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Memória Roda Viva

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Zuenir Ventura

19/9/1994

Após pesquisar o cotidiano em uma favela carioca, o escritor discute a violência, propondo que sejam repensadas as relações sociais no Rio de Janeiro

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[programa ao vivo]

Heródoto Barbeiro: Boa noite. Quase todo o Brasil tem hoje o mesmo triste conceito sobre a cidade do Rio de Janeiro. Nela, quem manda são os traficantes e bandidos; ninguém anda pelas suas ruas sem ser, mais cedo ou mais tarde, assaltado. Imagina-se mesmo que ninguém mais se impressiona com os cadáveres que são encontrados, todas as manhãs, baleados. A violência pode ser ou pode não ser tão grande, mas suas raízes são muito mais profundas e complexas do que pode parecer à primeira vista. E é isso que mostra o jornalista Zuenir Ventura, que é o centro do Roda Viva que começa agora pela Rede Cultura. Durante dez meses, Zuenir conviveu com um cotidiano duro de Vigário Geral, no subúrbio carioca, onde há um ano foram chacinados 21 moradores, entre eles trabalhadores, mulheres e crianças [chacina de Vigário Geral]. De lá, Zuenir saiu com as 277 páginas do seu recém-lançado livro Cidade partida [1994]: um impressionante e minucioso relato jornalístico de uma violência que é mantida por interesses políticos, por uma polícia conivente, por traficantes cada vez mais à vontade. Zuenir Ventura é mineiro, tem 63 anos de idade e escreveu também o livro 1968 – o ano que não terminou [1988]. Ele é atualmente editor especial do Jornal do Brasil. Para entrevistar Zuenir Ventura, nós convidamos o jornalista Aluízio Maranhão, que é diretor de redação do jornal O Estado de S. Paulo; Leão Serva, diretor executivo do Jornal da Tarde; Tão Gomes Pinto, diretor de redação da revista IstoÉ; Maurício Stycer, repórter da Folha de S.Paulo; Gustavo Vieira, editor do Caderno B do Jornal do Brasil; Geraldo Mayrink, editor especial da revista Veja; e Oscar Valporto, que é editor adjunto do jornal O Globo. O programa Roda Viva é transmitido por outras 23 emissoras de todo o país. Você pode participar também através do telefone 252-6525. A Shizuka, a Cristina e a Ana estarão anotando as suas perguntas. Se você preferir o nosso fax, anote aí: 874-3454. Boa noite, Zuenir.

Zuenir Ventura: Boa noite.

Heródoto Barbeiro: Zuenir, depois de tudo isso que nós dissemos sobre a cidade do Rio de Janeiro, que é uma coisa praticamente conhecida de toda a população brasileira, o Rio de Janeiro tem saída para acabar com essa violência, acabar com essas violações aos direitos humanos que a imprensa nacional e internacional têm noticiado tão constantemente?

Zuenir Ventura: Tem, o Rio tem uma capacidade de dar a volta por cima muito grande. Se você olha para o fim do século passado, o quadro era o mesmo, havia uma grande violência, havia epidemias, havia guerra, Guerra de Canudos; o começo do século também [foi muito problemático]. E o Rio conseguiu sair daquilo; eu acho que essa [violência] não é a vocação do Rio. Isso que está acontecendo hoje é uma patologia na história do Rio, acumulada, aliás, nesses 100 anos, que foram 100 anos de políticas públicas quase que levando a isso. Então eu acho que tem saída, sim; eu acho até que no Rio de Janeiro, neste momento, está acontecendo alguma coisa no meio de toda essa tragédia, que é uma certa consciência da sociedade civil, um pouco dizendo para si mesmo o seguinte: “Olha, esse problema é nosso, nós estamos no mesmo barco, não adianta só ficar culpando o governo e reclamando do governo”. Quer dizer, essa retórica de lamúrias que, às vezes, a gente tem tendências, em épocas de crise, a se dedicar a esse tipo de retórica. Então eu acho que, apesar de tudo isso, é realmente uma situação muito difícil. Acho que há vários cariocas aqui [presentes no auditório do Roda Viva] que testemunham – ou ex-cariocas, alguns cariocas que São Paulo importou – que realmente é um quadro muito difícil, mas eu acho que tem saída, sim.

Heródoto Barbeiro: Zuenir, vamos à pergunta do jornalista Leão Serva.

Leão Serva: Eu fiquei curioso de saber, Zuenir, se você, quando mergulhou na reportagem que deu origem ao livro, você tinha do Rio dos anos 50 a imagem que o livro transparece. Normalmente o Rio dos anos 50 é considerado um paraíso, um lugar do barquinho, um lugar lindo e alegre. Você tinha impressão de um Rio que estava gerando o que nós estamos vendo agora?

Zuenir Ventura: Não, eu não tinha, não, Leão. Aliás, a inclusão [no livro] dessa primeira parte dos anos 50, exatamente por isso, quer dizer, isso que você diz, a imagem que a gente tem, e quanto mais se agrava a crise hoje, quanto mais chega a ser uma espécie de síndrome de fim de século, tudo perdido, a tendência é olhar para trás e olhar com os olhos nostálgicos. E isso é muito perigoso, mas enfim, eu, quando entrei na pesquisa, eu entrei achando que eu ia encontrar, e querendo realmente, de certa maneira encontrar aquele paraíso perdido, aquela coisa da idade de ouro e tal. E eu comecei a ficar chocado. Em 1951, quando o [especialista em direito penal] Nelson Hungria [1891-1969] diz: “Olha, é contra os meus princípios, mas diante da escalada de violência, só mesmo a pena de morte”, então realmente esse choque que o leitor está tendo, eu tive também.

Heródoto Barbeiro: Pois não, Maurício.

Maurício Stycer: Você já mencionou, logo na sua primeira resposta, [que] no seu livro você menciona mais de uma vez essa idéia de que o Rio viveu, nos últimos 100 anos, o que você chama de políticas de exclusão, políticos que levaram a cidade a ficar partida da forma como ela está hoje. Eu queria lhe propor a seguinte reflexão: o primeiro governo Brizola, que foi talvez um dos governos que mais buscou, ou que talvez tenha pelo menos tentado... o que mais tenha tentado aproximar essas duas partes do Rio, mas ao mesmo tempo ele é apontado como o governo que deu origem ou aprofundou, de forma irremediável, essa crise que o Rio viveu hoje. Você vê isso? Você tem alguma reflexão sobre essa questão? Essa idéia de que, no governo Brizola, a polícia parou de subir o morro e se isso tem alguma coisa a ver com o estado em que está o Rio hoje.

Zuenir Ventura: Eu acho que realmente uma das tragédias do Rio hoje é exatamente isso, quer dizer, a política dos direitos humanos, que foi uma conquista da redemocratização, uma das mais bonitas conquistas. Ela acabou sendo desmoralizada, quer dizer, havia uma intenção, uma política, uma teoria política muito respeitável do governo Brizola, mas com uma prática desastrosa. [Isso] fez com que a sociedade hoje, no Rio de Janeiro, identifique a política dos direitos humanos com proteção a bandidos, quer dizer, a sensação que a sociedade tem é que a política dos direitos humanos foi feita para proteger os bandidos. Eu acho que tinha que ter tido, correspondendo a essa política, a essa intenção, a essa vontade de respeitar os direitos humanos, isso foi altamente positivo, mas uma prática que não excluísse a energia, não excluísse a ordem, que não excluísse... Um dos problemas é essa promiscuidade, essa troca de sinais, não só simbólicas, como trocas de sinais literais, quer dizer, está tudo ao contrário no Rio hoje. Aquela coisa de que o sinal vermelho é para você avançar; a calçada, que é lugar de pedestre, não é lugar para você botar carro. Então não houve correspondência; a democracia não deve ser um hímen complacente, é preciso ordem, é preciso disciplina, é preciso obediência civil, e isso de certa maneira desapareceu. Daí essa confusão de que os direitos civis foram feitos para proteger bandidos. Essa realmente eu acho que é uma das grandes tragédias, e um dos fracassos da política, da prática política do governo Brizola, que por um lado tinha essa intenção, que foi importante no Rio, onde a polícia realmente foi sempre muito violenta, desde os anos 50 ela já ensaiava isso; agora [seria preciso] uma parte que corrigisse. Eu acho que hoje, no Rio, o que acontece? Você tem, por exemplo... Eu acho que se a democracia não fizer isso, não usar a energia, não usar a ordem, quer dizer, você não ordena sem regência, você não ordena uma cidade sem, inclusive, repressão. Aí nós, a esquerda toda, teve uma responsabilidade muito grande nisso: palavras como ordem, disciplina, obediência civil, de repente foram banidas do vocabulário de esquerda. E o perigo é o seguinte: é, de repente, você ter um maluco de direita, autoritário, tentando fazer aquilo... Você acaba identificando isso com a democracia, é a democracia que permite isso, os direitos humanos que permitem isso...

Maurício Stycer: Essa sedução do Exército nas ruas, você está se referindo a isso?

Zuenir Ventura: Essa grande sedução, essa grande fantasia que existe hoje em algumas cabeças no Rio de Janeiro, em muitas cabeças no Rio de Janeiro, de que o Exército vai resolver esse problema, de que o Exército vai subir os morros e resolver isso. O próprio Exército, as pessoas mais responsáveis do Exército não querem isso, acham primeiro que isso é trabalho de polícia, e segundo que seria um trabalho ineficaz, porque isso a policia já faz, e faz com o maior fracasso.

Heródoto Barbeiro: Zuenir, antes de passar para a pergunta do Geraldo Mayrink, três telespectadores, o senhor Rodolfo de Jesus Anguera, o senhor Franklin Roberto e o senhor Augusto Arrazzo, os três fizeram perguntas ainda nessa linha do governador Brizola. E quando ele esteve aqui, participando do Roda Viva, ele trouxe um exemplar da revista Veja dizendo que a guerra civil no Rio de Janeiro existia antes do governo dele. Você concorda com isso ou não?

Zuenir Ventura: Não, a violência no Rio... Eu, primeiro, não concordo com essa categoria de “guerra civil” que está acontecendo no Rio. Eu acho que existe uma guerra, existe um estado, em alguns territórios, de guerra, mas isso não é guerra civil, não é uma guerra clássica, isso a gente até pode discutir. Isso é uma outra guerra, isso é uma guerra de tráfico, é uma guerra, digamos, com uma dimensão econômica muito grande, é uma guerra que não pode ser vencida belicamente só, você não pode recorrer só aos recursos bélicos para vencer. É uma outra guerra. Agora essa violência já vem, ela começa, na verdade... eu uso uma imagem no livro de um ovo de serpente que já estava chocando nos anos 50. Ela começa realmente, talvez até antes, mas enfim, isso começa a se agravar a partir dos anos 50 e vem caminhando. Hoje isso não é argumento, acho que não seja [um argumento razoável dizer] “como ela já existia antes, então não vamos cuidar, porque já existe”. Esse não é o argumento; o argumento hoje é realmente de um grito de alerta, que hoje a sociedade civil está fazendo isso. Porque o que aconteceu também de dramático no Rio é que se politizou muito essa violência. Então, de repente, o governo começou a ficar na defensiva, achando que qualquer denúncia de violência era uma denúncia contra o governo. Enfim, o governo Brizola é um governo que passionaliza muito; maniqueíza muito o brizolismo [versus] o anti-brizolismo. [O brizolismo] tem grandes adesões fanáticas; de repente, você ficou discutindo uma questão sem a menor racionalidade, porque se denunciava a violência ou registrava a violência, e o governo vinha e dizia que aquilo era anti-brizolismo. E o anti-brizolismo também tentava identificar causas, origens e toda a complexidade da violência com o governo Brizola. Eu acho que hoje é que está um pouco clareando essa... há um pouco mais de racionalidade para dizer o seguinte: olha, tem um problema seriíssimo aí para resolver, esse problema não é político, não é de um governo, é de vários governos, vem se acumulando, agora todo mundo é responsável por isso. Agora eu acho que [deveríamos dizer] “vamos parar com essa discussão política e vamos dizer assim: todos nós somos responsáveis”.

