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Memória Roda Viva

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Caio Rosenthal

18/5/1992

As dúvidas quanto aos meios de contágio, a insuficiência da estrutura hospitalar e os preconceitos que sofrem os portadores do vírus da aids são alguns dos assuntos debatidos por um dos maiores estudiosos da doença no Brasil

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[Programa ao vivo, permitindo a participação de telespectadores]

Jorge Escosteguy: Boa noite. Que reação teria o senhor ou a senhora se descobrisse que seu filho convive na escola com um colega de aula portador do vírus da aids? Antes de responder ou de pensar que essas coisas só acontecem com os outros, são como morte ou acidente de carro, é bom saber que já se calcula em uma centena o número de crianças portadoras do vírus da aids só em São Paulo. E a previsão é de que esse número deve triplicar no próximo ano. Esse é um novo desafio que deve ser enfrentado pela sociedade brasileira. A convivência sem preconceito com os portadores do vírus da aids. E o preconceito é tão grande quanto a ignorância. Por ignorância, por exemplo, a menina Sheila, aqui de São Paulo, portadora do vírus, foi proibida de freqüentar a escola. Seus pais adotivos tiveram que ir à Justiça para garantir o direito da menina de estudar. Isso porque não há qualquer risco de contágio na convivência entre crianças numa escola. A possibilidade de uma criança pegar aids de outra portadora do vírus é tão remota quanto um meteoro cair na cabeça do diretor da escola. Hoje, no Roda Viva que está começando agora pela TV Cultura de São Paulo, nós vamos discutir a aids e o preconceito. A intolerância de uns e a manifestação de amor e solidariedade de outros, como os pais de Sheila, que adotaram a menina mesmo sabendo que ela portava o vírus da aids, e por isso mesmo a adotaram, para salvá-la do abandono. No centro do Roda Viva, está sentado o doutor Caio Rosenthal, médico especialista em moléstias infecciosas. Doutor Caio Rosenthal tem 43 anos, é formado em 1973 pela Faculdade de Medicina da PUC de Sorocaba, com residência em moléstias infecciosas. Trabalha no serviço de moléstias infecciosas no Hospital do Servidor Público Estadual desde 1976, e no hospital Emílio Ribas desde 1977. Em sua clínica particular, atende a vários doentes portadores do vírus da aids. Para entrevistar o doutor Caio Rosenthal, esta noite no Roda Viva, nós convidamos: o doutor Julio Abramczyk , médico e redator-médico da Folha de S.Paulo; Serginho Groisman, diretor e apresentador do Programa Livre do SBT; Thereza Pinheiro, redatora chefe da revista Criativa da editora Globo; Inês Knaut, repórter do Jornal do Brasil em São Paulo; o jornalista Demócrito Moura; Flávio Dieguez, editor executivo da revista Superinteressante; Ana Maria Sanches, diretora de redação da revista Nova Escola, da Fundação Vitor Civita; e a jornalista Mônica Teixeira. Boa noite, doutor Caio.

Caio Rosenthal: Boa noite.

Jorge Escosteguy: O senhor tem filhos?

Caio Rosenthal: Tenho dois.

Jorge Escosteguy: Eles são novos?

Caio Rosenthal: Tem onze e treze anos.

Jorge Escosteguy: O senhor já conversou com eles sobre a perspectiva de, de repente, conviverem na escola com uma criança portadora do vírus da aids?

Caio Rosenthal: Eu nem preciso conversar com eles porque esse assunto é tão ventilado em casa. Praticamente todos os dias vem à baila esse assunto, e acho que eles já estão bem informados.

Jorge Escosteguy: Qual é a reação deles? Eles têm esse tipo de conversa na escola, por exemplo?

Caio Rosenthal: Na escola não, acredito que não. Inclusive esse caso da Sheila, nesse aspecto, foi interessante porque levantou essa polêmica toda. Tanto que minha filha veio até me perguntar o que estava acontecendo com essa menininha que ela está vendo na televisão, vendo nos jornais. Então levantou a polêmica em casa sobre esse problema da Sheila, eu achei que foi uma oportunidade para que o assunto viesse à baila e fosse discutido. E eu acredito que está sendo discutido em centenas e milhares de famílias, o que é muito positivo, aliás.

Jorge Escosteguy: O senhor acha que é mais difícil convencer os adultos do que as crianças de que não há risco de convivência?

Caio Rosenthal: Eu acho. Infelizmente o representante, o que se diz representante dos educadores e professores das escolas privadas, até hoje reluta em aceitar as evidências de que a doença não é contagiosa nos termos que ele apregoa. Enquanto que, com certeza, jamais passaria na cabeça das crianças ter esse tipo de preconceito que ele tem. Eu acredito que a criança é muito mais solidária, mesmo porque as manifestações das crianças estão sendo muito mais vivas do que as dos educadores de um modo geral, principalmente dele.

Jorge Escosteguy: Para os adultos que estão em casa assistindo ao programa hoje, o que o senhor diria em relação a isso? Ou seja, normalmente as pessoas tendem a se assustar. E por mais que acreditem que não há perigo de contágio, preferem sempre evitar esse risco, o risco do meteoro, do que…

Caio Rosenthal: Exato. Eu acho que isso já é um assunto ultrapassado, porque essa pessoa que levantou toda essa polêmica refere que não quer riscos de jeito nenhum na escola dele e nas escolas que o sindicato representa.

Jorge Escosteguy: Ele não deve ter botijão de gás na escola.

Caio Rosenthal: Não deve ter botijão de gás, e a criança não pode ir de carro, porque ela pode morrer no trânsito, pode ser assaltada na porta da escola dele e levar um tiro. Essa possibilidade é muito maior do que a criança ser contaminada pela Sheila dentro da escola, por exemplo.

Jorge Escosteguy: A Ana Maria Sanches tinha uma pergunta para fazer ao senhor que ela trouxe de encomenda.

Ana Maria Sanchez: De encomenda na bolsa. É uma pergunta feita pela direção da Apeoesp, que é a Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo. Eu vou ler, então, para o senhor: “Partindo da constatação de que a convivência de todos nós, em todos os lugares, inclusive na escola, será cada vez maior com os portadores do vírus da aids, qual o papel do Estado em garantir que essa convivência não seja traumática, mas sim conscientizadora, e que garanta o direito de todos à cidadania?”.

Caio Rosenthal: Bom, pelo que eu saiba, o Estado se manifesta de duas formas aí no caso. Primeiro, no caso específico da Sheila, já se manifestou através da Justiça. Foi pronunciada uma liminar que deu o voto favorável à Sheila e conseqüente matrícula na escola. E em segundo lugar, parece, parece não, eu tenho até um fax da Secretaria da Educação dizendo que já está existindo um programa de educação nas escolas da rede estadual, e que, à semelhança do que ocorre na prefeitura, em que haverá educadores e multiplicadores de informações para que toda a rede pública escolar, que me parece que são seis milhões de crianças que estão na escola pública estadual, adquiram as informações necessárias.

Mônica Teixeira: Doutor Caio, o senhor acha que o que aconteceu com a Sheila se deve apenas à ignorância das pessoas sobre as verdadeiras formas de contágio da aids ou o preconceito é mais fundo que isso?

Caio Rosenthal: Olha, no início eu achava que era só ignorância. Eu gostaria de achar que fosse só ignorância, apesar de não se justificar. Na medida em que a aids já existe há dez anos e as escolas já deveriam estar preparadas para isso, mesmo assim passa, vai lá. Mas agora eu estou vendo que não é só ignorância. A perseverança nessa ignorância é que está chamando a atenção. Isso obviamente leva a crer que tem problemas não só de preconceito, de discriminação, como também financeiros, comerciais, enfim. Eu acho que a perseverança no erro já está desvirtuando; isso não é só ignorância, já está caminhando para problemas comerciais. A impressão clara que dá é que essa pessoa, o sindicato, tem medo de que [as escolas] percam alunos e conseqüentemente se esvaziem.

Thereza Pinheiro: Eu imagino que se eu fosse paciente da aids e estivesse sofrendo no hospital e tal, se eu visse um caso semelhante numa discriminação tão clara quanto uma criança, eu acho que determinadas fatores abalam a saúde de alguém que precisa de tanta resistência para sobreviver. Quer dizer, ao mesmo tempo tem histórias de solidariedade que também podem compensar esse preconceito. Esse tipo de situação, quando se torna pública, de tanto preconceito, tanta discriminação, abala seus pacientes, que precisam de tanta força pra resistir a essa doença. Há uma interferência no tratamento, na recuperação?

Caio Rosenthal: Os pacientes de aids sempre sofreram discriminação, sempre sofreram perseguição, sempre foram considerados marginais. Pelos próprios costumes que adquirem durante a vida. A aids, no início, era restrita àquelas pessoas que tinham determinados comportamentos de risco, que não são aceitos na sociedade. Então essas pessoas sempre foram perseguidas, a doença sempre foi estigmatizada. A aids é uma doença de marginais, entre aspas. E é óbvio que um paciente, não precisa nem ser um paciente, um portador do vírus se sente enfraquecido frente a essa discriminação tão irracional. Sente-se enfraquecido por preconceitos que grassam por aí. Mas, pelo menos, a impressão que eu tenho é que o caso da Sheila levantou uma polêmica muito grande e que desaguou, felizmente, numa saída bastante positiva, na medida em que toda a imprensa e as escolas, os formadores de opinião, de um modo geral, me parece que, unanimemente, foram favoráveis ao caso Sheila. Obviamente isso traz apoio e serve muito também para diminuir o estigma da doença. A doença ficou mais popular no bom sentido.

Julio Abramczyk: Quando o senhor falou sobre preconceito e discriminação, eu me lembrei de Cuba. Eles têm um serviço médico padrão para a população. E parece que eles também têm esse preconceito. Quer dizer que o problema não é também tão econômico, é realmente falta de informação ou desinformação?

Caio Rosenthal: Existe falta de informação para todos em relação ao que ocorre em Cuba também. A impressão que eu tenho, eu sei mais ou menos o que aconteceu. Fidel Castro pegou a população de Cuba, e pegou uma amostragem, e parece que foi ao acaso. De uma população de dez milhões de habitantes, ele pegou 1% da população e fez sorologia. Ou seja, ele sangrou 1% da população para saber qual era porcentagem – e 1% em dez milhões é bastante significativo – para saber qual era a porcentagem de indivíduos portadores do vírus. E é realmente muito intrigante o que ele fez. Desse 1%, ele isolou, em uma grande fazenda, em uma grande vila, confinou as pessoas lá. E essas pessoas são 24 horas por dia vigiadas, no sentido de não propagar o HIV para o resto da população.

