuma... Eu, na verdade, eu devo te dizer que mal me lembro quem era a favor ou quem era contra o Quilombo [filme de 1976, que narra a saga de Ganga Zumba e a criação do Quilombo dos Palmares], por exemplo, que foi o meu filme precedente. Eu devo dizer que, na verdade, eu considero cinema uma atividade pública, portanto, exposta a essas coisas. Eu não considero uma crítica aos meus filmes uma ofensa pessoal, a não ser quando se transforma em uma ofensa pessoal mesmo, aí a gente tem que responder.

Augusto Nunes: Que não é o caso.

Cacá Diegues: Então essa era a segunda coisa que eu queria dizer. Eu não sou um profissional de cinema, eu detesto essa palavra, profissional de cinema. Eu sou um militante de cinema, eu faço cinema 24 horas por dia, eu não sou uma pessoa que estou aí somente para pegar uma câmera e fazer um filme profissionalmente bem feito, enfim, eu odeio essa expressão "profissional de cinema".

Augusto Nunes: Agora Cacá, você não é um profissional de cinema, mas parece que você ganhou pelo menos algum dinheiro com cinema, tanto assim que você vai produzir um filme, é isso? Você ganhou bastante dinheiro com cinema?

Cacá Diegues: Não, ninguém no Brasil ganhou dinheiro com cinema. Eu desafio a quem quer que seja apontar um só realizador brasileiro, da minha ou de qualquer outra geração, que tenha ganho dinheiro com cinema. Se você for comparar a vida dos cineastas brasileiros com as pessoas de igual prestígio em outras atividades, na televisão, no jornalismo, no teatro, na música popular, é até covardia. Esse filme que eu vou produzir agora, eu estou produzindo com recursos da Lei Sarney. É uma experiência alternativa, eu acho que está todo mundo cansado da Embrafilme, está todo mundo cansado, acho... Vamos aproveitar a experiência da Lei Sarney para vermos se vai dar certo. Eu vou produzir...

Augusto Nunes: [Interrompendo] Que filme é esse Cacá?

Cacá Diegues: É um filme que eu vou produzir. Eu não sou diretor do filme, vai ser dirigido por um rapaz, o Rodolfo Brandão, que foi meu assistente no Quilombo e produtor executivo no Um trem para as estrelas. Ele tem 27 anos, é o primeiro filme dele, é um filme chamado Dedé Mamata [filme lançado em 1987, trata da questão da alienação política durante o período da ditadura militar brasileira], baseado no romance de Vinícius Viana, que vem a ser filho do nosso Vianinha. Então, esse filme, eu estou produzindo com recursos da Lei Sarney.

Marco Antônio de Lacerda: Cacá, mas se você não está ganhando dinheiro com cinema, alguém deve estar, porque em um ano como este que nós estamos vivendo de caos econômico, o cinema brasileiro dá sinais - não é? - de muita fertilidade, de uma produção, quase que inédita. Como é que você explica isso?

Cacá Diegues: Marco Antônio, de cara, 50% da bilheteria vai para o exibidor. Os outros 50% que sobram, você paga 20 a 25% para o distribuidor. Do que sobra, portanto, 30 a 25%, você paga praticamente sozinho a principal mídia, que são os anúncios de televisão, as cópias do filme, enfim o que sobra para o produtor é praticamente nada. Eu acho que nós estamos vivendo hoje no Brasil uma crise econômica muito grave no cinema brasileiro, que eu acho que não é uma crise do cinema, é uma crise do país, não é? Se as pessoas estão morrendo de fome, arrocho salarial, perda do poder aquisitivo, desemprego, ninguém vai morrer de fome no cinema. Então as pessoas não estão indo ao cinema. As conseqüências disso... é que, evidentemente, a primeira área do cinema a sofrer as conseqüências disso são os produtores brasileiros, porque é evidente que o filme estrangeiro já chega aqui pago. O que levar é lucro. E o filme brasileiro não, precisa do seu mercado para sobreviver.

Luís Fernando Emediato: Cacá, você está falando de crise, da crise do país, e Um trem para as estrelas é um filme que fala de crise, e é um filme pesado, meio pessimista. Você está muito pessimista, hoje em dia? Como é que você vê essa situação do país, hoje?

Cacá Diegues: Olha só: primeiro eu não acho que o filme seja... Eu concordo que o filme é triste, mas eu não acho que seja um filme pessimista, eu acho que é um filme que fala de uma situação, que eu acho que a gente vê todo dia na rua, e que a gente não pode negar a existência dessa situação, mas eu acho que é um filme que tem, ou pelo menos eu tentei colocar dentro desse filme uma certa... Eu não diria esperança, porque essa palavra está muito gasta pela demagogia dos últimos três, quatro anos nesse país, que usou muito essa palavra. Eu acho que tem, pelo menos, a crença na viabilidade, na possibilidade de um futuro possível. E o filme fala muito, eu acho que o filme tenta defender a possibilidade da força moral da poesia e uma outra visão ética no momento que a gente está vivendo aí, de selvageria moral, de barra pesada mesmo.

Luís Fernando Emediato: Há dez anos atrás, quando você denunciou as patrulhas ideológicas, você dizia - [sorrindo] é inevitável dizer isso hoje - você dizia que a esquerda gostava de sofrimento, não queria ver prazer, alegria. Hoje, dez anos depois, você fazendo um filme triste, como é que você pensa aquilo que você disse há dez anos atrás, e hoje dentro desse quadro meio dramático da sociedade brasileira?

Augusto Nunes: Aliás, Cacá, há uma pergunta encaminhada por um telespectador que toca nesse assunto, levando, inevitavelmente, levantado pelo Emediato, que é a questão das patrulhas ideológicas. O telespectador Antônio Dias, do Belém, pergunta se você ainda se considera patrulhado e se existe algum tipo de patrulha no cinema brasileiro? Você podia juntar as duas perguntas em uma só resposta.

Cacá Diegues: Na verdade, quer dizer, eu queria dizer duas coisas: primeiro, que essa coisa da patrulha ideológica, eu não sou um sociólogo, eu não tive e nem tenho a menor pretensão de ter criado uma categoria científica, política, isso é uma brincadeira feita em uma entrevista...

Luís Fernando Emediato: [Interrompendo] Mas acabou lenda...

Cacá Diegues: Que virou uma onda absurdamente incrível. Quer dizer, eu não tenho capacidade para defender a teoria das patrulhas ideológicas, isso em primeiro lugar. Em segundo lugar, quer dizer, Emediato, eu acho que a coerência, sobretudo em um artista, ou em qualquer pessoa que trabalha com a idéia, no mundo das idéias e da imaginação, a coerência é falta de imaginação. Eu não me sinto absolutamente obrigado com o que eu disse há dez anos atrás, não só porque eu mudo, como também porque o mundo muda. Há dez anos atrás, não se esqueça que estava começando uma abertura política no país, a gente tinha muita esperança, olha a palavra aí! E uma porção de coisas que iriam acontecer, a gente acreditava que iria acontecer. Hoje, nós estamos vivendo um processo exatamente inverso, uma grande decepção, uma enorme frustração. Eu, neste momento, estou querendo me colocar a meio caminho entre o otimismo demagógico dos poderosos, que são os únicos que podem estar satisfeitos, e a euforia negativista que pintou do outro lado. Quer dizer, eu fico muito espantado, eu estou muito triste com o que está acontecendo no país e no mundo de um modo geral. Mas eu fico espantado com essa euforia negativista, essa celebração do fracasso da humanidade, está todo mundo dizendo assim: "Oba, está uma porcaria!". Isso eu não vou fazer nunca, né?

Luciano Ramos: Bom, deixa eu fazer uma "patrulha lógica" aqui. Porque eu estava sacando que tem algumas perguntas aí que o Cacá não respondeu direito. A primeira questão, que na verdade foi essa, se você concorda... Você respondeu outras coisas sobre a crítica, mas o quadro da sua relação com a crítica... A questão é se você concorda com algumas das críticas que foram colocadas em relação ao teu filme? Essa coisa você não respondeu. E a outra coisa é o seguinte: você disse que não conhece ninguém que tenha ganho dinheiro com o cinema. Eu queria saber se é possível [enfatiza] ganhar dinheiro com o cinema aqui. Só isso, são duas coisas.

Cacá Diegues: Em primeiro lugar, eu devo dizer a você, se eu não estou respondendo, eu ainda estou um pouco sufocado por esse décor aqui [mostra-se pouco à vontade com a posição do centro da roda e sorri]...

Luciano Ramos: Sufocado.

[Risos]

Luciano Ramos: Está na chuva é pra se molhar.

Cacá Diegues: Isso aqui é um troço, não é? A gente já... Bom... Mas...

[Risos]

Cacá Diegues: Quando se atira a ele...

Luciano Ramos: Você está entre amigos.

Cacá Diegues: Eu concordo, sim, Luciano, eu concordo. Eu vou lhe dar um exemplo que aconteceu, quer dizer eu acho que a gente está em um momento que precisa ter uma certa calma para discutir as coisas, porque a situação está muito difícil, e eu acho que não vale a pena a gente se auto-dilacerar em torno de bobagens. Então, eu vou dar só um exemplo: em 1976, quando eu terminei o Xica da Silva, eu fui atacadíssimo por várias pessoas, você deve estar lembrado, coisa e tal. Uma dessas pessoas chamava-se Beatriz do Nascimento, uma socióloga, historiadora do Rio, coisa e tal, que me acusou do diabo. Ela, aliás, foi uma das origens da palavra.... Da expressão patrulha ideológica, porque ela foi uma das pessoas que eu pensei quando eu falei sobre isso, porque ela escreveu no jornal, na época, o jornal Opinião, você lembra da Opinião? Ela escreveu lá, que eu nunca mais deveria fazer filmes, que eu devia ser proibido de fazer filme, entendeu? Pois bem, em 1983, portanto sete anos depois, essa moça era minha colaboradora no roteiro do [filme] Quilombo, porque eu a conheci, a gente começou a conversar, eu percebi onde é que estava a crítica dela, a gente se tornou não só amigos, como a gente se entendeu a um ponto que ela foi uma das sete co-roteiristas colaboradoras do Quilombo.

Ninho Moraes: E passou a ser patrulhada?

Cacá Diegues: E passou a ser patrulhada.

[Risos]

Cacá Diegues: Por dois motivos...

Luciano Ramos: A vingança.

Cacá Diegues: Eu tenho vários amigos entre os críticos. Eu sou amigo pessoal de vários críticos, que eu não vou citar, para não comprometê-los. Mas eu sou amigo pessoal de vários críticos que, por vezes, dizem coisas que realmente eles têm razão. Quer dizer, eu tenho uma idéia, se você quer saber, eu tenho uma idéia sobre a minha obra que é o seguinte: em todos os meus dez filmes, os três programas de televisão e as dezenas de curta-metragens que eu fiz, há sempre alguma coisa que eu gostaria de refazer de outra maneira hoje, que eu gostaria de refazer se tivesse essa chance. Há sempre alguma coisa, não me pergunte o quê, que eu não vou citar porque eu estaria comprometendo um colaborador meu, porque se for fotografia, tem um fotógrafo atrás, se for o roteiro, tem o roteirista atrás, se for um ator... Eu não posso fazer isso, seria indelicado e deselegante. Mas em todos os meus trabalhos há sempre alguma coisa que eu gostaria de mudar, e às vezes essa alguma coisa é indicada por um crítico, por uma pessoa que escreve ou me diz alguma coisa sobre os meus filmes. Agora, o que eu reajo e reagirei sempre, é, como eu falei no início do programa, é que, não adianta, eu não me sinto condenado. Olha, eu não tenho o monopólio da última palavra, sobretudo sobre os meus filmes. Longe de mim ter essa pretensão. Eu não tenho o monopólio da última palavra, mas também não estou condenado a ter só a primeira palavra, entendeu? Eu me sinto um militante do cinema e um militante da cultura. O que disserem, eu vou responder, ninguém vai me calar, eu vou responder sempre, que isso faz parte, eu acho que faz parte do meu dever cultural e cinematográfico.

Dirceu Soares: Cacá, esse negócio não seria um pouco de chamar a atenção, também? Para o filme... Na época?

Cacá Diegues: É claro que é!

Dirceu Soares: Essas polêmicas?

Cacá Diegues: É lógico que é! Mas chamar a atenção para uma produção cultural é um dever de quem produz cultura.

Augusto Nunes: Agora Cacá, faltou ainda responder a segunda parte da pergunta do Luís Fernando.

Cacá Diegues: Qual era a segunda parte?

Augusto Nunes: Se é possível ganhar dinheiro com cinema?

Cacá Diegues: Olha: eu estou lhe dando o testemunho dos cineastas, vamos dizer, uma palavra que eu detesto, "sérios", porque dá impressão de todo mundo assim, não é bem isso, há cineastas sérios que fazem comédias excelentes. Mas vamos dizer, os cineastas respeitáveis deste país, as pessoas que fazem filmes dignos. Às vezes ganha dinheiro, às vezes perde dinheiro, e coisa e tal. Mas eu não conheço nenhum que seja rico, que seja rico, realmente, como são ricos alguns homens de televisão, como são ricos muitos homens da música popular, como são ricos alguns... Como todo mundo, que é normal acontecer em uma sociedade capitalista. No cinema, eu não conheço um realizador, da minha ou de qualquer outra geração, que tenha ficado rico com o cinema.

