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Paulo Markun: Boa Noite. Como ele mesmo escreveu, no princípio era o verbo. Mas a televisão, quando surgiu, trouxe um dilema: o que fazer com ela? Que tipo de programa criar? A transmissão de imagens era, sim, um avanço em relação ao rádio. Mas, e a programação? O que oferecer para as pessoas que levaram os primeiros aparelhos de TV para casa? Foi no rádio, no teatro de revista [gênero teatral cuja representação envolvia números falados, musicais, coreográficos, dança e atrações circenses. Os temas eram tratados com crítica bem-humorada e diziam respeito normalmente aos acontecimentos do ano anterior ao do espetáculo, como uma retrospectiva. O teatro de revista fez grande sucesso no Rio de Janeiro entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX] e no circo que a TV encontrou os elementos para produzir seus primeiros programas. A história dessa mistura de rádio, teatro e circo e do fenômeno que se viu, depois, na TV, tem agora um novo e importante narrador, que o Roda Viva entrevista esta noite: Daniel Filho, ator, autor, produtor e diretor, que acaba de lançar um novo livro para esmiuçar e discutir um pouco mais o circo eletrônico [referência ao título do livro de Daniel Filho].
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Narração de Valéria Grillo: O circo eletrônico: fazendo TV no Brasil, o novo livro de Daniel Filho, traz a história de um personagem que é quase a história da própria televisão. Ele participou de mais de 40 dos 50 anos da TV no Brasil. Daniel Filho, que estreou como ator em 1952 na companhia de teatro de revista de seus pais, chegou à TV Rio em 57. Em 59 era contratado para o Teatro de Comédia da TV Tupi com Yara Cortes e Nicette Bruno. Fez o Visconde de Sabugosa na primeira versão do Sítio do pica-pau amarelo [obra de Monteiro Lobato] na TV, em 1958. Foi ator, cantor e imitador em Ali Babá e os 40 garçons [programa de humor], cumprindo a regra da versatilidade exigida na época. Quem trabalhava em TV tinha que fazer de tudo. Dos tempos pioneiros às produções profissionalizadas de hoje, o Circo eletrônico, de Daniel Filho, faz um relato ricamente ilustrado dos programas humorísticos, dos musicais que marcaram época, das novelas, dos seriados, das minisséries. Uma delas foi realizada aqui na TV Cultura em 94: Confissões de adolescente [baseada no livro homônimo de Maria Mariana]. A história de quatro irmãs que moram com o pai num apartamento classe média do Rio de Janeiro, e que dividem com ele suas aventuras e dramas adolescentes. Foi a primeira produção independente de Daniel Filho depois de comandar a Central Globo de Produção durante oito dos 24 anos em que esteve na Rede Globo. Fora da televisão, participou de 20 filmes. O mais recente teve a sua direção: A partilha [2001], que Daniel Filho adaptou da peça de Miguel Falabella. O circo eletrônico, segundo livro de Daniel Filho sobre os bastidores da TV, vai além dos relatos da experiência e das vivências pessoais. Traz plantas de cenários, desenhos de figurinos, storyboards [roteiros com desenhos em seqüência cronológica, com cenas e ações importantes de um filme, programa ou anúncio de TV] e um fac-símile e análise do primeiro capítulo da novela Pecado capital [1975]. Pretende ser uma referência para estudantes e profissionais, e um livro de entretenimento para curiosos e fãs eternamente interessados em saber como são feitos os programas de televisão e como funciona a engrenagem desse circo eletrônico.
Paulo Markun: Para entrevistar Daniel Filho, nós convidamos a jornalista Maria Amélia Rocha Lopes, editora do Caderno de TV e do Divirta-se do Jornal da Tarde; o crítico de cinema e televisão Luiz Carlos Merten, do jornal O Estado de S. Paulo; o sociólogo Laurindo Leal Filho, jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, a Universidade de São Paulo, e presidente da ONG Tver; o crítico de televisão Gabriel Priolli, diretor do programa Vitrine, aqui da TV Cultura; o jornalista Flávio Amaral, crítico de TV do jornal Diário Popular; e a professora Esther Hamburger, do Departamento de Cinema e Rádio da Escola de Comunicações e Artes, a ECA, da Universidade de São Paulo. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Se você quiser participar do programa, fazer perguntas para o Daniel Filho, pode utilizar o nosso telefone, que é o 252-6525, nosso fax, que é o 3874-3454, e o endereço do programa na internet é rodaviva@tvcultura.com.br. Boa noite, Daniel.
Daniel Filho: Poxa vida! Estou impressionado com o bom material que foi apresentado aí. Boa noite. E para todos vocês [do auditório]: boa noite, boa noite. Por favor, sejam carinhosos comigo [risos].
Paulo Markun: Para um homem de sete instrumentos como você, acho que a pergunta já tenha sido feita muitas vezes, mas eu tenho que repetir. Das atividades que você exerce e exerceu na televisão: ator, diretor, autor, produtor, qual é a que você mais gosta? Se tivesse que escolher uma e dissesse: olha, se eu quiser amanhã ser identificado como isso, eu seria: Daniel Filho, vírgula [o quê]...?
Daniel Filho: Boa pergunta. Sempre que eu vou responder, eu dou uma resposta diferente a essa [pergunta]. Portanto, como já disse um velho médico quando eu tinha um problema no braço, e eu perguntei se existia uma boa operação para consertar o problema, ele disse que existiam 100, e por isso nenhuma delas era boa. Então, eu posso lhe dar várias respostas, porque eu gostaria de ser isso ou aquilo. Logicamente, dirigir, quando eu estou dirigindo, o prazer é imenso. Quando eu produzo, e que é uma coisa que eu coloco no livro, que é uma função pouco conhecida do público – o que é ser produtor, o que o produtor faz –, também é muito gostoso, apesar de que você, quando produz, está mais é colocando azeitona na empada dos outros. E, na verdade, o [ofício de] ator é o meu princípio, é minha base. Eu tenho certeza, eu gostaria de que, quando eu não tiver mais forças para dirigir – porque dirigir é um trabalho braçal, também – ou quando eu não tiver mais muita cabeça para estar produzindo e comandando a produção de muitas coisas, e como eu venho de família que vive bastante – meu pai está com 94 anos, e a minha mãe, desculpas, mamãe, vou dizer a sua idade, está com 90, mas ela gosta que diga 88, então, 88, pronto [risos], mulher sempre diminui dois, não sei por que –, eu acho que eu vou ficar com ator. Ator é mais o tranqüilo, é mais o descansado.
Maria Amélia Rocha Lopes: Embora [os atores] sejam vaidosos, como você diz no livro. Você é muito duro com eles. É assim? É verdade, Daniel? Aliás, eu estava lendo aqui os depoimentos do seu livro e até levantei alguns: Euclydes Marinho, Gilberto Braga, José Carlos Pieri, Lia Renha, Marília Carneiro, Regina Duarte, João Paulo Carvalho. Todos esses são unânimes em falar da sua competência, tudo isso, mas todo mundo sempre dá um toquezinho, dizendo que você pode ser cruel, pode ser malvado, que você é bravo. Todos os depoimentos têm pelo menos uma linhazinha falando isso.
Daniel Filho: É, é uma verdade. O diretor tem a difícil missão de dizer: “não, não gosto”. Ele não pode ser gentil totalmente, porque ele quer que todo mundo colabore com ele, que some à idéia que ele tem na cabeça, mas ele tem que conduzir para um lugar. E, ao mesmo tempo, ele é o comandante. Se ele sentar, possivelmente todos sentarão. É ele que dá o ritmo da gravação ou da filmagem. Atualmente os jornais andam confundindo muito gravação com filmar, e todo mundo diz assim: começou a ser gravado o filme tal [risos]. Tenho lido isso sem parar. E eu [como diretor] sou muito severo com as pessoas que são relapsas. Eu, por exemplo, agora no filme A partilha, eu fui severo com uma das atrizes. Ela não era relapsa, mas ela tinha um estilo, e eu precisava colocar todos em uma harmonia, e ela não estava conseguindo harmonizar. Então, eu também falo no livro que você é obrigado a trabalhar meio como psicólogo, e quando você trabalha comandando muitas pessoas, e todas são muito criadoras, inteligentes e sensíveis, você não pode tratar todo mundo igual. Você tem que ter, para cada um, um jeito de tratar. Então, às vezes, você é muito severo, às vezes você é paternalista, às vezes você finge que está zangado. Eu tenho o costume de, várias vezes, dar uma bronca, e aí entra o [diretor fazendo as vezes de] ator, fingindo a bronca, a bronca não existe. E tem aquela coisa do fingidor, que finge tanto [refere-se à primeira estrofe do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.”]. E aí, às vezes, eu estou dando a bronca e me embalo e realmente passo a dar bronca, e levo um tempo para me frear, no [momento em] que eu vou me convencendo da bronca. Então realmente eu sou um diretor severo. Se alguém não decorar direito, se for no trato da novela, se chega atrasado, essas coisas com maus profissionais... Ou quando é o caso de achar psicologicamente de que maneira eu tenho que conduzir essa pessoa para ela chegar à harmonia necessária, ou ao som necessário para a obra que estamos conduzindo.