Julio Abramczyk: As crianças estão incluídas nesse esquema?

Caio Rosenthal: Eu não sei lhe dizer. Não existem relatos, até onde eu saiba, se existem crianças ou não. Mas eu sei que o grande temor dele, aí eu acho que se mistura o preconceito ou a dúvida fica: será que é só preconceito ou o temor que ele tem de a CIA, a polícia secreta nos EUA, jogar vírus em Cuba. Esse temor me parece que até é justificado pela história anterior de Cuba. Não seria surpresa se a CIA realmente fizesse esse tipo de chantagem com a ilha, com Fidel Castro. E ele, muito mais bem informado sobre isso do que nós, obviamente, resolveu tomar esse tipo de atitude. Não estou defendendo isso. Veja bem, eu não acho correto isso, confinar os portadores. Mas essa é a explicação sobre o que parece estar havendo lá.

Julio Abramczyk: Aproveitando esse scanning [leitura] de exames de sorologia, não existe o falso positivo e o falso negativo? [Doutor Caio Rosenthal responde afirmativamente com a cabeça] Não seria válido fazer uma população?

Caio Rosenthal: Eu acredito que eles saibam, eles devem saber que existe…

Julio Abramczyk: Não, estou falando em relação a nossa população, por exemplo. Se de repente, um diretor de escola resolver exigir o teste. Como é que fica isso? É ilegal isso?

Thereza Pinheiro: Eu acho que é ilegal isso.

Caio Rosenthal: É ilegal. O teste não pode ser feito de forma indiscriminada e, mais importante: o teste só pode ser feito com o consentimento da pessoa que vai ser testada. E no caso de criança, ou seja, de pequenos, os pais têm que dar o consentimento. Jamais qualquer médico pode colher o sangue da pessoa, de quem quer que seja, sem que essa pessoa saiba para que está sendo feito, que tipo de exame está sendo feito. E o médico obrigatoriamente tem que pedir o consentimento do doente ou da pessoa em questão, para ele testar o sangue para ver se existe ou não a presença do vírus.

Julio Abramczyk: Quer dizer que um diretor de escola não pode exigir esse tipo de exame?

Caio Rosenthal: Não, não pode. Assim como as empresas também não podem exigir esse teste como um exame pré-admissional. É uma recomendação clara e real da Organização Mundial da Saúde que não se peça teste anti-HIV.

Jorge Escosteguy: Há muitas empresas que fazem.

Caio Rosenthal: Há muitas empresas que fazem. Infelizmente tem. A Varig, por exemplo, é uma delas. Existem outras, várias delas.

Jorge Escosteguy: Mas não haveria, não digo um contrasenso, mas enfim. Que mal haveria, vamos supor, em que uma empresa pedisse para o seu candidato ao trabalho, quando pede uma abreugrafia [raio x do pulmão] – ou se pedia antigamente – ou um exame qualquer, pedir um exame de [HIV]?

Caio Rosenthal: Veja, com que intuito ela está pedindo esse exame? Será que ela está pedindo esse exame porque é boazinha e vai prestar assistência, vai dar todo apoio para esse candidato? Com um candidato sendo positivo, será que ela vai empregar esse candidato, vai colocá-lo para trabalhar e vai dar o apoio médico e psicológico, vai dar todo o apoio de que ele precisa?  Nós estamos no Brasil. Não sei se as empresas vão fazer isso. E fazer o teste de uma forma indiscriminada, generalizada, já está mais do que provado que isso não é uma medida de sucesso em lugar nenhum do mundo.

Inês Knaut: Como evoluiu o entendimento dos médicos a respeito da transmissibilidade da aids? Mais ou menos o que estou perguntando é o seguinte: no começo, com os primeiros pacientes, vocês atendiam usando máscara, luva… E hoje isso continua? Mudou? Evoluiu?

Caio Rosenthal: Mudou muito.

Flávio Dieguez: O cirurgião usa uma parafernália, não?

Caio Rosenthal: O cirurgião precisa. O médico, na verdade, só precisa se paramentar dessa forma, quando é uma doença... e aliás eu tenho a impressão de que só no caso de um paciente que tenha tuberculose e que seja bacilífero, ou seja, que ele esteja expelindo o bacilo de Koch, então é necessário o uso de máscara, de avental. Ou então em casos em que o paciente está com uma hemorragia ou que o médico precisa examinar, ou com diarréia incontrolável, ou com perda do controle da diurese. Então, ele precisa pôr luva, precisa pôr o avental para se proteger desses tipos de secreções. Agora toda a parafernália de proteção só é válida no caso de pacientes que estejam expelindo o bacilo da tuberculose.

 Inês Knaut: Mas evoluiu, vocês foram percebendo que a aids não era tão... É isso que eu queria ouvir...

Caio Rosenthal: É. Exatamente. Muitas coisas a gente foi percebendo e foi retirando, desvestindo toda aquela... foi descascando toda aquela...

Demócrito Moura: Doutor Caio, é uma alegria nos reencontrarmos depois de tanto tempo. Eu tinha para comunicar que hoje eu encontrei dois amigos que são parentes de pacientes de aids, falei que vinha para esse programa e eles me fizeram um pedido: que eu me limitasse a levantar apenas questões práticas. E a questão que está mais preocupando essas famílias é o custo do tratamento do paciente de aids. Eu ouvi falando que isso pode chegar a um milhão [de cruzeiros] por dia. Eu lhe pergunto se com esse poder aquisitivo que tem 70% da população brasileira, quem é que vai poder tratar um parente que seja portador do vírus da aids? Por outro lado, o governo, como o senhor sabe, parece que se omite. Eu digo parece que se omite porque o Inamps [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, foi extinto em 1993 e substituído pelo SUS (Sistema Único de Saúde)] está pagando aos hospitais que têm convênio com eles – e eu anotei aqui para não ser infiel – Cr$ 7.375,56. Sete mil cruzeiros por uma diária no hospital particular conveniado. Mas o Inamps não paga internação de paciente com aids. Por outro lado, a Secretaria de Saúde do Estado estava disposta, não sei se ainda continua com a disposição, de custear o tratamento de um paciente de aids internado com cerca de 80 mil cruzeiros. Agora, eu pergunto: alguém que trabalhou a vida inteira e teve todo mês o seu salário descontado para a Previdência, dizendo que a Previdência, em caso de necessidade, garantiria a assistência médica, por que é que um parente ou por que é que um contribuinte da Previdência, em contraindo o vírus da Aids, tem que ou levar a própria família à falência ou ficar abandonado sem tratamento algum? Um dia desses, eu vi no sindicato de jornalistas, que havia um jornalista com aids, perto ali, naquela região próxima ao sindicato, num prédio lá... Primeiro lugar, toda a população que morava naquele prédio já procurou isolar. Tinha cuidado, não queria contato. Depois, pressionaram o síndico para praticamente despejar aquele paciente do prédio. Eu pergunto: fala-se de tanta discriminação contra a aids, o senhor não acha que o governo também está discriminando os pacientes de aids, na medida em que nem o governo federal quer participar da despesa com internação de um paciente de aids?

Caio Rosenthal: Veja, ele não está discriminando o paciente com aids. Ele paga esse tanto para todos os tipos de pacientes.

Demócrito Moura: Mas não para paciente de aids.

Caio Rosenthal: Sim.

Demócrito Moura: Paga Cr$ 7.375,00 para qualquer doente.

Caio Rosenthal: A rede pública interna... O hospital Heliópolis, por exemplo, é um hospital do Inamps e interna pacientes com aids. Hoje em dia, aliás, na verdade, não existe mais diferenciação. Hoje em dia a prefeitura, o Estado e a rede pública do Inamps, o antigo Inamps, é tudo uma coisa só. Existem, na cidade de São Paulo e na grande São Paulo, cerca de 250 vagas para pacientes com aids, distribuídas entre os antigos hospitais do estado, da prefeitura e do Inamps. Esses 250 leitos, obviamente, estão ocupados o tempo inteiro. A vaga é dificílima. Porém o Inamps paga muito pouco. As verbas que são repassadas – aí já foge da minha alçada – eu sei que são muito poucas, porque o tratamento é muito precário. A rede pública dá um tratamento, um mínimo necessário e muito precário, muito aquém do que o paciente precisa.  É praticamente um atendimento necessário, suficiente para que o paciente não morra desidratado, não morra…

Demócrito Moura: Agora estão pedindo o teste, eu tenho a aqui cópia de um ofício da Federação Nacional dos Estabelecimentos de Serviços de Saúde, subscrito pelo presidente da federação, dirigida ao ministro da Saúde, doutor Adib Domingos Jatene [ver entrevista com Jatene no Roda Viva], pedindo que o Inamps examine esse problema e comece a contribuir. Se o senhor quiser eu leio aqui, porque até agora o Inamps não está pagando pelo atendimento de pacientes de aids.

Caio Rosenthal: O que vem ocorrendo, aquilo que você disse que o paciente paga a vida inteira, desconta-se a Previdência, e quando ele precisa, tem um mínimo, quase que indesejável, isso é o que ocorre também na rede privada. O paciente que faz um seguro saúde ou um paciente que paga, que é descontado, a vida inteira, para se associar a uma medicina de grupo, este nem a maca e a hidratação ele tem.

Demócrito Moura: Mas o senhor acha que o poder público pode tomar isso como exemplo?

Caio Rosenthal: Não. Estou dizendo que não só a rede pública, mas também a rede privada não se mostra favorável. Não há nenhum indício de que a coisa tenda a melhorar em termos de atendimento hospitalar…

Demócrito Moura: Então está pior do que eu estava imaginando.

Caio Rosenthal: Está pior porque a rede pública é pouca, a rede privada sequer... ela cruza os braços...

Jorge Escosteguy: Esperem um pouquinho, senão o telespectador não entende em casa se os dois falarem ao mesmo tempo. O doutor termina a resposta e assim que você tiver outra pergunta, a gente faz, por favor.