Augusto Nunes: Qual é o seu patrimônio Cacá? Essa fita não vai para o Imposto de Renda, não vai para o Fisco [termo que se refere às atribuições tributárias do Estado, à cobrança de impostos, como o imposto de renda], é curiosidade.

Cacá Diegues: Eu acho que essa aí é uma pergunta extremamente pessoal...

[Risos]

Cacá Diegues: ... que não tem o menor interesse cultural.

Ninho Moraes: Cacá, eu queria saber um negócio. Eu, vendo o seu filme, eu acho que você falou que, de dez filmes que você fez, esse último, o que tem mais semelhança [com ele] é o Chuvas de verão [com Jofre Soares e Míriam Pires, filme de 1977 cuja temática principal diz respeito à questão do amor na terceira idade], não é? Que é o tratando... eu achei isso, tratam de dois temas diferentes, um da velhice e outro da adolescência, que são dois temas muito difíceis. Como você vê essa sua entrada nesse tipo de mundo, de adolescente, essa coisa de carência e a coisa dos idosos também, que era uma coisa muito de carência?

Cacá Diegues: Olha, eu tenho... eu acho que Um trem para as estrelas não é um filme propriamente sobre jovens. É um filme que tem um jovem como personagem principal. Um trem para as estrelas tem muito uma estrutura de estrada, de filme de estrada, de road movie [gênero de cinema no qual o enredo mostra acontecimentos que se passam numa viagem, geralmente em uma auto-estrada]. Eu acho que, dos meus outros filmes, do ponto de vista de estrutura, o que ele se parece mais é Bye Bye Brasil e não Chuvas de verão. E, num filme de estrada, o que acontece à margem da estrada é tão importante, ou às vezes mais importante do que o personagem que está passando pela estrada. Você está entendendo? Então eu acho que Um trem para as estrelas, na verdade, é um testemunho pessoal, muito modesto... não é... o filme não é a realidade, essa coisa, há muitos anos que eu já sei que o cinema não tem esse poder...

Augusto Nunes: O filme não retrata...

Cacá Diegues: Mas é um testemunho modesto de uma pessoa que está tentando ver o seu tempo e que fala algumas coisas, não todas, mas algumas coisas sobre esse chamado "espírito do tempo" [tradução da palavra alemã Zeitgeist, bastante presente na filosofia e que, em termos gerais, diz respeito ao clima intelectual e cultural do mundo em um determinado momento histórico, ou seja, às características universais de uma determinada época]. Então, por exemplo, eu acho que tão importante quanto o jovem saxofonista, o jovem Orfeu do meu filme, são as pessoas que ele encontra ao lado, como a mãe dele, como o jornalista, como o delegado - eu só estou citando os personagens maduros, exatamente para te mostrar como não é propriamente um filme só sobre a juventude. Agora, é claro que o filme tem uma perspectiva, é visto através dos olhos daquele jovem. Eu não sei te explicar direito por que, realmente, mas eu tenho a impressão que eu fiz isso porque numa situação meio sombria, como a gente vive nessa virada de século agora, a única coisa que pode transportar um pouco de futuro é a juventude mesmo, é uma idéia que transporta nela mesmo um pouco de futuro.

Ninho Moraes: Sei, e você acha que conseguiu isso com esse filme?

Cacá Diegues: Eu não sei te dizer isso, ainda estou muito perto do filme, eu gosto muito do filme, eu tive um enorme prazer em fazer o filme, acho que acertei várias coisas que eu pretendia nesse filme... Eu acho que sim [assente com a cabeça]. Eu tenho tido testemunhos de pessoas, embora tenha tido também muita pancada aí.

Marco Antônio de Lacerda: Quais são os momentos de Um trem para as estrelas que você considera acertos cinematográficos? Só para que a gente tenha um pouco da idéia da opinião sua como cineasta.

Cacá Diegues: É tão difícil dizer isso, porque é um filme que eu acabei de fazer, não é Marco Antônio? Então é um filme que eu ainda tenho uma ligação afetiva com ele muito grande. Eu me sinto traindo o filme se eu te disser que eu não gostei de algumas seqüências. Só para te dar um exemplo, só para a gente ficar mais à vontade...

Marco Antônio de Lacerda: O que mais você gosta?

Cacá Diegues: Eu acho que o personagem do [José] Wilker [ator e diretor cearense nascido em 1944], por exemplo, poderia ser melhor. Eu acho que eu podia ter trabalhado um pouco mais naquele personagem do jornalista, e eu sei porque, quer dizer, eu tive que tirar umas coisas da montagem. Então eu fiquei... Então acho que no personagem do jornalista está faltando alguma coisa. Mas eu gosto muito do personagem do Milton Gonçalves [ator brasileiro nascido em 1933, já figurou no elenco de mais de 70 filmes], o delegado. Eu acho o encontro com a mãe, uma coisa do menino com a mãe, com a Beth Faria [atriz com extensa carreira cinematográfica e televisiva, protagonizou no final dos anos 80 a novela Tieta], é uma coisa muito bonita, sobretudo graças à Beth Faria, que foi fundo, que fez um trabalho lindíssimo. A gente se entregou em um momento difícil, um papel difícil coisa e tal. A famosa chuva de feijão, que gera tanta... opinião contrária, os que são a favor... eu acho que também é bem realizada. Eu gosto muito do filme. Eu, para dizer a verdade, eu acho o meu melhor filme, não sei se é porque é o último e a gente lambe mais a última cria, talvez seja, mas eu acho o meu melhor filme.

Augusto Nunes: Cacá, eu queria chamar uma pergunta do Adhemar Guerra que vai entrar por aqueles monitores.

[inserção de vídeo]

Adhemar Guerra: Cacá, a descaracterização da cultura nacional atualmente, cada vez mais, a colonização é evidente e mais do que vitoriosa, o que é pior. Principalmente nas comunicações, principalmente nas artes, me refiro a teatro. Eu sou de teatro, você sabe. Você é de cinema. Mas me refiro a todas as formas de expressão. Estamos cada vez mais enveredando por um caminho colonizado como gosto, como tema, como proposta. Isso é impressão, isso é uma frase feita ou isso está acontecendo?

Cacá Diegues: Adhemar, eu tenho o maior respeito por você e pelo seu trabalho e tudo. Mas eu diria isso que você disse, com uma certa nuance. Eu acho que é um pouco mais complexo, eu acho que o que está acontecendo é o seguinte: eu acho que por circunstâncias y e  z, quer dizer, sobretudo pela própria diminuição do planeta, pelas comunicações, pelas coisas de massa, coisa e tal, o que está acontecendo hoje no mundo é que o mundo está se tornando uma cultura só. O que a gente está vendo hoje, o que está acontecendo no mundo, é que a população mundial, mesmo em países do chamado Terceiro Mundo, está se concentrando nas grandes cidades. Grandes cidades que estão vivendo de uma maneira mais ou menos semelhante umas das outras. De uma mesma estrutura urbana, o mesmo tipo de comportamento. Vamos tomar, por exemplo, o Brasil. Você vê o Brasil... eu acho que não existe diferença fundamental entre o que acontece em São Paulo, no Rio de Janeiro, coisa e tal, do ponto de vista cultural, ético etc, social, e o que acontece em Nova Iorque, Paris, Tóquio ou Bombaim, quer dizer, o que está havendo... hoje... por exemplo, 72% da população brasileira vive nas grandes concentrações urbanas. Parece que no ano 2000 apenas 12% dos brasileiros morarão no campo. Isso gera uma espécie de uniformização cultural. Eu te digo, sinceramente, eu não sei se é bom ou mal. Eu sei que é assim. E eu não sei se existe uma outra maneira de você falar com as pessoas, porque na verdade isso é mais forte do que nós produtores de cultura. Porque isso é a população do planeta que faz, isso é a sociedade que faz, e nós não temos o poder de mudar isso mais, entende? Agora, como é que essa cultura única vai resultar em termos de... O cinema brasileiro, o cinema... Eu acho, por exemplo, eu vou dizer uma coisa aqui... Aí o Emediato vai me cobrar coerência de dez anos atrás, eu vou dizer uma coisa, talvez um pouco polêmica, mas os cinemas nacionais acabaram. O que existe hoje são bons e maus filmes, feitos em diferentes países do mundo. Houve recentemente agora uma retrospectiva japonesa aqui, até aqui em São Paulo, eu tive a oportunidade de ver alguns filmes, é impressionante. Aqueles filmes, se não tivessem os atores de olhos rasgados [faz gesto puxando os olhos], você não reconheceria como um filme japonês. Se você se lembrar de [Akira] Kurosawa [um dos mais importantes cinestas japoneses (1910-1998), dirigiu filmes como Ran, Dersu Uzala e Sonhos] ou [Kenji] Mizoguchi [diretor e roteirista (1898-1956), é considerado, ao lado de Yasugiro Ozu e Akira Kurosawa, um dos mestres do cinema japonês] etc...

Luciano Ramos: Bom, para quem não é sociólogo, a aula é excelente, que ele deu sobre a cultura, as coisas todas aí...

Cacá Diegues: Eu ia dizer mais uma coisa quando você me interrompeu, que podia ser até mais grave do que eu disse, que é o seguinte: eu acho que nesse sentido, inclusive, você pode dizer hoje... eu vou dar um exemplo, você sabe que hoje, por exemplo, com o negócio de satélite, na televisão européia, eles estão discutindo... porque vai ter satélite na Europa, então sumiu o país, como é que você vai emitir em holandês para a Itália, como é que você emitir em espanhol para a Suécia etc? Então, os ministros da Cultura da Europa estão se reunindo e parece que a tendência é unificar os programas pan-europeus em inglês. O que me leva a dizer que talvez o inglês se torne o latim do século XXI.

Augusto Nunes: Cacá...

Cacá Diegues: O que é que você vai fazer diante disso?

Augusto Nunes: Uma proposta, um dos nossos convidados da Escola de Comunicações e Artes, encaminhou uma pergunta que eu acho que está muito ligada ao que você está dizendo. Ele lembra - acho que vai cobrar coerência também - ele lembra que você foi um dos primeiros diretores a colocar no cinema, abordar no cinema, o problema do poder hegemônico de uma única rede de TV no Brasil - no caso, a TV Globo, e o filme é o Bye Bye Brasil. Essa rede ditaria os costumes nacionais e tal. Então ele pergunta: como é que você vê, levando isso em conta, a TV como mídia principal do próximo século?

Cacá Diegues: Eu acho que... Para quem que eu respondo?

Augusto Nunes: Ali.

Cacá Diegues: Eu acho que... eu acho que você tem toda razão, quer dizer, eu acho que, por exemplo, o futuro do cinema brasileiro está na televisão. Não haverá cinema brasileiro se não houver espaço para ele na televisão. Esse é um fenômeno que está se dando no mundo todo. A televisão é hoje a maior produtora de cinema no mundo todo. Se não houver espaço para o cinema brasileiro na televisão, o cinema brasileiro acaba, simplesmente acaba. Quer dizer, acabar não acaba, porque não vai acabar nunca, mas, enfim, perde a sua importância social. Agora, enquanto a televisão no Brasil não for democratizada, ou seja, não estiver... Democratizar a televisão, não é botar cangaceiro e índios só na televisão, não. Democratizar a televisão é botar a televisão ao alcance de todos que são capazes de produzi-la. E, hoje, no Brasil, o que está acontecendo é que há um monopólio, primeiro regional do Rio e São Paulo - é uma espécie de imperialismo interno em relação às outras regiões do país - e segundo, dentro desse imperialismo regional há um monopólio praticamente determinante do que...

Sérgio Toledo: [Interrompendo] Mas Cacá, nessa questão você não acha, inclusive, nós estamos aqui entre cineastas e jornalistas, uma questão que eu vinha pensando no caminho, que essa questão da televisão, ela é uma questão política e ela passa pela Constituinte [referência à Assembléia Nacional Constituinte, que então discutia uma nova Constituição Federal, a qual seria promulgada em 5 de outubro de 1988], não é, quer dizer, e ela é de um certo modo, algo que nos atinge a todos, jornalistas, artistas, cineastas, opinião pública, etc... Quer dizer, é uma briga de poder, que no momento que existe uma Constituinte ela se coloca com muita força, quer dizer, a gente vê, por exemplo, que dificilmente o Conselho Nacional de Comunicações vai ser aprovado nessa Constituinte. É importante esclarecer que significa que o direito de ser proprietário de uma televisão, que é uma concessão estatal, é decidido atualmente, exclusivamente, pelo presidente da República, certo? Ela [a decisão] não passa pelo Congresso Nacional, nem sequer por um conselho com representação classista etc... E eu tenho um pouco a sensação de que nós vivemos um momento de profunda apatia na sociedade brasileira, em todos os níveis, e de que essa Constituinte, ela vai trazer muito pouca alteração profunda e significativa em todos os níveis. No que nos toca mais diretamente, na questão da televisão, eu não vejo realmente, de um lado, nenhum dado no sentido de que essa questão, do ponto de vista do poder, ou seja, de quem tem direito de ter a televisão, de que tenha o direito de controlar a programação da televisão, e, por outro lado, também, da mobilização da sociedade nos seus vários segmentos, da imprensa, dos artistas, dos intelectuais etc, que isso esteja sendo feito. Quer dizer, nós vamos... Essa Constituinte que vai se dar, nós vamos perder o momento histórico, porque é aí que ela tem que se dar, para a gente realmente intervir nessa discussão, não só do ponto de vista cultural, mas do ponto de vista político mesmo, de quem controla a televisão. Como é que você vê essa questão?