Laurindo Leal Filho: Daniel, o seu livro já foi elogiado. A Esther [Hamburger] fez uma brilhante resenha do seu livro; [o livro] já foi mencionado aqui na abertura. Eu acho que nós que trabalhamos com estudantes, trabalhamos na universidade, sentimos a falta de uma bibliografia sobre televisão mais vasta. Você vai para outros países, para a Europa, Estados Unidos, e fica embasbacado quando chega nas livrarias e vê a quantidade de obra sobre televisão, e aqui a gente tem dificuldade de indicar livros para os alunos. E, pior ainda, os profissionais de televisão com grande experiência como você têm muita dificuldade de refletir sobre o que fazem e, muito pior, têm muita dificuldade de transmitir para os outros a sua experiência. Eu acho que esse livro resolve grande parte desses problemas e será uma bibliografia de referência a partir de agora no ensino de televisão, no trabalho de televisão no Brasil. Mas eu queria, como já foram feitos os elogios, eu queria trazer um outro livro para essa discussão. Eu trouxe aqui para nós um livro que começou a ser citado agora, que é o livro do [Karl] Popper e do [John] Condry que se chama Televisão: um perigo para a democracia. Ele começou a ser mencionado agora, embora ele seja do início da década, diante da vitória do [Silvio] Berlusconi [primeiro-ministro e proprietário da Mediaset, um império televisivo] na Itália. Eles mostram como a televisão, por ser um poder às vezes superior aos poderes da república, pode ser um perigo para a democracia. A pergunta que eu quero lhe fazer é a seguinte: como produtor, como homem que decide o que vai ser colocado no ar... o Popper, que não pode de maneira alguma ser chamado de totalitário, ao contrário, [é] um liberal empedernido, estava assustado com o poder da televisão, e propõe no final da vida a criação de um conselho de produtores, do tipo da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] ou do Conselho [Federal] de Medicina, um conselho de ética para os produtores. Eu fico diante de você, pensando: você é um homem poderosíssimo, coloca no ar temas para milhões de pessoas. Será que todos têm a percepção, todos os produtores têm a percepção da responsabilidade social que têm? Eu sei que alguns têm, outros não. Eu queria que você me dissesse como vê o poder que tem o homem que decide o que vai e o que não vai para o ar, e que vai ser visto, refletido, consumido e adotado por milhões de pessoas num país como o Brasil, onde, diferente da Europa, muitas vezes só resta a televisão como janela para o mundo. Queria que você falasse um pouquinho do seu poder.
Daniel Filho: É uma tese o que você está me pedindo [risos]. Eu tenho que fazer quase uma tese [para responder]. Você estava falando, e eu me lembrei de uma frase que eu li há pouco: quando surgiu a bicicleta, as pessoas pensaram que isso ia prejudicar o livro, porque os meninos iriam andar de bicicleta e não iriam mais ler. Essas coisas, quando surgem, poderes fortes, como foi a coisa da televisão, já foi muito discutido... Curiosamente esta sua pergunta me foi feita por uma... não me leve a mal, Laurindo [risos]. Laurindo, é o seguinte: [a mesma pergunta] me foi feita por um conjunto [de militares] do Estado-Maior, antes de eu estrear [risos].
Laurindo Leal Filho: É sacanagem... [risos]
Daniel Filho: Não. Eu juro [risos]. Eu estava para estrear [o seriado] Malu mulher [criado e dirigido por Daniel Filho em 1979-1980]. [Corrige-se] Malu mulher estava no ar. Eu fui até o [...] fui no andar onde era o restaurante da Globo, no último andar. E quando eu entrei, estavam lá perto de uns 20 oficiais do Estado-Maior, e me fizeram essa pergunta: se eu achava que podia botar no ar um programa como Malu mulher, falando de coisas que poderiam mexer com a cabeça das mulheres, poderia desagregar lares, e eu fiquei espantado. E olha, eu estou lhe falando [da época] quando ia começar a abertura [política], a chamada abertura, mas ninguém tinha certeza, diziam que viria aí a abertura, era o início do governo do [general João Baptista de Oliveira] Figueiredo [(1918-1999) foi o último presidente do regime militar brasileiro]. E eu respondi que eu achava que sim, que a minha consciência achava que sim. Eu acho que as pessoas, e aí é o caso também de o governo, por exemplo, no Brasil, dar as concessões, [é preciso] saber das responsabilidades dessas pessoas que têm as concessões. Eu acho que o conselho, qualquer tipo de conselho que vá mexer ou dar opinião sobre o que nós estamos produzindo ou criando, eu sou contra. Isso para mim vira censura.
Laurindo Leal Filho: Não, o problema não é o conselho que determina sobre o programa. É um conselho dos próprios produtores, que reflitam sobre esse papel. Aí o problema não é se são os generais ou o professor quem perguntou, o problema é de quem responde sobre a responsabilidade que tem.
Daniel Filho: Eu me sinto como um homem de televisão, com minha responsabilidade, minha cabeça, minha consciência, eu com a televisão, com os produtos que eu fiz, que eu apresentei e mexi em determinados momentos com coisas delicadas. Quando eu fiz Confissões de adolescente, como apareceu aí.
Laurindo Leal Filho: [interrompendo] Excelente [minissérie], eu não estou...
Daniel Filho: Era, para muitas pessoas, um assunto delicado. E se a gente visse, na época e no tempo, quando a gente falava que uma menina menor de idade... olhe bem, aquele programa foi produzido porque foi produzido aqui, na TV Cultura. Possivelmente, se aquele programa – aí vai uma injustiça grande – fosse feito na Rede Globo, possivelmente o juiz de menores não deixaria fazer. Eu tenho quase que certeza, porque naquela época não estavam deixando fazer. E como nós estávamos aqui, [na TV Cultura] eu gravava independentemente, filmava independentemente, eu pude fazer então cenas de uma menina como a [atriz] Deborah Secco, que na época tinha 14 para 15 anos, ela alcoolizada, e eu pude fazer cenas da [atriz] Georgiana [Góes], que estava com 17 anos, falando da perda da virgindade. Isso seria impossível ser feito na Rede Globo, porque [a atriz] teria que ser maior de idade, porque não poderia menor de idade aparecer alcoolizado, então a minha consciência, enquanto profissional e enquanto homem de televisão... eu sou sempre muito preocupado com o que o público está assistindo, como ele está recebendo. Agora, quando a gente passa para "cachorro mais forte", que dizer, "briga de cachorro grande", que são os Berlusconi da vida, ou como a gente até há pouco estava conversando, que com o tempo todos serão contratados do [empresário] Rupert Murdoch [que detém a poderosa News Corporation, que inclui o canal de televisão Fox], então nós temos um grande poder, que é o Rupert Murdoch, que vai se tornando muito mais forte até do que o Berlusconi, na medida em que é a Fox é um canal na Austrália, nos Estados Unidos. Existe uma coisa muito mais séria, que é essa globalização, as pessoas estão brigando....
[sobreposição de vozes]
Daniel Filho: Parece-me que é uma briga muito que é uma briga muito alta, muito acima do meu escalão.
Laurindo Leal Filho: Só para não deixar passar. Eu concordo plenamente. Acho que Confissões de adolescente, Malu mulher colocaram para a sociedade questões importantíssimas que tinham que ser discutidas. E eu não estou falando exatamente do seu trabalho, eu estou falando dos produtores em geral, do poder que eles têm em colocar, por exemplo, crianças deformadas no ar, ou submeter à tortura psicológica crianças em programas de auditório. Eu estou me referindo a esse tipo de degradação da televisão, jamais a Malu mulher ou Confissões de adolescente, que eu acho que foram avanços importantíssimos na televisão brasileira.
Gabriel Priolli: Daniel, eu queria complementar um pouco, na linha do que ele fala. De fato, não estariam os realizadores de televisão refletindo pouco e discutindo pouco, previamente, sobre o que vai ser veiculado e as conseqüências disso? A sensação que eu tenho é que os realizadores de televisão – eu estou incluído também, porque também faço –, a gente reflete muito mais sobre o conjunto da atividade, reflete muito mais quando as coisas já aconteceram, já nos efeitos e conseqüências, do que previamente. A sensação, quando se coloca muita coisa no ar, é que pensar sobre o que estamos colocando no ar inibisse, de alguma forma, a criação. Como é que você vê isso?
Esther Hamburger: Ao mesmo tempo tem muito pouca reflexão sobre esse tipo de programação que hoje em dia... será que houve uma diminuição, vamos dizer assim, da energia que se coloca na criação dos programas? Há quanto tempo que não se tem uma Malu mulher ou Confissões de adolescente, que você estava falando antes, que você achou que você era um produtor independente. E aí o que aconteceu, foi um programa importante, que marcou, acho que todo mundo aqui concorda. E por que não mais produção independente?
Daniel Filho: Eu não sei o que respondo aqui agora, estou perdido, mas vamos tentar falar sobre os produtores que fazem programas que exploram a miséria humana. Eu acho que aí cabe aos proprietários, aos acionistas, aos donos da empresa que está fazendo esses programas vigiar, falar. Porque pode ser por uma briga de audiência, e essa briga, eu não me canso de dizer, ela não é de hoje. O que houve é que ela existe há séculos. Eu me lembro [que existem essas brigas] desde o início da televisão, e quando a televisão foi ficando mais acirrada, eu sempre falo, eu me lembro tranqüilamente de ter visto o [apresentador] Wilton Franco, fazendo o [programa] O povo na TV [nos anos 80, na antiga TVS, atual SBT], que era uma exploração.
Gabriel Priolli: [Ou também o apresentador Jacinto Figueira Jr., conhecido como] o homem do sapato branco [que também trabalhou no programa O povo na TV].
Daniel Filho: O homem do sapato branco. Quando eu entrei na Rede Globo, existia o [programa] O homem do sapato branco .
Laurindo Leal Filho: Aqui [nesta emissora], quando era dos [Diários] Associados [conglomerado de empresas de mídia fundado por Assis Chateaubriand], a [TV] Cultura, quando não era educativa, era aqui [o programa] O homem do sapato branco .
Daniel Filho: Era aqui?
Laurindo Leal Filho: Era dos Associados. A Cultura pertenceu aos Diários Associados [que a doaram à Fundação Padre Anchieta em 1968].
Daniel Filho: É uma coisa que sempre existiu. Ela sempre esteve na televisão, ela pertenceu à televisão.
Gabriel Priolli [interrompendo]: Agora, você acha que o controle sobre isso deve ser das empresas? Você não admite um controle externo, quer dizer, que a sociedade democraticamente exerça essa forma de controle?
Daniel Filho: Deve ser dos proprietários. A sociedade deve exercer...
Esther Hamburger: [interrompendo] Não o Estado, mas a sociedade.
Daniel Filho: A sociedade tem o poder de desligar [a televisão], e por que não desliga?
Laurindo Leal Filho: Porque não tem outra coisa, Daniel, me desculpe, não tem outra coisa. [A televisão] é a única diversão do brasileiro, da grande maioria [dos brasileiros].
Daniel Filho: Não, mas eu acho que existem canais opcionais.
