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Memória Roda Viva

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Ronaldo Sardenberg

6/4/1998

Pensar o Brasil do século XXI: esta foi a missão oferecida pelo governo ao diplomata, que debate nesta entrevista as estratégias que deverão ser utilizadas para que Brasil alcance níveis satisfatórios de desenvolvimento econômico e social

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Matinas Suzuki: Boa noite. No programa de hoje nós vamos conversar sobre os projetos estratégicos para o Brasil. No centro do Roda Viva desta noite, o secretário de Assuntos Estratégicos, embaixador Ronaldo Mota Sardenberg.

[Inserção de vídeo] [Imagens de Ronaldo Sardenberg em entrevistas, de sua atuação nas Nações Unidas, de tropas da ONU, da antiga União Soviética, de Fernando Henrique Cardoso etc. Narração de Valéria Grillo.]

Ronaldo Mota Sardenberg, 57 anos, nasceu em Itu, no interior de São Paulo. Filho de militar, formou-se em direito e iniciou a carreira de diplomata em 1964. Na década de [19]70, serviu como secretário na missão brasileira na ONU [Organização das Nações Unidas]. Em [19]85 e [19]89, ocupou a embaixada do Brasil em Moscou, onde testemunhou o começo do fim da União Soviética e da chamada Guerra Fria. Depois chefiou a embaixada em Madri e representou o Brasil durante quatro anos na ONU. Em [19]93, Ronaldo Sardenberg assumiu a presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A ONU [então] mantinha forças de paz em 17 países e Sardenberg alertou em entrevista: "Não existirá paz duradoura no mundo se persistirem as distorções econômicas.". Em [19]95, tomou posse como secretário de Assuntos Estratégicos do governo Fernando Henrique. Sua missão: pensar o Brasil do século XXI. Ele fixou o ano 2020 como meta e prega uma política de desenvolvimento sustentável, principalmente para a região amazônica. Ronaldo Sardenberg considera fundamental fortalecer o Mercosul e defende o modelo de regionalismo aberto, sem protecionismos, levando em conta a globalização da economia.

[fim do vídeo]

Matinas Suzuki: Bem, para entrevistar o embaixador Ronaldo Sardenberg nós convidamos esta noite o jornalista Luciano Suassuna, redator-chefe da revista IstoÉ; o jornalista Marcelo Beraba, editor-executivo do Jornal do Brasil; o economista Roberto Giannetti da Fonseca, presidente da Trading Selects; o coronel Geraldo Cavagnari, pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade de Campinas; o cientista político José Augusto Guilhon de Albuquerque, coordenador do Núcleo de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e o advogado Antônio Luiz Sampaio de Carvalho, consultor da área de mineração. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Se você quiser participar deste programa, faça perguntas pelo telefone 011 252-6525, [repetindo,] 011 252-6525; se você preferir o fax, o nosso número é 011 3874-3454, e o nosso endereço na internet é rodaviva@tvcultura.com.br. Boa noite, embaixador Ronaldo Sardenberg.

Ronaldo Sardenberg: Boa noite.

Matinas Suzuki: Muito obrigado pela sua presença no Roda Viva desta noite. Embaixador, o Brasil é... o governo brasileiro tem na Amazônia, enxerga na Amazônia uma das suas áreas estratégicas, o senhor mesmo escreveu bastante sobre isso, mas, no entanto, não falta quem tenha acusado o governo brasileiro de omissão, de descaso e uma série de outras coisas, nesse recente episódio do incêndio na Amazônia. Qual é a posição do senhor com relação a essas críticas?

Ronaldo Sardenberg: Olha, a primeira vez que o governo federal recebeu um apelo no sentido de intervir na questão foi no dia 9 de março - eu até sei que foi esse dia porque é o dia de aniversário de uma das minhas filhas -, e interveio imediatamente. De maneira que eu acho que as críticas são profundamente exageradas. Eu acho também que, hoje, por exemplo, nos jornais está indicado que a missão da ONU que esteve visitando o Brasil, ainda está aqui, na realidade, chegou à conclusão que os danos causados pelo incêndio são da ordem de 80% inferiores ao que o governo do estado de Roraima propalou. Isso não quer dizer que não tenha havido dano, mas houve uma mobilização, sim, e em tempo razoavelmente rápido. É claro que as deficiências ficaram também patentes e que são um estímulo para que se possa, mais adiante, promover... mais adiante e no imediato, promover o reequipamento no Brasil com vistas a... e treinamento, com vistas a debelar esse tipo de calamidade.

Luciano Suassuna: Embaixador, o senhor disse que assim que foi provocado o governo brasileiro reagiu e interveio. A questão é que o fogo já estava lá há mais de um mês, ou dois meses, então fica sempre aquela pergunta, quer dizer, quem devia ter agido primeiro? O fogo, numa área tão estratégica como essa para o Brasil, envolve tantos interesses e populações desassistidas ,como os ianomâmis etc, esse fogo, ele é municipal, estadual ou federal?

Ronaldo Sardenberg: Em sucessão, ele é municipal, estadual e federal, precisamente, na medida em que se agrava. Eu lhe diria também que é preciso ter em mente que uma coisa é floresta, outra coisa é savana. E o fogo na savana é bastante conhecido. É um fenômeno anual, que serve inclusive para recuperar a terra, retirar a acidez da terra e permitir a plantação. Já na floresta, o que aconteceu com as florestas foi a primeira vez na história que acontece. O único outro exemplo de fogo florestal propriamente dito, desse porte, [aconteceu] em Bornéu, há vários anos atrás. Na Amazônia nunca tinha acontecido.

Roberto Giannetti da Fonseca: Mas embaixador, não falta ao Brasil, por exemplo, equipamentos como esses aviões-tanques que carregam centenas de litros de água para exatamente fazer frente a incêndios desse tipo? Tendo a Amazônia tão vasta, tão grande, nós não temos no nosso Ministério da Aeronáutica, acredito, pelo menos não tive notícia, equipamentos desse tipo, e que países como Canadá e a própria Argentina parece que têm já disponível?

Ronaldo Sardenberg: Olha, é verdade que nós não temos e é muito provável que devamos ter, embora não seja seguro, porque você sabe que cada fogo, cada tipo de incêndio tem suas características próprias, e eu não sei até que ponto esse tipo de equipamento será realmente eficiente. Mas eu acho que é uma coisa a considerar, sem a menor dúvida. Eu também não sei se cabe localizar no Ministério da Aeronáutica esse tipo de atividade. Eu acho que em uma primeira etapa, sem dúvida, numa etapa que se vai implantando esse sistema, se é que esse sistema é realmente eficaz para as nossas necessidades, mas eu não afirmaria com todas as letras que um serviço desse tipo seja caracterizadamente um serviço para a Aeronáutica fazer.

Marcelo Beraba: Ministro eu gostaria, só... rapidinho [se dirigindo a outro entrevistador que iniciou uma questão ao mesmo tempo], eu gostaria de saber e de entender melhor a posição do Brasil em relação ainda à questão de Roraima, que diz respeito a essa ajuda externa, particularmente da ONU. O que passou a impressão é que o governo relutou em aceitá-la e... é por uma questão de soberania, é por uma questão... qual é exatamente o problema?

Ronaldo Sardenberg: Olha, o Estado brasileiro tem jurisdição sobre o território nacional, não é isso? Então, é normal que a entrada de estrangeiros de forma organizada em território nacional seja objeto de discussão dentro e fora do governo. É também normal que numa atividade tão sensível quanto essa, que pessoas que jamais tinham se visto, que jamais tinham conversado, que pudesse haver algum tipo de desentendimento. Mas isso, na realidade, foi superado: os bombeiros argentinos e venezuelanos foram homenageados ao final de suas tarefas e a missão da ONU teve pleno acesso a todo tipo de informação, de maneira que o episódio, em si, eu creio que está superado.

José Guilhon Albuquerque: Embaixador, eu vou sair um pouco da floresta, mas vou continuar no campo. A pergunta resumidamente seria: qual é a estratégia do governo federal com relação à política fundiária, especialmente levando-se em conta a atuação do MST, não só, digamos, como um movimento reivindicatório, mas também como, digamos, como uma espécie de oposição não-parlamentar? E essa atuação, de certa forma, é um obstáculo à política fundiária do governo, e, de outro lado, ela resulta numa espécie de... de desafio à legitimidade da própria atuação do sistema judiciário, da política fundiária do governo... Qual é a estratégia? De cooptação? [É] uma estratégica de confrontação? Uma estratégia de... ?