Cacá Diegues: É, eu junto isso que você está dizendo com o que o Adhemar falou e que eu ia dizer no final, quando o Luciano me puxou para outra coisa, que é o seguinte: a verdadeira questão cultural brasileira não é mais essa do colonialismo, da colonização, dessa coisa, e sim da democratização da cultura. Não tem importância nenhuma que um garoto de Belém faça um rock, ou que um menino da Paraíba faça um reggae. Não tem a menor importância. Na medida em que ele tenha possibilidade de produzir e se fazer consumir, coisa que não está acontecendo. O problema não é do que a pessoa faz, e sim do direito que ela tem de escolher o que faz. Isso é o que está acontecendo na cultura brasileira hoje. O que existe hoje é que você tem muito poucas condições de escolher o que você quer fazer, por causa dessa opressão [a] que você se referiu e eu não vou repetir, porque você descreveu muito bem. É exatamente isso que você disse, e eu assino embaixo.

Sérgio Toledo: Mas como é que você vê a nossa... essa relação, esse aparato?

Cacá Diegues: Eu acho que essa Constituinte... de um modo geral eu me sinto extremamente decepcionado e frustrado com o que está acontecendo nessa Constituinte. Eu, como você, não tenho a menor esperança que isso vai se resolver na Constituinte. Eu acho que isso só vai se resolver na medida em que nós pudermos mobilizar a sociedade, não sei de que maneira. Aliás, essa frase tem sido usada muito, mobilizar a sociedade por todos os partidos, da direita, da esquerda, do centro. E eu não sei o que ela quer dizer, mas eu sinto que isso... O Brasil é um país que gasta três bilhões de dólares - não é isso que gastou? - para fazer uma bomba atômica, e que não sabe que o audiovisual é a maior bomba atômica do mundo moderno. O que o Adhemar Guerra falou sobre colonização, nada mais é do que o poder do audiovisual - entendeu? - dos centros metropolitanos distribuídos pelo mundo todo. E nós não temos, o homem público brasileiro está no século XIX, o mais avançado deve ter lido dois capítulos de Machado de Assis. Até hoje o homem público brasileiro, e aliás o intelectual brasileiro de um modo geral, não chegou ainda ao audiovisual. Ainda está lá no século XIX. Nós temos um ministro da Cultura que detesta cinema, que gosta de Les enfants du paradis [filme francês dirigido por Marcel Carné e lançado no ano de 1945]. É o filme preferido dele. Você está entendendo? É capaz de... Não, mas é verdade!

Luciano Ramos: Você acha que isso interferiu na política que ele está desenvolvendo em relação à Embrafilme ou não?

Cacá Diegues: Olha, eu sou... eu... eu costumo... eu não sou dos cineastas que botam a culpa na Embrafilme de tudo. Eu acho que há também uma certa facilidade de dizer: "Tudo é culpa da Embrafilme.", "Meu filme não foi bem. É culpa da Embrafilme.", "Ainda não fiz meu filme. A culpa é da Embrafilme.", "Não sei o quê..."... Não, eu não acho que a Embrafilme seja culpada de tudo. Eu até tenho um certo afeto, uma certa admiração pelas pessoas que estão lá agora, estão se esforçando, tentando fazer... O que eu acho é que a Embrafilme é uma estrutura que pertence ao passado. Eu não estou dizendo isso hoje. O Sérgio [Toledo, um dos entrevistadores do programa] é cineasta militante, ele acompanha os nossos... Ele sabe que eu digo isso há quatro, cinco anos talvez, talvez que eu me lembre assim rapidamente, desde 82, em uma entrevista que eu dei à Folha [de S. Paulo], eu já dizia isso: "a Embrafilme acabou!". A estrutura Embrafilme, esta maneira de fazer filmes, pertence a um Brasil que não existe mais, cuja economia, cuja situação social e política, cuja tendência das elites, é outra.

Luís Fernando Emediato: E o que você acha que tem que se fazer com a Embrafilme?

Cacá Diegues: Eu tenho a impressão que a Embrafilme... Eu não tenho, Emediato, uma clareza do que é que eu [enfatiza] faria com a Embrafilme, mas eu tenho a impressão que a melhor solução seria dividir a Embrafilme em duas coisas: uma fundação ligada ao Ministério da Cultura, com atividade, entre aspas, cultural, chamada cultural, quer dizer, aquela atividade que não é de mercado - entendeu? - e qualquer outra coisa, para o que fosse de mercado. Agora, essa qualquer outra coisa tinha que ser necessariamente ligada ao incentivo da produção, da exibição, da distribuição, a partir da iniciativa privada...

Augusto Nunes: [Interrompendo] Cacá...

Cacá Diegues: ... quer dizer, a existência da Embrafilme, tal como ela é hoje, é um arcaísmo se você pensar, por exemplo, na questão da Lei Sarney. Que, essa sim, é uma coisa modernizadora, e que, por ser modernizadora, já está sendo boicotada pelos burocratas do Ministério da Fazenda.

Augusto Nunes: Cacá, mudou alguma coisa na Embrafilme com a Nova República [período pós ditadura militar, iniciado em 1985 com a eleição indireta de Tancredo Neves - que morreu antes de assumir - para a presidência do Brasil]? É a pergunta do Carlos Esbrógino, do Paraíso.

Cacá Diegues: Não, não mudou, nem pode mudar, por esse motivo que eu estou dizendo. Porque a estrutura da Embrafilme continua a mesma, por melhor que sejam as intenções das pessoas que vão lá, entendeu? Eu estou lançando um filme agora, Um trem para as estrelas. Bom esse filme. Eu sou produtor desse filme, não só sou realizador como sou produtor, tenho interesse no filme. Então eu viajo o Brasil todo, estou aqui exausto, porque eu passei um dia em Florianópolis, um dia em Curitiba, estou em São Paulo, amanhã eu vou para o Rio, quinta eu vou para a Bahia, eu bato stand [mostruário] na porta de cinema, eu faço o trailer de madrugada, eu prego cartaz. Todos nós, eu não sou um herói solitário, todos nós fazemos isso. O Sérgio [Toledo] fez com o filme dele, todas as pessoas fazem cada um com cada um dos seus filmes. Agora, não vou me queixar da Embrafilme, porque a Embrafilme simplesmente não tem mais estrutura para fazer isso, porque a estrutura da Embrafilme se desmilingüiu, você está entendendo? E eu acho... aí eu acho que é um erro nosso, de nós cineastas - entendeu? - de seis em seis meses nos reunimos e vamos ao Ministério da Cultura pedir mais grana, porque precisa de mais grana. Só que não pode ser mais assim, porque essa forma de fazer cinema no Brasil acabou! É um saco sem fundo.

José Márcio Penido: Cacá...

Augusto Nunes: Antes de passar para o José Márcio Penido, eu queria fazer outra pergunta, transmitir a você a pergunta de outro telespectador, que é o Emílio Carlos, da Mooca [bairro paulistano], ele acaba de te perguntar, se você assumiria a direção da Embrafilme em outra estrutura?

Cacá Diegues: Nem pensar!

[Risos]

Cacá Diegues: Você está louco! Mas nem pensar!

Augusto Nunes: Está respondido. José Márcio Penido.

José Márcio Penido: A Embrafilme é, na cultura brasileira, uma coisa assim feito a CBF [Conferederação Brasileira de Futebol, órgão máximo do futebol no país] no futebol brasileiro, né? Não haveria entre os cineastas, entre os fazedores de filmes, toda a gama diretora, toda gama que faz um filme, não há um grupo de 13 revolucionários que possa fazer uma coisa que dê uma sacolejada geral nisso não?

Cacá Diegues: Devia ter mesmo [assente com a cabeça], devia ter. Infelizmente ainda não tem. Existem, quer dizer, eu não sou o único que pensa, como eu penso, que eu estou dizendo aqui. Eu não sou o único a dizer essas coisas. Há vários cineastas brasileiros que já têm consciência disso há algum tempo. Agora, isso é muito delicado, porque são muitos cineastas, a situação do cineasta brasileiro é muito difícil, como a gente falou aqui no início do programa. Eu sou um cineasta brasileiro privilegiado, porque eu tive filmes que deram certo no exterior, eu pude fazer um filme em co-produção, como Um trem para as estrelas é, eu tenho a confiança dos investidores porque eu tenho alguns filmes que deram um resultado razoável, entendeu? Eu não vou criar regras para o cinema brasileiro a partir da minha experiência. Tem que ver a média da experiência. E a situação é muito difícil, os cineastas estão passando dificuldades, alguns muito mais do que outros. Então, você tem que respeitar essas pessoas. É no seio das entidades e das associações, das nossas associações e das nossas entidades que a gente tem que tentar resolver esse problema, então isso é difícil, é uma articulação difícil, porque são interesses diferentes, são situações diferentes. Então, nesse ambiente, o tal Clube dos 13 [organização fundada em 1987, por treze grandes equipes do futebol brasileiro, com a finalidade de defender seus interesses políticos e comerciais] que você está falando ainda não apareceu não. Mas precisa aparecer.

José Márcio Penido: Seria um pouco também de aversão até do próprio artista em se meter numa dessas?

Cacá Diegues: Não, não é não. Eu vou lhe dizer uma coisa: eu, pessoalmente, eu estou, para dizer a verdade, de saco cheio de falar de Embrafilme, porque cineasta quando vai para jornal, para televisão, é só para falar sobre orçamento, lei, decreto, Embrafilme, política. Quando a gente consegue falar sobre cinema, duração de um plano, a direção de um ator, uma fotografia diferente, já está exausto, cansado de tanto que brigou, pela lei número não sei o quê, pelo decreto não sei o quê, pela Embrafilme, pela não sei o quê, entendeu? É um inferno.

Sérgio Toledo: Mas Cacá, deixa só eu emendar nesse assunto. É o seguinte, porque a gente está sempre, inclusive, sendo acusado disso. Aqui no Roda Viva, eu não estava presente, mas fui acusado de pertencer à jovem geração, e que a jovem geração continua com os mesmos vícios dos velhos, que continuam...

Cacá Diegues: [Interrompendo] Os velhos sou eu, né?

Sérgio Toledo: É.

[Risos e sobreposição de vozes]

Sérgio Toledo: ... dizendo que nós do cinema brasileiro estamos sempre discutindo dinheiro, financiamento, Embrafilme, que não conseguimos resolver nosso problema, e que acabamos discutindo idéias e cinema, essa coisa toda. E citou... essa pessoa, inclusive, citou: “Pô, veja o cinema japonês, jovem, atuante etc.". Você citou agora há pouco o jovem cinema japonês, e esteve presente no Brasil um dos expoentes dessa geração que é o Yanagimachi [Mistuo Yanagimachi (1945-), cineasta japonês ganhador de vários prêmios. Seu primeiro filme foi o documentário Godspeed you! Black emperor, de 1976], que fez um filme lindíssimo e tal, que está muito em voga no Japão. O Japão é o país mais rico do mundo hoje, que é o país cuja economia cresce. Os Estados Unidos é rico mas está enfrentando uma crise violenta e tal. E você senta ao lado desse cara e vê que o discurso dele, durante duas ou três noites que eu assisti, debatendo etc e tal... ele passou dois terços, para dizer o mínimo, de 70 a 80% do tempo dele discutindo o fechamento do cinema no Japão, a falta de espaço para o jovem cinema no Japão, a dificuldade de se levantar dinheiro, a ocupação radical do espaço de exibição cinematográfica pelos filmes americanos e pelos desenhos animados de guerra japoneses. Enfim, então você de repente pára e fala assim: no Brasil nós somos pobres, temos aqueles problemas e tal, nós somos colonizados, aquela coisa, não dá para acontecer nunca, nós é que somos burros e não sei o quê. Mas quando você, de repente, começa a ver que a geração do Jim Jarmusch [(1953-), premiado cineasta americano que ganhou notoriedade com o filme Ghost dog: the way of the samurai, em 1999, e a série Coffee and cigarettes, que chegou ao Brasil em 2004 com o nome Sobre café e cigarros], nos Estados Unidos, já chegou a pensar em até criar uma Embrafilme, para ter apoio do Estado, para poder sobreviver, quando você vê que no Japão os cineastas mais proeminentes da nova geração passam o seu tempo discutindo angustiadamente o problema da economia, você é obrigado a parar e reconhecer que o cinema está passando um processo radical de transformação e que a situação do cinema não é a mesma do Clube dos 13. Porque o Clube dos 13 é o futebol, envolve o dinheiro que vem, e o cinema no mundo inteiro está se redefinindo, não é? Então como é que você vê essa questão? A gente está sempre discutindo essa coisa: "Não, mas o cinema brasileiro é deficitário e há um modo de ser não deficitário, né? Enfrentar a iniciativa privada..." Mas...

Augusto Nunes: Sérgio, pergunta.

Sérgio Toledo: Como é que você vê essa questão?