Esther Hamburger: Fica no jogo do [quem veio primeiro] "ovo e da galinha", porque se fala muito assim: houve uma popularização da televisão com o Plano Real, que se vendeu muita televisão, que aliás já é uma coisa que já vem vindo há muito tempo. Na década de 70, já se falava: as pessoas compram televisão antes de comprar geladeira, e tem [televisão] na favela, o que eu acho muito compreensivo no Brasil, porque a televisão faz uma ponte com o mundo mesmo, é um canal de informação, e as pessoas querem informação, elas querem superar a situação de ignorância, que é um estigma muito grande. Então, aí fica um jogo do ovo e da galinha. Se houve uma popularização, e essa população quer saber mais, o contraste entre o que ela quer e o que ela encontra na TV é muito grande, hoje em dia. Porque a popularização, ao mesmo tempo, serve para dizer: não, é porque houve a popularização que aumentaram de novo. Sempre houve esses programas, mas houve um aumento, vamos dizer, na década de 90.
Daniel Filho: Houve uma mudança na programação, porque há uma nova televisão no ar. Quer dizer, não podemos mais fazer o João Gilberto como eu fiz no Rio Grande do Norte [refere-se ao programa que criou para a TV, no início dos anos 80: Grandes nomes, voltado para a música popular brasileira. O músico João Gilberto participou de uma das edições do programa].
Esther Hamburger: Será que não?
Daniel Filho: Não há como [fazer]. Se fizer, não vai dar audiência. Você tem uma concorrência de audiência, você não conseguirá botar um programa de música popular brasileira, com estilo, com classe, às nove horas da noite. É porque você estará – você não acredita, mas é verdade –, a audiência lhe dirá isso.
Esther Hamburger: E [a minissérie] O auto da compadecida [exibida em 1999]? É um programa sofisticadíssimo e popularíssimo; é uma demonstração de que é possível.
[...]: Mas foi às onze horas da noite.
Daniel Filho: É, foi às onze da noite, mas ele foi um enorme sucesso. Você pode fazer programas excepcionalmente bons, mas a gente não pode usar uma exceção como uma regra. A gente não faz toda hora um Auto da compadecida, porque não existem várias peças...
Gabriel Priolli: [interrompendo] Eu vou lhe colocar outra coisa que foi você quem fez: Eça de Queirós, em dois momentos. Você fez [a minissérie] O primo Basílio, em 1988, um grande êxito artístico e de audiência. Em 2001, Os maias foi feito [refere-se à minissérie dirigida por Luiz Fernando Carvalho e exibida pela TV Globo]. Artisticamente, a meu ver, [foi] um trabalho belíssimo, e um desastre de audiência. O que aconteceu em 13 anos para que o mesmo autor [Eça de Queirós], o mesmo universo, com o mesmo tratamento de qualidade, o mesmo produto tratado com a mesma qualidade tenha sido um grande êxito e, depois, um grande fracasso [de audiência]?
Daniel Filho: Não está em mim a resposta. Eu não sou um sociólogo nem um antropólogo para poder realmente responder a vocês.
Gabriel Priolli: Não, mas eu queria ouvir da sua sensibilidade de diretor.
Daniel Filho: A minha sensibilidade é que eu continuarei tentando sempre fazer programas que atinjam o público, que sejam populares e que tenham qualidade, como foi, por exemplo, [a minissérie] A muralha [2000], que era um programa que eu fiz com todas as possibilidades de ser um programa de êxito, com bandido, com mocinho, com romances, com tudo acontecendo com um enorme êxito, muito bem dirigido, muito bem adaptado. Praticamente não é uma adaptação, é uma criação da Maria Adelaide. Então eu aposto no bom, eu aposto que podem existir programas bons e que tenham audiência, que o público está lá assistindo com a comunicação. Mas, nem sempre se consegue a qualidade e a comunicação, como foi o caso de Os maias . Talvez Os maias tenha pecado por ser um pouco lento. Ao início as pessoas fugiram desse ritmo que Os maias teve no início, que era um ritmo que o Luiz Fernando Carvalho quis colocar, quase no ritmo do livro [Os maias (1888), de Eça de Queirós], o que eu não fiz no Primo Basílio. Nós tínhamos um ritmo bem mais novelesco, porque o [autor de telenovelas] Gilberto Braga tinha essa preocupação. Então eu acho que, quando a gente vê O auto da compadecida, a gente fala de uma exceção. Eu inclusive – como depois [O auto da compadecida] foi para o cinema [em 2000, dirigido por Guel Arraes] – passei a chamar O auto de “o milagre da compadecida”, porque é uma exceção da regra, ela não é o total. O total da televisão, o dia-a-dia da televisão é realmente popular; ele reflete a nossa população, reflete o que está acontecendo ao nosso redor. Eu acho o seguinte: o nosso jornalismo, nessa época de que estamos falando, dos anos 70 até pouco dos anos 80, não mostrava a contundência, não tinha a contundência que o jornalismo na televisão tem atualmente. Eu me lembro de um caso curioso, era um secretário de finanças de um estado, nos Estados Unidos, que tinha cometido uma corrupção. Ele era acusado de ter roubado, ou desviado, 20 mil dólares. Estávamos falando de 20 mil dólares. Que fez ele? Chamou toda a imprensa, pegou um revólver e deu um tiro [em si próprio]. E isso não foi exibido. Eu me lembro que isto foi levado na sala pelo [jornalista] Armando Nogueira. Assim que a notícia chegou, eu estava na sala, assistimos juntos eu, o Armando e o Boni [refere-se ao produtor televisivo José Bonifácio de Oliveira Sobrinho]. Era uma imagem absolutamente dantesca você ver um homem dar um tiro na boca. E isso não foi exibido. Atualmente – e parou, a notícia foi até certo ponto – eu vejo na televisão, como eu vi outro dia, não é só o caso do ônibus da linha do Jardim Botânico [refere-se ao seqüestro de um ônibus (174), na zona sul do Rio de Janeiro, no dia 12 de junho de 2000, que foi filmado e transmitido ao vivo, por várias emissoras de TV, durante horas. O episódio teve repercussão internacional e foi tema de dois filmes]. Eu vi outro dia, na guerra, era um pai e um menino, era na Guerra da Bósnia? Em qual guerra era, meu Deus do céu?
[...]: No Oriente Médio?
Daniel Filho: Não, era na Palestina. O pai e o garoto, e vi os dois serem fuzilados, eu vi os dois serem fuzilados! Então nós estamos diante de uma televisão tão contundente, que eu não sei o que é fazer uma coisa contundente agora. O jornalismo que é apresentado, o que nós vivemos... quando a televisão, acho que foi a televisão, parou a Guerra do Vietnã, porque pela primeira vez o público teve consciência do que era realmente uma guerra, não aquela estrelada pelo [ator norte-americano] John Wayne, e sim uma que realmente estava acontecendo. Agora a coisa evoluiu muito, então o que nos é mostrado pela televisão, seja pelos policiais batendo em jovens, seja pelas guerras, é tão contundente que eu acho que esses... lógico que a exploração barata é absolutamente desnecessária, mas esta vida que nos cerca está muito mais forte que a vida que cercou a minha infância. Eu não me lembro, na minha infância, na minha juventude, [de] ter visto alguém morrendo. E agora, na televisão, todas as crianças já viram alguém realmente morrendo. Eu nunca tinha visto.
Paulo Markun: Daniel, nós vamos fazer um rápido intervalo e a gente volta já já.
[intervalo]
Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o diretor, produtor e ator Daniel Filho. Daniel, eu tenho aqui duas perguntas sobre o mesmo tema. César Cartin, aqui de São Paulo, publicitário, pergunta: “Qual a relação da degradação da TV aberta com as irmãs da TV fechada?”. E Alexandre Masquieto, que manda a sua pergunta pela internet: “Qual será, no seu ponto de vista, o futuro das TVs não pagas no Brasil? Você acredita que vai existir uma migração de capital para as TVs a cabo?”
Daniel Filho: Não, acho que a TV a cabo vai ficar...
Paulo Markun: [interrompendo] Hoje ela é uma coisa muito pequenininha, não é?
Daniel Filho: E vai ficar pequena, porque ela é uma TV segmentada. A TV a cabo é segmentada, ela tem cada canal, que eu chamo de AM e FM, cada canal ficou dedicado a um tipo de programa, portanto, quem quer assistir esporte vai naquele canal, quem quer ver golfe, vai [a outro canal], e acho que as coisas vão ficando cada vez mais dedicadas assim... um canal de xadrez, [para] quem gosta de ver xadrez...
Paulo Markun: [interrompendo] Mas a pesquisa de audiência que, acho, foi feita pelo Ibope sobre a TV a cabo, particularmente em São Paulo, demonstrou que quem é líder de audiência, entre quem tem TV a cabo, é a TV Globo, em segundo lugar é o SBT, em terceiro lugar é a Bandeirantes, quer dizer...
Daniel Filho: É, continuam na TV a cabo vendo a TV aberta.
Paulo Markun: Isso.
Daniel Filho: Então, [a TV] a cabo deu a oportunidade a um público que quer escolher determinado programa. Até se for um Telecine [canal da TV a cabo que só exibe filmes], ele vai escolher um Telecine de humor ou clássico, ou aquele que eu chamo de “meu passado me condena”, que é o Canal Brasil [risos]. Então eu acho que vai continuar assim. Agora, quanto a esse assunto tão falado da degradação da televisão brasileira, eu acho que ela não está tanto assim como a gente está vendo. Eu vejo alguns programas ainda que parece que são bons. Eu gosto, por exemplo, dos programas [da série] Os normais [2001-2003], que é um programa novo na TV Globo. Ele é ousado, ele está ousando em sua linguagem, como já estão ousados os programas americanos, que, com humor, vão tocando em temas mais contundentes, mais normais, mas que pertencem a todos nós. Acho, por exemplo, esse programa um excelente programa que está no ar na TV Globo. A TV Globo está fazendo uma linha de produção que, me parece – eu estou afastado da produção da TV Globo já há quase um ano –, ela está fazendo uma linha de produção de buscar, de dar margem a todos os seus diretores de núcleos, de seus criadores, a apresentarem programas, e alguns programas estão sendo colocados no ar.
Gabriel Priolli: Daniel, isso significa que a Globo está desembarcando lentamente das novelas? Porque as novelas, na década de 90, vêm perdendo audiência direto. Hoje em dia perdeu-se mais de dez pontos de audiência, em média, do início da década para cá. O gênero está evidentemente em crise, tem algum sucesso eventual, alguma outra novela que desponta, mas o gênero como um todo está em crise. E a gente está vendo agora na Globo coisa que não via antes, que é a experimentação, efetivamente. Além de Os normais, você tem o espaço do Brava gente [série da TV Globo exibida entre 2000-2003], onde estão experimentando [novos] formatos. Você diria que isso é um ensaio a uma preocupação na empresa em encontrar uma alternativa, não imediata, mas mediata, dentro de algum tempo, para as novelas?