Caio Rosenthal: Veja bem, eu não quero justificar o erro da rede pública. O que é preciso registrar e deixar bem claro é que a medicina privada sequer atende, sequer presta os primeiros socorros ao paciente com aids. Isso é muito grave. Isso é um engodo, porque a rede privada se recusa sistematicamente. E se tem um paciente internado dentro de um hospital da medicina privada, salvo alguns hospitais, nesses de medicina de grupo, 100% deles, invariavelmente, não atendem. E se o paciente, porventura, estiver internado lá por outro motivo, e se descobrir que ele é portador do vírus da aids, ele é sumariamente mandado embora. É despedido do hospital. E é jogado onde? É jogado na rede pública e a rede pública tem que abrir os braços e abraçar esse paciente. Então a rede pública está superlotada. Não estou defendendo a rede pública. Só a rede pública não dá conta. É claro que a saúde é um dever do Estado, o transporte é um dever do Estado, a educação é um dever do Estado. Mas nós não estamos na Suécia, nós estamos no Brasil. E aqui no Brasil só a rede pública está arcando com a aids.

Jorge Escosteguy: Doutor Caio, tenho aqui algumas perguntas de telespectadores, bastante específicas. Eu vou fazendo e se o senhor puder dar respostas rápidas, são várias. A Edwiges Blanco, de São Bernardo do Campo, telefonou dizendo: “Sou educadora e tenho observado que no recreio as crianças dividem um lanche, por exemplo, uma maçã. Várias crianças mordem a maçã. No caso de uma criança portadora do vírus da aids, qual a probabilidade de contaminação?

Caio Rosenthal: Olha, eu só não digo que é zero porque não está matematicamente comprovado. Mas é importante deixar claro – e eu queria aproveitar essa oportunidade para dizer isso – que a transmissão da aids é muito difícil. Para que haja a transmissão do vírus de uma pessoa que esteja portando o vírus – porque um doente não vai para a escola – então, o portador, para que ele infecte o colega, há necessidade de que o vírus desse portador penetre dentro da circulação sanguínea da outra pessoa. Então, agora você imagina como é que, mordendo uma maçã, o vírus que está dentro do sangue dessa pessoa, da portadora, vai penetrar dentro do sangue da outra pessoa que está mordendo a maçã.

Jorge Escosteguy: O Francisco Caldeira, aqui de São Paulo, também pergunta se uma criança com aids beijar outra pode haver contaminação ou não pode?

Caio Rosenthal: Beijar, depende do beijo. Veja bem, o vírus da aids, o HIV, está presente, fundamentalmente, no esperma, na secreção vaginal e no sangue. A partir daí, então, raciocinando nesses termos, no sentido de que esses são os três contâineres, os três receptores, os três locais onde o vírus vive, mora e se multiplica, podemos imaginar quais são as possibilidades do esperma, da secreção vaginal e do sangue penetrarem dentro da circulação da outra pessoa. O vírus também já foi isolado da saliva, da lágrima, das fezes, da urina, do suor e assim por diante. Mas, diferentemente de outras doenças, para que haja contaminação pelo HIV, há necessidade de haver um número muito grande de partículas virais, para penetrar dentro da circulação do sangue da outra pessoa. Então, sabe-se que na saliva, no suor, na lágrima, etc, tem uma quantidade muito pequena, não constante, de partículas virais. Portanto fica mais difícil ainda a transmissão através desses fluidos.

Jorge Escosteguy: O Júlio César Madi e Sheila Cortelini, aqui de São Paulo, perguntam: “Se uma criança pequena na escola morder a outra e ocorrer sangramento, há risco de contaminação?” Completando, José Lázaro, de São Bernardo, diz que trabalha numa creche e já socorreu várias crianças machucadas com sangramento. Ele pergunta qual material deve ser usado nesses casos para não haver contaminação?

Caio Rosenthal: Primeiro, em relação à mordida. É claro que tem que ser uma mordida... Vamos imaginar como se daria a transmissão, no caso da mordida. A pessoa que morde, a criança tem que ser contaminada com o vírus. O vírus tem que sair do sangue dessa pessoa, porque só o vírus da saliva não é suficiente. Então, essa criança, no caso, que seja portadora, tem que ter sangramentos dentro da boca, para que saia o vírus junto com esse sangue. E esse sangue da boca da pessoa, que é portadora, tem que entrar dentro do sangue da outra pessoa. Só que tem que ter uma quantidade razoavelmente grande; tem que haver uma passagem de secreção, no caso do sangue, muito grande, para que ocorra a transmissão. Então, é aquilo que a gente estava conversando no início: é mais fácil a criança ser morta na porta da escola através de um assalto, ou ela ser morta no trânsito, do que haver uma transmissão com esse exemplo.

Jorge Escosteguy: O outro caso do sangramento, que o telespectador perguntou, que providência ele deve tomar para evitar a contaminação, se uma criança se machucar?

Caio Rosenthal: Isso é super importante. Hoje em dia, as precauções que devem ser tomadas são chamadas precauções universais. O que quer dizer isso? Se qualquer pessoa que está sangrando, seja criança, adulto, enfim, qualquer pessoa que tenha um acidente, quem for socorrer tem que, obrigatoriamente, tomar determinadas precauções, determinados cuidados com o sangue dessa pessoa. Não é só o HIV que é transmitido pelo sangue. Existem inúmeras, dezenas de outras doenças transmitidas pelo sangue. E hoje em dia, a gente tem que conviver com essa realidade, em que alguma pessoa pode realmente estar contaminada com o HIV. Então tem que tomar essas precauções sempre. Não é só na escola ou num acidente, é sempre. É o dentista, é o médico, é o veterinário, é a pessoa que vai socorrer na rua e assim por diante…

Julio Abramczyk: Ainda dentro desse conceito de transmissão, a população tem alguns conceitos que poderíamos chamar de inadequados. Por exemplo, assentos de banheiro podem transmitir?

Caio Rosenthal: Para que ocorra uma transmissão, por exemplo, com assento de banheiro, a gente tem que raciocinar. Bom, então o sangue da pessoa que acabou de sentar naquela privada… Primeiro, a pessoa que acabou de sentar naquela privada tem que portar o vírus, o HIV. Depois, ela tem que ter um corte na nádega, para que saia sangue e fique na privada. E em seguida vem uma outra, porque o vírus sobrevive muito pouco fora do sangue, fora do corpo humano…

Jorge Escosteguy: Quanto tempo, doutor?

Caio Rosenthal: Em condições ideais, de laboratório, de temperatura e de pressão etc, etc, ele pode sobreviver até 24 horas dentro do laboratório. No meio externo, ele vive, no máximo, um ou dois minutos, se tanto. Então, no caso do banheiro e da privada, a pessoa que senta tem que, primeiro, ser portadora. Segundo, tem que ter um corte na nádega, para que saia sangue. Tem que molhar a bacia de sangue e em seguida vir a outra, com um corte também na nádega e sentar em cima daquele sangue. Quer dizer, é uma verdadeira transfusão entre…

Julio Abramczyk: E aqueles elementos sobre os quais a população muitas vezes pensa: copos de vidro, tosse, insetos, comida e água.

Caio Rosenthal: É a mesma coisa.

Jorge Escosteguy: O mesmo pergunta Luiz Silva daqui de São Paulo.

Caio Rosenthal: É a mesma coisa, copo de água, etc, são todos exemplos absolutamente meteóricos, quer dizer, a mesma coisa do meteoro. É muito mais fácil a criança ser assaltada e morrer, ou levar um tiro, ou no trânsito morrer, do que através do copo. Inseto, então, nem se discute.

Jorge Escosteguy: Manuel Reis, aqui de São Paulo, pergunta justamente sobre a picada de um inseto, o mosquito borrachudo, por exemplo.

Caio Rosenthal: O mosquito borrachudo, quando faz o repasse, ou seja, quando ele pica uma pessoa… Vamos lá de novo: essa pessoa, primeiro, tem que estar contaminada. Segundo, é antinatural. O inseto que já se satisfaz numa picada, não vai logo em seguida picar outra pessoa. Ele não tem o que sugar. Terceiro, a quantidade de sangue que ele carrega, depois de uma picada, é muito pequenininha. É insuficiente para que se produza a transmissão. Então, mesmo assim, vamos raciocinar no absurdo. Ele acaba de picar você, vai lá e pica ela. Isso não acontece porque é antinatural. Além de ele estar portando uma quantidade ínfima, com muito pouco vírus, insuficiente para que se dê a transmissão, ele vai picá-la para chupar o sangue, não para depositar; ele não vai enfiar o sangue que ele tem dentro da circulação na outra pessoa. Pelo contrário, ele vai retirar mais sangue, é um exemplo absurdo.

Flávio Dieguez: Tem um número, para continuar dentro desse assunto, depois eu queria mudar. Parece que é preciso haver quinhentas relações sexuais, segundo diz o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos, para haver transmissão, não é isso?

Caio Rosenthal: A probabilidade é essa. Isso se um dos dois parceiros estiver contaminado. Quer dizer, em termos de probabilidade...

Flávio Dieguez: E no caso de esperma, a concentração de vírus é maior do que na saliva.

Caio Rosenthal: É muito maior, claro. É, isso.

Ana Maria Sanches: Quer dizer que o professor não precisa, então, ter nenhum cuidado especial com suas crianças, nem em sala de aula, nem no recreio, nem em situação alguma. Ele pode ficar tranqüilo?

Caio Rosenthal: Ele pode ficar tranqüilo, sem dúvida nenhuma. Agora, vamos raciocinar no caso de haver algum acidente.Vamos raciocinar sobre a exceção. Se não houver acidente, ele pode realmente ficar tranqüilo. Se houver acidentes, então, é aquilo que a gente já havia falado: precauções universais. Ou seja, a pessoa que está responsabilizada pelo atendimento, tem sempre que usar luva, independente de haver o HIV ou não. Tem que usar luva porque senão ela pode se contaminar com hepatite B, com outros vírus e assim por diante. Então o professor pode ficar sossegado. E no caso de haver acidente, precauções universais.

Inês Knaut: E no caso de uma criança comer maçã, dividir uma maçã com a outra, de qualquer forma, não é legal, né?

Caio Rosenthal: Não tem nada a ver. Pode tomar água, pode... Se fosse hepatite, se estivéssemos raciocinando em termos de hepatite, aí sim. Primeiro, com hepatite, a criança não pode ir para a escola. Enquanto ela está excretando o vírus, ela não pode ir para a escola. Por quê? Porque o vírus da hepatite se transmite muito mais fácil. Já existem estudos que demonstram cientificamente que é cem vezes maior a probabilidade de, em um acidente com sangue, uma pessoa transmitir o vírus da hepatite B [para outra] do que transmitir o HIV. A hepatite B é uma doença grave que tem que ser cuidada. Daí a necessidade dos cuidados universais sempre.