Cacá Diegues: Olha Sérgio, eu acho que você tem toda razão, agora eu vejo da seguinte maneira: eu acho que nós temos que inventar alternativas, eu acho que a gente pode também parar de discutir um pouco, quer dizer, eu vi o negócio do Clube dos 13 assim, eu concordo com ele nesse sentido, quer dizer, eu acho que nós, cineastas, podíamos parar um pouco de discutir a Embrafilme e procurar alternativas, inventar maneiras de fazer filmes. Eu, em Um trem para as estrelas, eu fiz uma coisa que nunca fiz na minha vida, e eu não me envergonho de dizer - estou dizendo isso  publicamente na televisão - há três merchandisings em Um trem para as estrelas que me ajudaram enormemente a fazer o filme. Eu passei anos, anos da minha vida, com enorme preconceito em relação a isso. "Como vou botar merchandising no meu filme?!". Pois botei. Foi uma maneira de eu ter a possibilidade e ter o dinheiro que eu precisava para fazer o filme, e não entrar naquela fila eterna da Embrafilme, brigando aos cotovelos com os meus colegas que também passam as mesmas dificuldades que eu.

Luís Fernando Emediato: Mas Cacá, só que explica...

Cacá Diegues: Eu não estou dizendo que eu sou a pessoa que vai encontrar a solução, eu não estou dizendo isso. Eu estou citando apenas uma alternativa. Eu acho que nós todos, nós todos temos que procurar, temos obrigação de procurar alternativas: alternativas reais que não signifiquem somente mudar a direção da Embrafilme, porque você sabe muito bem que quando as coisas começam a não dar certo, a primeira coisa que a gente sugere é o seguinte: "derruba esse cara e vamos botar outro.". Que, aliás, é a velha tradição golpista brasileira. Quando uma instituição não funciona, a gente mantém a instituição e muda o cara que está lá em cima.

Luís Fernando Emediato: Mas Cacá, explica uma coisa para o telespectador, é possível produzir e exibir um filme sem a Embrafilme? Porque está parecendo que só se pode fazer filme com a Embrafilme.

[Sobreposição de vozes]

Cacá Diegues: Eu estou fazendo isso, neste momento, eu estou fazendo isso exatamente, neste momento.

Luís Fernando Emediato: Para quem está em casa, talvez não entenda isso, então...

Cacá Diegues: O filme Dedé Mamata que eu estou produzindo, que não é dirigido por mim, é dirigido por esse que eu anunciei aqui no início do programa ao Augusto, é feito única e exclusivamente com o recurso da Lei Sarney. Agora, este é um país esquizofrênico, Emediato, porque ao mesmo tempo em que o Ministério da Cultura - mas não foi o Ministério da Cultura -, a Presidência da República inventa a Lei Sarney, manda para o Congresso e aprova, o outro braço do poder, que é o Ministério da Fazenda, começa a boicotar. Então os burocratas do Ministério da Fazenda já estão boicotando a Lei Sarney. Já estão colocando uma série de dificuldades que impedem esse processo da Lei Sarney avançar.

Luís Fernando Emediato: Mas isso é muito sério. Que tipo de dificuldade, por exemplo?

Cacá Diegues: Por exemplo, o famoso regulamento cinqüenta, que é um regulamento que vai ser chato eu te explicar tudo aquilo, porque o telespectador não vai gostar. Agora... mas que tira - mais uma vez um cineasta falando de regulamento, lei, decretos, coisa e tal - mas que tira do empresário, do possível investidor, o gosto do investimento.

Luís Fernando Emediato: Agora, não te parece que alguns cineastas brasileiros, não precisamos nem dizer nomes aí, se acostumaram durante muitos anos a "mamar na teta do Estado" e... se acostumaram?

Cacá Diegues: Não, não diria isso, não, não... O que eu estou falando não tem absolutamente nada a ver com mamar na teta do Estado, ao contrário: o Estado é que mamou sempre na teta do cinema brasileiro. Porque nós ganhamos prêmios, fizemos filmes com repercussão internacional, e nunca, nunca, nunca o Estado reconheceu isso como devia. O Estado deu esmolas ao cinema brasileiro durante esses anos todos. Ninguém conseguiu... O Estado não criou uma infra-estrutura industrial, o Estado não criou uma coisa que fosse permanente, tanto que está aí: a crise é todo ano. Entendeu? Agora, a idéia de mamar nas tetas é uma idéia estabelecida através da cabeça de várias pessoas, você está entendendo? Não estou te acusando, eu sei que não é você que inventou isso...

Luís Fernando Emediato: Eu fiz uma pergunta.

Cacá Diegues: Eu sei, e eu conheço bem o seu texto, eu sei que não é você que diz isso, mas eu estou dizendo, é uma coisa exatamente para poluir o debate, que não é por aí...

Augusto Nunes: Cacá...

Cacá Diegues: Não é por aí, absolutamente - espere, deixa eu só terminar isso -, porque, inclusive, é preciso entender o seguinte... Agora eu me perdi porque o Augusto me cortou.

[Risos]

Cacá Diegues: Mas o que eu queria dizer...

Augusto Nunes: Mas você está falando em poluir o debate.

Cacá Diegues: Mas deixa terminar, é poluir o debate. O que eu quero dizer, que o que eu estou dizendo, não tem nada a ver com isso. Agora, o que eu concordo com você é que existe, por parte de alguns cineastas, eu não estou dizendo que é a classe inteira, uma certa preguiça de tentar se mexer para mudar a maneira de fazer cinema no Brasil, isso eu estou de acordo. Essa crítica eu faço internamente, nas nossas associações, nos nossos sindicatos, então eu posso fazer publicamente também, é uma opinião minha pessoal, que eu defenderei... Agora isso não significa absolutamente mamar na teta, ao contrário, o Estado que mamou na teta do cinema. Você sabe, por exemplo, que a Embrafilme toma... Vou lhe dar um exemplo, por exemplo, que eu sofri na carne agora que eu tenho um filme em lançamento. A Embrafilme, nós investimos, por exemplo: Um trem para as estrelas tem 35% de investimento da Embrafilme para distribuição no Brasil e na América Latina. Pois bem, ela toma esses 35% do primeiro tostão que entra na bilheteria. Antes de mim, ou seja, ela se paga antes dos produtores. Não é isso Sérgio [Toledo]? O Sérgio tem essa experiência também, qualquer cineasta tem essa experiência. Então não só nós produtores pagamos, sozinhos, as mídias mais caras, como televisão e outras coisas, outdoor que eu boto coisa e tal, não só eu pago isso sozinho, como também, ainda por cima da bilheteria, a Embrafilme toma o dela primeiro que a gente. Então, ela se ressarce primeiro que o produtor.

Augusto Nunes: Cacá, é que os telespectadores estão interessados evidentemente em instituições, mas também em pessoas. Então, duas perguntas aqui que eu acho que tratam do mesmo assunto. Uma é uma provocação, acho que a outra traz as coisas, abaixa um pouco o tom, que é o seguinte: o Roney Senna, de Cerqueira César, pergunta assim "Além de você, quais são os outros gênios do cinema nacional?". Agora o Arlindo Berlaquione, de Santana, diz assim "Em termos de Brasil, qual o filme ou quais são os filmes que você gostaria de ter feito, de outros autores?".

Cacá Diegues: Olha, a primeira pergunta... eu não sou gênio nenhum, eu sou mais um cineasta brasileiro como tantos outros, que estão aí tentando inventar esse troço, que ainda não existe, que se chama cinema brasileiro, que é uma luta de um século, isso aí desde 1895 que se filma no Brasil. E a história do cinema... acabou de sair, eu aconselho a todos a comprar, Introdução ao cinema brasileiro, que é uma reedição de um velho livro de Alex Viany [nome usado por Almiro Viviani Fialho (1918-1992), cineasta, produtor, roteirista, ator e jornalista carioca]. É bom ler porque é um melodrama, é para ler às lágrimas, você acaba aquele livro às lágrimas, porque parece uma história que não se acaba nunca, e que se repete permanentemente. Então, eu sou somente mais um desses cineastas. Sou um dos bons, porque eu acho que o cinema não é corrida de cavalo, nem campeonato de futebol, que só um ganha. Existem os bons e os maus cineastas, eu sou um dos bons, eu tenho consciência disso. Agora, quanto aos filmes, tem belíssimos filmes que eu gostaria de ter feito. Eu sou um cinéfilo, eu vou... eu vou ao cinema, eu vejo pelo menos um filme por dia, ou em cinema, ou em vídeo-cassete ou na televisão. Eu adoro cinema, eu faço cinema porque eu gosto de cinema...

Augusto Nunes: Você nos citaria um?

Cacá Diegues: Citaria vários: os filmes do Glauber [Glauber Rocha]; os filmes do Nelson Pereira dos Santos [um dos mais importantes e premiados cinestas brasileiros, dirigiu, dentre outros, Vidas secas, Memórias do cárcece e Brasília 18%]. Para citar coisas mais recentes, A marvada carne [filme de 1985 dirigido por André Klotzel e estrelado por Fernanda Torres, Adilson Barros e Regina Casé]; o Vera [lançado em 1987, recebeu prêmios nos festivais de Brasília e Berlim], do Sérgio [Toledo]; A cor do seu destino [filme de 1986, narra a história de um garoto chileno que vem viver no Brasil após o assassinato de seu irmão], do Jorge Durán, são filmes belíssimos que eu teria maior orgulho de assinar, se fossem meus.

Ninho Moraes: Eu queria saber um pouco dessa crise da indústria que você estava discutindo agora a pouco, e entrar um pouco na coisa da crise da arte, e daí usar um pouco até, como exemplo, a questão das mulheres, das atrizes brasileiras. Você estava falando agora há pouco que o cinema está cada vez mais se associando à televisão, e está virando... Você disse que não existe mais o cinema nacional, tudo bem. Agora, cada vez menos existe o cinema de autor. Mesmo vendo esse seu Um trem para as estrelas, em alguns momentos eu achava que poderia qualquer diretor estar dirigindo algumas cenas ali. Enquanto que antigamente você sabia que era o Cacá Diegues. Em outros momentos você retoma isso, quando chove, aquela chuva que é uma coisa muito bonita, em outros momentos você vê que é o Cacá Diegues, quer dizer, mas já existe um limite ali. Tem alguns momentos que eu achava que poderia ser qualquer outro diretor, Bruno Barreto [cineasta carioca que possui em seu currículo trabalhos como Dona Flor e seus dois maridos e O que é isso companheiro?], ou esse, ou aquele, ou aquele outro... poderiam estar fazendo algumas cenas, que é uma padronização meio internacional que eu acho um pouco perigosa para o cinema, enquanto arte, e não enquanto indústria. Agora, eu queria usar um pouco isso na questão das interpretações, uma certa crise de interpretação. Assim, há anos você tinha vários estilos de interpretação no Brasil, tipo Oficina, Arena, Cinema Novo, cinema underground, que eram estilos de interpretação. Hoje não existe, hoje é um estilo só de interpretação padronizado, inclusive, por uma juventude que vem muito de novela, que interpreta do mesmo jeito, é um naturalismo meio caricato, uma coisa meio perigosa. Como é que você vê isso, assim? Eu estava falando em questão das atrizes mulheres. Antigamente você tinha a Anecy Rocha [atriz baiana (1943-1977), irmã caçula do cineasta Glauber Rocha. Um de seus papéis mais célebres foi o de Luíza, em A grande cidade, de Cacá Diegues. Morreu tragicamente, aos 34 anos, durante as filmagens de A lira do delírio, de Walter Lima Jr, quando caiu no fôsso de um elevador], Helena Ignez [atriz e diretora soteropolitana (1941-), atuou em obras de destaque como Assalto ao trem pagador (1962), O padre e a moça (1966) e O bandido da luz vermelha (1968) dirigido por Rogério Sganzerla, por quem se apaixonou e com quem viveu até a morte dele. Também foi casada com Glauber Rocha], Isabel Ribeiro [atriz paulista (1941-1990), ganhou vários prêmios no cinema, como melhor atriz, e trabalhou com consagrados diretores, como Cacá Diegues, Leon Hirszman (no antológico São Bernardo, de 1972, filme baseado no romance de Graciliano Ramos) e Arnaldo Jabor (ver entrevista com Jabor no Roda Viva)], você tinha pessoas assim. Hoje em dia é difícil você citar pessoas que tenham estilos de interpretação, mulheres fenomenais, fantásticas, que tenham estilos de interpretação. Você tem um padrão só.

Marco Antônio de Lacerda: E, contraditoriamente, você nunca ganhou tanto prêmio de ator, como ultimamente tem ganho.

Cacá Diegues: Eu estava me lembrando disso agora...

[...]: No caso da Fernanda [Fernanda Torres, atriz premiada no Festival de Cannes no ano de 1986], no caso da...

Cacá Diegues: O prêmio do Vera [Urso de Prata no Festival de Berlim para a atriz Ana Beatriz Nogueira], o prêmio de A hora da estrela [adaptação do livro de Clarice Lispector e lançado em 1985, o filme rendeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim a Marcélia Cartaxo], e o prêmio da Fernandinha. São prêmios todos femininos.

Ninho Moraes: Mas nenhuma delas é um estilo de interpretação diferente do...