Heródoto Barbeiro: Geraldo Mayrink.

Geraldo Mayrink: É uma pergunta que são duas. A primeira é a seguinte: eu queria saber onde é que você estava, quer dizer, em que circunstâncias você recebeu essa notícia de Vigário Geral [chacina de Vigário Geral], se foi pelo jornal, pela televisão ou na própria redação? E segundo: qual foi a força que o motivou a ficar dez meses freqüentando o local da tragédia?

Zuenir Ventura: Eu soube da chacina pelos jornais. Nisso eu acho que recebi, naquele momento, o mesmo choque que [atingiu] toda a cidade. A pergunta que mais se fazia, nem pergunta, exclamação, que dizer, um espanto, que coisa...

Geraldo Mayrink: [Interrompendo] Que não dá para acreditar nessa gente, não é?

Zuenir Ventura: Não dá para acreditar, que coisa, como é que isso... Aliás, o Viva Rio surgiu um pouco dessa perplexidade, dessa impotência. Então eu recebi pelo jornal, o Jornal do Brasil, acompanhei de lá, fiquei realmente como todo mundo, traumatizado com aquilo. Isso foi o primeiro choque, a primeira impressão. [Como jornalista] eu já estava trabalhando com a violência. Eu comecei a trabalhar nesse livro há um ano e meio, e comecei tentando encontrar resposta para aquilo, como é que essa cidade maravilhosa, com perdão do clichê, chegou a esse ponto, o que é que aconteceu? Isso eu acho que cada um de nós, lá, fazia um pouco essa indagação. O que aconteceu para ela ficar desse jeito? Eu sempre tive a convicção, tirando o folclore, tirando a mitologia e tal, de que a vocação do Rio não é para isso, é uma cidade realmente amorosa, uma cidade que tem paradoxos como esse, de no réveillon você juntar três milhões de pessoas nas ruas, dois milhões, três milhões, sem violência; no carnaval é a mesma coisa. Então eu aí fui levado ao Viva Rio, levado por um amigo meu, diretor do Jornal do Brasil, o Kiko, Manoel Francisco, e ele disse: “Olha, você está trabalhando com violência, está pesquisando, e nós estamos fazendo reuniões assim de um grupo e tal, e queríamos que você dê uma chegada lá para conversar e tal”. Aí então eu tomei conhecimento desse primeiro embrião de movimento da sociedade civil, se perguntando, se dizendo “o que fazer”, “como fazer”, “o que a gente pode fazer”. E a partir do Viva Rio eu acabei sendo levado a Vigário Geral, através de um jovem que é líder de Vigário Geral, um jovem sociólogo, Caio Ferraz, que tinha ido a UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro], em uma palestra, e de repente o [antropólogo] Luiz Eduardo Soares tinha ficado muito impressionado com a intervenção dele. Daí, nessa reunião, eu disse: eu gostaria muito de ver Vigário Geral, saber como é que aconteceu aquilo. Aí eu fui parar em Vigário Geral pelas mãos do Caio Ferraz, desse jovem sociólogo.

Heródoto Barbeiro: Vamos à pergunta agora do Aluízio Maranhão.

Aluízio Maranhão: Zuenir, eu que sou do Rio, e hoje morando em São Paulo, passo a ter uma perspectiva desse drama que a nossa cidade vive, uma perspectiva de cores muito fortes. Entre vários pontos que me intrigam e me preocupam, [um deles] é: se de um lado, há movimentos como esse do Viva Rio, e a gente sabe que as chamadas comunidades são tão prisioneiras do crime organizado quanto as pessoas que vivem no asfalto. De um lado há isso, e de outro lado há outra situação muito dramática: aquilo que a esquerda achava que tudo se resolveria sem o regime militar e com retomada de um crescimento sustentado, no caso do Rio também não é viável, porque retomada da economia carioca e fluminense significa fortalecer o crime organizado também, porque a renda aumentará para eles também. E quando a gente olha as pesquisas eleitorais do Rio de Janeiro, não se consegue vislumbrar o aparecimento de lideranças políticas – pelo menos olhando pela minha perspectiva, eu estou acompanhando o Rio mais por jornais – que possam efetivamente liderar um programa de ação efetivo de, digamos, saneamento do quadro carioca e fluminense. Como é que você vê isso?

Zuenir Ventura: Olha, Aluízio, tem toda essa complexidade, o problema é que o Rio, tem uma coisa positiva nisso, o Rio é escancarado, é franco, é exibido até para o bem e para o mal. Para o bem, porque na verdade mostra as suas chagas de uma forma mais visível do que em outros lugares, por outro mostra uma complexidade que é essa de uma cidade que não tem, por exemplo, uma classe operária, não tem uma coisa forte como São Paulo tem. [O Rio] tem um grande lumpesinato, tem uma cidade de serviço, uma cidade em que as coisas são também para o bem e para o mal, é um convívio muito íntimo pela topografia, por tudo isso e tal. Agora eu acho o seguinte: o abandono dessa cidade, o abandono dos poderes públicos, para essas grandes questões, quer dizer, questão de desenvolvimento, questão de distribuição... costuma-se falar, eu tenho alguns amigos sociólogos que, falando de uma maneira irônica, [dizem] o seguinte: “a única forma de distribuição de renda que chega à favela é a do tráfico, porque vem recolher renda do asfalto e leva para lá”. Isso, na verdade, é uma grande ironia, mas uma grande verdade. Então eu acho o seguinte, o grande drama, Aluízio, como na cidade está tudo para fazer, nada disso foi feito, uma cidade que, realmente, foi mal governada, é uma cidade muito bem desenhada... Mas se diz que é um projeto muito bem concebido e mal executado. Então, assim, é quase que começar do zero, é quase que enfrentar todas as contradições. Isso pode acontecer, se você levar cidadania para as favelas, que talvez seja o primeiro passo de uma “guerra” realmente... vai enfrentar situações como essas. E o tráfico, como é que vai reagir? Agora, o que não pode, para resumir, é o seguinte: você não pode insistir, continuar a insistir em uma política que foi essa de segregação, de tirar da frente os pobres, não digo nem da iniqüidade que ela representa, mas pela ineficácia [dessa política]. Você sabe disso, no fim do século passado havia uma favela no Rio de Janeiro; hoje há mais de 500. Então, se fracassou essa política de apartheid social, por que não experimentar uma outra, da aproximação? Essa, na verdade, é a grande proposta do Viva Rio. Agora, é claro que é complexa, é claro que tem que começar, é claro que você tem quadros políticos no Rio, você tem uma degradação política muito grande no Rio, você tem um resto de clientelismo, você tem uma cidade onde o fisiologismo é muito presente na prática política. Agora eu acho o seguinte, hoje a sociedade civil está dizendo: “Vamos experimentar essa política”.

Aluízio Maranhão: Mas, Zuenir, você não acha que – é opinião minha – a opinião pública nacional tende a segregar o Rio? Quer dizer, quem mora em outra cidade, a tendência é a seguinte: “Bem, isso é uma coisa do Rio, isso é um tumor maligno que está circunscrito a uma determinada região geográfica, e execremos, portanto, esse tumor”. Como se fosse o modelo emblemático da falência de um modelo getulista, populista, estatista ou o que seja. E que, portanto, se isso for verdade, um dos desafios de qualquer movimento da sociedade civil carioca e fluminense seria, digamos, atrair a opinião pública nacional para um projeto que seja um projeto nacional e não um projeto carioca ou fluminense.

Zuenir Ventura: Isso é verdade, eu acho, eu até brinco com meus amigos paulistas, dizendo o seguinte: olha, está acontecendo hoje [em São Paulo] o que acontecia com o Rio dos anos 50, e vocês vão ser o Rio de amanhã. Quer dizer, estão virando as costas para a violência que está aí; ela está aqui. Eu brinco, dizendo: em São Paulo a periferia fica na periferia, dá para ver. Agora, é claro que acontece isso... o Rio, não sei, ao mesmo tempo é uma relação de amor, não sei se ódio, mas tem uma coisa, ao mesmo tempo o Rio é modelo, é meio exemplar, meio paradigma das coisas que acontecem lá. Eu acho que o grande risco do país é achar que esse problema é um problema só do Rio de Janeiro. Aliás, a epígrafe do meu livro é uma frase do Arnaldo Jabor, [ver entrevista com Jabor no Roda Viva] um carioca que hoje vive aqui, que diz o seguinte: “O Rio é o trailer do Brasil”. Quer dizer, achar que isso... é claro que [o Rio] tem evidentes especificidades, tem coisas muito particulares do Rio, mas o problema mais geral estruturalmente é o problema de todo país. O problema da exclusão não é um problema só do Rio. É mais visível no Rio, é mais dramático, é mais escandaloso, é mais espetacular, agora, realmente, não é um problema só do Rio, não.

Heródoto Barbeiro: Zuenir, vamos agora à pergunta do Tão Gomes Pinto.

Tão Gomes Pinto: Zuenir, você que esteve muito perto, realmente, daquele mundo fantástico, que é o pequeno Estado paralelo controlado pelo traficante, seja ele o [Flávio] Negão, seja ele o... A entrevista que temos no livro é uma entrevista impressionante, porque mostra uma realidade que muita gente ignora completamente, quer dizer, o traficante no Rio adotou uma posição também de benfeitor social dentro da comunidade. Em algumas áreas, ele presta um assistencialismo à comunidade, e na entrevista do Flávio Negão fica muito claro que a comunidade prefere conviver com aquele tipo de assistencialismo do que com qualquer tipo de assistência estatal, do governo, e muito pior seria a presença da polícia. Como é que você acha que é possível substituir essa função social, função de Estado que o traficante vem assumindo em alguns pontos do Rio?

Zuenir Ventura: Tão, a ausência, dentro de um deserto, que os poderes públicos, em regiões como... Eu vou falar só de Vigário Geral, mas é uma ausência absoluta, é um vazio tão grande, qualquer gesto desse tipo, e são gestos primários, de assistencialismo primário, alguns fisiológicos. Vou citar um que eu assisti, de uma mãe com o filho desidratado, uma criança precisava ir para o hospital, e não tinha como, você não tem como, aí vem um traficante e leva. Essa mãe vai ficar o resto da vida agradecida. A gente, do lado de cá, diz: “Imagina, assistencialismo, isso é uma coisa fisiológica”. Agora, para quem não tem nada, está entendendo? Para quem não tem nada, isso é a salvação do seu filho, é a melhor coisa que poderia receber. Então realmente existe isso. A coisa do tráfico é uma micro-representação de uma ditadura, é um poder tirânico, ele exerce como qualquer ditadura. Todos nós vivemos uma ditadura maior, sabemos como é exercida: você tem, de um lado, a tentativa de cooptação, de ganhar adesões, e do outro, o terror mesmo, é feito dessa maneira. Agora, na verdade existe nessa... uma dimensão assistencial primária, primitiva...

Tão Gomes Pinto: [Interrompendo] Mas ela está lá presente.