Ronaldo Sardenberg: A estratégia básica é realizar a reforma agrária, promover os assentamentos, como foi prometido desde o início. E isso está em andamento, isso é o básico. Agora, quanto à atuação extraparlamentar do MST eu acho que isso é matéria muito mais para a sociedade brasileira do que propriamente para o governo, para cada cidadão, uma matéria para  que cada um de nós medite se o tipo de organização política que nós queremos ter é voltado para práticas que são extraparlamentares ou não. Nós temos que lembrar que nós lutamos no Brasil pelo voto, com muita ênfase e em grandes massas. De maneira que nós temos que encarar a atividade extraparlamentar à luz, eu creio, desse fato: de que nós temos uma tradição de luta pelo voto, a favor do voto direto no Brasil, e esse tipo de atividade não leva em consideração justamente esse aspecto, o aspecto do voto, de maneira que eu acho que é por aí o caminho. Não quer dizer com isso que o MST não tenha uma representatividade social. Isso foi reconhecido muitas vezes. Apenas depois, mais tarde, que o movimento mudou para um movimento político de oposição, e aí se trata de uma questão mais para a sociedade como um todo refletir do que propriamente para o governo.

José Guilhon Albuquerque: Será que não haveria uma certa leniência do governo com relação aos aspectos mais de quebra da ordem constitucional, de desrespeito, digamos, ao direito de propriedade, a questões como, por exemplo, invasões de propriedades públicas, e seqüestros de pessoas? Então, quer dizer, há todo um quadro, evidentemente eu não estou achando que o governo deveria ter uma atuação de... policial em relação a isso, mas há toda uma atividade, digamos, que tira a legitimidade do governo e da legislação para tratar disso. Essa questão que eu quero...

Ronaldo Sardenberg: O problema é que você sabe que o campo não é uma questão de polícia, é um problema social. [risos] E o problema social também não é uma questão de polícia, de maneira que não se pode esperar uma atitude repressiva nesse sentido. O que está ocorrendo sim é o esvaziamento progressivo do MST pela solução do problema, pelo fato de que estamos realizando assentamentos no Brasil numa velocidade sem precedentes na nossa história. Na verdade nós estamos indo para 280 mil assentamentos neste governo, que é um resultado impressionante em qualquer lugar do mundo, não vou dizer apenas no Brasil, não, em qualquer lugar do mundo.

Luciano Suassuna: Nessa idéia do senhor, desse Brasil de 2020, o problema do MST ficaria resolvido até lá, pela quantidade de assentamentos que se tem?

[Risos]

Ronaldo Sardenberg: Não, que os problemas de reforma agrária são encaminhados, sim, sem dúvida. O problema do MST não está nesse cenário. E eu lhe diria mais, que os cenários são cenários alternativos...

Luciano Suassuna: [Interrompendo] Quer dizer, o esvaziamento do MST pela quantidade de terras colocadas para reforma agrária e de assentamentos feitos.

Ronaldo Sardenberg: Como? Como?

Luciano Suassuna: Eu digo, o esvaziamento político do MST pela quantidade... O senhor acha que isso acontece...?

Ronaldo Sardenberg: [Interrompendo] Exatamente. Na medida em isso vai se resolvendo, sem dúvida que os sem-terra vão saindo das estradas, vai terminando a motivação. Para isso é necessário trabalhar, evidentemente.

Luciano Suassuna: No cenário... nesse cenário do Brasil de 2020, isso acontece em que ano?

Ronaldo Sardenberg: Não, olha, são três cenários diferentes do Brasil 2020 que nós estamos preparando, não é? No cenário mais benigno isso seria resolvido no correr da próxima década. Claro que há cenários piores do que esse, mas o cenário mais benigno do ponto de vista da distribuição da riqueza; nesse sentido.

Matinas Suzuki: Coronel Cavagnari.

Geraldo Cavagnari: Duas perguntas diretas, a primeira sobre como está o Calha Norte, e o segundo sobre o Sivam. Sobre o Calha Norte é que os militares de certo modo fizeram a sua parte, o ministérios civis não fizeram nada. E sobre o Sivam, ficou demonstrado agora com essa questão de Roraima, se nós tivéssemos implantado esse sistema, nós teríamos conhecido o problema com uma grande antecedência. Agora, o que eu quero dizer é o seguinte: o sistema de vigilância da Amazônia  [Sivam], ele não será útil se não tiver respostas adequadas para cada ameaça ou cada problema percebido ou detectado. Aí não seria o caso de pensar, e eu retomo a pergunta do Giannetti, de se pensar num sistema de proteção da Amazônia, nas respostas adequadas, de a gente ter uma brigada anti-incêndio para Amazônia, ou duas brigadas, se for o caso? Inclusive os aviões-tanques seriam dessa brigada, orgânicos dessa brigada.

Ronaldo Sardenberg: Bom, deixa eu começar por esse último ponto, apenas. Sabe que o deputado Gabeira [Fernando Gabeira (1941-), deputado federal com base política no Rio de Janeiro e história ligada ao PT e ao PV] - ver entrevista com Gabeira no Roda Viva] já há três anos havia proposto algo desse estilo. Eu devo dizer que na ocasião eu fui contra, pelo seguinte: porque eu não creio que o Sivam, como tal, o Sipam [Sistema de Proteção da Amazônia], deva ter atividades executivas, entende. O Sipam, ou Sivam, é um programa de tal complexidade, de tal amplitude, que ele pode facilmente cair para ser uma espécie de vice-reinado do Norte [região Norte do Brasil], e isso é algo que nós devemos evitar, do ponto de vista democrático. O que é necessário, sim, é que, a partir das informações coletadas pelo Sivam/Sipam, os diferentes órgãos se coloquem em marcha, se organizem.

Geraldo Cavagnari: Eu também me posiciono nessa tese. O sistema de proteção, os órgãos que vão dar as respostas são os órgãos que já estão estabelecidos e organizados. É o caso da Polícia Federal, a Receita Federal, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, esses já existem, eles que serão acionados através do Sivam. Agora, eu digo incorporar a esse universo de órgãos que dão as respostas mais um outro, que seria especializado em incêndio, que nós não temos.

Ronaldo Sardenberg: Isso sem a menor dúvida. Sem a menor dúvida, à luz das experiências que nós tivemos. Eu preciso reiterar que esse fogo na floresta é a primeira vez que ocorre, o maior fogo da floresta úmida. O que há em floresta úmida é derrubada, desmatamento e fogo, a posteriori, e com a madeira seca. Mas nesse caso, porque houve um fenômeno natural que foi o El Niño, que é o El Niño, na realidade, houve esse problema. Então, isso é algo novo, é um problema que surge agora. O fogo que tem havido é o fogo de savana, o fogo de campos gerais. Com relação ao Calha Norte, esse é um problema que me preocupa muito. O Calha Norte, ele abrange uma área que é duas vezes o tamanho da França, toda área ao norte do Rio Amazonas, do Rio Solimões e é uma área imensa. E na realidade, se nós descontarmos as unidades que estão nas capitais, ao norte do Amazonas, Macapá, Boa Vista, Manaus, que estão na realidade em unidades militares que existem similares em todas as capitais dos estados brasileiros, nós vamos ver que o que sobra do Calha Norte é muito pouco, é um ou outro batalhão de infantaria de selva, é um ou outro batalhão de engenharia, e pelotões espalhados, 16, 18 pelotões. De maneira que, em termos de presença militar, o Calha Norte é muito pequeno. Muito demonizado, muito demonizado. Agora ainda, na semana passada, eu estive na Alemanha e me perguntaram se o Brasil estava... continuava a importar armas para o Calha Norte. Na realidade a arma do Calha Norte é fuzil, o arco e flecha e o bodoque. [risos] O Calha Norte não funciona com armamento sofisticado. E é composto, essas tropas são compostas, mais de 50%, talvez 60, 70, 80% de indígenas, precisa ter presente isso também. De maneira que o Calha Norte naquele modelo está razoavelmente esgotado, aquele modelo em que recebia verbas da presidência para sua execução. O que nós estamos tentando fazer, procurando fazer e começamos a ter êxito, é mobilizar os orçamentos dos ministérios civis, fazer com que os ministérios civis se sintam estimulados a usarem os seus próprios orçamentos para resolver problemas de produção de energia elétrica, construção de escolas, postos de saúde. Em alguns casos nós já obtivemos bons resultados, especialmente na área do Ministério de Minas e Energia, do Ministério da Saúde e um pouco a área do Ministério da Educação. Nós vamos continuar a trabalhar nesse sentido, porque o caminho é esse, quer dizer, não se pode mais pensar que haja, assim, recursos livres de natureza que o governo federal possa simplesmente jogar [faz o gesto de jogar] nos programas. Nós temos que mobilizar a rede existente, temos que nos acostumar a trabalhar no Brasil, como no mundo, em rede. Depois eu talvez possa comentar sobre o Sivam, se esse for o caso.

