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Memória Roda Viva

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Cecília Von Feilitzen

19/4/2004

Apesar do poder de sedução que a TV exerce, a pesquisadora da relação entre criança e mídia afirma que a influência e o comportamento dos adultos ainda é o mais importante para crianças e adolescentes

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[Programa gravado, não permitindo, portanto, a participação de telespectadores]

Paulo Markun: Boa noite. A globalização que provocou mudanças na política e na economia também faz reviravoltas nos meios de comunicação. Novas tecnologias, desregulamentação, aumento da concorrência, isso tudo afetou conteúdos e aumentou as preocupações em relação aos apelos de violência, sexo e sensacionalismo, que invadem a mídia, especialmente a internet, o vídeo e a televisão. Como esses conteúdos afetam as crianças e os jovens e como controlar isso é a discussão desta noite aqui no programa Roda Viva. Nossa entrevistada é Cecília Von Feilitzen, coordenadora científica da Câmara Internacional da Unesco para Criança e a Violência na Tela. Pesquisadora da relação entre criança e mídia, Cecília conduz um trabalho que, entre outros objetivos, pretende evitar que os exageros possam aumentar ainda mais a crise moral vivida atualmente.  Para entrevistar Cecília Von Feilitzen, convidamos Leila Reis, crítica de televisão do jornal O Estado de S. Paulo; Ricardo Soares, roteirista da programação especial da TV Cultura para o Dia Internacional da Criança no Rádio e na Televisão e diretor do programa Mundo da Literatura da STV; Beth Carmona, presidente da TVE-Rede Brasil e do Centro Brasileiro de Mídia para Crianças e Adolescentes. Beth é também co-responsável pela organização da IV Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes, programada para abril no Rio de Janeiro; Fernando Rossetti, jornalista do Canal Futura e do site Aprendiz, e consultor do Unicef e da Agência de Notícias dos Direitos da Infância para Projetos de Educação e Comunicação; Âmbar de Barros, coordenadora do escritório da Unesco em São Paulo e vice-presidente da Agência de Notícias dos Direitos da Infância, a Andi, e Yves de La Taille, professor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo [USP]. Boa noite, Cecília.

Cecília Von Feilitzen: Boa noite.

Paulo Markun: Eu queria começar mencionando aqui esse livro que você coordenou A criança e a mídia: imagem, educação e participação, que já está na segunda edição da Cortez Editora e da Unesco, que é um amplo painel sobre os esforços que vêm sendo feitos em vários países do mundo, no sentido de educar para a mídia e, de outro lado, defender os interesses das crianças. A impressão que eu tive, examinando este livro e lendo alguns dos trabalhos publicados, é que não falta documento, não falta lei, não falta nenhum tipo de norma para que a criança seja respeitada. O que é que falta então?

Cecília Von Feilitzen: No que se refere à mídia, falta regulamentação. Não há muitas leis hoje. Grande parte da mídia é comercial, as informações fluem livremente. Não há regulamentação.

Paulo Markun: Sim, mas veja bem. Todos os institutos, a Unesco, todas as instituições já pensaram sobre o assunto. Acontece que o quê se discute nesses institutos e nesses organismos não chega até a mídia. Não é?

Cecília Von Feilitzen: É verdade, porque são recomendações, declarações e resoluções, não são leis. As leis devem ser criadas pelo governo. Esses documentos são de organizações voluntárias, provêm de seminários e pesquisas, de produtores que desejam uma mídia melhor para as crianças, mas não são leis ou regulamentações. A mídia cria normas para si mesma, mas não as segue.

Paulo Markun: Esse é o problema.

Cecília Von Feilitzen: Sim.

Paulo Markun: E como se rompe essa coisa? Como é que se faz com que esse mundo teórico funcione na vida prática?

Cecília Von Feilitzen: Você precisa seguir vários caminhos, claro. Se a mídia não seguir as normas, você deve... Você não vai fazer leis, claro, mas pode fazer... Estamos discutindo na Europa, por exemplo, alguns tipos de co-regulamentação. Se a mídia tem sua própria regulamentação, pode haver grupos independentes, por exemplo, para monitorar a produção ou discutir com os produtores. Talvez um conselho formado pelo público. Há muitas formas de co-regulamentar, trabalhando junto com a mídia. Essa é uma saída. Uma outra saída é fazer uma programação de qualidade. Isso é muito importante. O público deve exigir da mídia que faça bons programas. Uma terceira saída é conscientizar mais os pais sobre a situação das crianças. Nos países mais ricos, nas famílias de classe média, as crianças são bombardeadas pela mídia. Em geral, uma família tem vários aparelhos de TV, as crianças têm uma televisão em seu próprio quarto etc. É muito importante que pais e filhos vejam TV juntos, leiam juntos e tudo mais, e discutam os conteúdos, porque a influência das pessoas é mais forte que a influência da mídia. Mas, quando não há influência das pessoas, a mídia exercerá essa influência. Se os pais assistirem à TV com os filhos, se passarem a ler com os filhos, se jogarem no computador e usarem a internet juntos, dizendo o que pensam, quais são seus valores, o que nós, como pais, pensamos a respeito, isso terá uma influência maior. Além disso, é preciso tomar uma atitude com relação à escola. É preciso discutir e integrar a mídia na escola, promover a educação para a mídia, coisas que alguns chamam de alfabetização para a mídia. Em muitos países latino-americanos, o nome é educação para a comunicação, por meio da mídia. São conceitos diferentes para a mesma coisa. De qualquer forma, é preciso usar a mídia na escola, ensinar as crianças a analisar criticamente o conteúdo da mídia. Uma forma de fazer isso, na verdade, é levar as próprias crianças a produzir mídia no ambiente escolar, porque você aprende fazendo. Pode ser que as crianças imitem no começo, mas depois de um tempo vão começar a pensar em como a mídia constrói o mundo e tudo mais. Como a mídia funciona. A longo prazo, elas estarão educadas para a mídia. Isso é importante para adultos também. Eles precisam ler os livros e tudo mais.

Beth Carmona: Você está dizendo, Cecília, que para que a situação mude em relação à mídia e o respeito às gerações futuras que hoje estão frente à mídia, é necessário um esforço da sociedade. Gostaria de saber quais são os países onde esse esforço – já que você tem uma visão mundial – quais são os países que estão um pouco mais adiantados e o que eles estão fazendo?