Cacá Diegues: O negócio da interpretação, você tem razão. Eu acho que o que houve foi, mais uma vez, a... a opressão maciça da novela da televisão criou um jeito... Eu fiz muito teste agora, por exemplo, para esse filme Um trem para as estrelas, porque você viu, tem um monte de personagens adolescentes, então eu fiz muito teste procurando esses garotos. E é impressionante como todos eles já vêm, com 17, 18 anos de idade, já vêm com todos os tiques da televisão. Se você, hoje, for ver, por exemplo, um grande ator como Chico Cuoco [Francisco Cuoco, ator paulista com carreira consolidada principalmente na televisão] ou Tarcísio Meira [nascido em 1935, participou de mais de 30 novelas e seriados de TV], que são grandes atores, de repente você já não vê mais a diferença entre um e outro, você liga e parece que é a mesma novela, o mesmo personagem e o mesmo ator. Porque já não é... é como se existisse... Eu acho até que é próprio da velocidade da televisão... a televisão, ela não é dirigida, ela é administrada. Então é uma coisa que tem que ser veloz, rápida e eficiente, então tem que ser tudo igual mesmo. Nisso você tem toda razão. Isso criou uma espécie de padronização de interpretação. Mas eu acho que você está sendo injusto com o cinema brasileiro, porque eu acho que é exatamente no cinema brasileiro...

Ninho Moraes: [Interrompendo] Não é do cinema nacional, o cinema mundial também tem esse problema, você hoje não tem os exemplos de grandes atrizes, você tem pessoas que representam uma coisa.

Cacá Diegues: Claro, eu acho que é exatamente no cinema brasileiro, deixa eu só te dizer isso, eu acho que exatamente o cinema brasileiro, onde está se fazendo experiências nessa área bastante diferente. Você vê no próprio Um trem para as estrelas, você vai desde a caricatura maravilhosa e delirante do Zé Trindade [músico, ator e poeta (1915-1990), grande comediante com atuações no cinema, rádio e TV] até o naturalismo global do menino Guilherme Fontes, que acabou de começar, que está... que será um grande ator, que tem um talento extraordinário, mas que está um pouco... Você vai desde a coisa dramática da Beth Faria, até a coisa mais elaborada e formada da Míriam Pires [atriz carioca (1927-2004) de respeitada carreira televisiva, estreou no cinema em 1976 com Aleluia Gretchen], quer dizer... Eu tenho uma tese sobre interpretação que é uma coisa que, aliás, eu aprendi muito com um dos meus cineastas preferidos que é Elia Kazan [diretor greco-americano (1909-2003), construiu sólida carreira na Broadway até iniciar importantíssimo trabalho também como cineasta, tendo recebido três prêmios Oscar - um deles pelo conjunto da obra], que é o seguinte: não existe no mundo duas pessoas que atuem da mesma maneira; aqui nós somos uma vintena de pessoas, ninguém aqui age, bota a mão no queixo, ou se mexe, ou fala da mesma maneira que o outro. Isso tem que ser reproduzido no cinema. Então eu acho que todo filme tem que ter interpretações naturalistas, interpretações expressionistas, interpretações épicas, misturadas dentro dele mesmo.

Marco Antônio de Lacerda: Agora...

Augusto Nunes: [Interrompendo] Marco... É que eu vou ter que fazer um intervalo agora. Você quer fazer uma pergunta? Eu pediria para que o Cacá respondesse então rapidamente.

Marco Antônio de Lacerda: Está bom. Eu só queria que você me ajudasse a entender uma coisa, a propósito dessa pergunta que o Ninho [Moraes] estava fazendo. Onde é que se forma um ator como Guilherme Fontes, um cara que nunca fez nada antes, fez A cor do seu destino e fez esse filme? Porque você falou, Elia Kazan trabalha com atores formados pela Actors Studio [respeitada escola de interpretação fundada nos Estados Unidos em 1947, responsável pela formação de atores como, por exemplo, Al Pacino, Marlon Brando e Robert De Niro], ou seja, tem toda uma estrutura por trás dessa gente. Onde é que se forma um ator como Guilherme Fontes? Onde é que ele aprende? Onde é que ele vai beber?

Cacá Diegues: No caso do Guilherme Fontes, ele foi aluno do Tablado, que é aquele grupo de teatro do Rio de Janeiro fundado pela Maria Clara Machado [dramaturga mineira (1921-2001), autora de famosas peças infantis como Pluft, o fantasminha e A menina e o vento], e hoje dirigido pelo Carlos Wilson. Foi lá que ele começou, e foi lá que eu fui buscar ele. Porque quando eu fiz Um trem para as estrelas ele já tinha filmado, mas ainda não estava pronto A cor do seu destino, então eu não tinha visto. Ele fez um teste como todas as outras pessoas.

Augusto Nunes: Então eu peço licença agora ao Cacá e aos nossos entrevistadores para um ligeiro intervalo. O Roda Viva, com o diretor de cinema Cacá Diegues, volta daqui a pouco.

[Intervalo]

Augusto Nunes: Retomamos aqui o Roda Viva com o cineasta Cacá Diegues. Cacá, o senhor Roberto Bruzardin, da Mooca, pergunta se há algum problema entre você e o jornal Folha de S. Paulo? Pergunta: por que é que a Folha te ataca tanto?

Cacá Diegues: [Risos] Eu também queria saber, porque a Folha [de S. Paulo] não gosta de mim, não. Não sei, quer dizer, eu não sei qual é a da Folha. Eu não sou editor da Folha, eu não participo das reuniões de pauta da Folha. Não sei responder essa pergunta.

Luciano Ramos: Mas você se sente atacado?

Cacá Diegues: Ah, me sinto, me sinto muito. Eu acho que é... acho que há, por parte da Folha [de S. Paulo]... Quer dizer, eu acho que é mais do que isso. É uma pena que o rapaz não esteja aqui, porque fica uma covardia, porque ele podia estar aqui para responder, não é? Eu até gostaria que ele estivesse porque eu acho que há por parte da Folha uma espécie de política. Pichar o cinema brasileiro é um marketing editorial da Folha. A Folha vende essa idéia, quer dizer, isso é constante, coisa e tal. De vez enquanto, escolhe um filme para fazer uma exceção e coisa e tal. Mas de um modo geral, pichar o cinema brasileiro é o marketing editorial da Folha. E particularmente comigo há uma certa... vamos dizer, preferência, entendeu?

Luís Fernando Emediato: Mas Cacá, como nem todo mundo lê a Folha, claro, seria bom esclarecer para o telespectador que não lê a Folha, o que a Folha faz com você, afinal.

Cacá Diegues: Eu acho... será que vale a pena?

Augusto Nunes: É bom para informar, por exemplo: que tipo de ataque você já sofreu?

Cacá Diegues: Não, quer dizer, por exemplo, por diversas ocasiões, quer dizer, eu acho que há uma espécie de má vontade em relação, por exemplo, você veja, quando o filme foi para Cannes [respeitado festival de cinema realizado no sul da França], quando Um trem para as estrelas foi para Cannes, a Folha publicou um artigo de um dos seus críticos dizendo que eu sabia dar entrevista, que eu falava muito bem, mas que eu era um péssimo cineasta, e terminava o artigo dizendo assim: "Leia a entrevista e passe longe do filme.". [risos] Três meses depois... O filme é lançado agora, a Folha chamou outro crítico para fazer um outro artigo, e nesse artigo a Folha diz que eu sou excelente cineasta, um profissional muito competente. Não deixa de pichar o cinema brasileiro porque diz assim: "Coisa rara no cinema brasileiro.", mas [diz também] que eu escrevo muito mal. Que meu roteiro é péssimo, entendeu? Então eu gostaria de pegar essas duas críticas, estampar na Folha e tentar encontrar uma solução. Agora, eu acho que isso é menos grave, porque, como eu disse, eu acho que todo mundo tem o direito de falar o que bem entender. Eu acho que crítica é crítica, coisa e tal, é uma opinião. Agora, eu acho que... não é comigo só, eu não me sinto uma pessoa perseguida e, aliás, eles, às vezes, me pedem aquelas enquetes, eu dou as respostas e me pedem para eu escrever coisas, eu escrevo, não tem problema nenhum. Agora, eu acho que... eu gostaria que a... eu não sei, a editoria da Folha, ou o que seja, tivesse um pouquinho mais de consciência da importância que o jornal tem, como todos os jornais de vocês têm, o Estadão [jornal O Estado de S. Paulo] tem também, o Globo, jornal... Enfim, a importância que esses jornais têm na vida do cinema brasileiro. Quando um jornal como esse, como a Folha ou qualquer outro, agora eu não estou mais falando [somente] da Folha, quer dizer, quando um jornal importante como esse ignora ou é injusto com o cinema brasileiro, isso tem conseqüências gravíssimas. Você dizer que um filme americano não é bom, não tem a menor conseqüência. Mas você dizer que um filme brasileiro não é bom, de uma maneira gratuita, mundana, leviana e maneirista...

Luís Fernando Emediato: [Interrompendo] Mas você acha que uma crítica de jornal é capaz de destruir a carreira de um filme?

Cacá Diegues: Cada vez mais, Emediato.

Luís Fernando Emediato: Será?

Cacá Diegues: Cada vez mais, não era não, mas agora é. Vou lhe explicar por quê. Na medida em que a crise...

Luís Fernando Emediato: Mas não dá uma importância exagerada com a crítica do jornal?

Cacá Diegues: Não, não. Na medida, em que a crise econômica brasileira tirou as pessoas do cinema... O sujeito hoje, para ir ao cinema, ele escolhe mais, muito, muito, e ele hoje passa muito mais pelo crítico do jornal de preferência dele do que passava antigamente, entendeu? Porque hoje, para ele sair de casa, pegar um carro, ameaçado de ser assaltado, parar... Ainda depois tem que comer uma pizza com a mulher, tomar um chopp, entrar no cinema, ele vai gastar uma fortuna. Não é à toa que o mercado está aí com uma queda enorme de freqüentação e com o seguinte fenômeno: nessa queda enorme, tem sempre, de dois em dois meses, ou de três em três meses, um filme que estoura, que dá o diabo, e os outros abaixo da crítica.

Augusto Nunes: Você tem números sobre a queda, Cacá?

Cacá Diegues: É cerca de 37% em relação ao ano passado. O que é muita coisa.

Marco Antônio de Lacerda: Cacá, uma coisa que você estava falando, o seguinte, essa coisa do roteiro, por exemplo - não é? - que alguém criticou o roteiro seu, e isso que eu ouvi, não li em crítica nenhuma de jornal, mas dois dramaturgos brasileiros acusam o cinema brasileiro de que... o seguinte: uma grande falta que eles sentem do cinema brasileiro é de bons roteiristas, que é uma coisa básica da carpintaria do cinema brasileiro, você concorda com isso?

Cacá Diegues: Olha, essa é o papo da moda, dizer que o cinema... Antigamente, aliás, não sou eu que estou dizendo, é uma coisa que o Nelson Pereira [dos Santos] disse que eu acho muito engraçado e que eu estou repetindo, que diz que antigamente diziam que o brasileiro não era cinematográfico. Aí começou a se fazer filmes, filmes interessantes, aí dizia "Não, o Brasil é cinematográfico, mas o português não serve para cinema.". Aí depois não era o português, o português até que dava pé, [se] disse assim [então]: "Mas não tem controle técnico.". Aí a fotografia ficou ótima, a gente começou até exportar fotógrafos. Agora é o roteiro, entendeu? Aí o Nelson concluiu dizendo o seguinte: "Quando é que a gente vai provar a esses caras que a gente sabe fazer cinema?".

[Sobreposição de vozes]

Augusto Nunes: Cacá, só por falar em roteiro, eu acho que é um assunto bem presente. Você foi acusado pelo escritor Júlio César Monteiro Martins de ter plagiado o roteiro dele, ou seja, você teria encomendado o roteiro, ele te passou o roteiro, você não usou, usou outro parecido e tal, e essa discussão tem freqüentado a imprensa ultimamente. O que é que aconteceu, o que houve?

Cacá Diegues: É a pergunta inevitável. Olha, eu já respondi a isso pela imprensa, e eu preferia nem tocar mais nesse assunto, mas vamos falar rapidamente, só para não desrespeitar o público e vocês. Quer dizer, eu, em 1984, realmente encomendei um roteiro a esse rapaz, baseado em alguns temas, uns motes que eu dei pra ele, um roteiro no qual eu já havia...

Luís Fernando Emediato: O argumento era seu?

Cacá Diegues: Hein?

Luís Fernando Emediato: A idéia do filme, o argumento, a história toda?