Roberto Giannetti Fonseca: Embaixador, me parece exatamente que há um desequilíbrio no investimento. Eu acho que esse é o ponto que a gente questiona em relação a, vamos dizer assim, à política de defesa da Amazônia, da qual o Sivam é um aspecto fundamental, porque ele detecta o problema. Mas a solução do problema, seja a questão do incêndio, seja a questão do narcotráfico, do contrabando e tantos outros [problemas] que a gente tem [e que são] bastante sérios na Amazônia, se não houver uma ação preparatória e equilibrada, para poder resolver o problema identificado, parece, quer dizer, que nós vamos simplesmente saber que o problema existe, o Sivam vai detectar. Eu pergunto, por exemplo, uma questão que, acho que qualquer observador atento do problema da Amazônia fica preocupado, por exemplo, a questão da guerrilha na Colômbia, - né? -, que é uma questão que parece muito mais grave do que nós, talvez, imaginamos aqui no Brasil. Quem escuta dos próprios colombianos os relatos recentes do que tem ocorrido sabe que isso está ocorrendo ali na nossa fronteira, com bastante gravidade. A questão do Sendero Luminoso, no Peru, também: quantas vezes já deve ter havido até invasão de território brasileiro, eventualmente, por tropas do Sendero fugindo do exército. Então, essa é a questão que nos preocupa: até que ponto que nós estamos preparados para abordar esse tipo de problema?

Ronaldo Sardenberg: Olha, quanto a recursos, o que eu penso e, efetivamente, creio, é que a única maneira de obter recursos é com a mobilização da sociedade, com a mobilização política. Esses recursos não serão colocados burocraticamente no orçamento, como não foram no passado. Agora, eles passarão a ser colocados, sim, no momento em que a sociedade tiver consciência do produto do Sivam, que começará a existir para valer em agosto do ano 2000, e da necessidade de responder a essas novas informações, que serão informações em tempo real, on-line, e em quantidades absurdas de informação, de dados, quantidades fantásticas de dados, basta dizer que clientes do Sivam/Sipam - também tem todo um lado civil, - são 15 ministérios, 50 órgãos governamentais, e milhares de usuários entre universidades, centros de pesquisa, municipalidades, firmas etc etc. organizações não-governamentais...

Roberto Giannetti Fonseca: [Interrompendo] O senhor poderia nos atualizar sobre o cronograma?

Ronaldo Sardenberg: O cronograma é esse, quer dizer, começou a funcionar, a ser executado, em agosto do ano passado. A primeira etapa, que é a etapa de Manaus, termina em três anos. E em mais dois anos se concluem as etapas de Belém e de Porto Velho. Então, é um projeto que em cinco anos estará funcionando em sua plenitude. E parcialmente, em três anos. Esse é o cronograma.

Geraldo Cavagnari: Ministro, complementando aí, o importante aí da questão do sistema de proteção da Amazônia, não basta nós termos só o sistema de vigilância para detectar o problema ou a ameaça: nós temos que ter a resposta adequada e oportuna.  Isso é importante. E eficiente. Isso requer o seguinte: nós temos uma Receita Federal eficiente, que tem a capacidade de dar aquela resposta... oportunidade; uma Polícia Federal também; Exército bem equipado, tudo. E Aeronáutica, seja o que for. Se isso não for feito, se nós esperarmos a sociedade se conscientizar, o Sivam torna-se um elefante branco.

Ronaldo Sardenberg: Olha, eu acho difícil que o Sivam vá se tornar um elefante branco.

Geraldo Cavagnari: Porque nós vamos ter as ameaças e não vamos fazer nada!

Ronaldo Sardenberg: Professor, mas isso é um processo. Isso é... Nós estamos esquecendo que até um ano atrás o Sivam era um objeto de uma cerrada oposição...

[Sobreposição de vozes]

Geraldo Cavagnari: Não era contra o projeto, era contra a maneira como foi feita a licitação.

Ronaldo Sardenberg: Olha, essa distinção, muitas vezes se perdeu.

Marcelo Beraba: Embaixador, o senhor... é opinião sua, realmente, de que há, como foi descrito, que há uma ameaça, realmente, na nossa fronteira, que a questão da Colômbia é uma ameaça na fronteira, que a questão do Sendero é uma ameaça?

Ronaldo Sardenberg: Olha, o que eu digo é o seguinte: as forças armadas brasileiras na região mantêm contato com suas congêneres dos países vizinhos, e contato de todos os tipos, quer dizer, contato desde o nível do pelotão e da companhia, até o nível do batalhão, o nível do comando regional, e o nível central, em Brasília, de maneira que há um processo permanente de acompanhamento. Nesse sentido, quer dizer, houve aí alguns incidentes aqui e ali, e pode sempre ocorrer alguma coisa, mas não é um tema que nos ponha em permanente susto, nós não temos que ter permanente susto. Mas acompanhar, sim, o governo acompanha com muito cuidado.

Antônio Sampaio de Carvalho: Embaixador, aproveitando essa questão das fronteiras, a atividade mineral sofre restrições na faixa de fronteira. Nós temos uma faixa de fronteira de 150 km que significa, no país todo, 16 mil km, mais ou menos. Uma das formas de ocupação da Amazônia, uma das formas de arregimentação de sociedade para a segurança da própria Amazônia seria estimular a atividade mineral, e a fronteira brasileira norte e oeste é riquíssima do ponto de vista mineral, haja vista, especialmente, o território de Roraima e os problemas que a gente freqüentemente toma conhecimento. Essa faixa de fronteira, de 150 km, ela está em desacordo com uma tendência natural de todos os países vizinhos, inclusive da própria Venezuela, e ela é um fator inibidor dessa marcha para ocupação. Como é que está esse assunto, já que a sua secretaria, como órgão executivo do conselho que cuida deste problema, há uma aspiração do setor mineral no sentido que isso seja revisto o mais rapidamente possível. E neste momento? Inclusive, há uma disputa internacional por investimentos estrangeiros, e a América Latina tem sido muito bem aquinhoada, especialmente o Peru, o Chile e a Argentina, e a Venezuela, e nós estamos ficando com uma dificuldade a propósito dessa restrição. Já havia a restrição, e eu queria que o senhor também, se pudesse, esclarecesse, com relação à participação dos capitais estrangeiros em atividades de mineração na faixa de fronteira. Esta parece que está sanada, não sei se definitivamente ou apenas por aquele parecer da presidência da República. Então, a mineração é um estímulo para a fixação do homem, para a interiorização, como é que se está essa questão da revisão da faixa de fronteira?