Zuenir Ventura: Mas ela está lá, porque o poder público, quando chega, chega pela polícia, pela violência ou pela extorsão. Eu vou dizer uma coisa...

Tão Gomes Pinto: [Interrompendo] O traficante, inclusive, aplica a justiça, uma justiça muito peculiar, mas ele aplica a justiça.

Zuenir Ventura: Aplica, e é fulminante, está entendendo? Agora o problema é o seguinte: o tráfico tem leis muito nítidas, muito definidas. Qualquer habitante [da comunidade] sabe quais são as leis do tráfico. E você sabe, se você transgrediu, o que é que acontece. O problema é por que a população em geral teme mais a polícia? Porque a polícia é arbitrária, a invasão policial é arbitrária, é aleatória. Ela é a do pontapé no barraco. Eu participei, eu costumo dizer isso [quando me perguntam], “você teve medo?”. Olha, realmente, medo, mais medo, eu tive, também junto com a população de lá, da polícia. Porque essa “ordem”, essa ordem bandida lá, é tão definida, que você sabe exatamente o que pode ou não fazer. Tem a lei do silêncio, você sabe que não pode entregar [os traficantes], você sabe que não pode contrariar certas normas e tal. Agora, se você obedece aquilo, você vai dormir tranqüilo. Agora a outra, a ordem da cidade de cá, ela entra de uma forma arbitrária, em geral violenta... Eu assisti a algumas...

Tão Gomes Pinto: Zuenir, o Rio já tinha uma tradição desse tipo de controle social exercido pelo marginal, digamos assim, que era o bicheiro [banqueiro de jogo do bicho]. O bicheiro também exercia uma função de controlador social, no sentido que ele preservava aquela região do seu trabalho, enfim, de crimes violentos, ele mantinha um certo equilíbrio. Ele praticava, inclusive, uma justiça muito elementar, mas também praticava. Claro que há uma dosagem de violência muito maior hoje do que havia no tempo do bicho. De qualquer forma, eu queria colocar para você uma questão. O bicho está ou não ligado com o tráfico hoje no Rio? Com sua experiência de lá de dentro, eu queria saber.

Zuenir Ventura: Tão, essa é a grande questão que se coloca lá. A Denise Frossard, juíza, grande juíza, acha que o bicho é o grande lavador desse dinheiro, é quem faz a lavagem desse dinheiro. Eu não recolhi evidências [disso]. As evidências, os indícios que eu recolhi são que, realmente, acima daquele nível, daquela instância, há poderes maiores. Você viu a entrevista. A única pergunta que o líder do tráfico não responde, e eu volto depois a insistir, é: “Quem está acima de você? Em suma, quem manda em você?”. Ele não responde. No fim do livro, eu volto para dizer, até para livrar um pouco a minha cara, e ele diz: “Olha, não posso falar com o senhor [sobre] isso, não posso falar, porque é gente importante, é gente...”. Agora, eu não sei se possivelmente o bicho está... não existe, ninguém tem ainda provas, comprovações disso. Agora a verdade é a seguinte: é possível até que seja até acima do bicho. Fizeram-me há pouco tempo essa pergunta, e eu falei: “Eu acho que, melhor do que chamar a polícia nesse caso, é chamar o Banco Central e a Receita Federal”. Acho que é mais fácil chegar nessas coisas do que com a polícia só.

Heródoto Barbeiro: Zuenir, vamos à pergunta de Gustavo Vieira. Gustavo, por favor.

Gustavo Vieira: A minha pergunta é complementar à anterior. Eu acho que uma das grandes virtudes do seu livro é desvendar um pouco, tirar a máscara desses bandidos que todo mundo imagina que são pessoas completamente intocáveis, uniformizadas, protegidas etc. Eu queria que você falasse um pouquinho disso, desse bandido que você encontrou, de perninha torta, magrinho, furreca, bandido que, na verdade, a polícia querendo, ela caça e pega. Eu acho que o livro tem uma boa parte que fala disso e que muita gente, principalmente gente do Rio, não tem muito essa noção.

Zuenir Ventura: Verdade, a primeira surpresa que eu tive, eu sabia que tinha um bandido que se chamava Flávio Negão. Eu achei que era, enfim, [gesticula, representando uma pessoa grande, forte] que correspondia ao apelido, tanto que eu dei uma... saí como um foca [jornalista novato], porque eu, primeiro, encontro esse cara, que toda a polícia queria saber [quem era], e eu também queria, de certa maneira, conhecer para saber quem era, quem detinha o mistério de toda aquela chacina, e conversei com um cara. Quando eu saí, meu amigo Caio Ferraz brincou: “Você sabe com quem você estava conversando agora? Você estava conversando com Flávio Negão”. Eu saí arrasado, aos 63 anos, um foca, porque eu estava diante da notícia e não tinha percebido que era notícia. Só para lhe dar idéia do que era, era um molecote desse tamanho [com a mão, representa a pouca altura do traficante], magrinho, magro, as pernas da grossura do meu braço e tal. E aí foi o primeiro choque assim. Aí depois a observação durante esse tempo todo, a certeza, e eu me dizia o seguinte: olha, rola tanto dinheiro nesse negócio, a gente sabe em qualquer lugar do mundo, é um dos negócios mais rentáveis do mundo, e não é possível que esse dinheiro esteja todo aí, quer dizer, que patrimônio... e depois de algum tempo eu fiquei conhecendo qual era o patrimônio: alguns táxis, um apartamento, em uma região onde a Casa da Paz custou mil e quinhentos dólares [a Casa da Paz, centro cultural em memória dos mortos na chacina de Vigário Geral, foi instalada no local onde moravam oito pessoas de uma mesma família que foram vítimas do massacre]. Quer dizer, você com dez mil dólares, você compra uma rua. Então, a primeira questão foi: será que é isso mesmo? O que eles fazem com esse dinheiro? Não é possível...

Gustavo Vieira: [Interrompendo] Agora, até que ponto você acha que a leitura do seu livro, todo esse trabalho que você fez, até que ponto ele induz a opinião pública, o leitor, para uma sensação de compreensão com esses bandidos que são molecotes e tal? Ou uma sensação de querer castigar, impor algum tipo de castigo, quer dizer, onde é esse limite? E como é essa divisão?

Zuenir Ventura: Essa aflição do Rio, você sabe, é muito grande, quer dizer, a vontade de dizer: mata, vamos resolver isso, vamos... Eu, inclusive, recebia críticas, perguntas, questões, como se eu tivesse tratando com uma certa condescendência o bandido e com rigor a polícia. Eu falei, olha, acontece o seguinte: do bandido eu espero bandidagem, e da polícia eu espero que cumpra a ordem. Então é possível que eu seja mais exigente com a polícia, quer dizer, tenha sido, de certa maneira, do que... Então existe isso, existe uma mitologia muito grande em relação a todo esse mundo do crime, a todo esse submundo que a gente não conhece. E eu acho que nós, jornalistas, e aí vai uma autocrítica, a gente levou muito tempo descrevendo esse mundo com os olhos da polícia, com os olhos interessados da polícia, criando mitos, desde os anos 50, determinados bandidos são criações da polícia, com interesses, quer dizer, interesses espúrios... Então existe isso, eu acho que o primeiro passo é a gente entender um pouco, conhecer. Vigário Geral ficava a 30 minutos da minha casa, e é um mar de um século de distância social. Sabe, se tivesse que resumir todo o meu impacto naquele choque, foi o de conhecer um mundo estranho. Eu conhecia outros países, eu conhecia outras cidades, Paris, enfim, mais do que Vigário Geral. Então, corre-se esse risco, o risco maior é da ignorância dessa realidade, como é que é isso? Como é que é esse lugar? Como é que são as favelas? Quer dizer, a gente não pode mais desconhecer isso.

Heródoto Barbeiro: Antes de passar para a pergunta do Oscar Valporto, eu queria que você rapidamente respondesse ao senhor Murilo Martins, de São Paulo. Ele pergunta o seguinte: se você é a favor ou contra a pena de morte para traficantes.

Zuenir Ventura: Evidente que não, eu prefiro, para dar uma resposta mais... Eu prefiro, antes de matar a cobra, ou em vez de matar a cobra, eu [prefiro] tirar o antídoto contra o seu próprio veneno.

Heródoto Barbeiro: Oscar, por favor.

Oscar Valporto: Zuenir, o livro deixa bem claro que o que aconteceu em Vigário Geral foi uma chacina cometida por policiais. E todo o livro, e os episódios que se seguiram depois, como a descoberta [em 1994] da lista do Castor [de Andrade] e tal [refere-se a uma lista, apreendida em uma fortaleza em Bangu, contendo nomes de autoridades que supostamente recebiam propina do bicheiro], mostraram a cumplicidade entre a polícia e o crime organizado no Rio. Você está participando intensamente do Viva Rio, que tem uma preocupação social no sentido de levar, de ajudar, de procurar juntar essas duas cidades, mas também está tratando da questão da violência como um caso policial, que é mesmo. Você sente que é possível reformar a polícia do Rio de Janeiro? Dá para procurar, dentro da polícia, você que tem encontrado o Exército, tem conversado com a polícia, tem pelo menos acompanhado pelo movimento Viva Rio, a polícia do Rio de Janeiro tem jeito?

Zuenir Ventura: Olha, eu acho que tem, porque o que há de patologia na história do Rio de Janeiro, o que há coisas erradas e, às vezes, sem soluções, inclusive, [foram] tentadas [algumas soluções]. Agora, é um trabalho radical, é uma reforma radical. Primeiro você tem que unificar essas duas polícias; isso é um negócio que o Tancredo Neves [(1910-1985), histórico político mineiro, primeiro presidente civil do Brasil depois da ditadura militar], quando era ministro da Justiça, no antigo Distrito Federal, já queria isso. Hoje, no Rio, isso não foi feito. Por exemplo, no Exército existem sábios das Forças Armadas, que você tem um controle, que é inclusive constitucional, que devia ser, que é o controle das fronteiras. O Rio de Janeiro não fabrica armamento, AR-15, não produz cocaína, não produz droga, e isso entra lá a torto e a direito, por terra, mar e ar. Então essa conjugação dessas forças todas, as três Forças Armadas e a Polícia Federal, isso aí ainda não foi feito, não foi feito, nem foi pedido...

Oscar Valporto: [Interrompendo] Um dos objetivos do Viva Rio, por exemplo, era trazer e sentar todo mundo na mesma mesa, Polícia Civil, Polícia Militar, o Exército, a Polícia Federal, todos na mesma mesa para discutir como agir conjuntamente. Até hoje essa reunião não saiu, porque o doutor Nilo Batista [advogado e jurista, foi secretário de Justiça, secretário de Polícia Civil, vice-governador (1990-1994) e governador do estado do Rio de Janeiro (1994-1995), quando Leonel Brizola se desincompatibilizou do cargo para disputar a Presidência da República], governador do estado, não quer, e é por isso que ela não saiu. O governo federal, as Forças Armadas não querem participar sem o convite do governador, o que é claro, então isso não sai. Você acha que vai ter... mudando o governo, vai ter vontade política?

Zuenir Ventura: Eu acho que vai ter, é inevitável, não sei por que esse último governo não fez isso, porque isso não é intervenção, não tem nada a ver com invasão de favela, com o Exército invadindo favela, é outra coisa. É você fechar aquela torneirinha por onde entra armamento e entra droga, [para] isso basta realmente um pouco de vontade. Eu acho que qualquer que seja o governador, o próximo, vai ter que ceder naquilo que vai ser uma pressão da sociedade. Só que essa pressão, hoje, é muito confusa, porque as pessoas pedem um Exército como uma coisa salvacionista, “vamos resolver tudo isso com o Exército”. No fundo é a fantasia da solução final: “vamos exterminar, vamos...”. Agora, tem uma outra solução, e essa inclusive é eficaz. Você pode não resolver o problema de toda violência no Rio, mas no momento em que você fechar essa torneira, parar de entrar armamento, parar de entrar drogas pelas fronteiras... [Isso] entra pelo [aeroporto do] Galeão, esse armamento entra hoje pelo Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro.