Cecília Von Feilitzen: Na verdade, no que se refere à qualidade da programação, a situação é muito ruim em muitos países. Alguns países nunca tiveram uma boa programação de TV, um bom conteúdo de mídia. Alguns países tinham melhor programação e conteúdo de mídia antes, mas agora estão mudando, estão simplesmente exibindo desenhos do mundo todo, porque é mais barato. Por exemplo, eu li um estudo que dizia que, na Europa, muitos canais públicos de televisão têm porcentagens cada vez maiores de desenhos americanos. Para citar alguns exemplos, acho que a Austrália realmente está tentando fazer dramas infantis de qualidade. Também acho que os países nórdicos da Europa, Suécia, Dinamarca, Noruega e talvez a Finlândia, também tentam preservar a idéia do serviço público. Eles ainda têm muitas produções nacionais para crianças, não há muitos programas importados. Por outro lado, há os canais pagos, e não podemos fazer muita coisa a respeito, porque a transmissão ultrapassa as fronteiras. A Austrália e os países nórdicos, talvez alguns canais do Reino Unido. Desculpe, não conheço muita coisa do Brasil, porque nunca tinha vindo, esta é a primeira vez. É uma honra ter sido convidada. A situação é, na verdade, muito ruim. No que se refere à educação para a mídia, alfabetização da mídia, já se fala sobre isso há quarenta ou 45 anos no mundo todo, mas não há muita educação ou alfabetização para a mídia. Acho que o país que mais progrediu foi o Canadá. Houve movimentos populares no Canadá, com participação de muitos professores. Eles criaram uma rede de TV e, pelo menos em Ontário, que é uma das províncias do Canadá, o governo local aprovou, e agora o ensino de educação para a mídia é matéria nas escolas. Mas em muitos outros países, os professores não sabem o que fazer. Eles não aprendem isso na faculdade.

Leila Reis: Cecília, uma das soluções que a senhora propõe, que é o resultado desse estudo todo, para você combater a péssima mídia para a criança, é ter a família acompanhando a criança quando ela entra em contato com essa mídia, com a televisão, com a internet, jogos. Mas o mundo moderno hoje coloca as crianças longe da família. Qual é a outra maneira que você tem de levar a criança para uma mídia melhor ou despertar o senso crítico nessa criança?

Cecília Von Feilitzen: Você tem razão, porque os pais que são conscientes já conversam com os filhos, mas muitos pais não têm tempo ou as crianças não têm pais com quem conversar. Essa não é a única solução. Eu mencionei quatro, é possível co-regulamentar a mídia, caso já existam diretrizes próprias, criar conteúdo de qualidade e financiar boas produções. Também é possível ir às escolas para conscientizar as próprias crianças por meio dos professores. É muito bom tentar conscientizar os pais, mas não é possível atingir todos eles.

Fernando Rossetti: Nesse sentido, existem hoje filtros para se usar na internet, estão começando a existir filtros para usar na televisão. Os pais devem recorrer aos filtros que filtram os conteúdos que as crianças recebem ou essa é uma iniciativa que na verdade não resolve o problema?

Cecília Von Feilitzen: Eu acho que isso não resolve o problema. Por exemplo, os filtros para TV... O controle de violência é usado há alguns anos nos EUA, e apenas 7% dos pais usam o filtro, 93% não o usam. Esse controle da violência foi muito discutido, mas não acho que seja uma solução. Na internet, recebemos muita correspondência indesejada via e-mail, as pessoas podem entrar em salas de bate-papo... Não sei como filtrar a internet. Quando isso acontece, é da maneira errada. Por exemplo, se você quiser filtrar sexo, alguns trabalhos sobre sexo são muito bons para aprender sobre DSTs [doenças sexualmente transmissíveis], e de outra forma você não aprenderia isso. Ao mesmo tempo em que você filtra algumas coisas, filtra coisas boas da internet também. Há muitas maneiras de burlar esses filtros, como você sabe. Quando os filhos são bem pequenos, os pais podem filtrar para eles, mas quando eles crescem, sabem mais da internet e dos filtros do que os pais.

Fernando Rossetti: Isso tem colocado um problema também para a educação para a mídia, com os professores a gente percebe isso aqui no Brasil. Por exemplo, quando se vai trabalhar com vídeo na escola ou com internet na escola, as crianças e os adolescentes aprendem mais rápido do que os adultos, os professores. E isso cria um desbalanço, um desequilíbrio entre o poder do professor de saber fazer alguma coisa e a capacidade da criança de produzir mídia, que normalmente é maior do que a do professor. Como isso tem sido enfrentado nos países que estão enfrentando essa questão de levar a mídia para dentro da escola, já que a família não está conseguindo?

Cecília Von Feilitzen: Acho que a única maneira de conseguir é fazer com que os professores percam parte do seu poder sobre as crianças. Eles precisam trabalhar lado a lado com as crianças, todos juntos, em um projeto comum, como Paulo Freire descreveu. Isso não vai dar certo se o professor achar que deve saber mais do que as crianças. Isso não é verdade, eles devem atuar juntos, observando o mundo e tentando produzir alguma coisa. O professor deveria dar apoio à criança, mas sem decidir por ela.

Yves de La Taille: Cecília, eu queria voltar um pouco à questão da família. Como você disse, a participação da família na crítica, na reflexão, é extremamente importante, mas eu me pergunto: que família é esta hoje? Por um lado, ela também é influenciada pela televisão e, por outro lado, sabemos que a tendência de muitas famílias é colocar a questão da educação para fora dela – em escolas e outras instituições. Então eu queria saber se, na sua opinião, a família, às vezes, não acaba sendo mais realimentadora do que a mídia apresenta, notadamente em relação à violência, do que reguladora. Ou seja, eu queria saber qual é o seu otimismo em relação ao potencial da família, e se, entre família e escola, não será, no fundo, a escola a instituição mais capaz, mais importante para trabalhar essa questão?

Cecília Von Feilitzen: Basicamente, é preciso haver famílias harmoniosas. Se as relações sociais da criança forem boas, a mídia não será um problema muito grande. Essa é a melhor coisa. Esqueça a mídia e crie uma sociedade boa, com pessoas que vivem felizes juntas, com pais que vivem com seus filhos.

Yves de La Taille: Sim, mas a família de hoje, na sua avaliação, é forte ou  é mais entregue à mídia? Porque, às vezes, a gente pensa na família como uma instituição forte, mas talvez hoje ela seja uma instituição fraca ou cada vez mais fraca.

Cecília Von Feilitzen: Os exemplos dos adultos estão entre os fatores mais importantes para o comportamento infantil com relação à mídia. Se os pais sempre vêem muita televisão, compram muitas coisas, navegam na internet o tempo todo, se forem totalmente absorvidos pela mídia, então os filhos também serão absorvidos pela mídia. Talvez você tenha razão. Não conheço bem a situação das famílias em geral, não sou socióloga, mas concordo com você e digo que o mais importante são os exemplos dados pelos pais. O comportamento deles será um dos fatores de maior influência no uso da mídia por parte das crianças. Quando eu falo de ver as mídias junto com as crianças, não se trata de uma questão de regulamentar, controlar, dizer: “Você não vai ver esse programa” ou coisas assim. E não se trata apenas de ver ou ler junto com a criança, mas de discutir, de dizer quais são seus valores, o que você pensa de fato. Se os pais não estão fazendo isso hoje? Sim, talvez você tenha razão.