Ronaldo Sardenberg: Olha, eu estou trabalhando nesse tema. Quer dizer, eu acho que nós, a rigor, temos rudimentos de uma política de fronteira, não mais do que isso. Eu não acho que seja normal que nós tenhamos uma faixa uniforme de fronteira, de 150 km de largura, que cubra do Amapá ao Rio Grande do Sul, toda a fronteira. Nós vamos ter que meditar e trabalhar sobre esse tema. Agora, esse é um tema polêmico, esse aspecto que o senhor levantou é um dos aspectos, é claro que há outros, por exemplo, eu não creio que se possa dar à fronteira, essa fronteira de 16 mil km, um tratamento homogêneo,  todavia. Nós vamos ter que encontrar maneiras de nos dirigirmos ao diferentes segmentos; em primeiro lugar, identificar os diferentes segmentos da fronteira e, em seguida, nos dirigirmos aos diferentes segmentos. Esse é um problema complicado, complexo, porque no Brasil não há nenhuma tradição quanto a isso. No Brasil há esse sistema, e um sistema de assentimento prévio, que se dirige a atividades econômicas nessa faixa, inclusive, por exemplo, funcionamento de estações de rádio. É curioso que nós temos toda uma legislação sobre estações rádio, que, a rigor, cobre o território nacional como um todo, de fiscalização e tudo, e ainda em cima disso há um assentimento prévio na região de fronteira. Eu acho que o dado central aqui é o seguinte: é que as fronteiras estão deixando de ser áreas de separação para se transformarem em áreas de aproximação. O caso da Venezuela, que você citou, a fronteira da Venezuela, é um caso muito claro. Claro que no Mercosul isso é muito mais flagrante, mas mesmo no norte isso começou a ocorrer. Agora, então, o que é que nós podemos fazer? O que eu estou fazendo é o seguinte: estou começando um debate no nível do executivo, sobre o tema das fronteiras, sobre o que vem a ser ou deva ser uma política de fronteiras. No dia 7 agora, de maio, nós vamos realizar um seminário do executivo, dos órgãos do executivo, para começar a discutir esse tema, e, em seguida, vamos expandir o debate, alargar o debate, como se diz, para trazer mais interlocutores, provavelmente, os interesses dos mineradores serão um deles, mas não apenas esses interesses, os variados interesses que dizem respeito à fronteira. É algo novo. É uma coisa que não existia no Brasil, a nossa política ficou realmente parada desde a Constituição de [19]34, no que diz respeito a fronteiras. Agora eu acho que chegou a hora de nós começarmos a pensar nos novos aspectos relativos à fronteira.

Antônio Sampaio de Carvalho: Só para ilustrar um pouco, o senhor me dá licença, neste mesmo tema, o Chile e a Argentina, que sempre tiveram problemas de fronteira, acabaram, no ano passado, de concluir um acordo em que a fronteira, para efeito de mineração, é a fronteira geológica. A mineração pode ser implantada tanto de um lado como do outro dos Andes, o que representou um progresso fantástico e uma facilidade enorme para estimular a atração dos capitais. Quer dizer, nós precisávamos... nós temos a fronteira aí, do sul, com o Mercosul, quer dizer, 150 km no Rio Grande do Sul ou em Santa Catarina, às vezes bloqueia municípios. Então essa coisa está nos parecendo assim um tanto urgente.

Ronaldo Sardenberg: Há municípios em que a sede entre eles dista 3 km uma da outra. No norte você tem São Gabriel da Cachoeira, que é um município [que mede] duas vezes o tamanho do estado do Rio de Janeiro. Então, o problema é muito heterogêneo e nós vamos ter que considerar cada ponto.

Geraldo Cavagnari: Eu creio que esses 150 km podem ser reduzidos, porque quando foram estabelecidos esses 150 km foi tendo em vista, primeiro, que era despovoado o país quase que todo. Segundo, que não se chegava, não tínhamos um desenvolvimento tecnológico no campo da informação como nós temos hoje. E o encurtamento das distâncias. Quer dizer, que 150 km nós ficamos ainda no Brasil colonial, no Brasil da expansão das fronteiras, quer dizer, não revimos isso porque não revimos a nossa política de fronteira.

[...]: Mas mudando de assunto...

[Sobreposição de vozes]

Matinas Suzuki: [Apontando para uma determinada parte da bancada de entrevistadores] Por favor, aqui, tinha duas perguntas [...]...

Roberto Giannetti Fonseca: Embaixador, pegando a questão das fronteiras, e também pensando, quer dizer, diante da democratização da América Latina, no novo posicionamento dos EUA diante do continente, o Brasil tem sido chamado a exercer um papel de líder regional. Caso, por exemplo, na questão da fronteira Peru-Equador, que o Brasil teve um papel fundamental na solução de paz, e agora acredito no caso do Paraguai também, quer dizer, já não só no momento atual, mas recentemente, quando houve uma tentativa de golpe e o Brasil tomou uma atitude bastante pró-ativa no sentido de evitar qualquer quebra institucional no Paraguai. E eu queria que o senhor comentasse sobre esse novo papel com riscos e responsabilidades que o Brasil toma diante dessa nova posição.

Ronaldo Sardenberg: Olha, a questão da integração com os nossos vizinhos é uma questão muito ampla, né. Na realidade nós estamos fazendo uma revolução silenciosa no Brasil e na América do Sul, sem mesmo que nós possamos nos dar conta inteiramente desse processo. O que está acontecendo na nossa geração é uma novidade. Nós estamos sepultando rivalidades que vêm de séculos, e criando novas áreas de aproximação. Isso é algo novo e que cobre não só aspectos econômicos, energéticos, cobre também aspectos políticos, naturalmente. Claro que os aspectos políticos e os aspectos militares são os mais delicados desse processo, como em qualquer processo de integração, de maneira que a gente tem que tomar muito cuidado quando a gente fala. Por que também isso? Porque o Brasil é um país grande comparado com seus vizinhos. Então, o Brasil aparece sempre como um país imenso. O professor [Ignacy] Sachs [sócio-economista nascido na Polônia (1927-), defende um conceito de desenvolvimento que combine geração de emprego e respeito ao meio ambiente - ver entrevista com Sachs no Roda Viva] chamou o Brasil de “país baleia”, por exemplo. E uma baleia, quando se mexe, os outros peixes se preocupam. Então, nós temos que ter uma posição cautelosa por essa lógica, em decorrência dessa lógica. No caso de Peru e Equador, é claro que a posição do Brasil vem respaldada pelo fato do Brasil ser um país de guarantee [que fornece garantias, fiador], como é a Argentina, como é o Chile, como é, são os EUA, não é, são uns dos guarantees, então nós temos uma clara missão aí juridicamente definida. No caso do Paraguai, o que acontece é que há hoje um compromisso democrático na América Latina, e no Mercosul, quer dizer, tanto na carta da OEA [Organização dos Estados Americanos], no artigo 18, quanto no Mercosul, depois desses eventos que houve no Paraguai no ano passado [referência à tentativa de golpe de Estado efetuada pelo então chefe do Exército paraguaio, o general Lino Oviedo], os países assumiram compromissos de democracia. É esse o quadro, nós estamos apostando na democracia como método de, um dos métodos de, não só de vida dos países, mas de aproximação entre os países. E é um pouco isso, quer dizer, nós temos evitado, cuidadosamente, nos expressarmos à maneira forte, por essas razões todas que eu lhe disse, nós temos procurado como governo, com diferentes autoridades, a examinar essa questão com cuidado, com cautela, mas deixando claro qual é a posição brasileira.

José Guilhon Albuquerque: Eu acho que eu faria um comentário aí dizendo que talvez o que há de mais criativo, de mais inovador, na nossa relação com o exterior seja justamente a reconstrução da nossa relação com a Argentina, e com os nossos vizinhos. Eu acho que nós devemos isso em grande parte à nossa diplomacia. Mas eu queria justamente ir um pouco na direção oposta, quer dizer, o que é que o Brasil, como país, poderia aspirar nessa nova reconstrução do reordenamento internacional que está em processo agora, quer dizer, seria, sobretudo, uma atuação de liderança regional, ou o Brasil tomaria parte, teria responsabilidade, portanto custos, na própria criação de uma nova ordem e na manutenção dessa ordem da paz internacional etc? Que custos isso representaria para nós, e que vantagens nós poderíamos ter? E que, digamos, papel nós podemos aspirar diante disso?