Cacá Diegues: A idéia era minha, a [história] original é toda. E eu passei para ele esses temas, esses motes, vamos dizer assim, com os quais eu já vinha trabalhando há algum tempo, e pedi a ele um roteiro, porque ele me foi indicado por dois amigos meus. E as primeiras páginas que ele me entregou, eu percebi que não valia a pena continuar o trabalho, que não valia a pena. Interrompi, indenizei, paguei integralmente como ele, aliás, reconheceu nos jornais, e dois anos depois eu retomei o trabalho com outro roteirista, o Carlos Lombardi, que é um excelente escritor. Então agora, evidentemente ele está dizendo que tem parte no roteiro, que eu não dei crédito a ele, que eu não botei ele nos letreiros, ele está protestando, enfim. Então... só... porque esse é um assunto tão imbecil, tão cretino... eu queria só falar duas coisas para encerrar esse assunto. Primeiro é o seguinte: ele diz no jornal que viu o filme 20 dias antes do filme estrear, em uma pré-estréia que houve no Rio de Janeiro. Por que que ele, então, em vez de me procurar 20 dias antes, quando ainda dava tempo de eu botar o nome dele no letreiro, ou, se eu não quisesse botar o nome dele, indenizá-lo, se eu achasse que ele estava certo, por que é que ele não veio a mim nessa época? Esperou o filme estrear, na segunda semana do filme é que ele chama - ele não vai à Justiça - quer dizer, ele chama a imprensa, não me comunica nada. Eu soube pelos jornalistas que saíram de lá e me telefonaram. Não me comunica nada. Ele vai à imprensa e diz essa besteirada, essa cretinice. Aliás, ontem até saiu no Estadão [jornal O Estado de S. Paulo] uma notinha, muito curiosa, anunciando que ele está lançando um novo romance, e o colunista terminava assim: "Se cuide Cacá, porque tão cedo ele não vai largar do seu pé." [risos]. E a outra coisa que me chama a atenção que é a seguinte: se eu paguei a ele integralmente como ele reconhece que eu paguei, por que é que 2 anos depois eu ia chamar um outro roteirista, gastar uma grana, porque eu tive que pagar muito melhor ao Carlos Lombardi, porque esse sim é um profissional conhecido, respeitado, gastar seis meses trabalhando com o Lombardi, se o roteiro dele era muito bom, e eu estava aproveitando? E mais, por que é que eu botei o nome do Lombardi nos créditos, dei a ele o crédito que ele realmente tem, e não botaria o outro? E mais, no Quilombo eu tinha 7 co-roteiristas, todos estão nos créditos. Por que é que eu não botaria o pobre do rapaz, não é? Agora, evidentemente que agora mudou. Eu vou processar ele, porque é preciso acabar no Brasil essa facilidade com que as pessoas vão nos jornais e dizem as coisas. Então ele está sendo processado, ele pensa que ele está fazendo uma brincadeira de campanha, de lançamento do romance dele, mas essa brincadeira vai acabar mal para ele...

Luís Fernando Emediato: [...] [Sobreposição de vozes]

Cacá Diegues: Eu vou processá-lo. Hein?

Luís Fernando Emediato: Porque essa entrevista que ele concedeu, ele deu na presença de um advogado...

Cacá Diegues: É.

Luís Fernando Emediato: Que ele ia entrar na Justiça.

Cacá Diegues: E eu vou entrar, e ele vai ser processado por mim também, entendeu? Quer dizer, porque eu acho que a grande lição desse episódio, que eu tiro disso, é que isso é mais um exemplo desse troço, dessa selvageria moral que tomou conta do Brasil, e que as pessoas avançam nas coisas dos outros, entende? Um "salve-se quem puder". Querer tirar vantagem em tudo, porque nada tem conseqüência. Fica uma briga de zarcas e cabeludos pelas bocas de fumo culturais do país, você está entendendo? Um tiroteio absolutamente selvagem se tem hoje no Brasil, porque não há conseqüências. Agora, eu gostaria que esse episódio servisse para a gente meditar sobre isso. É preciso acabar com isso, é preciso... é preciso que exista um mínimo de relação ética entre as pessoas, porque senão realmente o mundo acaba.

José Márcio Penido: Cacá, nessa vida selvagem que a gente leva nas cidades grandes, como você disse mesmo, está uma verdadeira aventura sair de casa, além do custo de tudo, o perigo está em toda parte, uma aventura temerária mesmo sair de casa, e a televisão vai ganhando, vai ganhando, ou seja, "Maomé não vai à montanha", o espectador não vai ao cinema. A salvação então seria o caminho, às inversas, vamos... não é? A montanha chega a Maomé [faz gesto indicando a chegada], o cinema brasileiro chega à televisão. Mas aí eu te pergunto, a julgar pelos filmes estrangeiros que a gente vê na televisão, horrivelmente mutilados, não só pela dublagem, pelo abandono de toda sofisticação técnica que o filme possa ter, que a dublagem massacra, ainda é o campo onde a censura brasileira está solta, cortam-se alusões a todo tipo de problemática que eles julgam inabordável, por critérios tirânicos e bobocas. Então, pelos filmes estrangeiros que a gente vê na televisão, com cortes de cenas fundamentais, de situações, um diálogo pasteurizado pela dublagem, um filme como o seu, que tem uma temática cheia de temas tabus para essa censura... Que vantagem tem o cinema brasileiro chegar à televisão? É vantagem mesmo? O seu filme, se for passar na televisão daqui um ano, dois ou três, ele vai ter cortes, a prevalecer esse critério existente.

[...]: Já tem.

Cacá Diegues: Já tem cortes.

José Márcio Penido: Já tem cortes. Na televisão, então, dança até a história, não dança?

Marco Antônio de Lacerda: Eu queria adicionar mais uma coisa à pergunta do José Márcio, que é esse lance assim, ou seja, o cinema brasileiro indo para a televisão, isso não cairia dentro daquela coisa que você disse, eles estariam roubando mais público da sala de teatro, do ritual de você sair de casa para ir ao cinema, não ficar sentado na sala de jantar vendo televisão?

[Cacá assente com a cabeça]

Cacá Diegues: [Voltando-se para José Márcio] José Márcio, tem várias maneiras de abordar essa sua questão. Que realmente hoje ela é absolutamente procedente, você tem toda razão. Pois veja bem, quando eu digo aproximar, articular a televisão com o cinema, eu não estou falando só em ocupar um espaço na televisão para o cinema, e sim de alguma maneira fazer com que a televisão participe da produção ou da difusão do cinema brasileiro. Como, exatamente, como acontece no mundo todo. Hoje, os grandes produtores de cinema nos Estados Unidos, na Europa, no Japão, nos países socialistas é a televisão. Ou seja, a televisão participa das... Esse, por exemplo, Um trem para as estrelas, a co-produção francesa, foi feita graças a um avanço feito pelo Canal Plus, que é a televisão francesa, que pagou pelo filme antes da existência dele, você está entendendo? Quer dizer, isso não é nenhuma raridade, isso é o que acontece hoje na produção mundial totalmente. Aí o sujeito... aí você tem que criar certas regras, aí começa uma luta, que, evidentemente... por isso que eu sou contra, por exemplo, vou dizer mais uma coisa aqui que talvez gere um problema, porque eu sei que a maioria dos meus colegas é a favor disso... Eu sou contra [a] reserva de obrigatoriedade - como é?

Luciano Ramos: Reserva de mercado.

Cacá Diegues: Reserva de mercado na televisão, para cinema. Eu sou contra, porque o cinema... a televisão acaba com o cinema brasileiro em três meses. Bota o pior filme, no pior horário, faz, começa, acaba, como está acabando com o curta metragem.

Luciano Ramos: E você? O que você pensa da reserva de mercado de um modo geral?

Cacá Diegues: Não sou contra, de um modo geral, não posso ser contra, entendeu? Eu acho...

Luciano Ramos: Porque de certa maneira...

Cacá Diegues: Há aspectos que são necessários.

Luciano Ramos: Sim, mas...

Cacá Diegues: Deixa eu só terminar, Luciano.

Luciano Ramos: Pois não.

Cacá Diegues: Deixa eu só explicar. Então, o que eu acho, quer dizer, eu não quero só ocupar um espaço da televisão com o cinema, eu quero que a televisão se responsabilize de algum modo, parcialmente, pelo cinema brasileiro, você está entendendo? Tudo isso é uma coisa só. A televisão é uma outra maneira de passar filmes. O que importa é o audiovisual, que nasceu com o cinema e que está aí na televisão, daqui a pouco vai ser laser, disco, perdão, vai ser qualquer coisa assim. Agora, evidentemente você tem razão, tem toda uma luta que você tem que ter. Tem que ter uma luta contra a boçalidade da programação, uma luta contra a estupidez da censura. Um trem para as estrelas tem quatro [enfatiza] cortes na televisão. Eu estou recorrendo, vamos ver se eu consigo ganhar no Conselho Superior de Censura. Mas tenho quatro cortes. Então isso tudo é uma luta que a gente vai ter que ter, para além de ganhar esse espaço, ganhá-lo como ele deve ser ganho. Diga, Luciano.

Luciano Ramos: Na outra parte do programa, a gente estava falando sobre a questão da dependência do cinema em relação ao Estado, e se falou que o cinema brasileiro... sobre a questão de o cinema brasileiro mamar ou não nas tetas do Estado. Mas existe uma coisa que é da própria estrutura, que está aquém da própria existência da Embrafilme, que é a tutela no sentido de que se não fossem as reservas de mercado, provavelmente não existiria cinema neste país, o cinema brasileiro feito por brasileiros. Mas acontece que, como toda imposição, [ela] tem as suas... faces negativas, quer dizer, a reserva de mercado gerou um cinema mais barato, a pornochanchada, aquela coisa toda. O que você pensa dessa questão, quer dizer, vendo a reserva de mercado como uma manifestação dessa dependência do cinema em relação ao Estado?

Cacá Diegues: A reserva de mercado, eu não considero uma dependência do cinema ao Estado. Eu acho que é uma presença do Estado, que eu acho que essa será indispensável sempre. É o Estado enquanto mediador social. Tá? Então o Estado é o cara que regula, porque se você pegar o cinema brasileiro, com a fragilidade que ele tem, e atirar na arena da economia do mercado, assim, sem mais nem menos, você vai matar o cinema brasileiro. Nós não temos possibilidades de enfrentar, entendeu? Porque o que acontece no Brasil, falando em bom português, é um dumping, os filmes americanos chegam para o mercado brasileiro, para o mercado de televisão por um preço impossível de competição por parte dos filmes brasileiros, você está entendendo? Porque na medida em que eu digo que não existem mais cinemas nacionais, eu insisto em que existem economias nacionais de cinema. A economia nacional de cinema brasileiro, ela é frágil demais, exatamente, porque ela enfrenta um dumping que é um dos mais graves da história da economia brasileira! [indignado] Os distribuidores americanos vendem filme para as televisões brasileiras a um preço que chega, assim, a 10%, 5% do que eles cobram, por exemplo, na Europa. Ou seja, eles fazem um dumping, eles mantêm os preços dos filmes para a televisão em um nível que nós não podemos competir. Então nós temos que vender nossos filmes a preços humilhantes, degradantes!

José Márcio Penido: Cacá, e por que eles vendem tão barato assim?

Cacá Diegues: Porque eles não precisam desse mercado, esse é o lucro deles, eles já saem dos Estados Unidos com ganho, já saem da Europa com ganho, então eles mantêm os preços no Brasil a um nível... aliás, é uma política internacional deles, não é só no Brasil não. [mostrando um alto patamar com a mão] Eles mantêm os preços no Brasil a um nível que a indústria nacional não possa competir. Um filme brasileiro custa hoje, um filme médio brasileiro, um custo médio, vamos dizer, um filme como Um trem para as estrelas, que é um filme barato, mas como é meu, fica um pouco mais caro, porque as pessoas cobram mais, coisa e tal... [risos] uns 300 mil dólares, 250, 300, 350 mil dólares. O filme do Eddie Murphy [ator e comediante estadunidense protagonizou filmes como Um tira da pesada e O professor aloprado] que foi feito ano passado, e que vai passar na televisão Globo, custa 20, 25, 30 mil dólares para a televisão Globo. Como é que eu [mostra a si mesmo com as mãos], que faço um filme que custa... Agora, por quê? Porque os dez milhões de dólares que o [filme do] Eddie Murphy custou, ele já tirou lá no mercado dele.

José Márcio Penido: Mas não tem um faixa de filmes americanos que se pagam justamente no mercado latino?

Cacá Diegues: De jeito nenhum, eu não conheço esses filmes.

José Márcio Penido: Seriados de televisão que não emplacam lá, não são vendidos aqui?

Cacá Diegues: Eu, sinceramente, José Márcio, não conheço esses filmes, não conheço esse dado.

Augusto Nunes: Cacá, eu só queria pedir a sua atenção para uma pergunta da atriz, deputada e secretária da Cultura de São Paulo, Bete Mendes.

[inserção de vídeo]

Bete Mendes: Cacá, é um prazer poder estar conversando com você, infelizmente eu não posso estar ao vivo, mas, por tape, eu queria te fazer uma pergunta. A gente sabe que o cinema nacional tem muitos problemas, e eu queria te perguntar. Salas de espetáculos: como é que a gente faz para que não fechem cinemas, você tem alguma sugestão?

Cacá Diegues: [Silencia, coça a cabeça e sorri] Não, eu não sei Bete, eu não sei o que fazer. Quer dizer, eu estava dizendo aqui no programa que o número de problemas, no cinema brasileiro, são muito agravados pela crise da economia nacional, quer dizer, nós estamos vivendo em um país em plena recessão, para não dizer em uma profunda depressão econômica, onde as pessoas não têm dinheiro para sair de casa, não têm dinheiro para comer! Então elas não vão ao cinema. Se elas não vão aos cinemas, as salas ficam vazias. Se as salas ficam vazias, fecham! Vira supermercado, vira não sei o quê. O cinema hoje, ele não é o mais importante, Deus me livre, de ter essa arrogância, porque o mais importante é a fome do povo. Ele não é a vítima mais importante da recessão, mas ele é a primeira vítima da recessão. Quando o sujeito não tem um orçamento para sobreviver, a primeira coisa que ele corta é o lazer, e, do lazer, a primeira coisa que ele corta é o cinema. Então, para responder a sua pergunta, a gente teria que mudar o Brasil, eu acho que o que a gente tem que tentar mudar é o Brasil, que não é possível que o país continue a ser o que é, quer dizer, o Brasil é um país muito engraçado, porque é um país de ponta na eletrônica, tem um negócio de informática maravilhoso, em suma, é um país que se modernizou. Mas é um país que se modernizou e continua profundamente miserável. Essa modernidade, ela é habitada por vergonhosas concentrações humanas, nas favelas urbanas, nos subúrbios pobres, nas periferias miseráveis. Como é que resolve isso? Você, que é política, que nos representa tão bem aí no seu cargo público, talvez possa fazer muito mais do que eu que sou um pobre cineasta.