Paulo Markun: Ok. Cecília, nós vamos fazer um rápido intervalo e voltamos daqui a instantes. Até já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Vida, esta noite entrevistando Cecília Von Feilitzen, coordenadora científica da Câmara Internacional da Unesco para Crianças e a Violência na Tela. Ela é uma estudiosa da relação entre as crianças e a mídia, de como a internet, os jogos eletrônicos, os vídeos e os programas de televisão, influenciam crianças e jovens. Cecília, eu vou avisar desde logo, que o que eu vou fazer é uma provocação, mas acho que ela faz sentido. Nós estamos aqui discutindo em alto estilo e com todo o conhecimento e a informação, um assunto extremamente importante, mas a sensação que eu tenho é que a gente está falando no deserto, porque enquanto nós estamos fazendo este programa ou pior ainda, mais cedo um pouco, no horário da televisão brasileira, e do mundo como um todo, a grande maioria dos programas não leva a sério nem considera essas questões que estão sendo abordadas aqui. Esses programas e essas emissoras de televisão comerciais se pautam por uma questão muito simples, que é ganhar dinheiro, esse é o objetivo deles. E é um negócio de gente muito grande, empresas muito poderosas, que envolve bilhões e bilhões de dólares. E a sensação que eu tenho é que todo o esforço que há no sentido de criticar a ação da mídia ou de buscar algum tipo de melhoria na qualidade da programação não resulta em efetiva melhora da programação, quando a gente fala de TV comercial e de bilhões de dólares.

Cecília Von Feilitzen: Você tem toda a razão. O que norteia a maior parte da mídia é o dinheiro, a mídia quer mais dinheiro e tem ligações muito estreitas com grupos executivos e comerciais na sociedade. Eles querem anunciar as coisas que querem vender e fazem isso por meio da mídia. Três quartos dos anúncios publicitários são feitos na mídia, então há uma ligação muito estreita entre lojas, entre o mundo dos negócios e a mídia. Então não ajuda muito escrever um, dois ou três livros. Por outro lado, é possível pensar em alternativas. É possível tentar fazer uma TV pública de qualidade. Quando falamos com crianças e jovens, eles não estão contentes com todos esses programas comerciais. É preciso fazer alguma coisa, mas é uma luta extremamente difícil, e não sei se pode ser bem sucedida.

Paulo Markun: Agora, o paradoxo dessa situação é que essa indústria, em particular a indústria da mídia e, principalmente, da mídia eletrônica, ao contrário, por exemplo, da indústria do vestuário, para citar um exemplo, poderia mudar instantaneamente de forma ou de preferência. Se, do dia para a noite, as pessoas decidissem, os homens decidissem não usar mais calças, e toda a população do mundo passassem a usar saias, não haveria saias suficientes para todo mundo. No entanto se as pessoas mudarem o seu controle-remoto da televisão, de um programa para outro, elas podem encontrar em todos os países do mundo, algumas alternativas que são de melhor qualidade, de programação não só para crianças. Mas isso não acontece, ou seja, o poder que o consumidor tem ele não utiliza.

Cecília Von Feilitzen: É preciso investir mais nos canais públicos de TV ou nos canais alternativos. Isso deve ser um esforço conjunto de todos, por exemplo, com taxas de funcionamento ou por parte do governo. Não estou dizendo que deva haver canais estatais, mas o Estado pode ajudar. Pode taxar videogames, por exemplo. Há muitas formas de conseguir mais dinheiro para fazer bons programas.

Beth Carmona: Mas, como conseguir também produzir aquilo que consideramos bons programas, como colocou o próprio Markun, que a audiência perceba que eles existem? Quer dizer, esse produtor, essas pessoas que estão se formando em fazer programas de qualidade, onde é que elas se alimentam? O que elas precisam?

Cecília Von Feilitzen: Como eu disse, eles precisam de mais dinheiro e não podem ser dominados pelos canais comerciais. É a única maneira, e eles precisam trabalhar em conjunto com o público, perguntar ao público o que ele realmente quer e fazer programas talvez por meio de pesquisas. É possível aprender a fazer programas de sucesso. Por exemplo, o programa Plaza Sésamo em espanhol.

Beth Carmona: Vila Sésamo aqui no Brasil.

Cecília Von Feilitzen: Eles fizeram muita pesquisa, e o programa foi um sucesso. Dá para fazer isso com outros programas, tanto para jovens quanto para adultos. Dá para aprender cada vez mais a identificar as necessidades das pessoas.

Leila Reis: No seu trabalho, no seu livro, você coloca que o problema da má qualidade da programação de televisão influencia os países desenvolvidos, porque tem muitas televisões. Cada criança tem a sua televisão, e vê sozinha, escolhe sozinha a sua programação. Nesse mesmo livro diz que no Terceiro Mundo, que é a Ásia, África, America Latina, por falta de recursos, a televisão é vista pela família, já que ela não tem dinheiro para comprar mais de uma televisão. Isso mostraria que a criança ou o jovem do Terceiro Mundo está mais protegido da má influência da televisão do que os que têm mais dinheiro e que têm a sua própria televisão e escolhe a sua programação?

Cecília Von Feilitzen: Por um lado, é bom que todos vejam juntos e discutam. Por outro lado, muitos países não têm uma boa programação. Por exemplo, conheço [...] da Ásia. Ele me falou de sete países da Ásia. Voltando ao tema das crianças, ele perguntou a elas: “De que tipo de programas você mais gosta?”. Eram crianças em idade pré-escolar. Elas citaram programas sobre crimes, suspense e tudo mais, porque não havia programas dirigidos a essa faixa etária. Então o que é melhor? Elas assistem com a família, mas não há programas dirigidos a esse público. Temos de lembrar que nem todas as crianças do mundo têm acesso à televisão. Talvez 70% da população mundial. Nas regiões rurais da Ásia e da África, o rádio é a mídia mais importante.

Yves de La Taille: Uma das razões pelas quais nos preocupamos com a relação mídia, infância e sociedade é a questão da violência. Então eu queria lhe fazer uma pergunta para conhecer a sua opinião sobre o fenômeno violência. Há duas possibilidades, entre várias, de pensar o porquê dá violência. Uma razão pode ser a ausência de limites, ausência de referências, ausência de uma educação mais disciplinadora. Então as pessoas seriam violentas porque não têm limites que impeçam a violência.  Outra possibilidade de se pensar o fenômeno do comportamento violento é pensar que a violência é um valor. Portanto as pessoas têm orgulho de serem violentas e teriam vergonha de serem pacíficas, de serem generosas. São duas explicações diferentes. Uma coisa é a falta de limites e a outra coisa é a violência como um valor positivo, com a qual as pessoas querem se identificar. Eu queria saber a sua opinião a respeito dessas duas possibilidades ou outras possibilidades da explicação do fenômeno violência.