Ronaldo Sardenberg: Olha, eu creio que isso é um processo, essencialmente. Não é uma coisa que se resolva de um dia para o outro, ou de um ano para outro. Quer dizer, há uma certa tendência do Brasil ter uma participação maior no produto mundial, por exemplo, não é. Há esse relatório do Banco Mundial, do fim do ano passado, que supõe que o Brasil em quinze anos passe de uma participação da ordem de 1,5% do produto mundial para 2,3 ou 2,4%, o que é uma enormidade, considerando que nós estamos falando em termos percentuais. Naturalmente uma maior densidade econômica ajuda a criar uma maior densidade política, uma presença política mais forte, de maneira que isso aí me parece bastante claro, como me parece claro que o Brasil é um país que tem uma vocação, digamos, continental, para usar uma linguagem antiquada, portanto, de aproximação com os seus vizinhos, de aproximação na sua região, e uma vocação marítima, que é a nossa vocação global, que está expressa, entre outros aspectos, na pauta de nossas exportações, mas também de onde nós retiramos a ciência e a tecnologia, de onde nós retiramos os financiamentos, externos, no Brasil; não é isso? Então, não posso imaginar que o Brasil seja um país que vá se restringir à sua região em termos de relacionamento. Vai ter que se relacionar com todo mundo, até porque a nossa região, importante como é, não resolverá todos os nossos problemas de mercado, como nós estamos vendo. Se o Brasil acelerar a sua capacidade de exportar, para a região, em pouco tempo, se criarão problemas de saturação de mercados, como volta e meia a gente já ouve falar. Então, nós temos que contar com uma presença internacional mais ampla do Brasil. Há custos, sem dúvida há custos, como há benefícios, tanto da ordem econômica quanto de ordem política. É difícil dimensionar esses custos e esses benefícios. Agora, eu acho importante para nós, que estamos conversando hoje, que nós tenhamos presente que isso, uma maior presença internacional do Brasil, abre horizontes internos muito grandes também no Brasil. Quer dizer, é necessário reformar a burocracia, é necessário reformar a diplomacia, reformar as Forças Armadas, a academia, a imprensa, diferentes setores precisarão se reformar. Hoje nós vemos que nós estamos atrasados em termos de informações sobre o mundo. E para que nós possamos atuar bem em relação ao mundo, nós precisamos ter mais informações, estar mais informados, de uma maneira mais sistemática, termos mais gente treinada, mais gente formada nessas áreas, não é? Se não a globalização nos chega como algo importado, algo que vem do exterior, algo que nós recebemos passivamente. Então, para nós podermos ser ativos nesse processo, como você disse, participar da própria formação do ordenamento internacional, nós precisamos antes de mais nada de ter mais gente capaz de fazer isso.

José Guilhon Albuquerque: Não tem um pouco de retórica também envolvido nisso? Quer dizer, a nossa retórica tem sido sempre uma retórica muito de "bom mocismo", quer dizer, o Brasil tem, por graça de Deus, nossos interesses correspondem a princípios, e nós temos estabelecidos esses princípios...

Ronaldo Sardenberg: [...] Estados Unidos...

 José Guilhon Albuquerque: Lá é o contrário, os princípios correspondem aos interesses.

[Risos]

José Guilhon Albuquerque: Não é um pouco... começar a preparar a opinião pública para essa idéia de que nós temos sim interesses, e esses interesses nos levam a atuar de uma forma mais aberta. Não seria necessária uma retórica mais... franca?

Ronaldo Sardenberg: A gente vem discutindo esse tema há uns trinta anos...

[Risos]

Ronaldo Sardenberg: Mas deixa eu só dar uma resposta aqui. Eu acho que o problema que nós temos é essencial , porque é um problema de país grande, voltado para si mesmo. Um país que foi descoberto e era considerado uma ilha e de certa forma permaneceu uma ilha durante quatrocentos e tantos anos - não é? -, na cabeça, mentalmente. E agora que nós estamos vencendo isso, agora que nós estamos vencendo essas limitações, quer dizer, vamos esperar que a gente tenha êxito nesse processo, que nós não estejamos nos enganando, na medida em que nós estamos fazendo diferente do que nossos pais e avós fizeram, que nós tenhamos razão, que estejamos interpretando o que está se passando no mundo de uma forma correta. Eu acho que tudo o que a gente pode esperar é isso.

Luciano Suassuna: Eu queria era, enfim, explorar um pouco mais esse ponto aí do "bom mocismo" que o Guilhon tocou. Quer dizer, depois... até a redemocratização a gente tinha muito claramente quem eram, ou o governo tinha muito claramente, quais eram os adversários ou inimigos, internos e externos, como eram tratados no Conselho de Segurança Nacional, embrião da Secretaria de Assuntos Estratégicos, que o senhor administra hoje, e depois da redemocratização esse "bom mocismo" pareceu que ele veio à reboque, no fundo, de uma falta de opções. Não se sabia direito quais eram os interesses do Brasil, portanto, não se sabia quais eram os inimigos e os adversários. Hoje, nesse cenário que o senhor traça, objetivamente assim, quais são os inimigos do Brasil? Quais são os adversários? Em que áreas que o estudo do senhor determina que o governo deva se mexer?

Ronaldo Sardenberg: Olha, nós não estamos pensando em termos de relações de adversário, realmente, entende? O nosso problema é difícil sintetizar em meia dúzia de palavras mas, enfim, é nos relacionarmos corretamente com os distintos parceiros, e esses parceiros vão desde os Estados Unidos da América, país... principal país do mundo hoje, do ponto de vista político, econômico, tecnológico, cultural, se quiser, como um parceiro como Paraguai, onde são tantos interesses brasileiros, um país que tem tanto interesse no Brasil. Quer dizer, o nosso espectro, o nosso leque é muito amplo. Eu não vejo propriamente inimizades, relações adversárias, quer dizer, e acho que ninguém no mundo hoje, nenhum país está se conceituando dessa forma. Salvo o caso que nós conhecemos...

Luciano Suassuna: [Interrompendo] Sem dúvida, mas existem situações específicas. O senhor imagina, por exemplo, nesse trimestre recessivo que se teve agora, alguns milhares de pessoas perderam o emprego e elas creditam parte dessa perda do emprego ao aumento da taxa de juros que foi conseqüência de uma crise na Ásia. Então, o cara fala: "Meu inimigo é a Malásia.", "Meu inimigo é a Indonésia.". São situações novas que foram criadas e que resultam em prejuízo para a população brasileira.

Ronaldo Sardenberg: Olha, eu estou disposto até a examinar, mas nesse quadro a Ásia é inimiga de si mesmo, porque essa crise foi muito mais grave lá do que aqui, não é isso? Pelo contrário, aqui as previsões catastróficas não se realizaram, não houve o... não se tornaram práticas, na prática não ocorreram. Agora, é claro que nós vivemos numa estrutura competitiva mundial. Nós não somos bobos, não é isso? Quer dizer, não são só as empresas que competem, os países [enfatiza] competem também, e competem ferozmente, até dentro dos países como a gente sabe os estados competem entre si também. Mas então há esse problema de competitividade. Mas da competitividade não resulta, necessariamente, uma relação adversária, adversarial.  Em muitos casos podemos encontrar relações complementares, e aí é que está a sabedoria. Quer dizer, por isso que as autoridades e empresários viajam tanto, vão tanto aos países, porque vão buscar relações de complementaridade, relações de trabalho conjunto e não relações que se tornariam, pelo desconhecimento, quase fatalmente adversárias.

Matinas Suzuki: Embaixador, o Márcio Pires, de Três Corações, Minas Gerais, e o Messias Martins, também... de Campanha, também de Minas Gerais, perguntam: “Qual o plano para conter o desemprego no país, diante das novas tecnologias que tiram oportunidades de emprego, e qual a estratégia para combater o desemprego com automação crescente?”.

Ronaldo Sardenberg: Olha, é claro que há... mas enfim...

Matinas Suzuki: Se a secretaria do senhor está preocupada também em formular estratégias econômicas...

Ronaldo Sardenberg: Sim, sim. Mas nós não temos, digamos, uma cartola da qual nós possamos tirar coelhos, seguidos, um atrás do outro [faz o gesto de tirar coelhos da cartola sucessivamente]. Quer dizer, há uma tendência universal, mundial, em que aumenta a produtividade, por um lado, e cai o emprego, por outro, em termos genéricos, muito grandes. Nesse ... nesse grande espectro, o Brasil se inclui. Bom, o que é que a gente pode esperar nesta fase? Além da correção de situações tópicas, não é, de situações específicas de certos setores, a formação do pessoal a longo prazo, treinamento pessoal. O que é possível fazer no Brasil, por sorte nossa, neste momento, mas por grande deficiência no passado, a mão-de-obra tem um número... poucos anos de formação. Então é possível ainda melhorar a formação da mão-de-obra para que ela possa concorrer aos empregos que se vão criando em melhores condições, para que possa, pelo fato de ser uma mão-de-obra melhor treinada, atrair mais investimentos, tornar possíveis maiores investimentos. Então não há, digamos, um plano mágico que a gente possa fazer. Nos cenários que nós temos feito, nós fizemos um cenário que é um cenário de melhor distribuição de renda, e nós encontramos... Nós não conseguimos ainda um cenário que correspondesse a um Brasil ideal. Acho que jamais conseguiremos. Quer dizer, um cenário em que fosse, assim, uma espécie de um grande desfile de escola de samba e que essa escola tirasse nota 10 em todos os quesitos: tivesse a melhor tecnologia do mundo, mais industrializada, maior emprego, pleno respeito ao meio ambiente, totalmente educada etc. Nós ainda não encontramos essa fórmula, duvido que alguém encontre. Mas sim...