Flavio Amaral: E você não acha que também está faltando na Globo uma tentativa de experimentar na questão das telenovelas? Não está faltando buscar novos caminhos para tentar tirar a telenovela dessa crise?
Daniel Filho: Olha, é uma velha pergunta a crise da novela...
[...]: [interrompendo] Você não concorda com a premissa?
Esther Hamburger: Você fala no livro que a novela não representa mais a novidade que ela representava.
Daniel Filho: Ela não é mais a novidade, mas ela realmente faz parte da vida do brasileiro. Ela está incorporada, está entranhada; eu tenho um enorme respeito pela novela, porque eu acho que ela representa, de uma forma ou de outra, um tipo de literatura que o brasileiro fez com o maior sucesso. Pelo menos a nossa novela teve uma exportação, ela teve uma colocação, e tem ainda uma colocação mundial. [Ela] desenvolveu autores, influencia até o cinema, influencia até a literatura brasileira. A novela é um gênero de que o brasileiro gosta. Eu acho que isso faz até parte da nossa herança atávica.
Gabriel Priolli: Mas o teatro de revista fazia parte da vida dos brasileiros nos anos 30, e ele não existe mais.
Daniel Filho: Ele não existe mais porque ele foi engolido pela televisão. A televisão passou a fazer teatro de revista, mas...
Laurindo Leal Filho: [interrompendo] Mas, Daniel, não dá para ascender um pouco essas novelas com coisas que a própria TV Globo faz com muita competência? Vocês falaram de O auto da compadecida, eu me lembrei agora da Paixão segundo Ouro Preto [que foi uma adaptação para a TV da peça A rua da amargura – 14 passos lacrimosos sobre a vida de Jesus, montada desde 1994 pelo grupo de teatro Galpão], que eu vi na sexta-feira santa. Quando eu olhei, eu falei: isso aqui é – você brincou na dedicatória – TV britânica nos melhores momentos, não que [a TV britânica] seja sempre boa, mas nos melhores momentos; uma beleza [Paixão segundo Ouro Preto]: forma de captação de imagens, forma de edição, combinação de televisão com teatro, aquele grupo Galpão, mineiro, que é fabuloso. Quer dizer, não dá para temperar [as novelas com esses ingredientes]? Porque eu acho, não sei, me parece que existe um certo preconceito dos produtores com o público. O público quer coisas boas, eu acho que isso é um preconceito. O público não quer coisas de baixa categoria. Você pode dar coisas boas, mais sofisticadas. Olha, só gosta do biscoito fino quem come biscoito fino, não é? Infelizmente o biscoito [das novelas] que está sendo oferecido não é dos melhores.
Esther Hamburger: Mas quem não come o biscoito fino quer comer o biscoito fino; sabe que o biscoito fino existe.
Daniel Filho: Eu estou aqui na oposição [risos], que é o seguinte: eu não sou o responsável pela programação da Rede Globo de Televisão, mas eu defendo muito a programação da Rede Globo de Televisão, porque acho que ela é boa, e nós sempre experimentamos, Gabriel, porque nós fazemos uma coisa mais complexa ainda. Nós tínhamos as sextas-feiras nobres, que já foi terça-feira nobre, que já foi quarta-feira nobre, em que havia um programa por semana, quando surgiu o [programa humorístico] TV Pirata [1988-1990 e 1992], que não surgiu como um programa diário ou semanal, ou uma Armação ilimitada [série voltada ao público adolescente, exibida entre 1985-1988], [que] também não foi um programa semanal. Quer dizer, a experimentação sempre esteve em atividade. Eu não acho que represente – se está havendo uma experimentação na TV Globo, e está havendo –, eu não acho que isso represente uma doença, e sim um sintoma de saúde...
Gabriel Priolli: Ao contrário [da doença], ao contrário...
Daniel Filho: É um sintoma de tremenda saúde, porque é desse tipo de programa que surge uma idéia, e aquela idéia vai dando um seriado... Eu acho que a TV Globo está profundamente ativa, acesa, aberta. Eu estou afastado, eu posso falar com a maior tranqüilidade, porque eu não estou participando dessa produção. Espero, até em breve, estar participando, mas não estou no momento. Eu não acredito que a novela esteja realmente... É muita novela, e quando se faz muita novela, eu acho que o truque [fica] aparecendo muito, porque não existem tantas histórias de novela assim. Nós já estamos numa terceira geração de autores de novelas. Quer dizer, os primeiros autores de novelas, que são os que vieram do rádio, tinham a experimentação da televisão. Então a passagem deles à televisão... A Janete [Janete Clair], a Ivani [Ribeiro (1922-1995), que iniciou sua carreira no rádio, no final dos anos 30. Anos depois, foi contratada pela TV Tupi. Começou então a escrever séries e telenovelas. Obteve enorme sucesso com as novelas Mulheres de areia (1973), A viagem (1975) e O profeta (1977). No início dos anos 80, começou a trabalhar para a TV Globo, onde continuou assinando novas obras de sucesso e novas versões de seus trabalhos], o Dias Gomes [(1922-1999) foi dramaturgo, romancista; trabalhou no rádio como autor e adaptador, a partir dos anos 40. Começou a trabalhar para a TV Globo no final dos anos 60. Sua obra mais reconhecida foi a peça O pagador de promessas (1959)], todas essas pessoas vinham do rádio. Veio uma segunda geração, que é o Lauro César Muniz e acho até que o Walther Negrão veio ainda do rádio, mas já é uma segunda geração. E agora estamos já numa terceira, quarta e quinta geração de autores de novela. Alguns com inquietações. Eu tenho que lhe dizer que várias vezes aqui, tentando responder, eu tentei quebrar o ritmo da novela, não fazendo o chamado folhetim, e quando eu fiz isso, e também cito no livro, eu quebrei a cara violentamente, quando eu tentei fazer uma novela que não era novela, que tinha uma metalinguagem, que é o caso do Espelho mágico [novela escrita por Lauro César Muniz e dirigida por Daniel Filho; foi exibida em 1977]. Foi uma quebrada de cara...
Laurindo Leal Filho: Por que, Daniel?
Daniel Filho: Porque, primeiro eu não acho que a gente estivesse preparado para contar os nossos bastidores. Eu queria fazer alguma coisa... O [Luiz Carlos] Merten conhece bem aqueles filmes feitos sobre o cinema vendo o cinema, como [o filme] The bad and the beautiful [1952], filmes que mostram a vida... Eu achava que estava na hora de a gente fazer isso, [mas] não estava na hora. Então eu acho que o público não queria saber que o [ator] Tarcísio Meira tinha problemas em casa [risos], que existiam atrizes que realmente são ambiciosas e fazem de tudo para subir. Eu mesmo dei a minha cara a tapa, fazendo papel de diretor, que tinha até um nome meio parecido com o meu, que era João Gabriel [risos], mas não deu certo. Tentei fazer uma outra novela, que é considerada até hoje uma grande novela, que é uma idéia maravilhosa do Lauro César Muniz. Era uma novela que se passava em três épocas, era O casarão [1976], uma novela que era maravilhosa de contar, porque as três épocas se entrelaçavam. E ela foi muito mal de audiência, porque ela confundiu o expectador.
Gabriel Priolli: Muito mal para aquela época, porque se passasse hoje, estaria todo mudo batendo palminha, não é?
Daniel Filho: Hoje seria um fracasso, porque ela confundia o expectador. Aquela novela acabou – eu conto essa história sempre –, a novela acabou, e as pessoas me perguntavam sempre: o [ator] Dennis Carvalho era primo do [ator] Mário Lago? Daí eu digo: não, o Dennis Carvalho era o Mário Lago [risos]. Aí é que a cabeça da pessoa [compreende menos ainda]... você entende? Então é difícil você quebrar o ritmo do claro, do quase óbvio. Você tem que ser muito claro com o expectador de novela; você tem que contar a história bem clara para ele. Logicamente vai variar, é o autor que vai fazer um texto melhor, que vai poder em determinado momento explorar melhor um tema. Ontem mesmo eu estava vendo um filme em casa que me parecia um filme... e não vem ao caso o filme que era. Quando você começa [a assistir a] um filme, você mais ou menos já tenta matar o que ele vai representar: ah, essa moça vai se apaixonar por esse moço e depois eles vão ter um problema, porque ela é filha daquele cara. Ok, é uma história comum, mas a maneira que ela é contada pode ser uma coisa maravilhosa. Eu acho que quando pegam autores que tem um texto bonito, ou que têm boas idéias e boas saídas, como o caso de um Manoel Carlos, de um Gilberto Braga ou de um Lauro César Muniz, ou da Maria Adelaide, eles conseguem fazer da história praticamente óbvia uma coisa melhor. A história de A muralha [minissérie exibida em 2000], por exemplo, para dizer uma boa história, ela tinha em suas partes várias coisas bem novelescas, como era o triângulo do Tarcísio Meira – eu nem me lembro mais o nome dos personagens que eram [interpretados pelos atores] Tarcísio Meira, Letícia Sabatella e o Alexandre Borges –, é um triangulo normal, comum da televisão, que é o homem que compra a mulher, que vai casar... era mais ou menos isso a história, e ela se apaixona por outro. Mas é uma história mais velha que Os miseráveis [(1862) romance do escritor francês Victor Hugo], mas estava tão bem contada, tão bem representada, tão bem dirigida, que ela ficava diferente e nos atraía.
Paulo Markun: Agora, por que você fala em mexicanização das novelas brasileiras?
Daniel Filho: Eu falo em mexicanização porque eu acho um absurdo nós, no Brasil, que pegamos a novela mexicana, a novela cubana, a novela argentina e transformamos na novela brasileira, fazendo realmente, nesse gênero, a melhor coisa feita no mundo – nós mexemos no gênero –, [é um absurdo] que a gente esteja importando essas novelas.
Paulo Markun: Você fala da mexicanização no sentido de que nós estamos consumindo produto mexicano?
Daniel Filho: Exatamente...