Cecília Von Feilitzen: Não sei responder, porque há muitas teorias diferentes sobre os motivos da violência e da agressividade. Existem inclusive algumas explicações psicanalíticas. Por exemplo, [Sigmund] Freud [(1856-1939) médico neurologista austro-húngaro, fundador da psicanálise e um maiores pensadores do século XX] disse que há alguma coisa dentro de nós que nos torna agressivos. Outras teorias falam de frustração. Quando você fica frustrado, torna-se agressivo. Segundo outras teorias, você aprende isso na sua cultura. Se você vive em uma cultura de guerra, vai aprender com os adultos a ser violento e se orgulhar disso. Depende da cultura. Há outras teorias. Ninguém deu a última palavra nessa questão, e eu também não conseguiria fazer isso. Posso dizer que se, às vezes, você se torna violento por absorver isso na sua cultura ou se você se torna violento por causa da frustração, se não for uma razão biológica, a mídia pode ter influência nesse tipo de violência, que ela pode acentuar. É isso que eu posso dizer, mas por que as pessoas são violentas é uma pergunta que ninguém respondeu de fato.

Âmbar de Barros: Afinal, assistir programas violentos na TV transforma as crianças e jovens em seres mais violentos?

Cecília Von Feilitzen: Existem muitas influências da violência da mídia, então é preciso separar e não falar apenas sobre pessoas violentas. É um pouco mais complicado. Para começar, as crianças mais novas realmente imitam o que vêem na TV. Não apenas a violência, mas muitas coisas. Crianças em idade pré-escolar imitam os adultos. Essa é uma forma de aprendizagem. Elas imitam, mas nem por isso... Mesmo que elas sejam violentas nessa imitação, isso não significa que sejam pessoas agressivas, que serão assassinas na vida adulta, entende? Esse processo de imitação vai desaparecer. Mas, de certa forma, elas agem com violência, e o adulto precisa pensar: “Será que esta é uma forma de aprendizagem ou é uma forma de a criança lidar com impressões muito fortes?”. Crianças pequenas usam linguagem corporal. Elas não falam tanto quanto os adultos usam a linguagem corporal e também precisam extravasar essas impressões fortes. É preciso ter cuidado com a imitação. É claro que, se for exagerada, você, como adulto, precisa dizer: “Pare. Isso não é bom”. Se for só um pouco de imitação, pode ser uma brincadeira importante para a criança. Bem, então a criança cresce e nós nos perguntamos se ela vai se tornar agressiva. Há pesquisas a respeito dessas questões desde o final dos anos 1920. A maior parte das pesquisas é feita nos EUA, na América do Norte, mas também há na Europa, na Austrália, no Japão. Houve pesquisas longitudinais também, acompanhando crianças por muito tempo, até que elas crescessem. Em resumo, os resultados indicam que, se há outros fatores que predispõem à agressividade, a mídia pode ter uma pequena contribuição. A relação que existe é pequena. Não é só a mídia que torna as crianças violentas. Se a situação for desfavorável, se a criança tiver relações familiares ruins, se não se integrar na escola e não tiver boas relações com os colegas, se acabar entrando para uma gangue, consumindo álcool, drogas, armas, etc, muitas coisas. São diversos fatores e também a violência na mídia. Então a violência na mídia vai contribuir, mas não será o único fator. Alem disso, as crianças podem ficar com medo. O medo é um outro tipo de influência. Não que isso vá gerar violência. Às vezes o medo é bom. Se você vê o noticiário e fica com medo de alguma coisa, de algo terrível que esteja acontecendo no mundo, você deve fazer alguma coisa a respeito. O medo é um dom biológico, de uma forma ou de outra. De qualquer forma, existe muita ficção e há muitas notícias que são muito sensacionalistas que assustam demais as crianças e os jovens por muitos anos. Se os pais não falarem com os filhos sobre isso, estes ficarão com isso tudo guardado dentro deles, e, a longo prazo, isso vai causar inquietação. Quando você tem medo e não se sente seguro, talvez você se torne mais agressivo quando sair à noite e encontrar pessoas ameaçadoras, está me entendendo? Um quarto tipo de influência é o fato de podermos criar falsos conceitos e idéias sobe violência e a sociedade vendo muita violência na TV ou no cinema, nos jogos de computador etc. Você pode achar que há mais assassinos à solta do que há de fato. Você pode ter medo de sair à noite e tudo mais. A mídia, nesse caso, é que faz essa imagem falsa da sociedade. É um outro tipo de influência, que talvez também contribua, porque se você tiver medo, pode se tornar agressivo, por assim dizer. Um quinto tipo de influência é o hábito. Você pode se habituar à violência na mídia e querer que essa violência vá ficando mais forte. Voltando à sua pergunta, será que a mídia nos torna violentos? Não, mas ela contribui um pouco, e há outras influências importantes. Se você criar conceitos errados, se tiver informações equivocadas, se ficar com medo e não tiver ajuda de ninguém, isso pode causar inquietação a longo prazo.

Fernando Rossetti: Na sua fala inicial, você colocou que, para melhorar a mídia, nesse contexto de violência, tem uma série... É como uma co-responsabilidade, a própria mídia teria responsabilidade, a família tem responsabilidade, o Estado, ao construir agências reguladoras, teria responsabilidade e a própria sociedade civil. E a minha pergunta é em torno da sociedade civil organizada. Eu colaboro com uma organização não-governamental no Brasil, que se chama Andi, Agência de Notícias dos Direitos da Infância, que monitora hoje em dia a mídia impressa e tenta dar para a mídia um espelho do que ela faz, e tenta criar mecanismos para que ela se reconheça no trabalho e possa melhorá-lo, inclusive se comparando com outros veículos, com outras publicações. O modelo americano ou o modelo inglês é normalmente das ONGs, das Organizações Não-Governamentais, watch dogs, como cães-de-guarda, que mostram um lado ruim, e não tão bem o lado bom. Como é que a sociedade civil organizada pode colaborar para melhorar a mídia?

Cecília Von Feilitzen: Essa é uma iniciativa muito boa. Acho que a Andi já existe há tempo suficiente para ser avaliada. Ela causou algum efeito? Melhorou a produção?

Fernando Rossetti: Melhorou significativamente na mídia impressa, que é onde tem sido trabalhado.

Cecília Von Feilitzen: Muito bem. Esse é o caminho. É essa a co-regulamentação que eu mencionei no começo. É como fazer pesquisa. Você monitora, você faz vigilância e informa a imprensa qual é o padrão geral, quais são os exemplos ruins e tudo mais. Isso cria diretrizes. É exatamente esse o modelo ideal de co-regulamentação. Uma instituição independente, não governamental, como a sociedade civil e o público, que trabalha para dizer à mídia o que não está bom. Então a mídia pode melhorar. É muito bom.

Paulo Markun: Cecília, vamos fazer mais um rápido intervalo, e o Roda Viva volta daqui a instantes. Até já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando Cecília Von Feilitzen, coordenadora científica da Câmara Internacional da Unesco para Crianças e a Violência na Tela. Ela é uma estudiosa da relação entre as crianças e a mídia, de como a internet, os jogos eletrônicos, os vídeos e os programas de televisão influenciam crianças e jovens.