Dirceu Soares: Cacá, deixa eu fazer uma perguntinha. É o seguinte, eu tenho essa curiosidade, por exemplo, o mercado lá fora, no exterior, sempre se fala em lá fora, e música tem muito isso, de repente a coisa pode furar um bloqueio e emplacar qualquer coisa. E o Brasil ultimamente tem ganho muito prêmio aí fora, inclusive, interpretação e... bom, vários filmes, inclusive, nos Estados Unidos e tal. Como é esse mercado lá fora? Está sendo emplacado no mercado de arte,  que é aquele: meia dúzia de pessoas vai, a crítica gosta, mas fica nisso?Ou existe alguma maneira de se chegar lá?

Augusto Nunes: Aliás, Cacá, eu gostaria só de incorporar à pergunta do Dirceu, uma curiosidade de vários espectadores. Eles gostariam que você explicasse as razões do sucesso de uma atriz como Sônia Braga [protagonista de importantes filmes brasileiros como Dona Flor e seus dois maridos, Eu te amo e A dama do lotação, iniciou carreira internacional com participação no filme O beijo da mulher aranha - ver entrevista com Sonia Braga no Roda Viva] no exterior. Como é que um ator brasileiro consegue garantir seu espaço como ela conseguiu?

Cacá Diegues: Olha, primeiro o Dirceu [Soares]. Realmente, o mercado externo é uma velha ilusão de cinema brasileiro. Primeiro, por esse motivo que você falou aí, quer dizer, veja bem, não existe um cinema internacional vindo de um país pobre, não existe. Os cinemas internacionais, aqueles que circulam abundantemente são naturalmente o cinema americano, que é o segundo cinema nacional em todos os países, hoje até já está havendo, porque tradicionalmente na Europa os cinemas nacionais, por exemplo, o cinema nacional francês tinha mais público que o cinema americano, o cinema nacional italiano tinha mais público que o americano. Hoje já inverteu [sinaliza inversão com as mãos]. Hoje já é o cinema americano que tem mais público que o cinemas nacionais francês, italiano e assim sucessivamente. Então fica muito difícil para um país tão longínquo, tão desconhecido, de costumes tão absurdos - não é? - de uma geografia humana, social, tão estranha, se impor no mercado convencional desses países. Se impõe através dos festivais, dos circuitos de arte e ensaio, dos circuitos universitários, nos Estados Unidos tem muito, enfim, dessa soma de exceções. E, assim mesmo, são dois, três filmes que se beneficiam a cada ano, porque mesmo esses mercados não têm capacidade para absorver a produção importante brasileira. Nós hoje estamos produzindo oitenta, noventa filmes por ano. Claro que nem todos são bons, mas vamos tirar aí vinte, trinta filmes dignos, respeitados, que podem ser vistos e coisa e tal. O mercado internacional, mesmo esse mercado alternativo, não tem capacidade para absorver esses filmes. Então ele vai beneficiar todo ano dois, três filmes. Houve só uma exceção, essa, realmente, é uma grande exceção, que é o filme do Babenco [Hector Babenco, cineasta nascido na Argentina e naturalizado brasileiro - ver entrevista com Babenco no Roda Viva], O beijo da mulher aranha [co-produção Brasil - Estados Unidos, foi lançado em 1985 e rendeu o Oscar de melhor ator a William Hurt], que foi um caso excepcional que eu não sei se a gente pode fazer um belíssimo filme, que resultou muito bem. Mas eu não sei se a gente pode fazer disso o pilar de uma indústria cinematográfica brasileira, eu acho que é tipicamente uma exceção.

[...]: Cacá, sobre...

[Sobreposição de vozes]

Cacá Diegues: O negócio da Sônia Braga, eu acho que a Sônia Braga se deu bem, primeiro, porque ela é uma grande atriz, é uma excelente atriz, uma atriz das melhores do mundo. E, segundo, porque ela trabalhou muito. Não foi assim, quer dizer, ela não chegou lá de cara. Ela ficou anos nos Estados Unidos, sem fazer filme, com a gente, trabalhando, melhorando o inglês dela, fazendo cursos... Enfim, a Sônia é uma pessoa que trabalha, ela trabalhou mesmo, quer dizer, foi uma coisa que ela procurou e conseguiu.

Marco Antônio de Lacerda: Cacá, não precisa ser grande entendedor de cinema para a gente perceber que você é um cineasta que gosta muito de música. O personagem central de Um trem para as estrelas é um músico, não é? Ou seja, você como um cineasta que gosta de música, como é que você vê essa... a música corrente brasileira, essa grande piada, na minha opinião, claro, que se chama rock brasileiro? Como é que você vê isso? Se não isso não cairia naquela categoria que o Adhemar falou há pouco, do colonialismo cultural? Ou se enquadra dentro dessa coisa de uniformização cultural, que você estava falando?

Cacá Diegues: Não... eu lhe digo que eu não... eu não estou muito preocupado em identificar a nacionalidade da produção cultural. Eu acho que isso aí, eu já falei sobre isso. Por exemplo, eu acho que no rock brasileiro tem personagens interessantíssimos, como o Lobão [músico carioca nascido em 1957, importante figura do rock nacional]. Eu acho interessantíssimo o que o Lobão está falando. O próprio Cazuza, que eu usei no filme, coisa e tal. O que eu acho, é que, de um modo geral, sem citar nomes porque eu não estou... Mas, de um modo geral, a música brasileira está enfrentando o mesmo problema do cinema brasileiro, e das artes e da cultura brasileira. Quer dizer, eu acho que nós estamos vivendo um período muito sombrio da produção cultural brasileira. Mas não é só na produção cultural brasileira, é na produção cultural mundial. Quantos filmes bons você viu esse ano? Bons [enfatizando]. Eu não estou falando aquele filme que você vai [e diz:] "Ah! Interessante...". Não, bons. Quantos bons músicos apareceram nessa década? Quantos bons homens de teatro? Quantos escritores importantes apareceram? O que eu acho que está acontecendo nesse final de século é um momento muito difícil... Eu tenho impressão que é o seguinte. Rapidamente, uma hipótese puramente arbitrária, eu posso estar completamente enganado, mas eu tenho a impressão, com o fim das utopias, a morte das utopias, a grande decepção dos regimes sociais, nas idéias utópicas, no que iria acontecer com o mundo, eu estou falando do socialismo clássico, até o "hippismo" [referência ao movimento de contracultura cujo principal lema se resumia na expessão "Paz e Amor"] dos anos 60, enfim, com a morte dessas utopias, eu acho que isso se solidificou nos anos 80, sobretudo com o pensamento europeu, super sofisticado e frio que a gente conhece. Isso tudo gerou duas coisas: à esquerda uma enorme melancolia, uma cultura de lamentação, melancólica, nostálgica, saudosista, e à direita um enorme e extraordinário cinismo, que se revela na obra de arte, no cinema, na música, pelo maneirismo, não é? Pelas formas aparentes da obra de arte, tipicamente maneirista, dândi, aquela coisa mais terrível que está acontecendo, que é essa arte yuppie que surgiu nessa década de 60. Então você tem a melancolia à esquerda e o cinismo à direita, você gera uma década de uma frieza muito grande em matéria de...

Marco Antônio de Lacerda: [Interrompendo] Mas, no meio disso tudo, há algumas exceções, por exemplo, já que a gente estava falando de música, reggae é uma coisa, é Jamaica e [a Jamaica] é Terceiro Mundo, e, no entanto, talvez seja a forma musical, ao lado do rock, mais influente na música pop. Como é que você entende uma coisa dessas?

Cacá Diegues: É que foi muito apropriado Marco Antônio. Foi uma coisa... Você tem razão. A origem do reggae é jamaicana, coisa e tal. Mas isso tudo foi apropriado, foi apropriado, e não é à toa que os heróis do reggae estão sendo assassinados aí, estão morrendo um por um. Quer dizer, há toda uma tendência... É claro que existem os... Como diz isso? Os dinossauros, os mastodontes [elefantes primitivos], existem os que resistiram, os que ficaram, que estão aí... Mas olha, outro dia, eu estava vendo... sábado... está me ocorrendo agora... sábado passado eu estava vendo um especial com Jimi Hendrix [revolucionário guitarrista norte-americano (1942-1970)] na TV Manchete, se eu não me engano, eu fiquei muito emocionado, porque eu disse "mas que energia, que imaginação, que vontade de inventar, que crença!", e ao mesmo tempo "que dor!". Porque é só a dor é capaz de criar a grande obra de arte, a dor do mundo, do homem ferido diante do mundo absurdo, só isso produz obra de arte. Mas isso acabou, isso acabou. Eu acho que existe uma espécie de complacência conformista, as guerras se banalizaram, as populações que morrem de fome viraram matéria de segundo caderno, entendeu? O importante é o tamanho do mandato. [risos] Quer dizer...

Luís Fernando Emediato: Entre a melancolia e o cinismo, onde que você se situa?

Cacá Diegues: Não, a pergunta é seriíssima, eu estou com muita dificuldade, Emediato. Eu me sinto talvez um desses dinossauros, um desses mastodontes, meio perdido, não é? E como eu te disse antes, no início do programa, eu não me sinto compromissado com nenhum problema de coerência, eu estou pouco ligando para o que eu fiz ou para o que eu disse há dez, cinco ou dois anos atrás. Eu estou ansioso para descobrir, não é? Eu não vou descobrir, mas eu estou ansioso para participar da construção de algum futuro viável. Eu tenho dois filhos adolescentes, uma filha de dezessete anos que está até começando a fazer cinema, até escondido de mim. Eu nem sei o que ela está fazendo. Fica fazendo uns curta-metragens.

Ninho Moraes: Ela gostou do seu filme?

Cacá Diegues: Gostou, ela me ajudou muito até.

Augusto Nunes: Cacá...

Cacá Diegues: Então eu fico pensando muito, o que esses adolescentes estão pensando, o que eles estão tramando, você está entendendo?

Dirceu Soares: Será que eles não vão descobrir eles mesmos os caminhos deles?

Cacá Diegues: É, mas eu quero saber que caminho é esse. Eu estou curioso.

Dirceu Soares: Mas eles vão chegar lá.

Cacá Diegues: Vão, né! Eu espero que sim.

Dirceu Soares: Você chegou, todos chegarão.

Augusto Nunes: Cacá, tem-se discutido muito a questão do...

Cacá Diegues: Mas eu cheguei, espera aí, eu cheguei em um momento, não sendo injusto, eu cheguei em um momento em que o mundo era cheio de energia, de esperança...

Dirceu Soares: Sim, mas aí...

[...]: Anos dourados.

Cacá Diegues: Eu vivi um mundo...

Dirceu Soares: Mas aí, cai naquela história, me disseram em uma ocasião que os índios, não sei se são todos os índios, [tem] um costume assim: ele não ficava deixando herança para o filho, porque seria passar um atestado de incapacidade, para o filho, de se realizar como ele se realizou...

Cacá Diegues: É verdade...

Dirceu Soares: Entende? Então eu não sei, já que você gosta muito de esperança, eu acho que os jovens vão abrir o mercado.

Cacá Diegues: Eu acho que sou privilegiado, porque eu vivi num período da história da humanidade, neste século, que nunca mais vai ser reproduzido. Realmente um período, apesar de tudo que aconteceu no Brasil, depois de 1968 [referência à ditadura militar], que a gente sabe. Mas, foi um período da humanidade em que as pessoas realmente acreditaram que essa coisa chamada Homem ia dar certo. E eu não vejo muita gente acreditando mais, não.

Ninho Moraes: [...]

Augusto Nunes: Ninho, só um segundinho. Tem se discutido muito a questão da exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista. Nós temos aqui vários estudantes da ECA [Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo], como eu disse no começo do programa. Duas perguntas. Primeiro, como é que você chegou ao cinema e que tipo de formação você tem? Segundo, você acha que se deve exigir de alguém interessado em fazer cinema, algum tipo de formação acadêmica? Algum diploma?

Cacá Diegues: Não, começando pelo fim, eu acho que esse negócio de diploma é uma boçalidade, esse negócio de diploma para jornalista, por exemplo, é uma imbecilidade. Porque realmente eu não acho que seja o diploma que faça o jornalista, quer dizer, o mundo das idéias não se constrói através de diploma. Diploma é para engenheiro, para médico....

Dirceu Soares: [Interrompendo] Nesse momento, você está junto com a Folha [jornal Folha de S. Paulo]?

Cacá Diegues: Hein?

Dirceu Soares: Nesse momento você está junto com a Folha.

Cacá Diegues: Ah! É!