Oscar Valporto: O Gustavo falou que desmistifica os traficantes, mas os traficantes estão armados até os dentes. Você, para entrar ali e prender o Flávio Negão com aquele armamento todo que você descreveu no livro, não é muito fácil, não.

Zuenir Ventura: Agora, o problema hoje é que a Polícia Militar e algumas pessoas de cabeças lúcidas dizem o seguinte: nós estamos fazendo o trabalho de enxugar gelo, porque a gente vai, digamos, apreende aquele armamento, e em alguns casos isso acontece, raros casos, aí no dia seguinte você tem mais, porque tem dinheiro para comprar, então isso é... Está vendo, isso você repõe, isso vem sendo feito, as favelas estão sendo invadidas há muito tempo. Há invasão da polícia, só que é absolutamente ineficaz, então a loucura é achar que você pode resolver isso com uma dimensão bélica, achar que...

Heródoto Barbeiro: [Interrompendo] Agora, Zuenir, uma parte desse armamento que você acabou de descrever, ele não está lá mesmo, no Rio de Janeiro? [Os armamentos] que pertencem às Forças Armadas de certa forma também são roubados, são vendidos para os próprios traficantes, são armas privativas do Exército brasileiro que servem esse pessoal?

Zuenir Ventura: Tem, mas o forte vem pela importação. Tem uma descrição no livro em que eu pergunto: como é que chega isso aí? Porque esse é o armamento mais moderno lá, que é o AR-15 com o lança granada e tal. E ele [o entrevistado por Zuenir] disse: “Olha, é fácil, é só encomendar, chega”. Entendeu? Aí você vai, apreende aquela [arma], você tem possibilidade de importar outra. Claro que também tem um outro caso de roubo de armamento, mas o forte vem, digamos, pela importação. Então, o negócio das Forças Armadas controlando as fronteiras, isso é uma função constitucional, não é intervenção, não é nenhuma tentativa de violentar a autonomias, não é nada disso. Isso é uma coisa possível de realizar. Então é um primeiro passo. Evidente que você vai diminuir um pouco esse fluxo, que é incessante, de chegada de armamento e chegada de droga. O Rio não produz armamento daquele tipo, que são armamentos, alguns, [dos] mais sofisticados do que até [os que] as Forças Armadas detêm, não é?

Heródoto Barbeiro: Maurício, por favor.

Maurício Stycer: Zuenir, eu não vou perguntar em quem você vai votar, porque eu imagino que, como um jornalista atuante aí, você não revelaria isso. Então eu queria inverter a pergunta, queria saber o seguinte: se você fosse eleito governador do estado do Rio, agora, qual seria a sua primeira medida para, de alguma forma, tentar resolver os problemas que você trata no seu livro?

Zuenir Ventura: É tão impensável, que eu tenho que parar um pouco para pensar nessa hipótese [risos]. Agora eu hoje não sei, eu estou muito, quer dizer, quando eu digo “eu”, eu estou pensando em todo um grupo que está... o pessoal do Viva Rio e tal, [nós tendemos a] achar que a solução – e essa talvez seja uma coisa de vanguarda do Rio, que é uma cidade de vanguarda, no meio dessa crise – é mostrar o seguinte: o papel da sociedade civil neste país, eu acho que isso vai chegar em alguns países, e já está muito claro no Brasil, está ficando claro no Rio, que é realmente esse papel da chamada sociedade organizada, é fundamental. Mas digamos: se eu fosse [governador], primeiro eu ia fazer isso, convocar todas essas forças [da sociedade civil]. Iria atrair isso... você ter a sociedade civil contra você, fazendo protesto, fazendo exigência, por que não incorporá-la, por que não trazer essa adesão toda para um projeto? E o projeto não é uma coisa impossível no Rio de Janeiro. Se resolvesse esse problema... essas soluções, você conversa, por exemplo, com um comandante do Exército e ele diz isso, diz isso com muita clareza: “Nós não queremos substituir a polícia, tem que ter uma polícia”. Agora, tem que ser honesta, tem que fazer uma reforma da polícia, você também tem que pagar bem a polícia. Tinha um orçamento de 14%, hoje está em 7%. Então, na verdade, Maurício, uma palavra-chave hoje no Rio de Janeiro é coordenar todas essas forças, não só as Forças Armadas com a polícia, como coordenar toda essa energia, esse impulso que tem hoje a sociedade civil. A vontade hoje no Rio de Janeiro de as pessoas quererem ajudar a resolver esse problema é impressionante, de voluntário, de adesões absolutamente voluntárias: “olha, eu quero trabalhar de graça, eu quero fazer alguma coisa”, porque é muito diferente daquela coisa dos anos 70, em que as pessoas queriam participavam à margem. Não, hoje há uma maturidade maior na sociedade, eu senti. É isso que está aí e a gente pode melhorar, não é mais aquela “ah, vamos reformar, fazer a revolução antes”, não.

Leão Serva: Agora há um momento em que, por mais que se possa imaginar uma sociedade civil organizada etc, há de haver um momento em que é preciso um confronto de repressão contra... ainda que se isole, por exemplo, que o crescimento econômico passe a dar os empregos que hoje o operariado carioca não tem na economia legal. Então o tráfico se tornou uma opção, o jogo do bicho etc, mas ainda que se isole com o desenvolvimento e tal, é preciso haver um momento em que haja um confronto e a repressão ao tráfico. Como você vê essa cena? Quer dizer, há de haver um momento em que vai haver combate forte, porque eles estão muito bem armados.

Zuenir Ventura: Exatamente, não tenho a menor dúvida. A coisa chegou a tal ponto que a questão é: como é que nós deixamos chegar a esse ponto? Hoje realmente são muito bem armados, muito implantados dentro disso. Agora, eu acho o seguinte: essa estratégia que vem sendo usada ou tentada de você chegar... O Betinho tem uma frase que eu acho ótima: “Vamos fazer uma invasão de cidadania”, porque enquanto você faz isso sem levar um pouco da cidadania, daquelas mínimas conquistas de cidadania, então eu acho que essa guerra é perdida. Você tem que trabalhar com um mínimo de adesão, isso em qualquer guerra, qualquer que seja, seja clássica, ou seja essa que está acontecendo lá, você precisa um mínimo de adesão. Agora, vai ter um momento em que você vai ter que enfrentar isso, vai ter que enfrentar isso realmente com repressão, quer dizer, não é aquela utopia, não é aquela coisa idealista e tal de achar que todo gesto marginal, toda a rebeldia revolucionária e toda rebeldia devem ser respeitadas. Tem, agora, o problema que a estratégia que está sendo usada hoje, ela não só fracassa, como vai fracassar.

Leão Serva: Ela não coopta, mas apenas bate.

Zuenir Ventura: Apenas bate, em um processo que é um processo de reposição: vai lá, invade e, no dia seguinte, a mesma coisa. Esse pessoal da [...] eles não vivem 30 anos. Eles sabem que vão morrer, é aquela coisa da glória efêmera mesmo. Agora, a política de segurança, as políticas de segurança adotadas até hoje não prevêem nada disso. Não prevêem: “bom, nós temos que fazer isso, temos que ter a repressão, temos que fazer...”. Agora a repressão pura e simples não vai levar a nada. Ela tem sido feita ao longo desse tempo todo.

Geraldo Mayrink: Zuenir, eu queria comentar um pouco uma coisa que você menciona no seu livro. É o seguinte: parte do que eu vou perguntar, você já respondeu. O Tão estava falando ainda há pouco do bicheiro. A gente estava acostumado com os contrabandistas, que de certa forma são figuras até tipo Papai Noel diante desse quadro. Hoje tem a figura do traficante. E também se falou da importância da sociedade civil. Eu queria que você me desse a sua opinião sobre o seguinte, sobre duas coisas. A sociedade civil consumidora de drogas, que é o ponto final de uma linha que começa nos cartéis que produzem. No meio tem a favela com todo o seu quadro de tragédia e a figura do traficante. Ali não se produz e nem é o principal mercado consumidor. Por que se fala tão pouco sobre esse público, ou seja, essa sociedade civil drogada que mantém, que sustenta isso?

Zuenir Ventura: Verdade.

Geraldo Mayrink: Mas não se menciona. Essa é uma tragédia dos que intermedeiam a coisa. Eu acho que a sociedade civil precisava talvez pensar um pouco nisso. Não sei se você tem alguma idéia sobre isso. Está muito bem mencionado no seu livro, muito rapidamente, mas muito bem posto.

Aluízio Maranhão: Aliás, aquele economista liberal, o Milton Friedman [1912-2006], ortodoxo, americano, defende simplesmente a liberalização do comércio de droga. Libera isso, taxa, é uma fonte de renda para o Estado, dá transparência e controla. Não sei. Ele escreve isso no [jornal] The New York Times.

Zuenir Ventura: Olha, essa é a questão chave disso tudo, não é? Quer dizer, você tem um negócio, e o [Aloízio] Maranhão conhece melhor esse circuito de economia. É um circuito econômico, você tem ali um negócio com a seguinte característica: você tem a produção e o consumo fora da favela; você tem lá um revendedorzinho, varejista.

Tão Gomes: Existe um cálculo sobre quantas pessoas estariam envolvidas com o tráfico, desde esses chefetes de canela fina e AR-15 até aquele pessoal que transporta aquilo, os meninos...?

Zuenir Ventura: Olha, naquela instância ali, é muito pouca gente. Calcula-se [que seja] menos de 1% da população favelada. Eu vou citar uma população como a de Vigário Geral: de 25 a 30 mil pessoas, você tem 30, uma quadrilha de 50 pessoas...

Oscar Valporto: [interrompendo] Isso é pouco se você for contar a porcentagem das pessoas dentro da favela, mas se você multiplicar esses 30 de Vigário Geral pelas 500 favelas do Rio, tudo bem que a gente não pode fazer essa conta, você vai ver um exército que...

Zuenir Ventura: Eu sei, mas de qualquer maneira é um número ínfimo diante da população. Você tem 99,9%...

Oscar Valporto: Ah, sim, diante da população, sim.

Geraldo Mayrink: E diante das facilidades, quer dizer, diante do oferecimento do poder, da glória, enfim, fácil, a coisa fácil a que qualquer favelado tem acesso.

Zuenir Ventura: Uma das [minhas] grandes surpresas é como tem tão pouca gente no tráfico, tão poucos jovens no tráfico. A gente daqui tem um outro tipo de espanto de dizer: “ai, como tem tanta gente”. Não, tem muito pouca gente diante do quadro que a gente vê nas favelas. Mas, Geraldo, eu acho que essa é uma questão fundamental, o consumo, o grande consumo, isso aí é fácil se é um negócio, e é. Então o grande consumidor, o dinheiro, o grande poder aquisitivo, não está evidentemente na favela. Hoje até já se consome [nas favelas], é trágico, são crianças... Agora isso é menor diante do consumo que a gente sabe. A coisa fantástica neste país, do Rio, mas também neste país, e essa talvez seja a grande questão desse fim de século, é em todo mundo, é uma questão planetária e a gente não faz essa discussão, quer dizer, eu saí de lá, e eu não tenho certeza, eu não tenho uma grande certeza sobre qual seria a solução. Seria a descriminalização? Eu não tenho; agora uma certeza eu tenho: essa política que está lá, essa também de combate ao tráfico, é um fracasso total, absoluto. Isso tem que ser uma discussão da sociedade, você tem que fazer uma longa discussão. E não só não existe essa discussão, como existe no Brasil muito pouca reflexão sobre isso, muito pouca. Você vê um economista tratando disso? Aqui no Brasil eu não conheço nenhum economista que tenha tido o cuidado de mergulhar em uma questão [como essa], que parece uma questão menor, parece uma coisa assim: isso é coisa de polícia...