Ricardo Soares: Cecília, tem uma informação aqui de que o Reino Unido e a Austrália, o governo australiano e o governo do Reino Unido, fazem o controle dos videogames violentos. Nós estamos falando muito aqui de mídia e violência. Eu queria saber a sua opinião a respeito, notadamente em países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, se você é a favor do controle de videogames violentos por parte do governo e de outras instituições com o mesmo peso.

Cecília Von Feilitzen: Por um lado, sou contra o controle do governo, porque a mídia deveria ser independente. Na democracia, temos o ideal da liberdade de expressão. Por outro lado, quando se fala de liberdade de expressão, quem tem essa liberdade de expressão não são as pessoas comuns. Eu não diria que o governo deveria controlar, mas gostaria de dizer que deveríamos dar às pessoas mais possibilidades de estar na mídia também. É uma maneira de dar mais sustentação. Sou contra a censura, claro, mas recomendações são boas. Diretrizes, recomendações, descrição de conteúdo e recomendação de faixa de idade, e por que não um tipo de co-regulamentação independente também no caso dos videogames?

Beth Carmona: Cecília, como, enfim, a gente está vendo aqui, a mídia está cheia de problemas e de questões sendo colocadas, valores nem sempre corretos ou recomendáveis. Mas você disse que é favorável a uma mídia livre; pelo que está me parecendo, você não é muito adepta do controle, de que o Estado controle a mídia. Qual é a sua posição um pouco em relação a essa questão? Como se dá o controle da mídia, ele deve acontecer? Ele deve se dar? É isso que eu queria saber.

Cecília Von Feilitzen: A meu ver, a mídia é para o povo [levanta o braço direito, e diz “a mídia é para o povo” como se estivesse falando palavras de ordem e sorri]. Pessoas comuns deveriam controlar a mídia em vez dos poucos donos de canais, que têm muito dinheiro, como já falamos. Todo tipo de pessoa deveria participar da produção. Acho que esse seria um passo para uma democracia melhor e liberdade de expressão para todos.

Fernando Rossetti: A gente falou até agora sobre a programação, se ela é boa ou se ela é ruim. Agora, dentro da programação tem toda uma publicidade também, a televisão  é composta de programas e da publicidade, que às vezes... Eu lembro da discussão sobre o Teletubbies, houve uma discussão grande que o Teletubbies vende bonequinhos, tem um merchandising. A publicidade tem um papel perverso também na programação?

Cecília Von Feilitzen: Sim, e esse é um dos maiores problemas na mídia. Falamos aqui que a mídia é comercial e, portanto, vive da publicidade e quer ganhar dinheiro com a publicidade, não só com os anúncios, mas com o merchandising, os tie-ins [tipo de propaganda sutil em que uma marca é mostrada durante pequenos espaços de tempo numa situação cotidiana num filme ou novela], e eles querem ficar cada vez mais ricos. Não sei o que fazer a esse respeito, além de tentar ter uma mídia pública, talvez a regulamentação da publicidade. Sou a favor da regulamentação da publicidade.

Fernando Rossetti: O governo, o aparelho do Estado regular a publicidade?

Cecília Von Feilitzen: Sim, pois isso não tem a ver com liberdade de expressão. Serve apenas para incentivar a sociedade de consumo a comprar, comprar, comprar. Seria necessário regulamentar publicidade e merchandising. Esse é um dos maiores problemas. Isso nos incentiva a nos tornar consumidores, a desviar a atenção dos verdadeiros problemas da sociedade. Cada vez mais a publicidade é direcionada a crianças e jovens. Eu li que, somente nos EUA, a verba para publicidade dobrou entre 1992 e 1999. Em sete anos, o valor dobrou, porque as empresas e o comércio descobriram que as crianças têm seu dinheirinho e os pais compram muitas coisas para elas. É uma espiral terrível, a meu ver.

Yves de La Taille: O Fernando, na pergunta anterior, tirou a pergunta da minha boca que eu iria justamente pensar um pouco a questão da propaganda. Os programas de televisão são muito variados, mas a propaganda se repete, de vários canais, para vários canais, e são meio repetitivos do ponto de vista dos valores. Então eu queria continuar na questão da propaganda, mas agora falando da participação das crianças na propaganda, como atores da propaganda, e há uma polêmica a respeito disso. Eu queria saber a sua opinião a respeito da correção de se colocarem crianças dentro de propagandas, sendo que, freqüentemente, a criança é um certo apelo, uma certa manipulação para o consumidor. Por outro lado, a criança, muitas vezes, é levada a fazer propaganda pelo sonho de glória e de fama dos pais, e não tanto pela sua própria vontade. Eu queria ouvi-la um pouco sobre essa questão, e se você acha que seria até o caso de regulamentar a participação das crianças ou, quiçá, proibir a participação das crianças nas propagandas.  

Cecília Von Feilitzen: Acho que poderíamos tentar regulamentar. O paradoxo é que, se você analisar toda a produção da mídia, no rádio, na imprensa, na TV, no cinema etc, e não apenas programas infantis, não vai ver muitas crianças. Elas não têm muita representação. Há uma única mídia em que elas têm representação que é a publicidade. O que isso nos diz? Isso nos diz que não damos às crianças um valor alto nos processos sociais, nos processos democráticos, mas elas têm valor com relação ao consumo. Acho que isso é muito ruim. Crianças não deveriam estar tão presentes na publicidade. Nunca pensei nessa regulamentação, mas, como eu disse antes, seria muito bom regulamentar a publicidade. Então por que não regulamentar a presença infantil na publicidade? Em lugar disso, poderíamos levar as crianças a participar mais do processo de produção, ou como personagens em programas de qualidade.

Paulo Markun: Cecília, existe um grande esforço que esse livro A criança e a mídia relata, em vários países, no sentido de criar a educação para a mídia. Ou seja, programas nas escolas que procuram criticar os meios de comunicação ou fazer com que os estudantes, de alguma forma, produzam programas de televisão, programas de rádio, jornais, revistas. E, se eu entendi direito, hoje há um conceito de que não apenas deve-se fazer isso no sentido da crítica teórica, mas de juntar a teoria com a prática. Eu queria saber se você concorda com isso, se é que entendi direito o que foi dito nesses artigos, e que tipo de resultado esse esforço das escolas pode dar?

Cecília Von Feilitzen: Se eu entendi bem a sua pergunta, você quer saber se é bom que crianças e jovens participem do processo de produção da mídia, sim?

Paulo Markun: Dentro das escolas.

Cecília Von Feilitzen: Sim, e também fora. A sociedade civil e organizações voluntárias poderiam fazer muita coisa. Por exemplo, a Andi está monitorando a imprensa, mas as organizações podem usar o tempo de lazer das crianças para produzir artigos ou programas de TV, filmes, coisas assim. Talvez você conheça a Children’s Express.