[Risos]

Cacá Diegues: Pelo amor de Deus, eu não tenho nada contra a Folha não. Eu não tenho nada a ver com isso. Aliás, até gosto, leio a Folha constantemente. [risos] Mas você está entendendo? Quer dizer, eu acho que o mundo das idéias, em suma, quer dizer, um diploma é para o médico não matar a gente em uma operação, para o engenheiro não fazer a casa cair.

Augusto Nunes: Às vezes, mata.

[Risos]

Cacá Diegues: Agora, quanto ao negócio da escola, não. Quer dizer, aí eu devo dar o seguinte depoimento, que é muito importante, e eu tenho autoridade para dar isso, porque eu aprendi cinema vendo filme, assistindo Nelson Pereira dos Santos filmar, [fui] assistente de Ruy Guerra na montagem, com quem eu aprendi infinitamente a parte técnica do cinema, lendo livros, porque não havia escolas, não havia nada no Brasil. Hoje existe escola, sobretudo a ECA, USP [Universidade de São Paulo], aqui em São Paulo e a UFF [Universidade Federal Fluminense] lá no Rio de Janeiro. E devo lhe dizer o seguinte: quando eu vejo um filme de estréia de um desses meninos que saíram da USP, da ECA ou da UFF, eu fico emocionado, porque qualquer filme desses é infinitamente mais bem feito do que qualquer dos nossos filmes de estréia. Então isso significa que houve uma acumulação, da qual nós participamos também, eu não me sinto longe disso não, eu faço parte disso, porque nós criamos a tradição, nós fundamos a tradição de um cinema moderno, que hoje está nas escolas. E eu acho que uma das coisas aqui em São Paulo, sobretudo, essa espécie de surgimento, de um... não é propriamente um movimento, porque os filmes não se parecem, cada um deles tem um estilo próprio... Mas esse surgimento de uma espécie de grupo de jovens cineastas paulistas, veja bem, quase todos vieram da ECA. Eu acho que isso é fundamental. Agora, isso evidentemente que não faz o cineasta, não é? Isso dá uma base para que o cineasta faça melhor o seu trabalho, entendeu? E eu tenho certeza que isso é extremamente proveitoso e deve ser incentivado.

Ninho Moraes: Cacá, eu queria falar um negócio. Você estava falando agora a pouco, essa questão, dessa época, foi realmente uma época privilegiada. O começo do século também teve uma época privilegiada, com todos os movimentos Bauhaus, todas as coisas [...], foi uma época também super... Depois tem uma caída, depois teve a década de 60, quer dizer, essas coisas são meio cíclicas... A gente estava... Você falou do Jimi Hendrix, não é? Jimi Hendrix foi um mito, é um mito. Mito no bom sentido, bom mito. No programa que a gente fez, O olhar feminino, o Lacerda, ele dava um depoimento que ele falava de mito, ele dizia o seguinte, que o mito está se esgotando por causa da televisão. Porque, na medida, em que ele se aproxima da pessoa, ele deixa de ser mito, ele fica uma coisa muito comum, não é? E isso até matou, de uma certa forma, no cinema, e a gente lembra daquele papo de conversa sobre mulheres, matou um pouco isso não é? Não se criam mais Brigitte Bardot, Marilyn Monroe  [atriz estadunidense (1926-1962) que se transformou em símbolo sexual mundial pela beleza exuberante e estilo sedutor.  Sua vida polêmica inclui o uso de drogas e uma ligação amorosa com o então presidente John Kennedy], grande atrizes como a [francesa] Jeanne Moreau, com quem você trabalhou, ou outras mulheres assim ou outros atores assim [como o] Marlon Brando. Eles estão cada vez mais próximos, não é? E isso, de uma certa forma, dificulta até o próprio crescimento dessas pessoas, não é? Como é que você vê isso, para justamente ultrapassar essa pasteurização da arte como um todo? Daí eu completaria, até citando um outro tipo de arte. Nas artes plásticas, hoje em dia, as pessoas vendem quadro por centímetro quadrado. Ele fala "Quanto vale o seu quadro?". Ele fala assim "Bom, tantos centímetros é tanto.". Vai por aí... E é uma coisa, você imagina Picasso pintando por centímetro quadrado. Não. Então eu queria saber isso: como é que é evitar essa pasteurização? É por aí. Esse resgate do mito no bom sentido.

Cacá Diegues: Eu acho que a maneira de evitar a pasteurização é a gente tentar, realmente... Primeiro, é a obra pessoal... É isso que o maneirismo destrói, quando eu estava falando do maneirismo, da arte cínica ou cética, não é? Destrói, porque você uniformiza, não é? Então tentar uma arte pessoal, por exemplo, você fez uma crítica aí a Um trem para as estrelas, coisa e tal, que tem umas seqüências que poderiam ser dirigidas por qualquer outra pessoa. Se isso é verdade, é um erro meu, porque a minha tentativa era fazer um filme que só pudesse ser feito por mim, entendeu? Inclusive eu não sou o melhor crítico dos meus filmes. Mas uma coisa que eu tenho certeza é que cada filme que eu faço, eu faço com um empenho absolutamente pessoal, de testemunho do meu tempo. A pior coisa que pode acontecer... eu não quero fazer filme nem para o passado nem para o futuro.  Deus me livre dos meus filmes serem carta para o futuro, eu quero fazer filme para o presente, eu quero testemunhar o espírito presente, e tento fazer isso de uma maneira pessoal, me empenhar nisso da maneira pessoal. Eu faço meus filmes com o mesmo entusiasmo de um primeiro filme e a mesma agonia de um último, que eu não sei se vou fazer um outro depois, entendeu? Então tudo isso cria um clima pessoal dentro do filme, que se não... se em algumas seqüências não passou para você ou para alguém, é porque talvez eu não tenha conseguido chegar lá. Mas acho que se nós fizermos isso, nós artistas, produtores de cultura, fizermos esse esforço, o que você chama de mito renascerá, vai reaparecer. Porque, na verdade, esses mitos todos que você está citando, na verdade... Vou mudar um pouco a palavra, na verdade esses mitos não são nada mais, nada menos, que estereótipos das nossas qualidades, as nossas melhores qualidades se concentram em certas pessoas que de repente expressam o seu tempo, como Glauber [Rocha] expressou o meu.

Augusto Nunes: Cacá, num cenário empobrecido, como esse que você descreve do cinema brasileiro, que tipo de impacto representam mortes como a do Roberto Santos [produtor, roteirista e diretor de cinema (1928-1987)] e, mais recentemente, Leon Hirszman?

Cacá Diegues: Além de tragédias pessoais para todos nós, são pessoas que a gente curtia, convivia etc, são metáforas do que está acontecendo na realidade, quer dizer, essa geração está morrendo, está desaparecendo, não é? A coisa que eu considero uma das metáforas mais cruéis na morte do Leon, que foi o grande articulador do cinema brasileiro, que foi a pessoa que superava o insuperável, que era o grande artífice da superação das crises, da negociação, no bom sentido de negociação, a pessoa que tinha a visão talvez mais clara do processo brasileiro, além do grande cineasta que ele era, para não falar das obras primas que ele fez, mas tinha a mais clara [visão], na cabeça, do processo do cinema brasileiro, a metáfora mais cruel é que ele morreu realmente da doença para a qual não há conciliação possível.

Marco Antônio de Lacerda: Cacá, uma pergunta que eu acho que muitos telespectadores que viram o seu filme queriam te fazer. O que é que significa aquele helicóptero pairando no filme inteiro?

Cacá Diegues: Isso uma porção de gente me pergunta. É a mesma coisa "o que a Xica [da Silva, personagem do filme homônimo] fazia com os homens?", você lembra?

[Risos]

Cacá Diegues: Mas eu não sei. Aquele helicóptero, eu posso te dizer como ele nasceu, eu não sei. Eu não controlo tudo o que eu faço. Quer dizer, as coisas que eu faço, eu faço por instinto, por emoção, por delírio, por sonho. Às vezes ,eu sonho uma coisa e boto no filme, quer dizer, eu não controlo racionalmente o meu trabalho, eu não tenho esse poder, eu não tenho essa virtude talvez, sei lá. O caso do helicóptero é o seguinte: aquele é um filme sobre as grandes cidades, e uma coisa que eu sempre observo, sobretudo no Rio de Janeiro, aqui em São Paulo também, mas no Rio de Janeiro mais, eu não sei por quê? Eu acho que é por causa do turismo coisa e tal.

[...]: Não é São Paulo, não é?

Cacá Diegues: Isso, não é São Paulo. Vai ver por causa do turismo, não sei exatamente por que. O Rio de Janeiro está sempre cheio de helicóptero, helicópteros e aviões, mas como o helicóptero é mais barato, eu não botei avião, eu botei helicóptero. [risos] E eu sempre olhava e dizia assim, cara se você parar na esquina e olhar para cima, você vai ver sempre um helicóptero passando na sua cabeça, tá. Isso daí é um pouco... Aí a minha cabeça funciona da seguinte maneira: isso é um pouco quando você está em um campo e se você prestar atenção no céu, você vai ver milhares de estrelas cadentes caindo o tempo todo, sem parar, coisa que você não vê na cidade. Então, me ocorreu que os helicópteros são as estrelas cadentes dos céus urbanos, entendeu? Aos quais você pode fazer um desejo.

[Risos]

Cacá Diegues: Aos quais você pode fazer um desejo, não tem esse negócio, que a estrela cadente cai e você faz?. Faça um desejo para o helicóptero e ele será aquilo que você quiser.

Luciano Ramos: Cacá, você disse que você está fazendo cinema 24 horas por dia. Mas, evidentemente, agora você não está filmando nem está montando. Há pouco tempo, você disse que algumas coisas na montagem você teve que tirar e tal. Quer dizer, no trabalho do cineasta existe uma série de tarefas, a de pensar o roteiro, a de montar um filme, ou de filmar ou dirigir um ator. Qual delas é o maior depositário da sua criatividade?

Cacá Diegues: Luciano, eu adoro fazer cinema. Eu não gosto nem de falar muito porque se eu disser o quanto é bom cinema, todo mundo vai querer fazer [risos], e não vai ter lugar. Eu acho cinema um prazer enorme e eu gosto de rigorosamente tudo. O que eu estou fazendo aqui agora é fazer cinema. Eu me considero... é como eu te disse, eu não sou um profissional de cinema, eu sou um militante de cinema. Eu acho que fazer cinema é isso que eu estou fazendo aqui, é montar. Eu adoro filmar, adoro montar, eu considero um privilégio eu fazer cinema, entendeu? Só tem uma coisa em cinema e para a resposta não ficar tão boboca, quer dizer, só tem uma coisa em cinema que eu detesto que é dublagem. Eu evito dublar sempre que eu posso, tanto que a grande maioria dos meus filmes são sempre feitos em som direto. Eu acho que a dublagem tira um pouco da alma do filme. Eu detesto, eu sou impaciente, e olha que eu sou uma pessoa pacientíssima filmando, mas para dublar, eu considero intragável dublar. O resto, tudo eu adoro. Eu aprendi a montar com o Ruy Guerra, quer dizer, a minha primeira profissão, o meu primeiro dinheirinho que eu recebi em cinema, foi como assistente de montagem do Ruy Guerra. Então, eu adoro montar, fui montador, montei o famoso O circo [documentário de 1966, no qual o cineasta acompanha um grupo de saltimbancos e sua caravana pelos subúrbios do Rio de Janeiro], o filme do [Arnaldo] Jabor, documentário que foi premiado várias vezes. O primeiro filme que ele fez foi eu que montei, entendeu? Como montei várias outras coisas. Que mais? O roteiro, eu adoro escrever, mesmo que de vez em quando digam que fui eu que tomei dos outros [risos]. Eu passei os meus dez filmes, os três programas de televisão que eu fiz, os curta metragens, todos eu trabalhei nos roteiros, sem nunca ninguém ter reclamado. Que mais? Filmar é um prazer, eu adoro fazer cinema, quer dizer, se o cinema não existisse, eu não sei o que seria, eu não sei o que eu faria no mundo.

Ninho Moraes: Cacá, quais são os desastres mais divertidos da sua carreira?

Cacá Diegues: Quais são o quê?

Ninho Moraes: Quais são os desastres mais divertidos da sua carreira, tipo navio que afundou, em Xica da Silva?

Cacá Diegues: Aquilo não foi divertido não, você está maluco, aquilo foi um horror. O navio de Xica da Silva que afundou, aquilo foi um horror. Foram duas experiências muito difíceis que eu tive na minha vida de cinema, assim na prática, por exemplo, foi aquele naufrágio em que a gente...

Ninho Moraes: Eu estou falando divertido agora, à distância.

Cacá Diegues: A gente teve que arrancar as meninas de dentro do navio, oito meninas que não sabiam nadar, que iam morrer afogadas.

José Márcio Penido: Se serve de consolo, o astro do filme do John Huston [ator e diretor de cinema norte-americano (1906-1987)] também...

Cacá Diegues: [completando] ...teve esses problemas aí.

Augusto Nunes: Cacá, nós vamos encerrando aqui o nosso programa. Queria agradecer a sua presença, agradecer o comparecimento dos nossos entrevistadores. Tenho certeza de que os nossos telespectadores aprenderam a conhecer um pouco melhor esse brilhante cineasta brasileiro que é Cacá Diegues. O programa Roda Viva volta na próxima segunda-feira, às 9h25 da noite.

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