Heródoto Barbeiro: [Interrompendo] Zuenir.

Zuenir Ventura: É um pouco como os jornais tratavam a polícia até pouco tempo atrás, os casos policiais, jogavam lá para aquelas [páginas policiais] e tal. E essa talvez seja uma grande questão, e são poucos os economistas, os sociólogos e mesmo os antropólogos que estejam preocupados com isso.

Heródoto Barbeiro: Zuenir, nós vamos fazer um intervalo agora. Nosso intervalo aqui no Roda Viva, daqui a pouquinho voltamos, conversando com o escritor Zuenir Ventura. Até já.

[intervalo]

Heródoto Barbeiro: Nós voltamos aqui no Roda Viva. Hoje nós estamos entrevistando o escritor Zuenir Ventura. Você pode participar do nosso programa através do telefone 252-6525. Nosso fax aqui no estúdio do Roda Viva é o 874-3454. Zuenir, eu estava acompanhando, como todos aqui, com a máxima atenção as suas respostas, e você, apesar de mineiro, mineiro carioca, a gente está vendo que você está tão envolvido com a vida da cidade do Rio de Janeiro. Zuenir, você tem alguma mágoa do tratamento que a imprensa dá para a cidade do Rio de Janeiro? Eu tenho visto às vezes as pessoas dizendo: “olha, quando acontece uma chacina em São Paulo, olha, sai lá na última página do jornal, quando acontece algo semelhante no Rio de Janeiro, vem na primeira página do jornal”. Ou às vezes: “olha, morrem tantas pessoas no final de semana em São Paulo quanto morrem no Rio de Janeiro, mas o destaque sempre é dado maior ao Rio de Janeiro”. Você concorda com isso ou não? Ou isso não existe?

Zuenir Ventura: Olha, o governo do estado do Rio de Janeiro usa isso como grande argumento de que a violência é igual à violência de São Paulo, só que a mídia lá é outra. É claro que a mídia, a gente sabe, a mídia amplifica, a mídia às vezes hiperboliza, quer dizer, sobretudo a mídia eletrônica. [A mídia] tem isso como natureza, tem uma certa amplificação. Além do mais, a nossa natureza de jornalista é uma natureza de tipo [de] patologistas sociais: a gente não gosta da normalidade, a gente adora realmente as coisas mórbidas. Então é claro que um acontecimento violento atrai mais gente do que a normalidade, do que o não acontecimento. Agora...

Heródoto Barbeiro: [Interrompendo] Quando acontece em São Paulo, tem o mesmo destaque dado pelo Rio de Janeiro ou não?

Zuenir Ventura: Eu faço uma piada, uma provocação aos meus amigos paulistas, dizendo o seguinte: São Paulo tem uns certos fascínios, como todo mundo tem, pelo Rio, pela mulata do Rio, pela praia, pelo carnaval e, quem sabe, talvez tenha até pela própria violência. Então, em alguns casos, a violência do Rio de Janeiro, a violência do Rio tem mais destaque, ao que se diz, do que a violência de São Paulo também. Mas eu acho o seguinte: eu acho que [isso] é fugir da questão, porque hoje talvez o problema maior sejam os atos de violência, cotidiana, que não são registrados nem pela imprensa nem pelas delegacias. Hoje é uma história, quase que um folclore meio masoquista de histórias de pessoas que foram assaltadas, que foram de alguma maneira violentadas e tal, e que não levaram essa queixa. Eu tive uma discussão com uma autoridade lá, e eu disse: olha, o que está me preocupando mais hoje é o que não chega aos jornais, e havia nessa reunião alguém que citou seis casos, um caso de uma pessoa que tinha ficado cega com um tiro, e nenhum desses seis casos dramáticos, gravíssimos, tinha chegado aos jornais. Então a questão não se coloca aí, ao contrário, talvez a imprensa não esteja hoje dando conta da violência que existe no Rio de Janeiro.

Heródoto Barbeiro: Maranhão.

Aluízio Maranhão: Zuenir, eu queria voltar a essa questão do enriquecimento da agenda de discussão de violência sobre o Rio, porque a gente fica meio que em um círculo vicioso, não é? Você tem a necessidade de... Exército, sim ou não, guarda as fronteiras, coíbe o tráfico de armas, sim ou não, por que faz, por que não faz. Primeiro é essa questão mesmo de uma nova proposta de tratamento da repressão ao drogado, como o Mayrink levantou, isso é um problema, você tem um grande mercado consumidor, independentemente de outros problemas que a gente sabe muito bem, que a favela, aqui, é o balcão de uma grande indústria. O Flávio Negão e os escadinhas da vida [refere-se ao famoso traficante carioca José Carlos dos Reis Encina (1956-2004), conhecido como Escadinha, que foi um dos fundadores da organização criminosa Falange Vermelha] são os gerentes de um grande negócio que tem grandes acionistas em algum lugar. A gente até imagina onde eles estejam. Então o que eu queria colocar para você refletir é essa questão da descriminalização, ou alguma mudança na política de repressão da droga, que desse transparência a esse negócio. Como você próprio ressaltou, você tem discussões nos Estados Unidos que não chegam aqui, como essa do Milton Friedman, que é um sujeito absolutamente conservador e que propõe a legalização do consumo. E outra questão é sobre a falência do Estado. É claro que a gente vê o crime organizado e o [crime] “informal”, que eram a característica da cidade, e que deu metástase. O que era informal e gostoso virou paralegal, ilegal e meio clandestino. As relações se deterioraram; é difícil dirigir no Rio de Janeiro, eu já tenho hoje dificuldade de dirigir no Rio de Janeiro, porque os códigos são outros, eu já me desacostumei. Tudo isso avança na falência do Estado. O poder público na área de saúde, na área de segurança, na assistência, ele recua e o crime organizado ocupa esse espaço. Então outra questão que eu queria colocar para você é isso. É possível, por mais eficiente, meritório e legítimo que seja o movimento tipo o Viva Rio, e outros que possam vir, é possível ele ter algum tipo de eficácia com um estado absolutamente quebrado? Financeiramente, eu digo, falido.

Zuenir Ventura: Eu acho, Maranhão, se ele tiver a honestidade, a integridade, a sinceridade, sei lá, a lealdade, de fazer uma autocrítica que deixe sangrar, que seja uma coisa que considere, primeiro, o seguinte: que no Rio de Janeiro não há nada mais violento, não há nada mais mal educado do que a classe média, que sobretudo é a que dirige carro. Além disso, São Paulo, eu tiro o chapéu, [em] São Paulo, motorista da cidade é muito mais bem educado do que o motorista do Rio de Janeiro. Então é uma classe média, Mayrink, um pouco entrando nessa coisa que você disse aí, é uma classe média que, primeiro, [acha] que a violência está lá em cima [nas favelas] só. Ela esquece que a violência do trânsito no Rio mata mais até do que essa guerra, quer dizer, ela tem muito essa coisa [de dizer] “o governo não faz nada, o governo...”. Existe realmente uma grande retórica de que o governo não faz nada, o Estado não faz nada e tal, e enquanto isso, você como co-responsável também não faz mais nada. Fala-se muito em cidadania, mas a gente pensa muito nos direitos da cidadania e não nos deveres da cidadania. Eu acho que uma mudança de mentalidade no Rio implicaria. Eu acho que aquela cidade – pode ser uma radicalidade minha, mas é uma radicalidade simbólica –, acho que só vai ter jeito no dia em que conseguir tirar os carros de cima da calçada. Não pode, essa troca de sinais no Rio de Janeiro, em uma cidade sensível, uma cidade de sensações, de emoção, vive de símbolos, o Rio de Janeiro é uma cidade símbolos. Então você não pode pensar em resolver sem tratar dos seus símbolos. Então, o sinal vermelho é para parar, o sinal verde é para [avançar], a calçada é o lugar para pedestres, não é lugar para [carros]. Então eu acho, Maranhão, o Viva Rio está começando um pouco nisso, mas tem que passar pela própria crítica da sociedade, um pouco do que o Mayrink disse. Quando você chega, você diz: mas o consumo [das drogas] está na sociedade, está lá dentro. E aí não é um problema do Estado. Eu acho que é uma questão, é uma discussão, é uma autocrítica, seja o que for, que tem que começar pela própria sociedade. Primeiro, que o Estado, o governo, seja qual for, não vai resolver isso sozinho. Segundo, que essa cultura do repasse, a culpa não é minha, é de fulano, isso tem que acabar. Se a gente consegue, se o Viva Rio conseguir, um pouco, inocular um pouco disso na consciência coletiva da cidade, ou no imaginário da cidade, eu acho que aí se avança um pouco no sentido de uma solução.

Heródoto Barbeiro: Só um instantinho, só pela oportunidade, o Maranhão fez um aparte da pergunta que você não respondeu. O senhor Osvaldo Fernando diz o seguinte: “Você acha que, legalizando as drogas, se poderia colocar um pouco o fim da violência que existe no Rio e em outras cidades brasileiras. É favorável a essa descriminalização das drogas?”

Zuenir Ventura: Olha, eu não sei, eu teria o maior escrúpulo em responder a essa pergunta, se sim ou não, porque eu acho que isso tem que ser uma questão discutida pela sociedade. É muito grave, o que fica claro em qualquer pessoa que observe um pouco mais de perto esse fenômeno, é o seguinte: essa política, isso que está aí não dá certo. Se o contrário disso é a descriminalização... em alguns países foi feito, e há uma grande discussão também em relação aos seus resultados. Eu acho que isso é uma questão nacional...

Heródoto Barbeiro: [Interrompendo] Pessoalmente você tem opinião formada sobre isso?

Zuenir Ventura: Não sei, eu tenho um certo medo aí, por causa de geração, de toda essa falta de cabelo... a liberação me assusta um pouco, a liberação total, “vamos liberar amanhã todas as drogas, todo mundo pode”. Eu fico um pouco assustado com isso, eu fico realmente assustado...

Leão Serva: Zuenir, nós estávamos falando no intervalo sobre a questão da Lei Seca [proibição oficial de fabricação, transações comerciais e transporte de bebidas alcoólicas] nos Estados Unidos, que eu acho que é uma luz sobre essa discussão. Havia uma lei que proibia o consumo de álcool, que é uma droga muito violenta, que causa dependência e tudo isso. No entanto, ela é socialmente aceita e, portanto, explorada pela indústria, não paga propina e tal. Nos Estados Unidos houve a tentativa de proibir o consumo e, diante do crescimento do banditismo, das máfias – aliás, eram coordenadas exatamente pela máfia italiana –, então a sociedade chegou ao ponto de eliminar, acabar com a Lei Seca e descriminalizar o consumo de álcool. Ao mesmo tempo, a revista Veja deu há uma ou duas semanas atrás uma reportagem sobre um certo local na Suíça, em uma cidade, onde as pessoas consomem heroína ali e estão morrendo ali, a olhos vistos, por causa da liberação nessa cidade [refere-se à reportagem “O pico à luz do dia”, publicada na Veja de 7/9/1994, que tem como subtítulo: “Droga liberada atrai multidões de viciados a Zurique, que já pensa em recorrer à repressão”]. Então diante dessas duas luzes, vamos dizer, como você opta?