Paulo Markun: Sim.

Cecília Von Feilitzen: Uma agência [inglesa] de notícias em que as crianças fazem boletins de notícias que são vendidos para a imprensa e para a TV. Quais são os resultados? Com um pouco de treinamento, os resultados são o aumento do amor-próprio e o orgulho por parte das crianças e jovens, porque eles sentem que suas vozes são ouvidas. E como eu também disse antes, há mais consciência sobre o funcionamento da mídia, sobre como a mídia constrói o mundo, nem tudo que se vê ou ouve na mídia é verdade. Você entende isso quando trabalha com mídia. Dessa forma, a educação para a mídia seria completa, trabalhando com isso na prática. Muitas crianças, a longo prazo, também terão interesse na comunidade local. Quando elas fazem programas sobre seus próprios sonhos, sua própria realidade, elas vão ver injustiças e vão querer melhorar isso na comunidade. De certa forma, elas vão melhorar a comunidade. Há diversos tipos de conseqüências, pelo menos com os bons exemplos que deram certo.

Beth Carmona: Cecília, se as crianças estiverem totalmente no controle da produção do programa, esse programa terá mais qualidade, ou seja, você acha que a participação de adultos na produção de programas infantis pode, muitas vezes, não criar um programa de qualidade? Você acha que as crianças têm que tomar o controle?

Cecília Von Feilitzen: Não, eu acho que você... Como dissemos antes, com relação à escola, um de vocês disse que é difícil para o professor, porque ele não vai abrir mão de seu poder e passá-lo à criança. E eu disse que é preciso trabalhar lado a lado, é preciso fazer isso juntos. Acho que crianças e adultos devem fazer isso juntos, mas com poder igual para ambos. Deve ser uma parceria igualitária. É claro que o produtor de TV sabe mais sobre tecnologia, sobre câmeras e tudo mais, mas as crianças podem ter muitas idéias, podem ser muito boas para escolher temas, podem ser bons entrevistadores e tudo mais, então podem participar no processo de produção.

Âmbar de Barros: Você é a favor de que crianças bem pequenas, bebês, por exemplo, sejam expostos à mídia? Eu penso na televisão e penso no sucesso dos Teletubbies, que é um programa que fez uma extensa pesquisa e desenvolveu um produto que fala com bebês, que atrai a atenção de crianças pequenas. Você acha que crianças pequenas deveriam assistir programação na televisão e, inclusive, se os produtores deveriam investir em produzir programas para essa faixa etária?

Cecília Von Feilitzen: Acho que não é necessário esse tipo de programa na TV. Sei que houve muito debate sobre os Teletubbies, mas acho que é um programa razoável para crianças de dois até quatro anos. Li um estudo sobre bebês de seis meses nos EUA que vêem muita televisão, mas não há programas específicos para eles, então não acho que essas crianças devem necessariamente ver televisão, as crianças de seis meses. Mas não acho que os Teletubbies sejam um grande problema. Talvez você deteste o programa. Você detesta? [risos]

Âmbar de Barros: Não, eu não detesto, eu queria saber assim... Eu acho que os pais no Brasil têm essa dúvida, as pessoas se perguntam se elas deveriam deixar as crianças tão pequenas assistirem à televisão, ficar expostas a essas informações, essas imagens. Eu queria saber se você tinha alguma pesquisa demonstrando o impacto da televisão em crianças tão pequenas, se há algum estudo. Se as mães, as jovens mães deveriam evitar deixar os bebês na sala em que a televisão está ligada, o que é muito difícil, porque a família se reúne em torno da TV.

Cecília Von Feilitzen: Bebês podem ficar estressados se houver informação demais. Eles não se sentem bem. É muita coisa, isso os deixa estressados e hiperativos. Não acho que eles devam ver nada na TV. Os Teletubbies, especificamente, são um programa interessante, bem lento. Houve muita discussão sobre isso. Os adultos se dividiram em dois grupos, alguns gostavam do programa, outros detestavam. Eu não acho que a série Teletubbies seja um problema, mas se há informação em excesso e muito rápida... Vamos pensar, por exemplo, em vários desenhos. Eles são feitos mais para adultos. Vamos pensar no que acontece nos noticiários. Todos esses estímulos que chegam até o bebê não são necessários. Se eles tiverem interesse em ver televisão, então é diferente, mas crianças de um ou dois anos não costumam se interessar. Então por que colocá-las diante da televisão se elas não têm interesse? Elas têm outras coisas a descobrir.

Ricardo Soares: Cecília, a televisão brasileira cada vez mais tem um apelo sexual muito grande. Qualquer faixa de horário tem um apelo sexual forte. Hoje até nas telenovelas das 18 horas, você tem apelo sexual. Ao mesmo tempo, o Brasil é um dos campeões mundiais de gravidez na adolescência. Eu queria saber se existe algum dado e se vocês trabalham com algum dado em que haja uma influência da mídia, da televisão com o apelo sexual na questão da gravidez na adolescência, já que no Brasil esse número tem aumentado bastante? E se existe o estudo – sem a gente entrar no moralismo – como é que se faz para mediar essa questão? O apelo sexual da televisão, as crianças tendo acesso a isso e o número maior de gravidez na adolescência. Eu queria que você falasse um pouco a respeito disso.

Cecília Von Feilitzen: É uma pergunta difícil, porque poucos pesquisadores trataram desse problema, talvez por motivos éticos. Não é muito fácil abordar adolescentes para falar sobre sexo. É preciso ter a permissão dos pais etc. Não há muitas pesquisas. Sabemos que as crianças e os jovens dizem que aprendem sobre sexo pela mídia, que aprendem mais na mídia e com os colegas do que com a família ou na escola. Isso é verdade. Acho que a mídia talvez influencie nisso, mas também pode haver outros fatores sociais. Raramente existe uma única influência. É uma situação complexa, na qual a mídia fortalece certos mecanismos da sociedade. Talvez alguma outra coisa esteja acontecendo no Brasil, mas ainda não se sabe. Então a mídia fortalece essa tendência.

Paulo Markun: Ok, Cecília. Nós vamos fazer um rápido intervalo e voltamos daqui instantes. Até já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite discutindo a questão da violência, o sensacionalismo nos meios de comunicação e como isso afeta as crianças e jovens. Estamos entrevistando Cecília Von Feilitzen, coordenadora científica da Câmara Internacional da Unesco para Crianças e Violência na Tela. Cecília, eu queria fazer uma pergunta pessoal.  Você têm filhos?

Cecília Von Feilitzen: Não, não mais.

Paulo Markun: Ok. Se você tivesse, que tipo de política você adotaria em relação à televisão para os seus filhos?