Matinas Suzuki: [Interrompendo] Mas se tirar 10 em dois ou três quesitos, aí já...

Ronaldo Sardenberg: Exatamente...

[Risos]

Matinas Suzuki: ... seria bom.

[Risos]

Ronaldo Sardenberg: Exato. E aí nós vamos ter que ter um debate nacional sobre as ênfases. As ênfases que nós queremos dar. Uma das ênfases que hoje claramente está em pauta é a ênfase do emprego.

Roberto Giannetti Fonseca: Embaixador, eu participei com o senhor aqui numa reunião em setembro, no escritório do BNDS [Banco Nacional de Desenvolvimento Social] em São Paulo, junto com o ministro Antônio Kandir [economista (1953-), foi ministro do Planejamento durante o governo Fernando Henrique], onde os senhores apresentaram para os empresários, um grupo de empresários que foram reunidos, exatamente o cenário, os três cenários para o Brasil 2020. E eu me recordo, eu mesmo fiz uma crítica naquela reunião de que eu julgava que a política econômica vigente. - que... por uma taxa de câmbio sobrevalorizada e uma alta taxa de juros - estava criando uma vulnerabilidade excessiva do Brasil às crises externas. E também isso era uma restrição ao crescimento econômico. Eu acho [que é] um fato que nenhum economista em sã consciência nega, que o problema hoje do desenvolvimento econômico do Brasil passa por um ajuste das contas externas. E o senhor se lembra que foi um debate até, de certa forma, acalorado, que o governo defende com muita veemência a questão da política cambial, que nós acreditamos equivocada, da origem do Plano Real, e que essa é a restrição que tem levado ao desemprego e à vulnerabilidade externa. Eu sei que é um tema delicado, mas eu gostaria que o senhor comentasse se isso não é uma questão que está levando a esse nível extravagante de desemprego, tão entristecedor para a sociedade brasileira.

Ronaldo Sardenberg: Olha, os cenários que foram discutidos na ocasião foram cenários do BNDE [antigo nome do BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, ao qual Ronaldo Sardenberg quis se referir], não é?

Roberto Giannetti Fonseca: É do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada].

Ronaldo Sardenberg: Ah, do Ipea. Perdão, do Ipea, e houve realmente uma discussão acalorada. Há um grande ... uma grande... um grande cuidado toda vez que se trata... que se fala de taxa cambial, é óbvio, né? Inclusive porque em tempos recentes não há desvalorização cambial, não tem havido exemplos de desvalorização cambial controlada, e eu creio que isso aí é um obstáculo importante. Agora, há uma percepção de que o Real [nome dado à moeda corrente brasileira após o Plano Real] se desvaloriza gradualmente, e que... Até me ocorreu outro dia que se nós pensarmos em termos não de um ano, mas em termos de três ou quatro, essa desvalorização, nesse ritmo, seria muito significativa, de maneira que eu não sou economista, sou formado em direito, tenho uma certa relutância em entrar nesse tipo de debate, mas eu entendo que o Real, dentro da política atual hoje, vai gradualmente se desvalorizar, acompanhando a desvalorização mundial.

Matinas Suzuki: Embaixador, nós vamos fazer um pequeno intervalo e a gente volta daqui a pouco com segunda parte da entrevista com o embaixador Ronaldo Sardenberg, Secretário dos Assuntos Estratégicos do governo. Até já.

[intervalo]

Matinas Suzuki: Nós estamos de volta com o Roda Viva, que entrevista esta noite o embaixador Ronaldo Sardenberg, secretário dos Assuntos Estratégicos. Você também pode participar deste programa fazendo suas perguntas pelo telefone 011 252-6525. Se você preferir o fax, o nosso número aqui, em São Paulo, é o 011 3874-3454, e na Internet o nosso endereço é rodaviva@tvcultura.com.br. Embaixador, o Eliézer  Rizzo de Oliveira, que eu suponho que seja do mesmo grupo do coronel Cavagnari, do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Unicamp, pergunta o seguinte: “Considerando que o presidente vai criar o Ministério da Defesa, pergunto: 1) qual deverá ser o formato do Ministério?”; 2) quais as vantagens sobre a organização dos ministérios militares na preparação militar para a defesa?”.

Ronaldo Sardenberg: Muito bem. O formato está sendo discutido neste momento por uma comissão informal de ministros militares, ministro do Exterior, o chefe da Casa Civil [Clóvis Carvalho], e eu mesmo. De maneira que é um assunto ainda em andamento e nós estamos examinando um conjunto de idéias e grandes atividades para ver como elas podem ser integradas no contexto do Ministério da Defesa. Nós estamos encerrando, digamos assim, a fase técnica, e vamos passar então à fase mais política de análise do que os peritos nos indicarem. Então esse é o ponto que nós estamos neste momento. Quanto a... ao que o Ministério da Defesa pode trazer, eu acho que o Ministério da Defesa só se justifica se ele puder trazer algo  mais. Algo de novo. E ele se justifica. O presidente inclusive já decidiu que o Ministério da Defesa será criado este ano. Esse algo mais é coordenação, essencialmente, é um estímulo à interoperabilidade das forças, ou seja, integração maior em suas atividades. E, talvez, provavelmente, eu creio, que o Ministério da Defesa possa ser um bom veículo para tornar melhor, ainda melhor, no caso, o diálogo que hoje existe entre civis e militares no Brasil. Eu acho que esse é o caminho do Ministério da Defesa.

Marcelo Beraba: Qual o perfil ideal para esse futuro ministro?

Ronaldo Sardenberg: É uma pessoa que tenha a confiança do presidente da República.

[Risos]

Luciano Suassuna: Existe alguma possibilidade de o senhor ser o ministro da Defesa?

Ronaldo Sardenberg: Ou de exercer qualquer outro cargo, não necessariamente no Ministério da Defesa. Eu sou funcionário público, eu sou diplomata, eu tenho 35 anos de carreira, de maneira que…

[...]: Embaixador...

Luciano Suassuna: Essa criação do ministério da Defesa, ela também levaria a uma redução dos quadros das Forças Armadas?

Ronaldo Sardenberg: Eu não sei, isso é um tema que vai se colocar no tempo. Eu acho que nós temos que ter presente que a defesa é um campo muito peculiar, que é um campo em que o país tem que contar essencialmente com seus próprios recursos, de forma autônoma, ou independente. Então, esse é um aspecto. Outro aspecto é que o nosso quadro militar, embora pareça grande, se ele for examinado do ponto de vista de Produto Interno Bruto, porcentagem do Produto Interno Bruto, população ou território, ele é relativamente pequeno, de maneira que eu não partiria imediatamente para a idéia de que deve ser reduzido. Agora, ele deve sim ser o melhor possível dentro dos recursos existentes, deve ser suficiente, digamos assim, e trabalhar dentro dos recursos existentes. Então eu acho que essa questão, se haverá uma redução ou  se não haverá uma redução, é uma questão a ser colocada no tempo. O que não haverá seguramente no Ministério da Defesa é um acréscimo, necessariamente, um acréscimo necessário. Quer dizer, a defesa não será uma despesa adicional.

[Sobreposição de vozes]

Luciano Suassuna: Só uma perguntinha rápida: haverá uma força comum do Mercosul, depois da criação do Ministério da Defesa? E, nesse caso, quando ela viria?

Ronaldo Sardenberg: Em algum momento eu disse que as questões políticas e militares, em termos de integração regional, são as mais delicadas. E eu diria até que as questões militares são mais delicadas que as políticas.

Luciano Suassuna: Por quê?