Paulo Markun: [interrompendo] Não que as novelas brasileiras estejam se mexicanizando.
Daniel Filho: Não, porque elas sempre tiveram lá a sua base... Nós nunca perdemos O direito de nascer [novela exibida pela TV Tupi entre 1964-1965]. O direito de nascer, aquela base de O direito de nascer, do pai que fica sem poder dizer, na cama, assim: [imita a voz de um velho moribundo]: “Ai, ele é filho de fulano...”. Quer dizer, é a carta escondida que revela tudo. Isso aí faz parte [das novelas de muitas nacionalidades]. Está [também] no Eça de Queirós.
Paulo Markun: É o segredo que o público sabe, mas que...
Daniel Filho: É o Eça de Queirós com Os maias, que é um grande melodrama, e simplesmente é muito bem narrado. Então ,eu acho que o que não podemos fazer é o estilo que está sendo colocado, que está no ar, da novela [mexicana], que não tem nada a ver com a nossa alma, com nosso jeito de ser.
Paulo Markun: E o público concorda com você? A audiência concorda com você?
Daniel Filho: Eu acho que a audiência concorda. Quando eu falo que o público está com a novela bem entranhada nele, tem um determinado público que verá a novela, passe onde passar. Se você fizer um canal de novelas também fechado, ele estará ligado lá, vendo novela. Ele gosta de novela. Minha mãe, por exemplo, eu me lembro de ela estar assistindo a uma novela que era exibida, não era na Globo, mas ela via a novela e dizia: “Estou vendo a novela tal, e que novela ruim, meu filho!”. Eu disse: mamãe, você está assistindo a essa novela? “Estou!”. Mas você não está achando a novela ruim? “Muito ruim!”. Mas por que você assiste? “Quero ver até onde eles chegam!” [risos]. Então, é porque ela vê novela. Minha mãe é noveleira. Ela fica vendo novela, ela não deixa de assistir à novela e continua assistindo novela.
Maria Amélia Rocha Lopes: Daniel, a natureza da novela continua essencialmente feminina, como você diz no livro?
Daniel Filho: Ela não é masculina; a novela é o romance. A mulher é sonhadora, a mulher gosta do romance. Os homens gostam também, mas fingem que não gostam. Eles vêem [novela] meio de lado.
Esther Hamburger: Mas eles têm uma memória melhor do que as mulheres, na minha experiência de pesquisa. [Eles] têm uma memória impressionante. É interessante ser considerado um programa feminino se pelo menos 40% da audiência é masculina. Não é uma questão?
Daniel Filho: Eu acho que a mulher pede para assistir à novela, e eu posso até tirar pela minha casa. Eu, logicamente, por que eu não assisto novela? Porque, ao assistir novela, eu estou trabalhando. Eu não consigo ver uma novela sem trabalhar. Às vezes eu consigo até me abstrair um pouco e assistir à novela para ver um colega trabalhando, para ver a direção, a iluminação, mas eu sei que estou assistindo a uma novela, um gênero que eu fiz tanto e trabalhei tanto, que é para mim cansativo, e eu acabo trabalhando. Minha mulher, não; minha mulher, a Márcia, gosta de ver novela. A determinadas novelas, ela diz: “Esta eu vou ver”. E ela tem acompanhado a novela pelo jornal, que já passou a ser um outro tipo de novela. Elas sabem o que vai acontecer em determinado dia. [Elas dizem] Hoje tenho que ver porque vai beijar não sei quem [risos]. Então, o que é que eu faço? Eu assisto com ela, e aí me interesso, acabo me interessando e vendo. E aí há o comentário, e [a novela] pelo menos junta o casal num determinado momento, para você comentar, dizer se ele está bem ou se ela está mal, se ela está bem vestida, porque a novela também traz uma coisa junto, se fulana está bem vestida, se está feia, se o cabelo ficou bem, se ficou mal, tem várias coisas. A novela, na verdade, isso eu já falei, ela substituiu a fofoca da cidade do interior. Então as pessoas todas se reúnem para fazer uma fofoca... quer dizer, agora que vivemos tão isolados, e esse Big Brother [Grande Irmão, personagem do romance 1984, de George Orwell], que é a televisão, nos olhando, ou nós olhando o Big Brother [programa da Rede Globo no qual um grupo de pessoas, disputando um prêmio, fica isolado numa casa e sendo filmado 24 horas por dia], o que acontece? Nós temos que fazer uma fofoca; antigamente a gente podia falar da vizinha, da mulher do prefeito, porque era cidade do interior. Agora a novela – e isso é a grande característica da novela – é a grande fofoca que se instaura num país. Então começou a novela: está lá a [atriz] Vera Fischer e o [ator] Reynaldo [Gianecchini]. É Reynaldo o nome do rapaz, não é isso? Aí dizem: “Que rapaz bonito; ela vai namorar esse rapaz bonito”. [Alguém responde] “Não, me disseram que ela está realmente namorando o rapaz”. Já virou uma outra fofoca. Então isso aí vai crescendo, e isso aí tornou-se a fofoca do país. Então a [apresentadora e atriz] Marília Gabriela, que não tinha nada a ver com aquela novela passou, de uma forma ou outra, a participar da novela também [refere-se à união de Marília Gabriela e Reynaldo Gianecchini na vida real]. Todo mundo ficava esperando a hora do beijo, para ver se o beijo era realmente tão quente quanto diziam que era. Então [comentam] “Viu? Foi quente, foi quente. Aí tem coisa”.
Gabriel Priolli: Aliás, existe beijo técnico, Daniel? [risos]
Daniel Filho: Claro que existe [risos]. O beijo não pode ser dado... se for dado um beijo real, ele deve ficar antiestético. Eu acho que se o beijo é técnico, o beijo é bonito. Você quer ver um beijo mais lindo do que o beijo de Clark Gable e Vivien Leigh em E o vento levou [filme de 1939]? Ele agarra assim para cima [gesticula], dá aquele contraluz. É um beijo bonito. O beijo da Elizabeth Taylor e o Montgomery Clift em Um lugar ao sol [filme de 1951], que eu considero um dos beijos mais lindos, que é um beijo que eu tentei várias vezes fazer igual e não consegui! Porque eu não consegui descobrir que lente o [diretor do filme] George Stevens usou para que o ombro do Montgomery Clift ficasse fora do foco. E aqueles olhos lindos da Elizabeth Taylor cruzando aqui [gesticula, mostrando o ombro esquerdo] em foco. E isso é um beijo técnico, [haja vista] a posição que ele tem que estar. E se abrir a boca ou escancarar, ou se fizer alguma coisa, vai ficar [faz careta] meio desagradável [risos].
[sobreposição de vozes]
Daniel Filho: [brincando] O Luiz [Carlos Merten] não falou uma palavra até agora.
Luiz Carlos Merten: Eles estão querendo falar de novela o tempo todo. Vamos falar de cinema. Porque tu estás dando toda chance do mundo para falar de filmes. Vamos falar de filmes, um pouco. No teu trabalho na televisão, tu trouxeste muito do cinema, de Hollywood principalmente. O teu livro até fala de um caso clássico de um filme do [diretor norte-americano] King Vidor [1894-1982], o Stella Dallas mãe redentor [1937], como a matriz do melodrama que está em todas as novelas de televisão. Realmente, Hollywood, o cinema americano, influencia todo o teu trabalho na televisão. Agora eu quero saber de ti uma coisa: A partilha, que acaba de estrear no cinema, em menos de um mês, em três semanas, já fez quase 700 mil expectadores.
Daniel Filho: Em menos de três semanas.
Luiz Carlos Merten: Em menos de três semanas. Quando o filme fizer um mês, com certeza vai estar entre as dez maiores bilheterias da retomada [do cinema brasileiro, que ocorreu a partir da segunda metade dos anos 90]. E eu espero que o filme vá longe e que faça um belo sucesso de público. Eu quero saber agora isso: o que a televisão levou agora para o teu trabalho no cinema?
Daniel Filho: Eu acho que a televisão me fez ser uma pessoa correndo atrás do público. Eu sempre tive necessidade de me comunicar. A televisão precisa se comunicar. Nós não podemos fazer alguma coisa pensando em nosso umbigo apenas. Quando a gente diz: “Vou fazer uma coisa popular com qualidade”, eu também tenho que procurar alguma coisa de que eu goste e que comunique. Caso contrário, eu estaria fazendo uma coisa muito especial para mim mesmo. E tem filmes que eu adoro e que possivelmente não são sejam de grande comunicação. Você sabe, por exemplo, que o nosso, o grande e sempre votado como o melhor filme de todos os cento e poucos anos [da história do cinema] não é uma [grande] bilheteria e não é um filme de fácil agrado. Eu estou falando do [filme] Cidadão Kane [(1941) dirigido por Orson Welles] . Ele não é um filme que você mostra agora e [diz] veja este filme, [e o expectador reage] “Ah! que beleza”. Não, não gostam. Não é um filme para ser amado, mas nós gostamos. E eu procuro muito sempre a comunicação popular. O que eu acho eu, o que eu acho que o Guel Arraes, ao pegar O auto da compadecida e fazer a sua terceira versão cinematográfica, nós procuramos ter uma comunicação com o público. E nós sabemos que, na televisão, se a gente "não se comunica se trumbica", como dizia o melhor comunicador brasileiro [refere-se a Chacrinha]. Então, o que eu trouxe para o filme, primeiro abandonei o cinema americano, eu acho que A partilha é um filme mais brasileiro, porque ele tem nossa origem, que é a ibérica. Nós somos melodramáticos e adoramos uma chanchada. Eu acho que isso é a nossa alma, a nossa alma brasileira, [que] está ligada ao melodrama, ao samba-canção, está ligada ao bolero, ao tango, está ligado ao fado. E se existe algum cinema que também me influencia, me influenciou bastante, e até usei na novela, é o cinema italiano, pelo estilo da comédia que o italiano faz tão bem. Então, o que eu trago para o filme, e tentei trazer e acho que consegui, era um desafio, era conseguir ter a medida das duas coisas: da chanchada e do melodrama. E eu acho que A partilha tem isso, e é isso que está comunicando, porque as pessoas dizem assim, e riram muito e se sensibilizaram. Então aí estão duas coisas nossas, que não são americanas. Isso pertence a nós, latinos, isso pertence à nossa origem, à nossa vida atávica.