Zuenir Ventura: Eu fiquei chocado com essa fotografia [de jovens se drogando, alguns caídos, outros aplicando droga na veia, que consta da mencionada reportagem] que consta da reportagem. E aí, quando você diz isso, [que] de repente, você vai ter todo mundo se drogando, se viciando, os defensores dizem o seguinte: olha, isso é uma amostragem como se teria se tivesse a fotografia de alguns bêbados, alcoólatras e tal...

Leão Serva: [Interrompendo] Talvez [a fotografia] de um bar, cheio de gente bebendo cerveja.

Zuenir Ventura: Agora, Leão, eu acho o seguinte: é uma questão sobre a qual eu realmente não tenho uma certeza absoluta... A única certeza que eu tenho, e essa também não é novidade, é essa de que essa política que está aí, não dá. Eu acho que tem que considerar outras coisas; a gente fala em drogas, e há níveis de drogas, níveis de gravidade. Evidente que a maconha é diferente da cocaína, que é diferente do crack, que é diferente da heroína. Eu acho que há gradações. Um dos riscos é achar que é tudo igual, que tudo é a mesma coisa. Agora, o que assusta é o seguinte: é que nada disso está sendo discutindo neste país, nem foi discutido. Não há uma reflexão; eu acho que várias disciplinas teriam que ser convocadas para essa discussão, a medicina, a psicanálise, a psicologia, a biologia, sei lá, tinha que ser realmente um grande workshop interdisciplinar para trazer aportes, esclarecimentos e informações, porque o grande problema é que nós temos muito pouca informação sobre isso. Sabendo... achando que essa política realmente só leva ao tráfico, eu fico com certo receio de acharem assim: “Bom, no dia seguinte vamos fazer isso [liberar as drogas]”. Acho que deveríamos ser muito bem informado antes [de tomar uma medida como essa].

Tão Gomes: Zuenir, eu queria saber de você qual é a atuação da igreja, das igrejas, igrejas evangélicas, não sei, Igreja Católica, dentro do Viva Rio. Se existe algum tipo de participação ou se existe também uma atuação independente dessas igrejas, de algumas igrejas, junto às comunidades, junto aos moradores nos morros cariocas.

Zuenir Ventura: Tão, a coisa da invasão das chamadas neo-religiosidades, quer dizer, dos evangélicos, sobretudo dos pentecostalistas nas favelas cariocas é um dos fenômenos mais impressionantes, e eu trato muito pouco no livro até, porque eu acho que seria um outro livro, seria uma outra questão. É realmente impressionante. Tem a história de um menino, que eu acompanho por uns dez meses, e que foi o chefe da galera lá que fez aquela arruaça toda [o arrastão] em Ipanema [em 1992], e depois ele acaba sendo convertido e tal. Isso é um pequeno exemplo de coisas que acontecem todos os dias. Mas esse conjunto de religiões, que são completamente heterogêneas, você tem desde os maiores picaretas até as pessoas mais íntegras, como o pastor Caio Fábio, inclusive fazendo um trabalho social da maior importância. Eu digo no livro, de certa maneira, que se há uma contracultura contra a droga, talvez seja por aí. Agora, não é a igreja católica, ou, como eles chamam, a igreja do padre. A igreja do padre, como aquela coisa menor. Eles [os evangélicos] conseguiram uma infiltração, uma penetração... a palavra infiltração, quer dizer, é uma implantação nas favelas ou nas regiões da periferia, nas regiões menos favorecidas, que é uma coisa impressionante, quer dizer, aquele exemplo que eu dou, dizendo como é que estão fazendo um pouco do que a Igreja [Católica] não fez. A Igreja Católica não fez quando os bárbaros estavam para invadir o Império Romano...

Oscar Valporto: [interrompendo] Mas, Zuenir, você sentiu uma contracultura desses pentecostais com a droga? Porque o que a gente acaba vendo é que eles convivem muito bem na favela, o traficante e essas igrejas pentecostais. Você não sentiu essa boa convivência lá?

Zuenir Ventura: Não. Primeiro é preciso fazer uma diferença entre essas várias religiões, porque a gente não pode falar em uma religião como se fosse...

Oscar Valporto: [interrompendo] Uma boa convivência que eu digo é quase como se fosse uma cumplicidade.

Zuenir Ventura: A verdade é a seguinte, Oscar, é uma coisa que é terrível, mas é uma constatação, a gente entra, freqüenta um pouco lá, vê o seguinte: é que do jeito que está, você não tem como não conviver [com os traficantes].

Oscar Valporto: Não, não digo não conviver, não é só convivência, é uma questão de cumplicidade mesmo. Eu acho que as igrejas pentecostais não são a contracultura da droga; elas ajudam...

Zuenir Ventura: [interrompendo] Eu não estou falando nas pentecostais, eu estava pensando mais...

Oscar Valporto: [interrompendo] Eu acho que existe até... tem o trabalho do pastor Caio Fábio, por exemplo, que eu acompanho, é muito sério. Algumas igrejas, alguns padres, inclusive católicos, têm trabalhado muito sério. Tem algumas da Assembléia de Deus, agora tem muito esse boom pentecostal, que é muito cúmplice do tráfico. Você não acha? Você não sentiu essa interação? A Casa da Paz, a família que morreu lá era evangélica e costumava abrigar um traficante.

Zuenir Ventura: Não, não, nada disso. Aquela casa, há muito tempo, muitos anos antes, ela foi a casa de um ex-traficante, do Chiquinho Rambo. Então ele morava lá, morou lá. O que eu quero dizer é o seguinte: é uma questão para se investigar. Eu confesso que eu não surpreendi, não consegui ver [se existe essa cumplicidade entre pentecostais e traficantes]. Eu não fui fazer um trabalho de investigação. O meu livro, aliás, quero deixar registrado, não é um livro nem de denúncia nem de investigação. Realmente é uma crônica. Eu via as coisas que me chegavam. Eu não fiquei fuçando coisa, até porque seria muito mais complicado.

Maurício Stycer: Zuenir, uma das coisas que você aborda bastante, eu senti assim que você ficou bastante seduzido, foi a questão do movimento funk. Você foi ao baile funk, você discute, acompanha um personagem do Viva Rio que se interessa pelo assunto, conta a história dele. Eu queria saber a sua impressão, sobre essa multidão de adolescentes que saem basicamente das favelas do Rio para esses bailes, saem para grandes conflitos entre eles, mas conflitos que, ao mesmo tempo, têm um grau de civilização muito grande ali. Como que é o convívio – isso, acho, talvez você pudesse falar um pouco – desses adolescentes que são fanáticos pelo funk com os traficantes e os soldados do tráfico, que são basicamente da mesma idade deles, 15, 20 anos. Eu imagino que tenha um dado de admiração ali muito grande, embora de adesão muito pequena.

Zuenir Ventura: É verdade. Esse é um fenômeno realmente impressionante, porque é um milhão e meio de pessoas, dois milhões de jovens, calcula-se, na periferia do Rio, nesses bairros, que, diga-se de passagem, é a única, talvez, a única forma de lazer também desses jovens. E é um espetáculo realmente fascinante, porque ele tem muito... e você olhando à distância, é uma violência assustadora e, de repente, você chega e tem uma ritualização de violência, compulsivamente passou a ter... A capoeira, no fim do século passado, também era um negócio aterrorizador, e hoje virou uma coisa lúdica e meramente coreográfica e tal. Então isso existe, é claro que existe uma violência... Se essa violência latente e aquela energia de jovens dançando ali, pulando e brigando... tem, por exemplo, um tipo de baile, que é o baile do empate, que é briga. É briga mesmo, corredor aberto e os... Agora, é uma briga muito ritualizada, na verdade, é ritualizada só, porque aquelas duas mil, três mil, às vezes quatro mil pessoas... E os seguranças são o quê? Dez, 20, 30. Se quisessem, é igual a um jogo de futebol, se os 22 jogadores resolvessem acabar com o juiz, eles acabavam, mas só que não acabam, porque há um respeito por uma regra. E é engraçado: nesses bailes há um respeito implícito por algumas normas. Primeiro é esta, que essa briga, essa simulação, não vale você levar arma, não vale... por isso que não há mortes, dezenas e dezenas de mortes, em cada bairro. Esse é outro fenômeno que a gente olha. Ou olha com medo, ou olha com pavor, como centro e sede da violência, a cidade de cá olha para isso com um pânico terrível, sem realmente conhecer, sem saber o que realmente está acontecendo ali. Evidente que o tráfico trabalha essa garotada também.

Tão Gomes: Uma das revelações mais surpreendentes do livro, porque tem inúmeras revelações, mas uma que me surpreendeu especialmente, um detalhe, foi aquela reunião do Flávio Negão com os 500 funkeiros, onde ele deu a palavra de ordem: “Olha, não quero mais que vocês façam baderna lá, porque Vigário [Geral] está ficando com má reputação em função da...”, e ninguém falou nada, todo mundo acatou.

Maurício Stycer: [interrompendo] Você observa até que ele não agiu...

Tão Gomes: O controle que eles têm sobre essa multidão disponível, não é?

Maurício Stycer: Que ele agiu de uma forma um pouco mais light do que alguns outros traficantes, que balearam a mão dos...

Zuenir Ventura: [interrompendo] É, que quebraram com palmatória e tal. Agora o que eu acho impressionante é o seguinte: quando aconteceu isso no Rio de Janeiro – os cariocas daqui assistiram a isso –, aconteceu o seguinte: houve aquela coisa de ameaça de arrastão e tal, e aí naquele fim de semana seguinte, [diziam] “olha, não vai ter nada, porque a polícia...”. Então se acreditou, no Rio de Janeiro, em determinado momento, que o que tinha acabado com o arrastão, com aquelas brigas de galera, tinha sido o reforço do policiamento. E aí, por acaso, eu descubro lá...

Tão Gomes Pinto: [interrompendo] Que foi o Flávio Negão.

Zuenir Ventura: Que na verdade foi o Flávio Negão, o Parazão e o Robertinho de Lucas, que disseram assim: “Não tem mais [arrastão], isso está queimando o filme de Vigário Geral, então não queremos [que queimem] a imagem [de Vigário Geral]”. Tem uma coisa curiosa, para você ver como a coisa é complicada, a preocupação dele foi com a imagem.

Tão Gomes: [interrompendo] Durante semanas a mídia ficou enchendo o balão aí da repressão...

Zuenir Ventura: Da repressão. E havia propostas do tipo assim: tem que fechar os túneis, você tem que fechar. Proibir os ônibus...

Geraldo Mayrink: [interrompendo] Mas aí é uma idéia tão antiga como a inauguração do túnel Rebouças [uma das ligações entre as zonas norte e sul do Rio de Janeiro], na época em que se inaugurou não tinha ônibus. Vocês se lembram disso. Era só para carro. O governo [de Carlos] Lacerda [entre 1960-1965] proibiu [os ônibus] alegando motivos técnicos, tanto que não é verdade, que hoje em dia passa ônibus lá. Era para não abrir mesmo, depois abriu. Tem gente que diz que o fim do Rio começou aí, com esse negócio de abrir túnel... Gente respeitável... [risos]

Zuenir Ventura: Gente, inclusive, que sonha com a "solução final"...