Cecília Von Feilitzen: Em primeiro lugar, não ficaria sentada vendo TV dia e noite, todos os dias, por assim dizer. Eu seria eu mesma, muito seletiva, então escolheria certos programas, canais alternativos e tudo mais. Eu seria um bom exemplo para o meu filho. Se a criança quisesse ver alguma coisa, eu veria junto com ela tanto quanto possível e discutiria o máximo possível, explicando o que ela não entendesse. Eu seria gentil com a criança, e se ela achasse o programa divertido, eu riria junto com ela, mas se houvesse estereótipos e ideologias implícitas que eu descobrisse, eu diria a ela: “não gosto desse programa, porque...” e explicaria por quê.

Paulo Markun: Quer dizer, não seria uma política de proibição?

Cecília Von Feilitzen: Não.

Paulo Markun: Por quê?

Cecília Von Feilitzen: Eu proibiria se a criança visse TV por muitas horas e se fosse muito nova. Então sim. Eu diria a uma filha de cinco anos que o programa é para crianças mais velhas. Se meus filhos jogassem videogame por cinco, seis, sete horas por dia, eu diria que isso é exagerado e que eles deveriam fazer outras coisas. Eu não proibiria. Quando a própria criança tem interesse, é importante acompanhar esse interesse e discuti-lo, falar sobre ele. Eu não deixaria a criança por si só.

Leila Reis: Cecília, o que é um bom programa para a criança e para o jovem?

Cecília Von Feilitzen: Devemos pensar nas diferentes idades das crianças. Psicologicamente, crianças bem novas, de dois, três, quatro ou cinco anos, não conseguem acompanhar a narrativa, o que está acontecendo no programa, como fazem as crianças mais velhas ou os adultos...

Leila Reis: [interrompendo] Sim, mas quais são as qualidades que um bom programa tem que ter para atender a criança e o jovem, independente da idade?

Cecília Von Feilitzen: É disso que eu estou falando. É preciso adaptar o programa à idade da criança e aos diferentes fatores psicológicos das crianças em diferentes idades, por assim dizer. É preciso haver programas adaptados para diferentes idades, em vez de fazer um programa para todos, desde os quatro até os doze anos, por exemplo. Esse é um dos critérios de qualidade. Além disso, é preciso... Você pode perguntar às crianças... Elas querem programas divertidos e animados, coisa que nós, adultos, chamamos de entretenimento, mas elas também querem aprender sobre o mundo, sobre o que fazer, sobre o que é errado ou certo, e assim por diante. Elas absorvem muita informação das fontes de diversão. Elas devem ver que o programa é divertido e animado, e que elas estão aprendendo. Elas também querem contato social com as pessoas na tela e com as pessoas ao seu redor quando estão vendo TV. Essa interação social também é um fator de qualidade. Já falamos sobre isso, a criança deve se identificar, ela quer se identificar e ver que é igual a outras pessoas. Ela deve se envolver e não pode haver valores incorretos no programa, muita hierarquia de poder, muitas ideologias implícitas. Uma boa pesquisa pode ser feita quando você fala com crianças e com produtores sobre o mesmo programa. Quase sempre você vê que os produtores acham que as crianças gostam ou não do programa de uma forma que não é a escolhida pelas crianças. Assim podemos estudar a questão da qualidade. Quanto a esses valores e ideologias implícitos, é preciso ter muito cuidado. Eu fiquei assistindo a todos os desenhos animados de cinco canais de TV por uma semana, e foi inacreditável perceber como eles são masculinos. Metade dos desenhos animados infantis trazem meninos ou homens nos papéis principais, e a outra metade traz meninos e meninas, ou homens e mulheres nos papéis principais. Foram duzentos desenhos, e só dois traziam apenas mulheres. Um deles era sobre uma menina numa cadeira de rodas, e ela ficava esperando, era uma personagem muito passiva. O outro era sobre uma menina em idade pré-escolar que só fazia coisas erradas. Por que há tantos homens, tanta masculinidade nos desenhos animados? Isso é muito simples, mas é bom pensar a respeito. É uma ideologia, são valores implícitos, e é preciso fazer isso sistematicamente. E temos...

Leila Reis: Por quê?

Cecília Von Feilitzen: Não há muitas crianças nessas produções, não há pessoas de idade, não há minorias e assim por diante.

Âmbar de Barros: Em países como o Brasil, que tem uma educação pública de má qualidade e que tem ainda um percentual grande da população que não sabe nem ler e nem escrever, você não acha que a televisão, a mídia, especialmente a televisão, à qual quase todos os brasileiros têm acesso, não pode ser ainda mais perversa?

Cecília Von Feilitzen: Em relação a quem não tem nada?

Âmbar de Barros: Em comparação a países em que a população tem acesso a uma educação de boa qualidade, todo mundo lê, todo mundo escreve, todo mundo freqüentou pelo menos onze anos de boa escola. Isso não é um antídoto, não ajuda a população a se defender ou a não aceitar passivamente as coisas de má qualidade que elas vêem em televisão? 

Cecília Von Feilitzen: Sim, acho que a educação de qualidade pode resolver vários problemas. Se a população, em vez de ir à escola por poucos anos, freqüentar a escola por muito tempo, vai poder escolher outros programas. Eu nunca tinha pensado nisso dessa maneira, mas acho que você tem razão. Se eu comparar com o meu país, nos anos 1970 e 1980, tínhamos relativamente mais televisão, e houve um grande debate na Suécia sobre pessoas que vinham se tornando passivas, apenas vendo televisão, sem fazer mais nada. Quando pesquisamos o que se fazia nas horas de lazer, descobrimos que as pessoas usavam a mídia cada vez mais, mas também estavam fazendo outras coisas, atividades de lazer de alta qualidade. Elas iam a concertos, liam livros, iam a museus e coisas assim. Acho que isso está ligado... Se você observar o século XX na Suécia, as pessoas foram se educando cada vez mais e também... É claro que era uma população de poucas pessoas pobres, o país é relativamente rico, mas a educação é muito importante.

Âmbar de Barros: Eu acho que aqui a gente tem um problema sério, porque nos países como o Brasil, não só as pessoas não têm educação de boa qualidade, como elas também não têm recursos para procurar outro tipo de lazer. Elas não freqüentam cinema, não vão ao teatro, concerto nem pensar. Então me parece que aqui nós somos mais vítimas da indústria cultural. Aquilo a que as pessoas têm acesso através da mídia, em geral, são produtos de má qualidade, no sentido de que... Ou são coisas importadas que não têm a ver com a nossa realidade, produtos baratos...

Paulo Markun: [interrompendo] Âmbar, eu queria fazer o papel do advogado do diabo aqui, para justamente provocar a Cecília. Há uma outra maneira de se enxergar essa realidade brasileira e a realidade de países como o Brasil, que é o fato indiscutível de que a televisão tem um papel muito importante no sentido de conscientizar as pessoas, de fazer com que determinados hábitos se disseminem e de permitir a essas pessoas algum acesso ao conhecimento e à cultura que elas não têm na escola, nem na sociedade, nem na família, nem no Estado. Porque o que a Âmbar pinta é demônio, e há quem diga que esse demônio, na verdade, é um anjo que trata de civilizar a sociedade. Eu queria saber qual dos dois caminhos você acha predominante, em um país a onde a televisão – e nós estamos falando dela – tem tanta importância.