Sérgio Groisman: Doutor Rosenthal, eu vejo que a aids é uma doença realmente difícil porque ela atinge não só uma questão de relação médico-paciente-ciência, mas extrapola na questão psicológica, existem preconceitos, existem questões jurídicas. Nós estamos vendo esse caso da garota. Acho que é super justo, mas a mídia evidentemente, pelo fato de ser uma criança, por um lado é super ótimo que tenha acontecido, e entre aspas, no sentido de se fazer uma nova reflexão. Mas pouco se fala dos preconceitos em relação ao trabalho dos homossexuais, dos drogados. Eu queria saber se o senhor acha que o Estado tem sido vacilante no sentido da informação à população. Nós vemos aqui que as perguntas são, às vezes, super específicas e às vezes elas são conceituais mesmo em relação à questão da aids. Às vezes aparecem algumas informações como recentemente a de um pesquisador, que disse que talvez o vírus HIV nada tenha a ver com a aids, que desnorteia um pouco a população. O senhor acha que a postura da Igreja, por exemplo, que não recomenda o uso de preservativo, e todas essas questões interferem na postura do Estado para informar bem a população?

Jorge Escosteguy: O telespectador José Eduardo, aqui de São Paulo, também coloca a mesma questão do Serginho sobre o que acha da posição da Igreja quanto à utilização de preservativos.

Mônica Teixeira: É exatamente essa constatação que o Sérgio fez. A epidemia tem mais de dez anos, e nós aqui estamos discutindo coisas que já podiam ter sido resolvidas no primeiro ano. O que falhou, o que faltou no Brasil para que a gente tenha que estar sempre no mesmo pedaço da discussão?

Julio Abramczyk: Posso acrescentar só uma coisinha que saiu na Folha de hoje. Lair Guerra, coordenadora desse programa, admitiu que as escolas foram esquecidas em todas as campanhas realizadas até agora pelo Ministério da Saúde.

Caio Rosenthal: Como diz o Betinho, o Herbert de Souza [sociólogo brasileiro, idealizador da campanha Fome Zero, faleceu em 1997, depois de sobreviver por mais de uma década com o vírus HIV, contraído em uma transfusão de sangue à qual foi submetido por ser hemofílico - ver entrevista com Betinho no Roda Viva]: a melhor campanha é quando o governo não faz campanha. [risos] Desde o início da epidemia, como ele mesmo diz, houve uma sucessão de erros e equívocos muito grande. A verdade é como você disse: é uma doença que mexe com conceitos religiosos, morais, políticos, sociais, econômicos. É uma doença multifatorial. Engloba uma gama enorme de variáveis e mexe com toda a população. Mexe com conceitos básicos, estruturais, de formação, da educação da pessoa, do cidadão. E nosso país é um país conservador, um país católico, um país onde a Igreja tem uma certa presença e a aids veio para bagunçar. É uma doença revolucionária, inclusive. E bagunçou mesmo. Porém não se justifica, obviamente, esse atraso de dez anos para que a campanha penetre na escola. A gente está vendo aí que a primeira geração de crianças contaminadas já está na idade escolar, já está entrando na escola, e não foi feito preparativo nenhum nesse sentido. Os grupos que até então eram os culpados, entre aspas, por haver doença, os homossexuais, os viciados em drogas, etc, são mal vistos pela sociedade sempre, são indivíduos [vistos como] marginais. E a doença suscita questões que mexem muito com o íntimo das pessoas. E numa família de classe média, até alguns anos atrás, não se falava em camisinha, não se falava em relação anal. Até o vocabulário veio a quebrar isso tudo. É uma doença que veio para quebrar as estruturas. As pedras na carroça estão começando a assentar para que ela comece a andar. Então, não existe ainda, na verdade, uma política coesa, informações uniformes, infelizmente as campanhas são tímidas. A Igreja tem uma presença, até certo ponto, negativa, no sentido de que ela está dividida, como é o caso, por exemplo, da camisinha. A Igreja, hoje em dia, tolera a camisinha. Ela não é sequer a favor da camisinha. Já foi um progresso muito grande o padre falar em camisinha. E hoje, ao que tudo indica, a Igreja está tolerando o uso da camisinha.

[...]: Mas não recomenda.

Caio Rosenthal: E não recomenda. Veja em que atraso nós estamos. A camisinha existe desde 1840, com a finalidade de impedir a gravidez.

Julio Abramzck: Agora, ela é 100% segura para uma doença 100% fatal?

Caio Rosenthal: Olha, eu, particularmente, não entendi o que aconteceu com aquele experimento na Holanda em que houve...  me parece que as camisinhas são seguras. As primeiras anotações de camisinhas foram feitas em mil… no século XVI.

[...]: Usando bexiga [de animais]?

Caio Rosenthal: Por [Gabrielle] Falópio [(1523-1562), médico italiano]. Quer dizer, eu acredito que desde essa época, a camisinha obrigatoriamente já tem que ter evoluído e se atualizado…

Jorge Escosteguy: O senhor mencionou uma experiência na Holanda?

Caio Rosenthal: É que a Holanda recebeu uma série de amostras de camisinhas brasileiras, fez alguns testes e chegou à conclusão de que as camisinhas brasileiras não prestam. Eu não sei até que ponto isso é guerra de laboratórios, até que ponto isso é verdade, enfim. É uma coisa que não ficou clara para ninguém. Eu, pessoalmente, recomendo sempre o uso de camisinha, qualquer que seja a marca, principalmente as lubrificadas, de látex, sem ar e que tenham um espaço para caber o esperma.

Jorge Escosteguy: Nós estamos falando sobre informação e desinformação, dois telespectadores telefonaram. Francisco Guimarães, aqui de São Paulo, ele diz: “Se é tão difícil a transmissão da aids, como o senhor falou há pouco, por que aumenta tanto a população portadora do vírus? E o Alfredo Piotrovski, de Guarulhos, pergunta: “No caso, se a doença não é tão transmissível, por que os hospitais isolam os pacientes?

Caio Rosenthal: Não, os hospitais não isolam mais os pacientes. Isso é um conceito antigo. O hospital, hoje em dia, só isola paciente quando ele é basilífero, ou seja, quando ele está expelindo o bacilo da tuberculose. Ou, então, o paciente que seja insano, ou seja, que tenha comportamentos psiquiátricos e que vá atentar contra a saúde de terceiros. Nesse caso, sim. Por que a aids cresce? Essa é uma pergunta excelente. Porque não existe a informação. Se um sujeito que é universitário, que representa um sindicato, um dos maiores sindicatos, o sindicato de educadores, de professores, e este sujeito é um ignorante, como é que se pode, então, querer que a população pobre e que não tem acesso às informações escritas, que, aliás, é onde sai mais informações – jornais e revistas. Como é que pode, em uma população tão pobre, com uma enorme percentagem de analfabetos, se garantir com os conhecimentos da aids? Por ignorância, porque não existem campanhas, não existe informação suficiente, então a aids cresce. Apesar de a infecção ser difícil, apesar de a transmissão ocorrer com dificuldade. Vejam a gravidade disso: mesmo sendo difícil, está crescendo.

Thereza Pinheiro: A gente vê que as campanhas têm se mostrado ineficazes, mas a revista Veja publicou o resultado de uma pesquisa feita, se não me engano, pelo Ministério da Saúde, coordenada pelo Richard Parker, aquele antropólogo que faz parte da Comissão Nacional de Saúde, e que tinha um dado surpreendente: a maioria da população, ou 98% das pessoas sabem, por exemplo, que a aids se pega na relação sexual. Esse é um dado já líquido e certo que as pessoas sabem. Qual o outro dado surpreendente? As pessoas não usam camisinha. E tinha muito a ver, no caso dos homossexuais, com o conceito de sexualidade que o brasileiro tem.  Não está muito ligado ao fato de fazer sexo com um parceiro do mesmo sexo, mas com o conceito de ativo e passivo.

Sérgio Groisman: E também de prazer, talvez.

Mônica Teixeira: Ou de prazer, enfim, mas que é ligado a um conceito. Quer dizer, todo mundo sabe, esse é um dado que todo mundo tem – que a aids se pega por relação sexual e que mata – mas as pessoas se recusam, em larga parte, a aceitar isso. Eu imagino que você deve ter pacientes que tenham pegado exatamente por uma recusa. O que leva a pessoa a recusar? Nos seus casos, com seus pacientes, como é que você encara essa recusa da pessoa em se proteger?

Caio Rosenthal: Eu acho que isso é um problema cultural. Primeiro, é um erro achar que numa relação sexual com camisinha não há prazer. A realidade está aí, a doença é fatal, não tem jeito. Ou usa camisinha, ou vai chegar uma hora em que a pessoa vai se conscientizar, e vai se conscientizar quando for tarde. Ou seja, ela vai falar: “Puxa, justo comigo aconteceu”. E é isso que a gente não quer...

Jorge Escosteguy: O senhor diria que se deve usar sempre, mesmo com parceiros fixos, casados... ?

Caio Rosenthal: Aí é uma questão de bom senso. Se sou casado há dez anos com a mesma mulher, e esta não tem relação com outro homem, eu não tenho relação com outra mulher nem com outro homem, então não há necessidade. Já passou o tempo de camisinha. É uma questão de bom senso. Para que haja bom senso, há a necessidade de informação, de que a pessoa não seja ignorante, que ela tenha a mínima condição de optar.

Inês Knaut: Como o senhor tem percebido a mudança de perfil dos pacientes de aids entre os seus pacientes no consultório ou no serviço público? Perfil de paciente, quer dizer, se é homem, mulher, grupo de homossexual, transfundidos, criança...

Caio Rosenthal: Não há dúvida de que os heterossexuais estão aumentando, as mulheres estão procurando mais assistência médica; não há dúvida nenhuma de que já houve extrapolação daqueles antigos grupos de risco. Hoje em dia, a aids é um problema de todos nós. Isso a gente vê em todos os lugares onde atendem-se pacientes com HIV ou com aids.  É frequentíssimo. Basta dizer que a relação em 1985 e 1986, de homens para mulheres, era de 25 a 26 para 1. Ou seja, havia 25 a 26 homens [infectados] para uma mulher. Hoje em dia essa relação baixou para seis homens para uma mulher. Então não há dúvida de que a coisa está se espalhando, está se disseminando entre os dois sexos.

Jorge Escosteguy: Nós vamos fazer um breve intervalo. O Roda Viva volta daqui a pouco discutindo aids, preconceito e intolerância com o doutor Caio Rosenthal, médico especializado em moléstias infecciosas. Até já.