Geraldo Mayrink: Verdade.

Zuenir Ventura: É você acabar com... como se realmente fosse possível. Não precisa nem entrar no mérito, digamos, da discussão, da iniqüidade da proposta. É ineficaz, da mesma maneira que foi eficaz não o policiamento, o reforço, o pânico e tal acabou sendo resolvido... O que eu queria dizer é o seguinte: é que a gente conhece muito pouco a cidade, como conhece esse país muito pouco.

Heródoto Barbeiro: Zuenir, tem uma pergunta aqui de um telespectador de Salvador, senhor Fernandes Martins, ele pergunta para você o seguinte: se a rivalidade entre o governador Leonel Brizola e a Rede Globo de Televisão não prejudica a imagem do Rio, já que a violência é mostrada na TV Globo, segundo nosso telespectador.

Zuenir Ventura: Pois é, mas não adianta esconder, a solução não está aí. Houve um tempo neste país em que se dizia também o seguinte, que a imagem do país lá fora era ruim, porque denunciavam tortura, por causa da imprensa, porque este país é um país maravilhoso, que a mídia, no caso a mídia internacional, é que na verdade deturpava – tinha uma outra palavra mais forte de que eu não me lembro agora – a imagem do Brasil, que isso é uma coisa antipatriótica. Quer dizer, não vai se resolver o problema da violência no Rio de Janeiro fazendo-se uma censura, seja de que grau ou de que tipo for, aos meios de comunicação, até porque, como eu dizia, hoje o problema maior seria o que não chega.

Heródoto Barbeiro: Você quer dizer então que não procedem essas críticas do governador Brizola, dizendo que a TV de lá só mostra a violência contra a cidade etc?

Zuenir Ventura: Eu acho que essa é uma discussão de parte a parte, toda politizada, toda fanatizada, quer dizer, de repente a cidade... eu acho que hoje é uma das tragédias só acontecem no Rio, é que há coisas desse tipo e a discussão está em outro nível... E eu tenho o maior respeito, como disse, pela proposta teórica do governador Brizola em relação à preocupação social dele, agora a prática dele é um desastre, e isso é uma paranóia, e é uma paranóia que hoje o governador Nilo Batista herdou de certa maneira, de achar que isso está acontecendo por causa da mídia. Então, tudo bem, então a mídia exagera, a mídia hiperboliza, dramatiza, mas... Está bem, mas vamos admitir agora, se a gente conseguir fazer a mídia ficar direitinho, vai resolver o problema da violência? Não é por aí, quer dizer, achar que a mídia tem essa capacidade de criar uma outra realidade do tamanho da realidade que é visível no Rio de Janeiro, isso a gente vê, está vendo, e o problema maior do Rio hoje, talvez – o maior não, com tantos problemas – é um pouco a cultura do medo. Você tem hoje uma cultura do medo, eu acho que a mídia trabalha muito, de certa maneira reforça muito essa cultura, que é a cultura de que você sai de casa sempre com medo de ser assaltado. Pode até não ser assaltado, mas você tem a sensação de ser assaltado. Na verdade, eu acho que nesse nível, no nível da cultura do medo, da cultura da violência, a mídia reforça muito. Agora eu acho que é, eu não quero ficar defendendo, puxando brasa para a sardinha da mídia, eu que sou jornalista... Mas eu acho que não é por aí, não. Eu acho que tinha que esquecer um pouco isso, e vamos ver as causas, razões, as providências.

Tão Gomes: Zuenir, você pensou em deixar ou mudar do Rio de Janeiro alguma vez?

Zuenir Ventura: Não, porque eu sou muito apaixonado pelo Rio de Janeiro...

Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Você já foi assaltado alguma vez?

Tão Gomes: Seus amigos pensam em deixar o Rio?

Zuenir Ventura: Muita gente hoje pensa. Muita gente pensa [em deixar o Rio de Janeiro]. Tem gente que pensa com uma certa...

Tão Gomes: [interrompendo] Gente que tem a mesma ligação com o Rio de Janeiro como você, assim, que tem essa afeição pela cidade?

Zuenir Ventura: Pois é, Tão, eu realmente tenho um negócio... e esse livro, se você for ver bem, é um hino de amor. Quem ama chora também. Então está cheio de pranto, está cheio de coisas, mas realmente eu amo. Eu não sou [carioca], mas como eu costumo dizer, como todo bom carioca, eu sou mineiro, não é?

Heródoto Barbeiro: Zuenir, você já foi assaltado no Rio?

Zuenir Ventura: Não.

Heródoto Barbeiro: Já assistiu a algum assalto no Rio de Janeiro?

Zuenir Ventura: Não.

Heródoto Barbeiro: Não?

Zuenir Ventura: Não, mas olha bem [risos], a amostragem...

[...]: Mas já teve carro roubado, não é?

Zuenir Ventura: Eu já tive um carro roubado, mas um roubo pior do que esse foi o [roubo] de dois cadernos e um livro que eu estava fazendo.

Leão Serva: Eu queria pegar o gancho da pergunta do Tão, porque eu acho que o brasileiro cultua o mito, a própria imagem de um povo cordial, e a gente tem muitas provas de como não há nada de cordialidade, há na verdade um apartheid da elite brasileira com relação a, vamos dizer, às classes mais pobres. E há um movimento, como houve no passado, talvez, de mudanças de bairros, quer dizer, o que a gente vê hoje em São Paulo é uma elite com algum dinheiro indo morar em [condomínios fechados de luxo como] Alphaville, enfim, nas periferias mais distantes do centro, deixando o centro para a “plebe”, vamos dizer, e quem tem mais dinheiro [está] indo morar em Miami. Quem tem dinheiro, no Rio, sai do Rio, vem para São Paulo, ou então vai para a Europa, onde for. E, no entanto, você, como um carioca ali, vivendo nessa cidade, parece ter feito um opção contrária, você foi até a favela. Me diga: que tipo de recomendação ou que tipo de ensinamento você dá a essa elite que comete o apartheid, mas se auto-isolando, fugindo do problema e não tentando expulsar o antagonista do problema? Que tipo de ensinamento você, que subiu a favela, dá para essa elite? Como conviver com esse problema, como, talvez, escapar do assalto, como é possível viver no Rio e correr menos riscos, enfrentando o problema e não fugindo dele?

Zuenir Ventura: Não é criando bunker [abrigo fortificado construído para resistir a ataques], não é criando grades, cercando de grades que vai resolver. Aliás, uma das constatações da elite, enfim, de todos nós do Rio de Janeiro, é a seguinte: houve até um determinado momento em que se achava que isso ia resolver. A gente cercava, criava esses guetos ao contrário e estava livre da violência. O problema é que o que assusta mais hoje é que nada disso adianta, da mesma maneira que a repressão policial lá em cima [nos morros], isso também não adianta. Então, se isso não adianta, ou sai do Rio de Janeiro e vai morar em Miami – [mas] nem todo mundo pode fazer ou quer fazer isso, quer ficar – ou o outro [jeito] é arranjar um outro tipo de solução, que eu acho que seja, eu digo, a aproximação das duas cidades, isso pode parecer uma coisa fácil, até meio demagógico e tal. Agora, por exemplo, a minha experiência em Vigário Geral é uma experiência de que essa coisa da violência, de que o povo é um povo violento, é um povo... Por exemplo, a primeira reação minha lá, a primeira surpresa agradável, talvez das melhores, eu achei que iria encontrar uma comunidade cheia de ódio, de desejo de vingança. Porque eram 21 pessoas absolutamente inocentes que tinham sido massacradas [chacina de Vigário Geral]. Todo mundo tinha um parente, um amigo, era um pós-guerra, e a primeira coisa que eu percebi, mas eu percebi de uma maneira concreta, sem metáforas, sem imagens, de maneira concreta, é que eles queriam realmente dar a volta por cima. Havia um negócio de que, em cada brecha da dor, tinha sempre um samba, uma vontade de celebração, uma vontade de alegria, de esperança. A Casa da Paz é um pouco isso, que foi a transformação da casa da chacina, da morte, num monumento de paz, num grande símbolo de paz. Então de repente você olha o seguinte: isso aí é o povo carioca, é o povo brasileiro. Se a gente tem também os nossos paradigmas e exemplos, povo é isso, povo é aquilo, essa praia é minha, esse pessoal vem lá do subúrbio para invadir a minha praia, quer dizer, a gente tem hoje de tal maneira no Rio, acho que no Brasil também, uma certeza, sei lá, convicções desse tipo, não é? De que eu tenho algumas propriedades neste país, isso aqui é o meu terreno, esse aqui é o meu direito, esse aqui é o meu espaço, que a gente acaba esquecendo de olhar para o outro lado. Quer dizer, olhar e de repente você vê naquele ambiente onde você acha, de fora, que só tem violência, você tem isso, e tem coisas que o Rio já perdeu, talvez São Paulo já tenha perdido também, um negócio, uma relação de vizinhança muito fraternal, aquela coisa de vai tomar, vai comer uma comidinha lá comigo lá no meu barraco, e você sabe que é paupérrimo, que não tem, quer dizer, essa rodada de cerveja é minha, essa eu faço questão de pagar. São relações que o Rio... relações amorosas, de vizinhança, de fraternidade, de patotagem, de grupo de esquina, que fazia muito do folclore, inclusive, do Rio de Janeiro, hoje você encontra [isso] nessas regiões onde você acha que só tem violência. Então tem muita coisa para se aprender. Acho que a elite carioca, estou pensando muito na carioca, mas também como metáfora ou metonímia do Brasil, tem que um pouco aprender isso: você se desarmar também, porque nós estamos muito armados, muito, o trânsito revela isso a todo momento. Há casos no Rio de [por causa de] uma simples batidinha [no trânsito], o cara sair e dar um tiro no outro, e acha que a violência está lá em cima. Ele não acha que ele é violento...

Leão Serva: Isso está em todas as capitais do Brasil, o uso de armas de fogo por pessoas que estão assustadas e acabam se tornando criminosas está sendo cada vez mais comum, não é? Em São Paulo, a gente teve algumas explosões de violência desse tipo.

Zuenir Ventura: Exato, o que a cultura do medo faz é terrível, porque ela agrava tudo isso, ela faz com que você fique agressivo.

Oscar Valporto: Zuenir, eu acho que o seu livro, mais do que uma denúncia da violência, eu acho que é a denúncia da esperança. O seu livro mostra como tem gente querendo melhorar a vida do Rio, as pessoas que trabalham no Viva Rio, as pessoas de Vigário Geral. Agora, você acha que a classe média do Rio de Janeiro, que está assustada, que está descrente, cada vez [mais] você não só sente que ela quer o Exército, como ela não acredita nos políticos, você acha que é possível mobilizar essa classe média? Porque ela é que vai ser realmente o instrumento para juntar essa cidade partida? Você acha que é possível sensibilizar para esse movimento como o Viva Rio, como um movimento de solidariedade para juntar a cidade?

Zuenir Ventura: Eu acho que é uma coisa nova hoje, chamada ansiedade, que é o seguinte: primeiro ela [a classe média] está sofrendo na carne isso, e segundo, ela tentou tudo, tentou essa coisa do bunker, não sei o quê, depois a coisa eletrônica, e está vendo o seguinte, não é por aí, nada disso vai resolver. Eu acho que ela não é suicida, acho que ela é muito egoísta. A verdade é a seguinte: ela está olhando para o morro hoje porque está ouvindo tiro, ela está com medo. Ela não fez isso durante um século, de olhar e dizer: imagina como essa gente está morando mal, por que a gente não faz um saneamento, por que não se melhora, porque eu sonhava em tirar, em limpar [as favelas], como se diz. Então, agora eu acho que hoje ela está num impasse muito grande, ela não é suicida. É saber o seguinte: tem que ser feito alguma coisa. Hoje o que você mais ouve no Rio de Janeiro é isto: alguma coisa tem que ser feita. Claro que tem a tentação de fazer...