Paulo Markun: O fato de as atrizes serem atrizes conhecidas...
Maria Amélia Rocha Lopes: [ao mesmo tempo] Eu queria fazer uma pergunta com relação ao [filme] A partilha também.
Paulo Markun: Por favor, você [pode fazer a pergunta].
Maria Amélia Rocha Lopes: Você gosta sempre – pelo menos está no seu livro –, você gosta de dirigir pensando em uma música. Sempre uma música o motiva na hora da direção. Eu queria saber que música você tinha na cabeça quando você dirigiu A partilha .
Daniel Filho: [Para] cada cena, [eu tinha] uma música. Porque em um filme, ou em qualquer obra que você vá fazer, que eu vejo, de televisão ou de teatro – de teatro eu não dirigi nada –, mas [por exemplo em] televisão, eu vejo como se fosse um concerto, entende? Tem o overture [introdução instrumental], tem o moderato cantábile, ele tem que caminhar com o seu primeiro movimento, segundo movimento, terceiro movimento, sabe? Ele tem que ter esse tempo musical. Então quando eu estou dirigindo uma cena, eu sei o ritmo que essa cena tem que ter. É como... cada cena tem um ritmo. Então eu fico cantando uma música. Eu não me lembro agora quais as músicas que eu fiquei cantando em determinada cena, mas essas músicas me dão praticamente o ritmo que os atores, as atrizes e a câmera têm que se mexer.
Paulo Markun: Eu só queria saber: o fato de as atrizes de A partilha serem atrizes já com uma longa experiência com televisão, e bastantes conhecidas, você acha que pesou significativamente nesse resultado de público?
Daniel Filho: Não, eu não acho que elas... lógico, o que eu acho que pesou é que elas são boas atrizes, elas são atrizes com experiência. E eu precisava ali de atrizes com experiência. Agora a gente não pode falar de atriz de televisão ou atriz de teatro, porque todo mundo tem que fazer tudo; todo mundo faz tudo. Eu tinha que achar quatro atrizes com experiência e que eu conseguisse fazer os dois gêneros muito bem feitos. Então, elas serem famosas ou não famosas, isso é quase uma conseqüência do boas que elas são. Quer dizer: a Glória Pires, a Paloma [Duarte], a Andréa [Beltrão], a Lilia [Cabral]. A Lilia, eu acho, por exemplo, que a Lilia sempre esteve na televisão, agora, a não ser com a última novela, com uma melhor chance, mas ela sempre esteve em papéis secundários. É a primeira vez, agora no cinema, em que ela tem um papel de primeira linha. Então, serem conhecidas, isso só... o que leva as pessoas a verem um filme é o filme ser realmente atrativo e bom.
Paulo Markun: Daniel, nós vamos para mais um rápido intervalo e voltamos já já.
[intervalo]
Paulo Markun: Bem, vamos agora para o terceiro e último bloco com a entrevista de Daniel Filho. Daniel, você falou ,no bloco anterior, que você está afastado da produção da TV Globo, mas sinalizou que vai voltar, pretende voltar. Quando, como e fazendo o quê?
Daniel Filho: Eu estou afastado porque eu passei a me dedicar – a Globo me deu essa chance –, me dedicar mais à [empresa] Globo Filmes. Então, esse afastamento foi estratégico. Vim aqui e estou trabalhando na Globo Filmes, preparando filmes, tentando ver como é que se faz a Globo Filmes funcionar além dos filmes que nós podemos produzir, entrando em sociedade com outros filmes. Estamos começando aí o [filme] Cidade de Deus [que foi lançado em 2002], que o Fernando Meirelles já começou a filmar lá no Rio de Janeiro. Vamos começar a nossa produção com o Babenco, do [filme] Carandiru [que foi lançado em 2003]. Eu estou mesmo trabalhando em outros projetos; nós temos também o projeto do Cláudio Torres. Então eu me dediquei... estou afastado da televisão porque a Globo permitiu que eu fosse me dedicar à Globo Filmes. Lógico que eu deverei voltar à TV Globo, porque eu vejo, é meu sonho agora, é a coisa do cinema e da televisão. Eu vejo que é muito difícil a produção do cinema, e eu acho que a televisão, de uma forma ou outra, tem que começar a se unir ao cinema, ou ainda a televisão é uma das grandes janelas para o cinema brasileiro.
Esther Hamburger: Como você vê o projeto do Gedic [Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria do Cinema], falando de televisão?
Daniel Filho: [sorrindo] Eu levantei essa bola, essa bola é boa!
Luiz Carlos Merten: Eu tenho uma questão bem específica. A Globo Filmes entrou nesse mercado de cinema, e entrou de uma forma que desperta muita polêmica, porque a grande forma de investimentos hoje no cinema brasileiro está baseada nas leis de incentivo na renúncia fiscal. A Globo não coloca dinheiro dela na produção de filmes, ela busca no mercado, também por meio da renúncia fiscal e das leis de incentivo. E o que todo mundo fala é que, claro, se vai um produtor pequeno e vai a Globo Filmes pedir dinheiro para o seu produto, todo mundo vai querer investir e ligar o seu nome à Globo Filmes, e não no produtor miúra que está com um projeto talvez mais cultural, mais importante, seja lá o que for. Esse tipo de crítica é forte, a gente verifica muito isso na categoria cinematográfica. Até que ponto é verdadeiro?
Daniel Filho: Eu acho que se eu estivesse do outro lado, estaria sentindo a mesma coisa. Mas eu também tenho que dizer que é meio fantasiosa a coisa do cinema brasileiro. Por exemplo, vamos falar um pouco do cinema. O filme [A partilha] fez realmente, em 17 dias, 685 mil expectadores. Para você lançar um filme no Brasil, e o lançamento de A partilha custou isso, porque tinha 143 cópias, você tem que fazer aqueles banners para pendurar no cinema, porque se você não pendurar aquele banner, ninguém sabe que você tem o seu filme, é obrigado a fazer o banner . Você tem que gastar algum dinheiro, anunciando, pequenos anúncios nos jornais. Você tem que tentar alguma mídia na televisão, ou usando a sua pessoa, a sua amizade. Mas um lançamento, por exemplo de A partilha, custou um milhão de reais, incluindo aí cópias, as cópias dos trailers, incluindo os banners, os anúncios, um milhão de reais. Dizem alguns que isso não é muito; dizem outros que isso seria pesado para um filme independente, maldito, ou miúra como você falou. Para pagar esse milhão de lançamento, precisei, no mínimo, de 465 mil expectadores.
Luiz Carlos Merten: Está pago, então.
Daniel Filho: [Com ênfase] Está pago o lançamento do filme!
[...]: Agora tem que pagar o filme.
Daniel Filho: Agora temos que começar a pagar o filme. Temos que começar a pagar o investimento colocado. Quando você fala que, no Brasil, para fazer um filme, eu tenho que ter 465 mil expectadores para pagar o lançamento de um milhão... nós podemos falar de filmes com lançamentos mais baratos. Então vai lançar com 500 mil reais, mas ele vai ter o quê? Dez, 15 cópias? Então a possibilidade de ele pagar será muito mais complicada. O cinema brasileiro tem uma dificuldade; eu não tive facilidade. Olha, eu achava que A partilha era nota de dez, não tinha como errar. Era na minha cabeça, era um sonho meu há dez anos. Eu tinha esse script há onze anos, ele já foi americano, já foi espanhol, eu tentava fazer esse filme e ninguém queria fazer. Com a TV Globo – e logicamente veio a Globo Filmes –, eu não iria apresentar o meu projeto como o primeiro projeto. Fomos para o [filme] Orfeu [1999], fizemos um filme do Renato Aragão [O trapalhão e a luz azul (1999)], depois fizemos um filme da Angélica [Zoando na TV (1999)], fizemos O auto da compadecida [2000], que era uma saída. O auto da compadecida custou, depois de pago pela TV Globo, para se transformar em filme, 600 mil reais, ao dólar ainda a 1,70 [real por dólar]. Agora o valor do real seria já outra coisa. Então O auto da compadecida custou esse dinheiro. Recapitulando, onde estava o meu pensamento?
Paulo Markun: Você achava que [o filme] era pule de dez [sem riscos de não dar certo].
Daniel Filho: Era pule de dez. Pois bem, então vamos começar a fazer o filme: um dirigido por mim, de uma peça de enorme sucesso no Brasil, na Argentina, na Venezuela, no Peru, no México, na Espanha. Olha, com a TV Globo, com tudo. Eu estava no penúltimo dia de filmagem, estava pronto para enfiar a mão no bolso e assinar um cheque meu, quando apareceu o último patrocínio, que aliás não foi nem de lei de incentivo, foi dinheiro, o chamado dinheiro vivo, o dinheiro bom, e aí cobriu o orçamento do filme. Então a própria Globo Filmes não tem essa capacidade que se julga que exista para se arrecadar dinheiro. Estamos com dificuldades no cinema para arrecadar dinheiro.
Gabriel Priolli: Eu queria colocar uma coisa em termos estéticos. É evidente que é necessário uma aproximação do cinema e da televisão, e que a Globo Filmes cumpre um papel importante aí. Agora a gente, uma vez que a Globo Filmes e outras empresas de porte consigam criar a base industrial que a gente precisa no cinema brasileiro e sair para realmente ter uma indústria de cinema no Brasil, a gente não corre o risco de ter certa padronização desse cinema? Esse cinema não se tornou um cinema muito parecido com a nossa televisão? A estética desse cinema seria a estética televisiva? A gente [não corre o risco de] perder aquilo que a gente tem nesse cinema miúra e pré-industrial que nós temos hoje, que é ainda, cada vez menos, mas ainda é a busca de uma certa inventividade, certa inquietação, um fazer diferente, um mostrar o Brasil de um jeito diferente do jeito que a televisão mostra?
Daniel Filho: Aí me parece que é meio lógico que isso pode ocorrer. Se você vai fazer um filme e você quer correr com um determinado mercado, você tem que, de uma forma ou de outra, tem que se adaptar àquele mercado. Você tem que ver quais são os balizares daquele mercado, como é que é, porque senão você não entra naquele mercado. Você não vai fazer um filme para se pagar ali. E o curioso é que a gente sempre fala da TV Globo. Eu acho que não deve ser pensado só na TV Globo, porque deve ser pensado na televisão como um geral da televisão, todas as televisões deveriam estar fazendo a mesma coisa, e me parece que vão fazer. Agora eu acho que existem outros campos em que pode ser essa busca nossa, deve ser incentivada, que é no curta-metragem. Por exemplo, o Brava gente produziu logo no seu início, logo na sua primeira leva, um projeto: o [curta-metragem] Palace II (2000).