[intervalo]

Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva que hoje está entrevistando o doutor Caio Rosenthal, médico especializado em moléstias infecciosas. Doutor Caio, no primeiro bloco, falamos muito sobre ignorância, preconceito, falta de informação, etc. Eu tenho aqui duas perguntas de duas pessoas, dois médicos, o doutor Jorge José Saraiva Junior, de São Paulo, e o doutor Rui Montano, médico pediatra, de Santo André. O doutor Jorge José diz o seguinte: “Sou médico infectologista. Está mais ou menos provado que uma criança com aids tem sobrevida de 14 anos. O senhor acha que uma criança aidética ocupando o lugar de uma criança normal é justo?”.

Caio Rosenthal: Puxa!

Jorge Escosteguy: Doutor Rui Montano, médico pediatra, pergunta: “Por que afastar uma criança com hepatite e não com aids, quando acidentes podem acontecer?”.

Caio Rosenthal: Bom, estou até pasmo com essas perguntas. Parece que não adiantou nada o que a gente conversou.

Jorge Escosteguy: São dois médicos.

Caio Rosenthal: Desculpe, mas mesmo assim. Em relação a afastar uma criança com hepatite e afastar uma criança com aids, não tem absolutamente nenhum termo de comparação. A hepatite, como eu disse, é muito mais transmissível do que a aids. Então, há realmente necessidade, por quê? Além de a aids ser só transmissível quando se tem contato com sangue, esperma e secreção vaginal, e que esses fluidos têm obrigatoriamente a necessidade de entrar na circulação da outra pessoa, o que é absolutamente impraticável, do ponto de vista social, de convivência social, tem ainda o fato de que a hepatite, ao contrário, além desses três fluidos, ela também é transmitida através da urina, através das fezes principalmente, através da saliva. Então, não se justifica realmente a convivência em grupo, porque o contágio é muito fácil. Tem muito mais meios para serem transmitidos, além do que a transmissão propriamente dita é muito mais fácil. Por exemplo, no caso de uma criança que esteja com hepatite, realmente, se ela morder o mesmo sanduíche da outra, ela passa, porque a saliva sabidamente tem o vírus da hepatite. Ou então se sentar no banheiro, sabidamente passa. Além do que o vírus da hepatite sobrevive mais tempo no meio ambiente do que o HIV. Então isso está bastante claro. Não tem dúvida nenhuma, não é o caso de a gente perder tempo explicando isso novamente.

Jorge Escosteguy: Eu gostaria que o senhor comentasse a pergunta do outro telespectador, o doutor Jorge José Saraiva Júnior.

Caio Rosenthal: Eu acho que ele deve estar querendo apenas provocar alguma polêmica, porque isso é um pensamento, uma idéia de uma pessoa extremamente reacionária, uma pessoa conservadora demais. Se ele está errado em dizer que uma criança vive 14 anos com aids, eu acredito que não. Infelizmente, vive até menos tempo com aids. Já tiraram o direito à saúde dessa criança, agora também querer tirar o direito à educação; querer tirar o direito dessa criança de se divertir, conviver com outras crianças, de brincar, de ser amparada, de ter uma qualidade de vida um pouco melhor do que resta de vida? Eu acho que essa pergunta é uma provocação.

Thereza Pinheiro: Doutor Caio, se o senhor tivesse uma paciente grávida, que fosse portadora do vírus, e ela quisesse fazer um aborto. O senhor aprovaria?

Caio Rosenthal: Veja, a probabilidade de uma criança...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Em princípio, o senhor é contra ou a favor do aborto, a legalização do aborto?

Caio Rosenthal: Em determinadas circunstâncias muito específicas, eu sou a favor. O que existe, hoje em dia, em relação à Constituição e o que ela reza em relação ao aborto, eu acho um tanto quanto limitado demais. Ou seja, é apenas em caso de estupro e em casos em que a gravidez está colocando em risco a saúde da mãe. Agora, numa situação como a rubéola, por exemplo, pega nos primeiros meses da gravidez, em que a chance dessa criança nascer muito deformada é de 50%, eu acho que deve ser pensado na possibilidade de aborto.

Thereza Pinheiro: E no caso de uma paciente aidética?

Caio Rosenthal: No caso de aids, até aí você veja como a transmissão também é mais difícil. No caso de uma mãe que seja portadora do vírus do HIV, a chance dela, estando grávida, de passar o vírus para o recém-nascido, para o produto conceptual, é de cerca de 25% apenas.

Thereza Pinheiro: Então o senhor aconselharia...

Caio Rosenthal: Eu não aconselho a nenhuma mãe, que seja HIV positiva, ter gravidez. Mesmo porque, ela ficar grávida já implica que o parceiro não está usando camisinha. Então, já está errado. Segundo, existe uma chance de 25% dessa criança nascer positiva. Então, eu aconselho as mães que são HIV positivas a não engravidar. Ela está colocando em risco o parceiro e uma criança, ela não tem direito a isso.

[...]: E o aleitamento?

Caio Rosenthal: O aleitamento também. É bastante sabido que existe a transmissão pelo leite materno, em menor ainda probabilidade. Ou seja, se a criança já resistiu à transmissão intra-útero durante a gravidez, durante o parto, ela também resistiu, não foi contaminada, ainda resta a possibilidade de ela ser contaminada através do aleitamento materno, mas essa probabilidade é menor do que as duas anteriores.

Júlio Abramczyk: A Organização Mundial da Saúde, em termos de aleitamento, sugeriu que ele seja feito, mesmo que a mãe seja aidética, porque o risco de a criança morrer por desnutrição é muito maior.

Caio Rosenthal: É algo a se pensar. Isso em países de miséria absoluta, como os da  África Central onde existem muitas crianças, muitas mães HIV positivas, então realmente é o caso de se pensar nessa possibilidade. Realmente é questionável isso.

Mônica Teixeira: Doutor Caio, frente ao quadro de discriminação e de preconceito que, como acabou de se provar aí, não se deve apenas à ignorância, o que o senhor aconselha aos seus pacientes – o que tem aids ou o que tem o vírus.  O senhor diz a eles que contem aos outros que têm o vírus ou que escondam isso?

Sérgio Groisman: Deixa eu pegar uma carona. Eu queria saber quanto custa hoje para uma pessoa fazer o exame para saber se tem o vírus da aids e para quem o senhor recomenda que seja feito?

Jorge Escosteguy: Desculpe, vou pegar uma carona, mas é na pergunta da Mônica. Eu perguntaria ainda se no caso de pessoas que têm filhos portadores do vírus, o senhor diria que é recomendável esconder para evitar problemas na escola e poder matricular o filho ou...?

Caio Rosenthal: É uma ótima pergunta essa também. O que esse presidente do sindicato está induzindo as pessoas a fazerem é exatamente isso. É esconder que a criança tem o vírus porque senão ela vai ser alijada do seu direito à educação. A mesma coisa acontece quando eu oriento e faço isto: eu sempre oriento os pacientes a dizerem para outras pessoas que está sob risco, que ela é positiva. E para que, obviamente, a outra pessoa se cuide.

Mônica Teixeira: Mas e os outros? Os que não estão sob risco?

Caio Rosenthal: Os que não estão sob risco também. Então é o caso, por exemplo, do paciente que vai ao dentista, e isso ocorre com uma certa freqüência, eu falo: “quando você chegar, fale para o seu dentista que você é HIV positivo”. O que ele tem que fazer é tomar as mínimas precauções. No entanto o que a gente vê? O dentista abandona esse paciente, manda embora, manda dizer que não tem lugar, que não tem hora, etc. E isso também induz o paciente a esconder a condição de portador do HIV, que é um erro. É muito difícil isso. Infelizmente, a população não está preparada. Ele [referindo-se a Serginho Groisman] me perguntou quem deve fazer o exame. Existem locais em São Paulo onde o exame é gratuito. Na Galeria Prestes Maia, a prefeitura tem um posto em que ela faz o exame gratuitamente. No Hospital Emílio Ribas, faz-se o exame gratuitamente e em vários outros centros da rede pública. Quem deve fazer o exame? Não existe uma norma definida na Organização Mundial da Saúde relacionada a isso. Aí também é uma questão de bom senso. Quem deve fazer o exame, na medida em que a população esteja ciente dos meios de transmissão, na medida em que a população tem um certo nível de conhecimentos da doença, eu acho que deve fazer o exame aquele que acha que deve fazer o exame. Ou seja, aquele que já entrou em contato com o HIV. Essa pessoa tem que fazer o exame. É uma situação ideal porque infelizmente não é assim. A população não sabe se entrou em contato ou não porque ela não tem os conhecimentos anteriores. E tem a paranóia, também, né?

Flávio Dieguez: Doutor, minha pergunta é um pouco complicada porque eu acho que a gente precisa separar as coisas. Uma pessoa que é responsável por uma política de saúde pública, desde que haja um mínimo risco de acontecer uma coisa, deve adotar a posição oficial de que aquela coisa é uma ameaça e deve ser combatida a qualquer custo. Esse é o caso do vírus. O cientista adota o oposto, a posição oposta. Até que ele esteja convencido de que um fato é causador de outro, ele deve colocar em dúvida. Esse é o caso de um pesquisador muito importante, um grande virologista, e que andou um pouco à margem da ciência porque adota a posição de que o HIV não tem nada a ver com a aids. Seria uma doença causada por fatores comportamentais, principalmente, e que, pelo fato de debilitar o organismo da pessoa, permite a proliferação de vírus muito raros, como o caso do HIV. Essa posição ganhou uma certa força ultimamente porque alguns pesquisadores estão achando agora que a aids pode ser uma doença auto-imune, por exemplo. O vírus apenas deslancharia [provocaria] um ataque do corpo contra si mesmo. E o descobridor do HIV, um deles, o [Luc] Montagnier [virologista e pesquisador do Instituto Pasteur de Paris], que esteve aqui no Brasil agora, disse que existem co-fatores importantes, outros elementos, que não o vírus, que devem ser levados em consideração como causa da doença. Eu gostaria que você comentasse isso, do ponto de vista da pesquisa científica, principalmente.

Jorge Escosteguy: Essa questão também foi levantada pelo telespectador Reinaldo de Figueiredo Filho, aqui de São Paulo.

Mônica Teixeira: Eu queria perguntar só uma coisa para coocoar a discussão no eixo. O senhor já viu ou já teve algum paciente de aids sem o vírus da aids?