Oscar Valporto: [interrompendo] E quer que o “outro” faça, não você...

Zuenir Ventura: Agora, você tem uma mudança de realidade, você conversa, como eu conversei muito no Viva Rio, conversei muito com o comandante do Rio, oficiais... No livro, tem até o depoimento de um coronel, que até eu não cito [pelo nome], que é fantástico. Ele chega e diz que a solução é aquela do canudinho, quer dizer, a solução é isso que vocês estão fazendo: é realmente acumular força da sociedade, não é para você... Um representante do Exército [é quem diz isso]. Imagine: nós, que vivemos a ditadura militar... então eu acho que você está caminhando um pouco para uma tomada nova de consciência, é demorada, é difícil...

Gustavo Hernandes Vieira: Zuenir, você usou essa expressão, [ao dizer que] a sociedade está castigada, a classe média está castigada, alguma coisa vai ter que ser feita, o próximo governo que assumir vai ter que fazer alguma coisa. E você usa, no seu livro, uma linha divisória: a cidade de lá e a cidade de cá. A cidade de lá é Vigário Geral e a cidade de cá é a sua cidade, Ipanema e tal. Mas você não acha que toda essa questão é bem mais profunda, passa muito mais por uma questão política, ou seja, não está na hora de botar o voto na urna? A cidade de lá é muito maior. Com toda essa complacência do poder do Estado com a cidade de lá, naturalmente tem um retorno grande de votos. Então a cidade de lá, sendo maior na hora de votar, naturalmente ela vai ser sempre beneficiada, vai ter sempre essa liberdade para agir e para sufocar a cidade de cá. Então me parece que a cidade de cá, ela é a opinião pública, ela forma a opinião pública, mas parece que ela tem pouco poder na urna.

Zuenir Ventura: É, exato, umas das coisas que eles reclamam é isso. Quando você vê algumas reeleições, você desanima um pouco, dá um pouco de desânimo da democracia, [mas] a gente esquece que a gente começou outro dia, está engatinhando. Quer dizer, a democracia é um processo realmente trabalhoso, a democracia é chata, exige paciência, exige... Não tem milagre, não existe milagre, mas é um pouco aquele negócio que o [Winston] Churchill [(1874-1965), pensador e político inglês com papel fundamental na vitória dos países aliados sobre a Alemanha na Segunda Guerra Mundial] dizia, que é ótimo: [a democracia é] o pior dos sistemas, com exceção dos outros. Então é por aí, tem que educar, tem que fazer um trabalho, que é um trabalho cujos resultados definitivos não serão para minha geração, mas tem que começar a trabalhar agora.

Tão Gomes Pinto: Os seus contatos com Polícia Militar, por exemplo, com Polícia Civil, você sentiu que há possibilidade de um desarmamento de espírito do lado da polícia? Não um desarmamento físico, mas abandonar aquela idéia do confronto, porque o policial sempre carregou, muitas vezes sem nenhuma justificativa, a idéia de que ele tinha um adversário pela frente, um inimigo que podia matá-lo. É possível trabalhar a cabeça, criar uma força da paz que pudesse, de um modo, operar nessas comunidades mais problemáticas?

Zuenir Ventura: É realmente muito difícil. Eu conversei muito com o [secretário da Polícia Militar] coronel [Nazareth] Cerqueira, que é um exemplo curiosíssimo. O coronel Cerqueira é comandante da Polícia Militar; ele é um intelectual, é um cara que tem... eu costumo dizer assim, é uma instituição, rara no Brasil, onde a cúpula é melhor do que a base. Em geral, no Brasil, as instituições... [risos] Ele realmente é uma pessoa da maior integridade, e ele disse que é difícil... A PM é uma instituição que é muito popular, no sentido de que ela recruta elementos da própria cidade, do povo e tal. Então esse trabalho que se faz dentro da polícia é difícil, porque a ideologia da violência é muito forte. Quero dizer o seguinte: não é uma coisa fácil, mas isso também nunca foi feito antes.

Heródoto Barbeiro: Zuenir, tem uma passagem aqui no seu livro que, pelo que eu entendi, quando o Nilo Batista ainda era vice-governador do Rio de Janeiro, ele esteve lá na favela e a Polícia Militar não o obedecia. A impressão que eu tive, pelo seu livro, é de que a Polícia Militar não respeitava o vice-governador, que, na época, acumulava o cargo também de secretário da Polícia Civil.

Zuenir Ventura: Esse é um dos episódios mais dramáticos do livro...

Heródoto Barbeiro: Mas isso é um fato, não é?

Zuenir Ventura: É um fato. Quando me perguntam, foi um dos momentos em que eu tive medo dentro da favela. Eu tive outros, mas esse eu tive muito medo, porque, de repente, você tinha de um lado as tropas do vice-governador e chefe da Polícia Civil, desobedecendo, porque o ajudante-de-ordens fazia aquela encenação e tal, não dando a ordem, e a polícia lá; e do outro lado, é uma cena que foi no dia de Natal, o Bope [Batalhão de Operações Especiais] ocupou aquilo lá em posição de guerra, e era o dia da inauguração da Casa da Paz.

Oscar Valporto: [interrompendo] Foi o ajudante-de-ordens que não deu a ordem ou foi o governador que não deu a ordem?

Zuenir Ventura: Não, eu vi o governador dando a ordem. Eu acompanhei o ajudante-de-ordens, eu acompanhei duas vezes. Então o que tinha? O tráfico, o pessoal do tráfico ficou lá, obedecendo à ordem do Caio Ferraz, que nesse dia era o poder intelectual, e as tropas do lado de cá não obedeciam ao seu comando. Eu falei: bom, vai haver um tiroteio e aí vai ter outra chacina. Foi realmente um momento de pânico que se viveu – havia muita gente lá, eu não estava sozinho –, foi um momento de pânico, para você ver como é complicada essa relação. Agora lá foi o seguinte, não foi nem a tropa que não obedeceu, foi o ajudante-de-ordens que não levou a ordem de desmobilização daquelas tropas em posição de guerra.

Heródoto Barbeiro: Você achou esse momento que você está descrevendo menos perigoso do que essa entrevista em que você conta do Flávio Negão? Porque na entrevista do Flávio Negão, ele cita uma quantidade enorme de armas, de munições. Ele descreve para você com detalhes. Foi menos perigoso entrevistar o traficante, o chefe do tráfico, do que esse momento que você acabou de descrever?

Zuenir Ventura: Olha, por mais absurdo que isso possa parecer, eu digo isso com muito cuidado, porque eu tenho muito medo de ficar parecendo que estou fazendo exaltação, apologia, ou qualquer outra coisa parecida com relação ao tráfico, é um pouco aquilo que eu disse antes: uma “ordem”, entre aspas, a “ordem dos bandidos” é muito definida, definitiva. Eu sabia que ali não me aconteceria nada e, de repente, na outra ordem, que deveria ser a ordem sem aspas, a segurança, a tranqüilidade, é uma coisa inteiramente anárquica e arbitrária, em que você tem desrespeito, tem a extorsão, tem a violência pura e simples. Então é isso que eu digo, não é que seja melhor, que a coisa do tráfico seja fantástica. Há uma visão meio idílica também de que o tráfico é fantástico e consegue... Agora, consegue porque é uma tirania. O que eu quero dizer é o seguinte: é que essa ordem é mais definida. Você sabe exatamente quando transgride ou não, e do outro lado você não sabe. Um operário está lá dentro, como as 21 pessoas que morreram [na chacina], e de repente são todas assassinadas sem ter absolutamente nada a ver com o tráfico. É um pouco como se dizia: se tivessem matado alguém do tráfico [seria mais compreensível]. Foram lá... é uma coisa absolutamente ineficaz, para não entrar numa ordem de avaliação mais humanitária.

Aluízio Maranhão: Zuenir, como é possível reformar uma polícia como a do Rio de Janeiro? Considerando que aqueles soldados vêm da mesma comunidade, têm o mesmo nível educacional baixo das áreas do crime organizado, têm soldos baixíssimos, usam o tráfico como fonte adicional de renda, porque fazem achaque, têm a indústria da repressão... Se o tráfico, por um passe de mágica, acabasse no Rio de Janeiro, famílias e mais famílias iriam à falência, não as dos traficantes, mas as das pessoas que usam toda essa indústria para obter uma renda adicional para financiar os seus orçamentos familiares, que são baixíssimos e magros. Como seria isso?

Zuenir Ventura: Por exemplo, Maranhão, a primeira observação que eu fiz foi a seguinte: essa impressão de que toda a polícia está contaminada, todas as suas instâncias, é também falsa. Imagine se estivesse, nós estaríamos todos perdidos, imagine se...

Aluísio Maranhão: [interrompendo] Mas o coronel que apoiou o [procurador-geral da Justiça Antônio Carlos] Biscaia simplesmente foi demitido de uma hora para outra, você se lembra, não é? Eu esqueço o nome dele.

[...]: Valmir [Alves] Brum.

Aluísio Maranhão: Inclusive você tem esse problema. Tudo bem que os generais sejam competentes e honestos, mas se você tem uma tropa que não obedece... Um ajudante-de-ordens que não leva ordens, não leva a mensagem, a palavra de comando, é mais grave esse problema do que você ter uma cúpula e um alto comando corrompido.

Oscar Valporto: Maranhão, eu acho que, nesse caso, o coronel Cerqueira é uma exceção. O mau exemplo da polícia do Rio vem de cima, não vem de baixo. A corrupção está instalada lá nas salas dos delegados, nas salas dos coronéis... O coronel Cerqueira, eu concordo com o Zuenir, eu acho que é uma pessoa muito íntegra. Eu quase boto a minha mão no fogo por ele. Eu acho que ele é um sujeito completamente honesto. Agora, [ele] é uma coisa rara na polícia.

Zuenir Ventura: E outra coisa. Eu acho que falta ao coronel Cerqueira, por exemplo, energia, um grande comando, uma grande energia, para impedir que isso... Porque a estrutura militar, na verdade, é mais simples de comandar, porque ela é uma hierarquia vertical. E na verdade, Maranhão, o tumor não contaminou toda a instituição. Até porque, eu digo, se isso tivesse acontecido, nós estávamos perdidos, porque aí seria toda a maioria. É como se diz: o Brasil é um país desonesto, o Brasil... como se realmente... Imagine, você tem cancros. Eu acho que na polícia existe também... você cansa de ver ou, pelo menos, via com certa freqüência casos como aquele da PM [policial militar] que achou 40 mil dólares e devolveu, e [estava] com o aluguel atrasado. Quer dizer, não é o baixo soldo que leva necessariamente à corrupção, não é, da mesma maneira que não é a miséria que leva à violência.

Heródoto Barbeiro: Zuenir, nós queremos agradecer a sua gentileza pela sua participação aqui no Roda Viva. Muito obrigado, Zuenir.

Zuenir Ventura: Muito obrigado a você, obrigado mesmo.

Heródoto Barbeiro: Muito obrigado. Nós queremos agradecer também a presença dos jornalistas que estiveram conosco nesta entrevista com Zuenir Ventura e a sua atenção aqui para o Roda Viva. Nós voltamos na próxima segunda-feira às onze horas da noite. Uma boa semana e até lá.
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