Ronaldo Sardenberg: Porque as questões militares envolvem força, e as políticas envolvem apenas persuasão. Portanto são duas esferas, ambas delicadas, mas eu creio que a que envolve força é a mais delicada. Então, eu não acho que esteja em pauta essa questão neste momento, como tal. É claro que haverá pessoas que têm temperamentalmente a disposição para cruzar as pontes antes de chegar a elas. Eu não sou dessas pessoas. Eu procuro chegar às pontes quando... cruzar as pontes quando eu chego a elas. De maneira que eu tenho uma certa dificuldade de considerar em abstrato esse tipo de colocação. Entende?

Roberto Giannetti Fonseca: Embaixador Sardenberg, a questão da participação do Brasil no Conselho de Segurança da ONU era uma questão que estava muito viva há uns três, quatro meses atrás, e nós não temos escutado mais falar sobre esse assunto. Eu gostaria que o senhor nos atualizasse. E, segundo, qual seriam as vantagens para o Brasil nessa participação e se isso vai implicar na maior participação de tropas brasileiras nas forças da ONU, por exemplo, de pacificação na... por exemplo, na Bósnia, ou em alguns outros conflitos mundiais que por acaso ocorram.

Ronaldo Sardenberg: Olha... Essa questão é uma questão permanente no contexto das Nações Unidas. Eu, quando cheguei nas Nações Unidas, em 1990, já tem oito anos, eu participava de reuniões, na ocasião era o Brasil, a Índia... a Alemanha; Brasil, Índia e Alemanha, sobre esse tema, que é um tema fascinante. Mas ela amadurece de acordo com a ONU, com o que ocorre na ONU, ela não existe, digamos, em abstrato, quer dizer, não basta um só país estar mais ou menos interessado para levar essa questão ao amadurecimento, ela exige um determinado ambiente político que ainda não se formou. É por isso que não se tem falado tão intensamente. Participação em tropas da ONU é, enfim, stricto sensu, as tropas da ONU são aquelas operações de paz que são autorizadas e conduzidas pelo Conselho de Segurança. Nisso o Brasil tem participado, o Brasil voltou a participar com tropas, nossa presença, por exemplo, em Angola, foi a mais importante que nós já tivemos, maior mesmo do que a nossa participação no Oriente Médio, três décadas atrás. De maneira que não há nenhuma, digamos, restrição de princípio, no Brasil, a que o Brasil participe desse tipo de atividade. Agora, outro tipo de operação são essas operações multinacionais, como ocorreu no Iraque, ou operações, digamos, encomendadas, como é muito o caso dessas que estão ocorrendo na Iugoslávia, encomendadas, no caso, à Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte]. E aí isso é uma matéria de decisão política, caso a caso, não é? Não há, digamos, uma correlação direta entre isso e a participação de um país como membro permanente do Conselho. Você pode ser membro permanente do Conselho e nem por isso participar de uma operação. Mas há, sim, uma correlação indireta.

José Guilhon Albuquerque: Nós, falando ainda agora sobre inimigos e as possíveis alianças etc, e acho que você frisou muito bem, com muita propriedade, que não há mais lugar para polarizações, há muito mais para a complementaridade no mundo de hoje. Entretanto, nós temos um cenário possível de uma nova polarização, quer dizer, se há um país que, pela sua dimensão, pelo seu passado, que tem uma afirmação nacional e  uma vocação global, digamos, e que tem força militar para isso é a China. Seria... a única possibilidade de um cenário de polarização seria uma polarização em que a China desafiasse, digamos, o poderio [norte-]americano e atraísse uma aliança ou do ponto de vista militar ou político, econômico, contrário. Muito bem, é uma situação que pode vir a se definir, na qual nós temos... não só regionalmente pertencemos aos Estados Unidos, como temos uma grande competição comercial com relação à China etc. Entretanto, uma das coisas que nós insistimos muitas vezes é interpretar algumas parcerias pontuais que nós temos com a China, sobre questões específicas, como sendo uma parceria estratégica. Seria possível nós pensarmos numa parceria estratégica numa situação de possível polarização, em que nós pertencemos a uma das duas regiões, que estariam mais ou menos imprensados numa situação como essa? Como é que você…

Ronaldo Sardenberg: Olha, primeiro eu acho que os EUA e a China não estão buscando uma polarização. Isso pode vir a ocorrer mas não é necessário e não faz parte da política de ambos, pelo contrário, eles têm buscado uma aproximação, em termos de visitas no mais alto nível, e de buscar um relacionamento, inclusive, do ponto de vista tecnológico - não é? -, a autorização do governo americano para exportação de alta tecnologia para a China, que é um bom indicador. Eu não vejo esses problemas colocados, pelo menos, de imediato. Eu vejo que ainda há uma grande interrogação sobre o êxito da China de se transformar de uma potência regional em uma potência mundial. Isso ainda é algo a ser discutido. Eu acho inclusive que o processo que está ocorrendo agora na China, de aceleração das reformas, por assim dizer, é uma reação com relação ao que aconteceu no resto da Ásia, que teve reflexos fortes sobre a China - porque grande parte dos investidores no sudeste asiático eram as próprias minorias chinesas, essa diáspora chinesa que tem um produto comparável ao produto brasileiro, [...] a diáspora chinesa, na Ásia e fora da Ásia - mas que foi uma reação da China a isso e que mostra que o que governo chinês deseja é preservar essa possibilidade de transitar, de passar para a esfera global. Eu acho que isso é claro. Agora, até que ponto isso vai contra os interesses dos Estados Unidos eu não sei. Eu acho que a gente está numa situação, assim, como se fosse no século XVI, depois das grandes descobertas, que nós tivéssemos que apostar num cavalo. Portugal, Espanha, Inglaterra, França, Itália… Quem sairia na frente da globalização daquele tempo? Quem se transformaria realmente em potência global para valer? Pouca gente jogaria na Inglaterra - não é? -, que foi quem ganhou.

Roberto Giannetti Fonseca: Se por um lado a China tem despertado esse interesse pelo investimento estrangeiro e tem sido um país com um crescimento econômico notável, as reformas estruturais que estão ocorrendo, é um país que ainda sofre fortes restrições ainda na OMC [Organização Mundial do Comércio] e na Organização Internacional do Trabalho, a Organização Mundial do Comércio e a Organização Internacional do Trabalho, pelas práticas até inaceitáveis de trabalho e de comércio que a China, de certa forma, pratica. O senhor não acha que tem uma tolerância excessiva dos Estados Unidos, eu diria até discriminatória em relação aos outros países, pois aceita com certa benevolência essa atitude da China por, exatamente, ela ser uma potência emergente e ele sabe que não pode confrontar a China de uma forma mais ríspida?

Ronaldo Sardenberg: A China realmente é um dos grandes mercados, como o Brasil é um dos grandes mercados.

[...]: [Interrompendo] E um mercado nuclear...

Ronaldo Sardenberg: E eu acho que a dificuldade aí está em que, é difícil ser... afirmasse uma tolerância com relação a quem é excluído - não é? -, no caso, excluído da OMC, como a China é excluída da OMC. Eu acho que a maneira de fazer com que a China se conforme às regras comerciais internacionais, multilaterais, é trazer a China para dentro da OMC. Eu acho que... eu espero que isso venha ocorrer e que isso leve à reforma da China nesse aspecto específico. E eu queria mencionar um ponto ainda, que a cooperação com a China pode ser pontual, mas em certos aspectos é muito importante. Essa série de satélites de sensoriamento remoto que está sendo desenvolvida com a China, quatro satélites, é uma série em que vai sendo incorporada gradualmente cada vez tecnologia mais aperfeiçoada, com uma imagem, uma resolução cada vez melhor. Hoje é da ordem de 30, 40 metros, será de um metro no último satélite da série.

Matinas Suzuki: Embaixador, o Rogério Moziman, que é jornalista de Florianópolis, pergunta: “Que resultados o Brasil pode esperar do encontro presidencial a ser realizado na próxima semana em Santiago, [Sardenberg sorri] onde serão lançadas as negociações formais para a criação da Área de Livre Comércio das Américas, a Alca?”. E o Pablo Viana Pacheco, de Alfenas, Minas Gerais - temos aqui uma boa participação de Minas Gerais hoje -, [pergunta]: “Quais as vantagens e desvantagens do Brasil  [ao] aderir à Alca?”.

Ronaldo Sardenberg: Olha, são... estas perguntas são aquelas do "céu é o limite", né? Quer dizer...

[Risos]

Matinas Suzuki: Mas o que seria interessante explicar, talvez, é por que [é] que o... se há alguma mudança do Brasil com relação à Alca, se essa mudança...