Caio Rosenthal: Não, e não tem nenhum relato na literatura também que mostre que um paciente tenha aids sem a presença do vírus. Eu acho muito perigoso esse tipo de difusão de informação. Eu não acho perigoso que se pesquise isso, obviamente. Mas acho perigosa a difusão de informações que não contribuam em termos de saúde da coletividade para que a epidemia seja minorada. O que ocorre, na verdade, – como você mesmo já respondeu –, para que o vírus produza a doença, não mais a transmissão, mas para que ele deslanche para provocar, para sair do estágio do portador e chegar a essa doença, é necessário que haja determinados co-fatores. E esse realmente é um assunto bastante estimulante porque volta e meia descobrem-se novos co-fatores. O que são os co-fatores? São fatores que auxiliam ou que funcionam como um gatilho, porque se sabe que o vírus fica em latência no organismo durante muitos anos. Isso é, se eu for contaminado hoje, em média, 50% das pessoas que são contaminadas hoje vão adoecer cerca de oito a nove anos depois. Cerca de 50%. E esse período todo chamado de latência é um período em que não existe uma interação, não existe uma expressão viral de interação com o sistema imune da pessoa. O que vai fazer, de repente, esse vírus acordar, produzir a doença e a pessoa começar a ter supressão da sua imunidade? Ao que tudo indica, é aí que entram os co-fatores. O que são esses co-fatores? São os fatores que vão justamente engatilhar ou acordar o vírus. Por exemplo, um indivíduo portador do vírus, e que vem tendo, no decorrer da vida, inúmeras doenças venéreas ou doenças sexualmente transmissíveis, essas doenças funcionam como co-fatores, principalmente o vírus da hepatite B, que nós já falamos tanto aqui. A sífilis, por exemplo, e assim por diante. E agora, ao que tudo indica, o Montagnier, que foi o descobridor do vírus, e não um deles, descobriu que o mycoplasma genitallis, que é um misto entre bactéria e vírus, não está ainda muito bem definido, também é um novo co-fator. As declarações dele foram só para imprensa leiga, ao The Sunday Times, em Londres, que publicou isso. Quero eu entender que houve uma má interpretação dessa informação, no sentido de que os jornalistas entenderam que não é o vírus que provoca a doença. Mas, na verdade, o que ele quis dizer, quero crer, que foram co-fatores, mais um co-fator que ele descobriu, que acordaria o vírus e provocaria a doença.

Flávio Dieguez: Eu entrevistei o [Peter] Duesberg [bioquímico alemão, naturalizado americano, estudioso do vírus HIV], em São Francisco agora, e pedi que alguém entrevistasse o Montaigner a respeito das declarações do Duesberg. E o Montaigner disse que admira muito o trabalho do Duesberg e tal, mas ele disse que existe uma diferença muito grande, porque o Duesberg acha que o vírus não tem nada a ver com a doença. E o Montaigner acredita que há um relacionamento entre o vírus e outros elementos.

Julio Abramczyk: Tudo isso repercute na invenção de uma vacina? O aperfeiçoamento ou a chegada a uma vacina?

Caio Rosenthal: Falar em vacina anti-HIV é um assunto muito pantanoso, é muito difícil porque existem ainda muitas dúvidas em relação à convivência do HIV com o organismo da pessoa. Existem muitos obstáculos na fabricação de uma vacina. Por exemplo, para não precisar ir muito longe, fica praticamente impossível uma vacina nos moldes tradicionais, na medida em que não haja um modelo experimental, ou seja, na medida em que nenhum animal adoece com o HIV. No máximo, o chimpanzé pode ser contaminado com o vírus, mas ele não adoece, ele não tem aids, ele se torna um portador. Então essa falta de modelo experimental vem dificultar muito os estudos para a finalidade de uma vacina. Esse é um dos fatores. O segundo fator importante é aquilo que eu havia dito: o vírus fica, durante muitos anos, em estado de latência, sem interagir com o sistema imune da pessoa. Por isso não se sabe exatamente quando o vírus vai ou por que motivos ele vai liberar e vai começar a produzir a doença. E esse tempo longo, esses anos todos que ele fica sem interagir com o sistema imune, desconhece-se o que ele faz.

Julio Abramczyk: Nesse tempo de latência é que daria tempo para a vacina agir.

Caio Rosenthal: Estou dizendo das dificuldades na fabricação de uma vacina. É que ainda não se conhece a interação do hospedeiro e do hóspede, vamos chamar assim. O vírus, com o seu sistema imunológico, nesse período de latência... são muito pobres os estudos sobre o que ocorre dentro do organismo da pessoa. E para que seja fabricada uma vacina, haveria a necessidade de se conhecer plenamente isso. A outra questão é a variação do vírus. O vírus tem uma faculdade de mutação muito grande. Hoje em dia já se conhecem mais de cem possibilidades de mutação do vírus. E ainda a quarta questão: o vírus não agride só um tipo de célula, o linfócito T4. Ele agride vários outros, principalmente o linfócito T4. Mas o alvo dele ainda não é só o T4 como também outros tipos de células, o que vem embaralhar e dificultar ainda mais a fabricação da vacina.

Jorge Escosteguy: Antes de passar para o Demócrito, que tem uma pergunta, quero lembrar a pergunta do telespectador Roberto Mazolin, que o doutro Caio já falou sobre a questão de esconder a doença e que ele é contra. Darli Figanó, de São Sebastião, sobre a questão hepatite e aids, que também foi respondida; Gilberto Ybut, aqui de São Paulo, a questão  da ação do governo; e Marcos Lucato, de São Bernardo do Campo, sobre contaminação. Demócrito, por favor.

Demócrito Moura: O senhor sabe que a aids está crescendo numa progressão assustadora. Então todo dia praticamente surgem novos doentes. Esses doentes precisam ser internados em algum lugar. Creio que a capacidade instalada da rede pública atualmente é pequena. Vai chegar um ponto em que ela vai saturar. Então vai precisar…

Caio Rosenthal: Já está.

Demócrito Moura: Ah, já está saturada? Então há necessidade de internação desses pacientes também nos hospitais privados. Como os hospitais privados podem internar esses pacientes praticamente de graça? Eles não vão aceitar, eles não vão querer ir à falência. O senhor não acha que é o caso, já que eu admito, não sei se o senhor admite, que o  poder só se mexe quando é provocado ou ameaçado, o senhor não acha que é o caso das famílias e amigos de aidéticos se organizarem para reivindicar uma assistência decente para os pacientes de aids no Brasil?

Jorge Escosteguy: Só complementando. O doutor João Carlos Lima, do Hospital Amico, de Santo André, pede que seja feita uma correção, pois o senhor disse que 100% dos hospitais particulares não atendem aidéticos. E ele disse que o Hospital Amico atende em Santo André.

Caio Rosenthal: Sim, precisa ver a que preço atende.

Julio Abramczyk: Seria bom dar o endereço, então, para mandar o pessoal para lá.

Caio Rosenthal: Essa sua pergunta é muito importante, porque ela traz à tona as dificuldades de longos anos do complexo de saúde. Não é uma pergunta fácil de responder, é uma pergunta para especialista em saúde, para sanitarista responder. Mas o que eu observo, no dia a dia, são coisas absolutamente incompreensíveis, por exemplo, a média de um paciente internado num hospital público é cerca de vinte a trinta dias. Por quê? Porque o hospital público não está capacitado a atender adequadamente um paciente com aids. Para você ter uma idéia, o Hospital do Servidor Público, que é onde eu trabalho, não faz endoscopia, que é um exame extremamente simples, um exame extremamente barato. No Hospital Emílio Ribas, por exemplo, que é outro hospital onde eu trabalho, não se faz tomografia. É inconcebível. Não existe tomógrafo dentro do hospital Emílio Ribas. Então o que acontece com esses pacientes? Esses pacientes têm que entrar numa fila numerosíssima para esperar a sua vez de fazer a tomografia, ou uma biópsia, ou uma endoscopia em outros locais onde exista um convênio, geralmente com a rede privada, não sei em que termos são feitos esses convênios, obviamente. E o paciente fica vinte, trinta dias internado, usufruindo de toda a hotelaria do hospital. E vão aí [despesas com] médico, enfermagem, alguns remédios, comida e leito, etc, quando o que ocorre em determinados hospitais, como o Albert Einstein, em São Paulo, por exemplo, onde eu trabalho, é que esse mesmo paciente, se ele ficar internado dois ou três dias, ele faz todos os exames que precisa fazer. E quem sabe o preço que vai ser pago no Albert Einstein por dois, três dias não é o mesmo preço caso ele ficasse vinte ou trinta dias dentro da rede pública, esperando esses exames. Então são coisas assim que são absolutamente incompreensíveis. São erros de nascença. São erros antigos que existem dentro da saúde pública no Brasil.

Inês Knaut: Doutor Caio, eu queria voltar a essa questão mais científica, digamos. Parece que desde o surgimento da aids até hoje, a sobrevida dos pacientes tem aumentado de uma maneira surpreendente. Queria saber que expectativa de sobrevida tem, sei lá, uma criança, um adulto, que medicamentos hoje estão ajudando a empurrar mais para frente o...

[sobreposição de vozes]

Jorge Escosteguy: O senhor disse que tem esperança no surgimento de uma nova droga que esteja sendo pesquisada.

Flávio Dieguez: O DDI [antiretroviral criado em meados da década de 80, nos EUA,  para pacientes com intolerância ao AZT] está funcionando?

Caio Rosenthal: O DDI funciona muito bem. Eu vou chegar ao DDI logo. Hoje em dia já se tem bastante experiência em aids. Infelizmente essa experiência foi adquirida na prática. Não existe a matéria aids na faculdade. Aids é uma doença com a qual o médico tem que se familiarizar com o atendimento a pacientes com aids para ele adquirir a sua própria experiência. Ou seja, tem que sair na rua, arregaçar as mangas e aprender sobre a doença por si próprio. É difícil hoje um curso de aids na faculdade ou um recém-formado sair com conceitos sobre aids.

Jorge Escosteguy: O senhor diria que, apesar de todo esse histórico da aids, nas escolas de medicina não se ensina nada sobre essa doença?

Caio Rosenthal: Não tem matéria sobre aids. O que tem é a vivência dentro de enfermarias. A disciplina “moléstias infecciosas”, hoje em dia, se aprende dentro da enfermaria. E é uma doença nova. O aluno aprende sobre aids dentro de uma enfermaria, com o convívio de pacientes com aids. Até pouco tempo não existia a matéria “aids”, agora nós vamos aprender aids. Isso não tem. Nem o professor nos ensinou a aids. Nós aprendemos no dia a dia.

Flávio Dieguez: Quando você fala aids, você quer dizer: o fato de ele ter o vírus, o fato de ele ter uma das 25 doenças oportunistas que são definidas como a síndrome, ou o fato de ele ter o sistema imunológico deprimido?