Cecília Von Feilitzen: É preciso haver informação e educação. E é preciso que sejam informações verdadeiras e não propaganda falsa. Podemos decidir que não deve haver, como já dissemos antes, valores e ideologias implícitos, mas a decisão está tomada. Vocês decidiram ser um país democrático, então todos os grupos da população devem ser representados na tela. Vocês já têm alguns valores que vocês escolheram. Esses canais de TV, que são a única opção das pessoas que não têm educação nem dinheiro, deveriam pelo menos refletir valores que vocês escolheram. Li, por exemplo, o relatório de uma pesquisa argentina sobre famílias que vivem em favelas. É perigoso sair à noite, muita gente vive em casas de um cômodo só, e a TV é o centro do lar. Ela fica no meio do cômodo, a família cozinha em um canto desse cômodo e dorme no outro canto. O que fazer? Não é possível sair à noite. Claro que é bom que eles tenham a TV. Eles não vão ao cinema, não têm dinheiro para concertos. Mas será que essa televisão reflete os valores democráticos que foram escolhidos na Argentina? Essa é a questão.

Beth Carmona: Cecília, basicamente, já que você recebe documentos e informações sobre o estágio da televisão ou da consciência sobre a televisão e a mídia do mundo inteiro, como é que está o Brasil nesse panorama?

Cecília Von Feilitzen: Eu tenho poucos documentos do Brasil. Conheço a Andi, de que você falou, e que é uma boa iniciativa. Outros países não têm uma coisa parecida com a Andi. É muito bom. Também fiquei sabendo de alguns canais, de alguns seminários, e vocês também estão tentando promover programas de qualidade com a IV Cúpula Mundial sobre Mídia Infantil e Adolescente. Não recebemos apenas pesquisas, mas também sabemos o que acontece com relação à educação para a mídia e atividades sobre a mídia, para melhorar a situação. Vocês têm algumas pesquisas, eu recebi documentos sobre educação para a mídia, mas não há um Grande Irmão [ou Big Brother, alusão ao personagem do livro 1984, de George Orwell, que vigia as pessoas, em uma sociedade fictícia, por meio de teletelas instaladas em todos os lugares] que possa classificar todos os países do mundo e dizer qual é a posição do Brasil com relação à consciência sobre a mídia. Não sei. Acho que vocês estão fazendo muitas coisas que podem aumentar muito a consciência sobre a mídia, mas eu não diria que essa consciência é grande em outros países.

Ricardo Soares: Você falou dos dados referentes ao Brasil. Eu pergunto: diante da quantidade de documentos que você recebe no seu trabalho, se há algum país do mundo onde essa televisão ideal, segundo os parâmetros éticos, educacionais para a criança, esteja em um estágio mais avançado?

Cecília Von Feilitzen: É muito difícil, porque todo país tem canais públicos e canais comerciais, por satélite ou a cabo, então não podemos dizer que tudo em um país seja bom. Também há lacunas de informação e conhecimento e exclusão digital, porque as pessoas pobres e as minorias não têm acesso à mídia. Na verdade, não é possível dizer isso. Eu poderia dizer que alguns canais de TV fazem muito pela programação infantil, e falei sobre isso no começo. Citei a Austrália, os países nórdicos e talvez o Reino Unido, mas são poucos canais, que não são um modelo para o mundo todo.

Âmbar de Barros: Agora, especialistas do mundo inteiro, cerca de mil especialistas, produtores, exibidores, pesquisadores, vão se reunir no Rio de Janeiro, na Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Jovens. Se você pudesse escolher uma mensagem, qual deveria ser na sua opinião? O que você acha que essa cúpula deveria trazer como uma mensagem para o mundo?

Cecília Von Feilitzen: Deve ser o aumento da qualidade da mídia e da consciência de todos com relação às crianças e à mídia. É uma boa idéia fazer da questão da criança e do jovem com a mídia o tema de uma cúpula, porque em cúpulas nós vemos políticos importantes do mundo todo reunidos. É muito bom fazer da mídia, das crianças e dos adolescentes o tema para uma cúpula, porque isso significa que o assunto é extremamente importante.

Paulo Markun: Eu queria terminar o programa fazendo uma pergunta que também é uma provocação. Eu cresci com a televisão, quando eu era muito garoto... A televisão no Brasil começou no ano em que eu nasci, e quando eu era ainda garoto, a minha família teve uma televisão. No entanto, na minha casa, a preocupação da minha mãe não era com a televisão, porque havia muito pouco tempo de programação no ar, e a gente não tinha condição de assistir muito tempo. O problema na época eram as revistas em quadrinhos. E todos falavam, na minha geração, que quem lia revista em quadrinho jamais seria alguém na vida, porque aquilo não servia para nada. [risos] Hoje eu tenho netas de um ano e meio, uma filha de 28 anos, um filho de dezoito e um de quatorze; e os mais novos - o de dezoito e o de quatorze - não vêem quase televisão, porque passam o dia todo na internet. E o que a gente fala, os pais falam, eu e toda a minha geração, é de quem passa o dia inteiro na internet, batendo papo com os amigos, não vai ser nada na vida, porque aquilo não serve para nada. A gente não está, de alguma forma, sempre um passo atrás da mídia? A gente, que eu digo, são os pais, a sociedade, enfim, os intelectuais?

Cecília Von Feilitzen: Não... Quer dizer... Você não está me provocando, mas você acha que nós vivemos no melhor dos mundos? Você acha que a mídia nunca influencia ninguém? Os quadrinhos nos anos 1940, 1950 e 1960 causaram muita discussão, mas se os quadrinhos tivessem sido melhores, o mundo não poderia ser um pouco melhor hoje? Você não era capaz de avaliar o que a mídia fazia nos anos 1950, 1960 e 1970. Então você não pode dizer, hoje, que não foi um problema.

Paulo Markun: Ou seja, você é otimista. Você acha que a briga vai dar resultado?

Cecília Von Feilitzen: Quando eu era jovem, eu era otimista, mas agora que estou mais velha, eu sou muito pessimista. [risos] Eu vejo que não consegui mudar o mundo. Eu achava que conseguiria quando era jovem, mas a tecnologia, a mídia e a economia contrariaram o que eu disse nas discussões e nos livros. De qualquer forma, é preciso dizer o que você acha, não é?

Paulo Markun: Espero que você tenha tido a oportunidade aqui, durante uma hora e meia, de dizer o que você pensa e que as pessoas em casa tenham a oportunidade de refletir sobre essas questões, que muito poucas vezes são exibidas, não aqui na TV pública do Brasil, mas na TV comercial, onde essa questão é absolutamente deixada de lado.

Cecília Von Feilitzen: Sim, também espero que sim.

Paulo Markun: Muito obrigado pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. 

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