Gabriel Priolli: O magnífico Palace II, do Fernando Meirelles, que vai fazer...
Daniel Filho: Que foi quase uma experiência para ele ver que narrativa ele iria usar no filme Cidade de Deus. O que a gente fez? Como ele filmou, a Globo Filmes já entrou junto com ele, e estamos fazendo [um projeto para] que isso seja um curta-metragem. Ele é um curta de 16 minutos e, portanto, o que não pode é a gente pensar que pode fazer um filme que possa custar, ao nosso dinheiro, quatro milhões de reais ou dois milhões de dólares, que para nós é muito, é um big budget [grande orçamento] para nós, apesar de que o filme Cidade de Deus é um filme caro, é um filme de seis milhões e meio de reais, e se sabe que não vai se pagar no Brasil nunca. Mas logicamente, como o Fernando já tem a Miramax junto, tem também a Canal Plus entrando, portanto esses mercados já estão ajudando. Quer dizer, se não houver essa interatividade ou essa troca com os outros... e aí também entra a influência dos outros países, porque, por exemplo, eu falei para o Fernando: “Vamos fazer em cinemascope [processo de filmagem com lentes especiais], em 2.35”. Ele disse: “Isso eu não posso, porque o meu contrato obriga que seja em 1.86”, a bitola [medida-padrão] do filme. Não tem como você fazer um trato com alguém se não abrir mão de certas coisas. Portanto eu aposto muito, para a gente não perder a nossa identidade, que haja os curtas-metragens, que haja os médias-metragens, que possam, de uma maneira ou outra, ser absolvidos por determinado tipo de estação, por determinado tipo de horário e, logicamente, eles terem que produzir. E aí vamos falar dos canais fechados. Eles terem que produzir, de uma forma que esses canais fechados possam exibir esse tipo de filme e que esteja dentro do formato daquele canal.
Esther Hamburger: Qual o papel da produção independente nessa [perspectiva]?
Laurindo Leal Filho: Essa questão da produção independente, e voltando para a televisão, você fala no livro do Chacrinha e o cita, [ele] já foi citado aqui, está sempre presente nas conversas sobre televisão. Você cita outra frase dele, dizendo que “nada se cria, tudo se copia”. Eu acho que esse é um dos grandes problemas da televisão brasileira, é a homogeneização. Se você pega o horário nobre, as alternativas são muitos poucas, tem um programa de auditório em alguns canais, a novela em dois outros e alguns telejornais. Essa falta de incentivo ao produtor independente, à criatividade... A compra de programas produzidos fora das grandes emissoras não seria o grande caminho? Eu tenho na cabeça o exemplo de Channel 4, na Inglaterra, que dá um incentivo muito grande – sempre deu –, um incentivo muito grande aos produtores [independentes].
Daniel Filho: A TV Granada também, não é?
Laurindo Leal Filho: Também, mas o Channel 4 teve mais sucesso, porque o Channel 4, voltando à nossa conversa, saiu da televisão, foi para o cinema e hoje... Antes ele vivia com a publicidade vendida por outro canal – só na Inglaterra pode acontecer isso –, um outro canal vendia a publicidade que mantinha o canal experimental. Foi tanto o sucesso dele na aposta do produtor independente, indo para o cinema, que hoje ele tem uma vida própria, corre sem mais a necessidade daquela publicidade. Não falta um pouco isso [no Brasil]? Eu acho que a gente fala muito do baixo nível da qualidade da televisão brasileira, mas eu acho que pior que o baixo nível é a falta de alternativa. E tem muita gente, é só abrir uma porta, aparecem criadores aí fazendo coisas maravilhosas. As portas não deveriam ser mais abertas para esses criadores?
Daniel Filho: Eu acho que sim, mas é verdade que quando eu tentei, não encontrei essa porta tão aberta assim, não.
Laurindo Leal Filho: Você não encontrou gente que entrasse...?
Daniel Filho: Não, não encontrei. A única pessoa que eu fui produzir independentemente, que foi o caso do Confissões de adolescente, a única porta que eu encontrei aberta foi aqui [na TV Cultura].
Laurindo Leal Filho: Eu sei, Daniel, o que eu disse é que as portas deveriam ser abertas porque há muita gente querendo entrar, como você entrou.
Daniel Filho: Sim, mas se você pensar... Eu, por exemplo, tive conversas com [o canal privado francês] TF1. Na segunda parte do Confissões de adolescente, a minha produção era com a TF1. E lá eu não era tão livre quanto eu gostaria de ser, e quando eu trabalhei aqui também. Então, quando você vai ser independente, põe aspas, você é “independente”, mas você é obrigado a cumprir determinadas... você tem uma bíblia a ser seguida: olha, não pode ser assim, são os diretores, todos os textos têm que ser aprovados. Eu tinha então que ter os textos aprovados aqui, e tinha que ter os textos aprovados na França. Agora mesmo nós fizemos um filme para a Globo Filmes [O filho predileto, 2001], uma tentativa de um início de um made to TV [telefilme, feito para ser exibido diretamente na televisão], feito em co-produção com a Columbia e com a RAI. Então, era uma diversão. O Walter Lima, que dirigiu, foi à loucura, porque era a opinião da Globo Filmes, era a opinião da Columbia e a opinião da RAI. E cada um tinha um tipo de contrato. Então, esse “independente” dá a impressão de que a pessoa está [dizendo] assim: “Eu bolei uma coisa, me dê o horário que eu vou entrar”. Não, porque o programador, o homem da televisão, ele tem que dizer, e [quanto a] isso houve um erro há muitos anos atrás, quando a Embrafilme produziu uma série de pilotos para a televisão sem consultar uma [sequer] pessoa da televisão. Então ficaram todos aqueles pilotos encalhados, porque também tem que ver o que o programador, o dono da estação, está precisando para aquele horário. Então, o independente, para mim, ele é absolutamente dependente. O produtor independente recebe uma incumbência: “Olha, estou precisando de um programa infantil”. Aí saem quatro, cinco, sete pessoas pensando em determinado tipo de público infantil, e em que determinado programa se pode apresentar, mas isso é uma coisa que, de uma forma ou outra, está aberta. Se alguém apresentar em qualquer estação, ou estações que estejam a fim de fazer isso...
Esther Hamburger: Está aberto, mas você disse que é inviável, não é?
Daniel Filho: Mas o que acontece por exemplo, no caso, é que a gente sempre vai para a Rede Globo de Televisão, o que não é o caso da Bandeirantes, por exemplo. A Bandeirantes não quer fazer a produção dela porque ela não quer se comprometer em termos de despesas. A TV Globo já tem – porque teve que não depender de alguém que não entregasse o produto –, ela tem que botar o produto no [ar]. [Ela não tem como aceitar uma justificativa como] “Olha, eu não posso entregar na terça, dá para entregar na quinta?”. Não, ela está no ar, ela tem que entregar na terça-feira às oito horas, tem que entrar determinado produto com determinado tipo de qualidade. Então a TV Globo se armou para que ela não ficasse na mão da instabilidade da produção brasileira. E a produção brasileira é muito instável na sua confecção. Eu mesmo, enquanto produtor independente, com toda a minha experiência, eu tive muito a boa vontade do [Roberto] Muylaert, aqui [da TV Cultura], porque eu comecei a atrasar a entrega do programa, e ele atrasou a entrada da série no ar, porque eu me atrasei. Eu atrasei quase um mês e pouco, e ele foi segurando. Aí teve uma hora em que eu me enforquei financeiramente e pedi até um adiantamento de uma prestação, que seria dada quando eu entregasse oito capítulos. Eu só tinha entregue quatro. [Eu disse] “me adiante aquele senão não dá”. Então, isso fui eu, com toda a experiência. Agora isso não pode [ocorrer] atualmente. Nós não estamos na Inglaterra, nós estamos no Brasil. Então não podemos ainda, no Brasil... Não temos uma estrutura armada em volta para que eu garanta que, no dia 15 de outubro, eu entregarei para você o produto, assim, conforme nós conversamos, com qualidade tal, com tais atores, com tal tamanho.
Paulo Markun: Isso não tem a ver, Daniel, com o fato de que a gente tem – e é histórico isso também, o seu livro demonstra – a hegemonia de uma emissora sempre? Quer dizer, o sistema brasileiro de televisão, sem trocadilho [porque não se trata da emissora SBT], ele sempre tem uma emissora, que é a emissora líder, que fica reinando por um tempo – a Globo já extrapolou todos os limites de tempo nesse reinado –, e não tem uma constelação de duas ou três emissoras disputando audiência. Agora tem no Brasil um detalhe curioso, que é a legislação que proíbe a entrada do capital estrangeiro. Essa lei foi feita para prejudicar a Rede Globo [presidida por Roberto Marinho], quando ela tinha um acordo com a [empresa norte-americana] Time-Life, que foi planejada pelo Chateaubriand, pelos grandes donos de jornais para prejudicar a Rede Globo, e hoje ela beneficia a TV Globo, na medida em que impede que outras emissoras tenham capital para bancar esse jogo que, como você diz, é um jogo de cachorro grande. Não tem a ver com isso? Não tem a ver com a falta desse mercado? Quer dizer, se o sujeito não está produzindo para a TV Globo, vai produzir para o SBT, e se ele não produz para o SBT, ele vai produzir para a Bandeirantes. Quando você fala isso no mercado brasileiro, a diferença de orçamento e de faturamento é gigantesca.