Caio Rosenthal: Essa definição não é minha. Quando eu digo aids é quando ele preenche os critérios estabelecidos pelo CDC, Center for Disease Control [and Prevention] dos Estados Unidos.

Flávio Dieguez: E qual seria?

Caio Rosenthal: É o último estágio naquela classificação. Ou seja, o paciente que já tem uma doença oportunista, ou uma doença considerada neurológica. São doenças tabuladas dentro daquela classificação, não é uma definição minha. Agora eu realmente usei o termo inapropriadamente – aids. É toda a constelação, desde portador até a doença aids. Mas respondendo a sua pergunta...

Flávio Dieguez: É justamente para responder a pergunta dela [referindo-se a Inês Knaut], desculpe.

Caio Rosenthal: Hoje em dia existe um progresso muito grande em relação ao paciente, tanto ao portador do vírus quanto ao paciente com aids, propriamente dito, com a doença instalada, vamos dizer assim. Existem progressos na medida em que existem, primeiro, drogas excelentes anti-vírus, anti-retrovírus, anti-HIV. O AZT, por exemplo, é uma droga excelente. O DDI é uma droga que está se experimentando, ainda não tem um segmento grande, suficiente para se saber, mas em estudos fechados nos Estados Unidos, já se mostrou como uma droga também muito boa, excelente. Recentemente foi licenciada nos Estados Unidos, aqui no Brasil ainda não foi. Ao que tudo indica, vai ser nos próximos trinta ou quarenta dias. É uma linguagem que até três, quatro anos atrás não se falava. Hoje em dia, quem mexe com aids já tem experiência suficiente para saber que o AZT é muito bom.  Obviamente isso aumenta muito a sobrevida do paciente. Além do que, nós aprendemos que também se consegue empurrar, aumentar a sobrevida do estágio do portador. O que significa isso? A gente consegue fazer com que a doença não se instale rapidamente, tomando uma série de medidas preventivas, tanto medicamentosa, como também de caráter de informação para o paciente. Então, aí entra, por exemplo, alguma coisa em que a gente pode interferir nos co-fatores. O indivíduo que é viciado,  usuário de drogas injetáveis, se ele continuar – ele é HIV positivo –usando a agulha, a seringa não descartável na rodinha, etc, ele não vai pegar só o HIV, ele vai pegar inúmeras outras doenças.

Jorge Escosteguy: Você é a favor da distribuição de seringas descartáveis para viciados em drogas?

Caio Rosenthal: Essa é uma pergunta difícil de responder.

Julio Abramczyk: Deixe eu pegar uma carona. Na Inglaterra estão dizendo que o custo social da aids é muito pior do que o custo social das drogas. Estão fornecendo drogas em hospitais especializados. É válido isso?

Caio Rosenthal: Olha, é uma questão dificílima de responder. Isso tem implicações culturais enormes. O que se faz na Dinamarca, na Suécia, na Escócia, na Inglaterra ou mesmo em alguns lugares dos Estados Unidos, a gente não pode transpor para os países onde a aids está realmente aumentando, que são os países do Terceiro Mundo. Essa cultura escandinava, a cultura inglesa, ou a americana ou a suíça, transpor aqui para o Brasil, em Santos, por exemplo, onde foi tentado, ou transpor para países da África ou da Ásia, fica muito difícil conviver com isso. É muito difícil concluir isso. Eu, a princípio, acho que teoricamente é correto. Vamos cortar, já que não… Vamos "dar os anéis e deixar os dedos" [adotar uma postura menos pior]. É muito cultural isso. Pode ser que isso funcione muito bem nos Jardins [bairro de classe média-alta], em São Paulo, com pessoas que têm um nível cultural melhor. Mas numa cidade no interior do Maranhão pode se dar mal. Ou num prostíbulo, isso pode funcionar erradamente e dentro das escolas pode funcionar bem. Enfim, é muito difícil essa resposta.

Julio Abramczyk: Sobre Santos tem um negócio interessante. Dizem que Santos é o maior núcleo de aids aqui no Brasil.

Caio Rosenthal: Proporcionalmente.

Julio Abramczyk: É um porto, tem uma zona de prostituição, de drogas. Mas o Rio de Janeiro não preenche tudo isso e tem o triplo ou o quádruplo da população de Santos? Não é um problema de estatística? Porque aqui no Brasil as estatísticas são...

Caio Rosenthal: Talvez seja um problema de notificação também, né? A gente sabe que a questão saúde, em Santos, é uma questão muito bem organizada. Santos, na verdade, está sendo o exemplo de pioneirismo em termos de tratamento de pacientes com aids, inclusive, na medida em que estão afastando os pacientes do hospital e estão dando mais assistência domiciliar. Santos foi o primeiro lugar no Brasil onde se fez esse estudo-piloto de distribuição de agulha e seringa. Em Santos, a porcentagem de sub-notificações de HIV positivo deve ser baixíssima. Quer dizer, na verdade Santos é um exemplo de organização sanitária e de saúde. Além do que é uma população muito menor do que a do Rio de Janeiro, então proporcionalmente tem muito mais casos que o Rio de Janeiro, se for pensar em números proporcionais, relativos.

Ana Maria Sanches: Eu gostaria que a gente voltasse um pouquinho à questão da transmissão e das campanhas. Nós sabemos que no Brasil é muito pequeno o número de campanhas que funcionam, que dão certo, em diversas áreas, porque as campanhas não conseguem modificar hábitos. E há também uma coisa muito curiosa que é a observação de que nem sempre a informação funciona como se espera que ela deveria funcionar. Nada contra a informação, ela é importantíssima. Mas nós sabemos, por exemplo, que adolescentes que engravidam precocemente, muitas vezes, sabiam muito bem como elas deveriam proceder para não engravidar. Mas elas achavam que com elas não iria acontecer e acaba acontecendo. Com drogas, com relação ao uso indevido de drogas, o que nós temos visto é que todas as campanhas feitas até agora não funcionaram. Com relação a sexo e a drogas, pensa-se, quer dizer, ainda não se está fazendo exatamente isso, ou não se está fazendo em grande escala, pensa-se no combate não mais através de uma campanha, mas através de um programa de valorização da vida. Quer dizer, começaria muito antes, até com a criança pequena com quem só iria tocar nesses assuntos mais tarde, mas que iria criar uma mentalidade diferente. Algumas pesquisas feitas com relação à transmissão de aids – e a Thereza até tocou nesse assunto – mostraram que várias pessoas entrevistadas tinham um conhecimento bem adequado a respeito da transmissão, mas elas não estavam tomando nenhuma providência para não serem contaminadas. Como é que o senhor acha que a gente mexe nisso? É claro que nós temos que difundir a informação, isso não se discute. Mas eu penso que a coisa vai um pouco além.

Caio Rosenthal: Sem dúvida. Existem vários Brasis dentro do Brasil. Realmente é muito difícil. Se a gente for imaginar que 20% da população é analfabeta, 100% analfabeto, então, não adianta, por exemplo, já aí as campanhas na imprensa ou na mídia escrita perdem valor. Se a gente for raciocinar que televisão não pega ou que não é um aparelho que tem em todas as casas no interior, ou no Norte, no Nordeste do Brasil, já vai por água abaixo, e assim por diante. Eu vejo que realmente é muito difícil a campanha de aids no Brasil. Fora o preconceito, fora todas as questões sociais, morais, políticas, tem a diversidade da população brasileira. O Sudeste brasileiro pensa de um jeito, o Nordeste pensa de outro, o Norte pensa de outro. Quer dizer, é muito diversificada a população do Brasil. Porém eu vejo como um fato muito positivo, quando o Pelé, por exemplo, que é um ídolo unanimemente aceito, arregaça as mangas e vai começar a trabalhar em cima de campanhas. Se a dupla sertaneja X ou Y começar a fazer campanhas, eu acho que é muito bem vindo. E assim por diante. Agora, que penetração tem a dupla sertaneja em uma família de classe média-alta, por exemplo? Quer dizer, é muito complexo. Na verdade, existe falta de campanhas, e como fazer as campanhas, desculpe, mas eu não sei dar uma resposta muito satisfatória.

Jorge Escosteguy: Doutor Caio, ainda sobre a questão da informação, você comentou há pouco sobre a mutabilidade do vírus, e quatro telespectadores telefonaram, o Vitor Esquenazi, Oswaldo Gomes e Luís Carlos, os três de São Paulo, perguntando sobre a possibilidade de que o vírus da aids tenha sido fabricado, entre aspas, em laboratório. E o Marinho da Rocha, aqui de São Paulo, também pergunta simplesmente de onde se originou o vírus.

Caio Rosenthal: Existem várias versões para explicar o aparecimento do vírus. A que é mais aceita hoje em dia, ou que existe mais respaldo científico na aceitação da teoria, é aquela que mostra que o vírus, realmente, é um vírus muito antigo e que esse vírus grassava em populações fechadas, virgens de contato com a civilização, de países da África Central. Essas populações conviviam de certa forma com o vírus. À medida que esses países da África Central foram se libertando, adquirindo independência, essas populações virgens de contato com a civilização foram também dizimadas e levaram consigo o vírus aos grandes centros urbanos. E os grandes centros urbanos, então, na África, onde a população é pobre, não tem conceito de higiene, não tem esterilização de material, existe um número enorme de doenças sexualmente transmissíveis, ficou muito fácil para o vírus se disseminar dentro desses grandes centros urbanos.

Julio Abramczyk: Mas o primeiro núcleo é de portadores sãos, então?

Caio Rosenthal: Veja, o vírus é muito variável, como já foi dito. Então, provavelmente a virulência dele era muito mais atenuada na população fechada, do que quando ele encontrou pessoas virgens de contato com ele. Aí então ele adquire uma nova virulência muito maior e produz a doença fatal. Acredita-se que a versão melhor seja essa; nada de CIA, de laboratório, isso é invencionice, não tem fundamento nenhum. Mas, tudo indica que o vírus coexistia dentro dessa população, dessas tribos não civilizadas, e essas tribos se abriram e cairam nos grandes centros urbanos. E, a partir daí, então, grassou-se. Numa determinada época, o ditador do Zaire, Mobutu, expulsou todos os médicos, as pessoas que ocupavam lugar de destaque na economia – e o Zaire era uma colônia da Bélgica – ele expulsou e mandou embora para a Bélgica todas as pessoas que ocupavam cargo de destaque. Essas pessoas, provavelmente, já levaram consigo o vírus, na medida em que elas viviam dentro desses centros urbanos, onde o vírus grassou rapidamente, já levaram para a Bélgica, para a França, etc. E aí ele precisava repor essa mesma população; ele precisava de pessoas da raça negra e que falassem francês. Então ele mandou trazer do Haiti 120 técnicos para ocupar esses locais. Essas pessoas ficaram lá quatro, cinco, seis anos, adquiriram o vírus, voltaram para o Haiti e levaram o vírus para lá. E do Haiti para os Estados Unidos... O Haiti é um quintal americano, então a doença foi se espalhando.

Jorge Escosteguy: Doutor Caio, antes de passar para a Mônica, queria lembrar aos telespectadores Cláudio Fernandes, Raquel Pereira Barbosa e Cláudia Souza, que já foram respondidas as questões sobre vacina, contaminação e a manifestação da doença.

Mônica Teixeira: Doutor Caio, eu queria fazer uma pergunta sobre a sua relação médico-paciente e até pessoal. O senhor certamente já acompanhou algumas ou muitas pessoas que morreram de aids. O senhor alguma vez colocou, ou elas colocaram para o senhor um desejo de que a vida delas terminasse? Ou seja, elas lhe pediram eutanásia?

Caio Rosenthal: Já. Eu acho esse assunto interessante...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] O senhor citou o caso do Betinho, e ele, aqui mesmo no Roda Viva, disse que tem um acordo  com o médico dele, que ele não quer sofrer. Ou seja, no fundo é uma eutanásia.

Caio Rosenthal: Eu devo muito ao Betinho. Muito da minha conduta médica, devo ao Betinho porque foi exatamente neste programa aqui, onde ele foi entrevistado, eu tive a sorte de ser um dos entrevistadores dele, eu tive a felicidade de perguntar para o Betinho naquela ocasião: “Betinho, – isso era antes do AZT, cinco, seis anos atrás – o que você espera do seu médico?”. E nem AZT tinha naquela época. Ele virou para mim, assim, na cadeira, e disse: “Eu quero que o meu médico seja o meu melhor amigo”. Quer dizer, aquilo me norteou e eu tento nunca esquecer isso que ele falou e tento reproduzir isso também com meus pacientes. Existem pacientes que chegam no consultório e que pedem, logo na primeira consulta, já colocam essa questão da eutanásia. A eutanásia é proibida, mas ele pede pelo menos para minorar o sofrimento dele de uma forma mais rápida, assim como o inverso. Tem determinadas situações, em que eu mesmo chego para a família e induzo, de certa forma, a família a aceitar isso. É uma situação extrema, obviamente, mas é uma situação em que o paciente está sofrendo muito, é uma situação irreversível, em que a família já gastou tudo o que tinha e o que não tinha. É uma questão também de bom senso para um médico chegar e propor isso. E muitas vezes, o médico se dá mal. Eu até tenho um caso que é engraçado, porque uma vez eu coloquei isso para uma determinada família, ainda não existia o AZT, [o paciente] era um grande executivo, ele estava tendo problemas psiquiátricos graves e estava muito mal, o que ele tinha, na época, era irreversível. E eu coloquei para a família, induzi a família a aceitar essa possibilidade de parar de sofrer, com remédios, para um sono profundo que o levaria vagarosamente a óbito. Uma das irmãs do paciente – eu tive a felicidade de saber, logo em seguida – era uma irmã de caridade. Ela só faltou me botar para fora do hospital, eu me dei muito mal.

Jorge Escosteguy: Isso que o senhor defende, está defendendo agora, não é crime, não é proibido, não é ilegal?

Caio Rosenthal: Veja bem. [mostra-se hesitante] É um crime… Eu não sei se isso daí é um crime. É uma questão...

Jorge Escosteguy: Eu não discuto se é justo ou não. Eu lhe pergunto formalmente. O senhor como médico, numa entrevista pública, defendendo...

Caio Rosenthal: Seria se eu fizesse sem autorização, sem o consentimento ou do paciente ou da família. Quer dizer, muitas vezes eu não… Não que eu proponha isso, eu induzo a família a pensar nessa possibilidade. Eu acho que é dever meu, na medida em que eu lido com pacientes terminais, uma das propostas que eu tenho que oferecer para esse paciente é essa. É uma das propostas de tratamento. Tratamento não significa necessariamente curar, mas significa minorar sofrimento.

Jorge Escosteguy: Qual é a reação em geral dos pacientes? A tendência deles é...

Caio Rosenthal: Olha, eu acredito que, com exceção desse caso que eu contei, em que a irmã do paciente era uma irmã de caridade, eu nunca tive um caso em que não aceitasse.

Jorge Escosteguy: Eu digo o paciente, o paciente em geral quer viver até o último minuto embora sofra, ou em geral...

Caio Rosenthal: Sim, é óbvio. Veja, na enorme maioria das vezes, também a gente fica com o paciente durante quatro, cinco anos. O paciente chega no consultório ou chega no ambulatório do hospital, no estado de portador, e nós vamos acompanhando esse paciente por três, quatro, cinco anos. Eu tenho pacientes desde 1985. Quer dizer, são pacientes com os quais a gente tem uma convivência muito íntima, muito estreita. E obviamente, cada paciente reage de um jeito. A gente vai se entendendo, vai conhecendo profundamente o paciente. Então eu não proponho isso para qualquer paciente e não é para qualquer família. E proponho isso quando eu acho que a família vai considerar a possibilidade.

Julio Abramczyk: O seu princípio básico é não prolongar artificialmente a vida.

Caio Rosenthal: Sou favorável a não prolongar artificialmente. Eu sou favorável, inclusive, a não levar pacientes para terapia intensiva. A não ser numa determinada especial situação: um paciente que teve a primeira doença oportunista, ou seja, quando a aids já foi instalada, e ele tem a primeira doença oportunista, e nessa primeira doença oportunista, ele vai muito mal e precisa de terapia intensiva. Aí eu sou favorável a levar para a terapia intensiva. Agora um paciente que já teve seis, sete, oito episódios, que já teve quinze internações, que só viveu a maior parte da vida dele dentro do hospital, tomando soro, tomando picada daqui, outra picada de lá, eu sou contra prolongar artificialmente a vida desse paciente.

Jorge Escosteguy: Nosso tempo já está se esgotando, eu gostaria que o senhor fizesse uma última observação. O que levou o senhor a se dedicar ao tratamento de pacientes de aids?

Inês Knaut: Deixa eu pegar uma caroninha. Eu imagino que no seu aprendizado, como infectologista, o senhor deve ter se especializado em doenças como malária, chagas, esquistossomose etc, que estão muito envolvidas em problema político, de recursos, enfim, são as grandes endemias. De repente, o senhor está lidando com uma doença que é urbana e que tem resultados com uma expectativa dolorosa pela frente. Como é que funciona isso?

Jorge Escosteguy: Ou seja, a sua esperança de cumprir a sua função como médico, de salvar o seu paciente é muito remota?

Caio Rosenthal: A aids realmente é um desafio muito grande. Na medida em que a gente pode oferecer para o paciente condições dignas de convivência com esse vírus, na medida em que esse paciente pode conviver de uma forma mais atenuada, não só do aspecto psicológico e físico, mas também a convivência social desse paciente; na medida em que ele tem uma dignidade de convivência com esse vírus, eu acho que já é um trabalho bastante positivo. É óbvio que é muito mais gostoso tratar de uma malária ou de uma infecção em um organismo imuno-competente, um pessoa que tem o sistema imunológico competente para que, tendo o bicho, dá-se o anti-bicho, ela te agradece, vai embora para casa e fica ótima. Não deixa de ser muito gostoso isso. Mas também é muito envolvente o trabalho com a aids. O trabalho com a aids é um desafio. Tanto o doente quanto o médico, estabelecem um contato, uma relação muito íntima, em que a morte está presente 24 horas por dia. O assunto morte é muito presente. A surpresa é muito presente. Então é muito dinâmico...

Jorge Escosteguy: O senhor diria que os pacientes terminais com aids, de alguma forma, aprendem a conviver com a perspectiva da morte?

Caio Rosenthal: Ele é obrigado a conviver com essa perspectiva. Daí a necessidade do apoio para esse paciente. Que aliás, diga-se de passagem, é o apoio psicológico, no caso de pacientes terminais, ou mesmo de portadores do vírus, é tão ou mais importante até do que o apoio clínico.

Julio Abramczyk : Não seria o caso para o psicólogo hospitalar?

Caio Rosenthal: Psicólogo. Deveria haver uma estrutura de psicólogos, de psiquiatras...

 Julio Abramczyk : Os cardiologistas têm para cirurgia cardíaca, mas para...

Caio Rosenthal: Exato. Para aids infelizmente ainda...

Jorge Escosteguy: E por que não há, doutor Caio?

Caio Rosenthal: Porque, é aquilo que eu digo, na rede pública, que atende mais de 90% dos pacientes com aids, não tem médicos que façam endoscopia, não tem médicos que façam procedimentos os mais elementares. Imagina se a gente vai conseguir atendimento psicológico e, além disso, outros tipos de atendimento, de outras profissões também importantes. O atendimento da assistente social para o paciente com aids é fundamental, é importantíssimo. Um apoio para a família, um apoio de infraestrutura. Grande parte das vezes o paciente é abandonado pela família. Ele não tem para onde ir, não tem roupa. Ele não conta com nenhuma estrutura quando tem alta. Ou mesmo no hospital ele está abandonado, não tem ninguém para pegar na mão dele, para dar uma palavra de apoio para ele. Então há a necessidade de nutricionista, de assistente social, há necessidade de psicólogo, psiquiatra, do médico, da enfermagem. O trabalho da enfermagem é fundamental; a enfermagem está lá 24 horas por dia com o paciente. O contato do paciente, uma vez internado, é muito maior com a enfermagem do que com o médico. É uma doença que requer uma gama muito grande de profissionais. Atinge um universo muito grande. E realmente é isso. A aids é um constante desafio e nesse desafio estamos aí, não só para dar o anti-bicho ao bicho, mas para tentar também produzir algo mais, levantar e dar mais sobrevida ao paciente de uma forma digna, que ele possa usufruir desses anos de vida que ele tem.

Jorge Escosteguy: Muito bem, doutor Caio Rosenthal, nós agradecemos a sua presença, esta noite, aqui no Roda Viva. Tenho certeza de que as suas respostas ajudaram a combater e a prevenir a aids e, principalmente, dar mais compreensão e tolerância às pessoas. Agradecemos também aos companheiros jornalistas e aos telespectadores, lembrando que as perguntas que não puderam ser feitas ao vivo serão entregues após o programa ao doutor Caio.

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