Daniel Filho: Você muda totalmente o intervalo comercial, o preço do intervalo comercial, portanto o dinheiro que você tem é totalmente diferente. Quanto à hegemonia da Rede Globo de Televisão, ela nada mais é que feita por profissionais. Eu acho que aí vai, e no livro eu falo, tenho que dizer, vai da vontade do dono. E aí foi da vontade do doutor Roberto Marinho, que continua com os filhos, com a família Marinho, investindo. Quer dizer, ele entregou e delegou a profissionais; a Rede Globo de Televisão foi feita por profissionais de televisão. Foram contratados os melhores profissionais que havia, e houve até um momento político em que profissionais fantásticos – eu também narro no livro - de teatro tiveram que correr, ou que se socorrer na televisão. E a TV Globo estava aberta para isso, independente das cores políticas que esses profissionais tinham. Então eu acho que a TV Globo apostou no profissional, e você vê que a TV Globo está no ar há 36, 37 anos, mais ou menos. E quantas estações apareceram e sumiram durante esse período. A gente vê que surgem estações que são tão frágeis, não são vistas de uma maneira profissional; me parece que às vezes são vistas de uma maneira oportunista, como é [vista] também [como oportunista] a sua programação. E é aí que mora o perigo. Quer dizer, quando se faz uma lei visando a uma estação, nós estamos fazendo uma lei contra nós mesmos. Nós deveríamos fazer uma lei visando a todas as televisões, para que todas as televisões tivessem a mesma seriedade que tem a Rede Globo de Televisão durante esses 36 anos, seriedade profissional com seus profissionais, e investindo. Logicamente ela foi ficando dona do seu produto, porque não podia ficar esperando que alguém montasse um cenário, ou que alguém tivesse dinheiro para bancar uma novela. Então ela teve que ter seus estúdios de novela e armar aquela coisa gigantesca, que é o Projac [Projeto Jacarepaguá], que são estúdios de Primeiro Mundo, para ter a sua produção própria, que é tão forte quanto é a [grande cadeia mexicana de televisão] Televisa, do [Emilio] Azcárraga. Então isso não pode ser uma culpa dela, isso é uma competência dela. Eu diria, para finalizar, que não é que a TV Globo jogou muito bem, é que os outros não jogaram nada.
[sobreposição de vozes]
Maria Amélia Rocha Lopes: Você chamaria esse sucesso do [apresentador] Gugu [do SBT], neste momento, vencendo [em audiência] o [programa do apresentador] Faustão [da Globo], você chamaria de um sucesso oportunista? Não é uma coisa que assusta a TV Globo?
Daniel Filho: Não, eu não acho que assusta. Logicamente a TV Globo – eu não posso falar pela TV Globo, eu posso até, junto com vocês, comentar a TV Globo ou comentar a programação –, mas pelo que eu conheço, pelo que eu sei, logicamente a TV Globo quer e deve estar com a produção que tem tentando ter melhores audiências, mas eu não vejo que a televisão seja apenas um programa. Alguém que tem um programa [dizer] “Meu Deus, eu estou fazendo sucesso”, não é [razoável]. A televisão é toda uma programação, e a TV Globo, se conquistou a confiança do público brasileiro, ela conquistou por causa de uma programação, de uma grade inteira armada. E aí você analisava depois, programa por programa, para não ficar uma televisão esquizofrênica, um programa assim, quer dizer, mudando os sentidos do programa, para ter uma harmonia na sua programação. Então você tem a TV Globo como um todo, e tem a TV Globo com os seus módulos, seu módulo infantil, seu módulo de novela, seu módulo de programas experimentais, seu módulo de jornalismo. A televisão não pode ser vista como um programa só. Não podemos falar de televisão e falar [somente] do programa do Gugu. O Gugu é um excelente apresentador, é um excelente produtor de programas; acho que ele já explorou menos, já fez mais sucesso até quando ele fazia lá a coisa da galinhazinha [imita com os braços uma galinha batendo as asas] que ele cantava. Não me lembro mais como era... tinha uma galinhazinha que ele cantava.
Gabriel Priolli: A dança da galinha.
Daniel Filho: A dança da galinha [imita a dança da galinha]. Então ele fazia já sucesso quando ele fazia esse programa. Foi até quando eu quis contratá-lo para a Rede Globo. E agora tem outro tipo de programa, fica olhando se a pessoa está chorando, se a audiência está aumentando, vai ficando no ar. É bom, é ruim? Quanto tempo o público vai agüentar isso? Quanto tempo o público agüentou aquele [apresentador] que fazia o [programa] Cidade alerta, o Gil Gomes. Sumiu o Gil Gomes como sumiu o homem do sapato branco.
Flávio Amaral: Mas a Globo hoje está tendo problemas em vários horários, tanto na programação infantil de manhã, tanto nas noites durante a semana. Você acha que a hegemonia da Globo não está sendo ameaçada atualmente?
Daniel Filho: Ainda está bem distante. Quer dizer, programa infantil normalmente é baseado nos desenhos animados. Um programa infantil são os desenhos que ele apresenta. Eu acho que é quase 80% dos desenhos que são apresentados e 20% de quem apresenta aqueles desenhos. Aí eu não acho que tenha uma grande ameaça, porque é um público infantil e, curiosamente, esse público financeiramente não é representativo.
Esther Hamburger: O público infantil é o maior público da TV a cabo. É interessante isso, os canais a cabo mais assistidos são os canais infantis. É um público muito mal tratado pela TV aberta.
Luiz Carlos Merten: Daniel, já que estamos falando da hegemonia da Globo na TV, e a hegemonia da Globo Filmes? Porque das dez melhores bilheterias, cinco são da Globo Filmes, e seu filme está entrando agora já nessa lista, vai ser o sexto, e tem [o filme da] Xuxa, campeoníssima, que não é da Globo Filmes, mas é a Globo, Xuxa. É uma hegemonia que a Globo está levando também para o cinema?
Daniel Filho: Eu estou tentando fazer filmes que agradem ao público. Eu não esperava o “milagre da compadecida” [referência ao grande sucesso de público de O auto da compadecida], ninguém esperava. Começou o milagre da compadecida, tentando fazer apenas oito, nove cópias. Aí acharam que dava para fazer 80, tanto é que o filme estreou com 80 cópias, depois passou para 120 e, na terceira semana, estava com 180 e poucas cópias. Aí, o que está passando na Globo Filmes possivelmente seja o meu pensamento enquanto produtor, experiência que eu tenho de produtor de televisão, colocando na Globo Filmes e escolhendo um cartel de filmes que agrade ao público. Eu tenho certeza que quando fizerem [o filme Carandiru ... Eu estou com dois filmes que podem ser considerados filmes violentos e fortes, que são Carandiru e Cidade de Deus . Mas estou com o [filme] Redentor, do Claudio Torres, que eu acho maravilhoso, é uma comédia maravilhosa do Cláudio Torres. Estou também com Polaróides urbanas, do nosso [Miguel] Falabella, que é um excelente... é um shortcut escrito pelo Falabella, maravilhoso, a partir de uma peça dele. Mas quando eu pego dois filmes desses, não sei se esses filmes entraram nessa lista [dos mais assistidos], mas são filmes bons, eu acredito, e acredito que isso vai dar uma qualidade e um padrão onde a Globo Filmes entra, sem dúvida nenhuma vai dar. A Globo Filmes – e aí é independente da Globo, porque não é o anúncio da Globo que fez a Globo Filmes estar entre as dez maiores de bilheteria nacionais, foi a escolha do filme, foi essa escolha. Eu me reservo o direito, eu tenho filmes que estiveram na minha mão – eu não vou citar o caso de quem foi –, mas eu disse: “Não quero fazer”. E quando o filme estreou, e não foi muito bem, o produtor me procurou para a gente conversar e dizer por que eu não gostava do filme e por que eu tinha me negado, apesar de eu achar o filme muito bem realizado. Mas [ele queria saber] por que eu tinha me negado inicialmente a entrar no filme. Porque eu via nele problemas de comunicação. Os brasileiros ainda não estão habituados que tenha um produtor que mande ou diga: “Não quero esse final, não quero que fulano faça esse papel”. E isso todo o mundo [faz], seja inglês, seja italiano, seja francês, eles sabem que existe um produtor em cima que diz assim: “Ó, com fulano de tal não, ponha sicrano”.
Paulo Markun: Daniel, nosso tempo está acabando e eu gostaria de fazer uma última pergunta. O seu livro começa com uma série de histórias interessantes de alguns bastidores da televisão, mas os dois terços finais são dedicados à indústria da televisão, [sobre] como é que se faz televisão, quais são os mecanismos, técnicas, enfim, bastidores que, realmente, para quem trabalha na área são extremamente interessantes. Eu queria saber como é que você imagina que se aprende televisão. Você aprendeu fazendo, pura e simplesmente, em um tempo em que não havia outra maneira de aprender. Você acha que hoje já existe outra forma de aprender?
Daniel Filho: Foi intenção minha escrever esse livro. Apesar de não ser professor e não saber como ensinar, eu tentei fazer [o livro] de uma forma coloquial e explicar a maneira que a gente está fazendo televisão no Brasil agora. E a gente faz uma boa televisão. Nós temos uma televisão feita com um bom nível, em determinados programas ou em sua maioria, nós temos um bom nível. Nós temos bons atores, temos autores, temos bons diretores, e a maneira que a gente faz agora. A gente já pode agora aprender a fazer televisão, mas como eu disse, “o princípio é o verbo, o final é o talento”, então não adianta você ensinar a mágica se a pessoa não tiver o talento ou a sensibilidade para fazer a mágica, porque você verá essa mágica. Portanto, ser [o ilusionista] David Copperfield ou qualquer coisa assim, a gente sabe como é o truque, mas como ele faz bem o truque, então aí que está o truque [na maneira de fazê-lo]. Pelo menos é assim que eu faço. Agora, o porquê fica diferente vai da sensibilidade de cada um. Eu não saberia dirigir como dirige o Guel Arraes, não saberia dirigir como dirige o Luiz Fernando Carvalho, eu não saberia dirigir como dirige o Dennis Carvalho. Cada um tem o seu estilo, tem o seu jeito de fazer, ou [como dirige] o Jorginho Fernando. Mas todos eles trabalham sob essa cartilha.
Paulo Markun: Daniel, muito obrigado pela sua entrevista. O Roda Viva está chegando ao fim. Eu gostaria de lembrar os telespectadores que as perguntas que não puderam ser formuladas foram muitas e serão todas entregues ao Daniel, para que ele tome conhecimento e eventualmente responda às que for possível responder. Nós vamos voltar na próxima segunda-feira, sempre com a tentativa de estabelecer aqui um espaço democrático de debates e discussão, que é o mais antigo da televisão brasileira, o Roda Viva, uma realização do jornalismo público da TV Cultura. Uma boa noite, uma ótima semana e até a segunda que vem.