Ronaldo Sardenberg: Olha, eu não entraria nisso assim tão diretamente, mas eu digo que, do meu ponto de vista, pelo menos, eu sempre entendi essa questão como uma questão de negociação, quer dizer, e eu acho que houve um passo importante por parte dos Estados Unidos nesse plano, por ocasião da visita do presidente Clinton [Bill Clinton (1946-), presidente dos Estados Unidos entre os anos de 1993 e 2001], quando ficou admitido que o Mercosul é um parceiro. E isso foi confirmado agora, na reunião de Costa Rica, em nível de chanceleres, em que houve uma série de entendimentos práticos sobre como se conduzirão as negociações.

Matinas Suzuki: Quem recuou mais, o Brasil ou os Estados Unidos, nessa questão?

Ronaldo Sardenberg: Eu não sei se é comparável, ou se é possível medir isso em centímetros, ou em metros, ou em quilômetros ou em milhas [medida itinerária inglesa e norte-americana equivalente a 1.609 metros], não é? Jardas [unidade de comprimento do sistema inglês equivalente a 3 pés ou 0,9144 metros] e milhas ...

[...]: Talvez em cifrões, não?

 Ronaldo Sardenberg: Ou em cifrões...

[Risos]

Ronaldo Sardenberg: Eu acho difícil, mas eu acho que está havendo um processo gradual de acomodação. É claro que nós temos um interesse muito grande que é o de ter acesso ao mercado americano. Isso é um ponto fundamental: o principal mercado mundial hoje. E todos nós sabemos como é deficiente o acesso brasileiro ao mercado americano. Agora, o resto são negociações, são as modalidades de acesso, as distintas as modalidades de acesso, as distintas fatias dessa negociação e os distintos momentos em que a negociação se fecha. São processos, é difícil dizer. Eu não saberia dizer o que vai... prever, eu acho que dificilmente alguém preverá o que vai precisamente acontecer em Santiago. Eu posso dizer sim que hoje há mais otimismo do que antes da visita do presidente Clinton e antes da reunião da Costa Rica, que acabou de se encerrar.

José Guilhon Albuquerque: Será que não houve uma mudança de agenda, quer dizer, mais do que propriamente de recurso, quer dizer, no fundo os dois grandes parceiros, que são Estados Unidos e Brasil, concordaram em botar ênfase mais em uma política social comum, uma política... Por exemplo, a questão da educação no continente...

Ronaldo Sardenberg: Isso, nós já vínhamos conversando com os americanos sobre isso. Essa idéia, na realidade, é uma idéia brasileira. A idéia de que nós deveríamos dar mais ênfase à educação, nesse processo, baseado um pouco nisso: de que a educação é o passaporte para o futuro. Nós temos... a maior parte da nossa conversa aqui é sobre o presente, mas nós temos que ter cuidado e preocupação também com o futuro. E o caminho do Brasil e o futuro do Brasil estão na educação. Se nós não conseguirmos vencer a barreira educacional que nos aflige, dificilmente nós poderemos realizar todos esses sonhos sobre os quais nós falamos hoje aqui.

Matinas Suzuki: Agora, sobre esse aspecto, embaixador, o pessoal da universidade está bravo com o governo. A professora... o professor Amauri Ferreira Júnior, da Universidade Federal de São Carlos, pergunta: “Qual a política do governo para a ciência e a tecnologia no contexto da globalização, partindo do pressuposto de que o Ministério da Educação está sucateando as universidades públicas, que são responsáveis por 85% das pesquisas realizadas no Brasil?”. E o Jaime Coelho, de Campinas: “Como o secretário de Assuntos Estratégicos vê o crescente sucateamento do ensino nas grandes universidades brasileiras?”.

Ronaldo Sardenberg: Eu não concordaria com o crescente sucateamento do ensino nas universidades brasileiras não, quer dizer, eu acho que, pelo contrário, o que domina na opinião pública é a idéia de que está havendo um progresso nessa área, como não houve em ocasiões anteriores. Agora, a política de ciência e tecnologia é o seguinte: quando esse governo começou o Brasil estava aplicando em ciência e tecnologia [algo] da ordem de 0,7% do PIB, e o plano plurianual era para passar de 0,7% para 1,5% em quatro anos, foi objeto de grandes críticas porque os países desenvolvidos aplicam entre 2 e 3%. Evidentemente era impossível passar de 0,7% para 2% em quatro anos. Que eu saiba, segundo a minha informação, hoje em dia nós estamos aplicando [um montante] da ordem de 1,1% do PIB em ciência e tecnologia, e que há um interesse em que a iniciativa privada e os investidores estrangeiros participem mais desse processo. Hoje... Em [19]95 participavam da ordem de 10%, e 90% eram despesa governamental. Hoje a despesa governamental está da ordem de 70%, e 30% vêm da iniciativa privada e de recursos externos. Então, eu acho que é esse o panorama, quer dizer, há algum progresso, é preciso continuar. A outra capa do passaporte para o futuro é a ciência e a tecnologia, se nós fracassarmos hoje...

[...]: Agora embaixador... Matinas...

[Sobreposição de vozes]

Matinas Suzuki: [Interrompendo] Só [um instante]... O telespectador Augusto Santos, aqui, diz o seguinte, que o governo cortou 50%... Ele diz: “Olha, como o senhor pode falar em estratégia em longo prazo se o governo realizou um corte brutal no sistema de bolsas para pesquisa no Brasil, em órgãos como a Capes e CNPq [que] reduziram em quase 50% o volume de recursos?”.

Marcelo Beraba: Eu acrescentaria embaixador, a questão agora, por exemplo, como o senhor... as universidades estão em greve. Começaram as aulas agora, [e] as universidades federais, pelo menos as do Rio de Janeiro, a UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], UFF [Universidade Federal Fluminense], não têm professores para começar as aulas.

Ronaldo Sardenberg: Há greves parciais, sim, sem dúvida.

Marcelo Beraba: Não. Falta de professor. Quer dizer, além da questão de salário, falta de professor. Não é uma situação...

José Guilhon Albuquerque: Não creio que haja falta de professores.

Marcelo Beraba: Hein?

José Guilhon Albuquerque: Não creio que haja falta de professores...

 Marcelo Beraba: Então o que [é] que seria?

Ronaldo Sardenberg: Salário!

[Alguns instantes de silêncio]

Marcelo Beraba: Enfim, é uma situação de crise.

[Sobreposição de vozes]

Ronaldo Sardenberg: [...] pessoas mais qualificadas do que eu. Eu sei que parte dos cortes deriva da própria necessidade de equilibrar as... os... as contas públicas, no contexto da crise asiática. Esse é um fato. Agora, claro que há problemas. Nós não vamos nos iludir, imaginar que não há problemas. Evidentemente há problemas. Mas que eu sigo com a observação de que está na educação e na ciência e na tecnologia o futuro, isso eu acho que é óbvio, e que esse é um problema não apenas estatal, mas também um problema da sociedade.

Antônio Sampaio de Carvalho: Eu queria voltar a uma questão mais simples do que essas de "céu é o limite", como o senhor disse aí. Na década de 70 alguns minerais brasileiros eram considerados estratégicos. Vieram... uma maneira de dificultar a sua exploração. Este conceito está superado e o próprio Ministério das Minas [e Energia] considera os minerais como mercadorias, commodities. Entretanto ainda resta o monopólio dos minerais atômicos, e parece que com a globalização e com essa diferença que o mundo fez nestes últimos anos, que também está existindo muito interesse na exploração mineral, especialmente do urânio. Recentemente, no mês passado, eu fui perguntado sobre esse assunto no exterior. Então, qual é a posição que se pode antever de... dessa questão do monopólio dos minerais atômicos e a sua eventual mudança e a sua liberalização?

Ronaldo Sardenberg: Olha, o problema hoje é que a pesquisa no Brasil, de urânio, se restringe, se restringiu, até agora a menos de 17% do território nacional. Então há um conhecimento impreciso das nossas capacidades em matéria de urânio. Até muito recentemente, o que se imaginava era um quadro de escassez de urânio. Agora, enfim, há dúvidas.  Mas é preciso primeiro fazer as pesquisas, pesquisar mais para então podermos buscar uma política nova. Eu acho muito difícil mudar a política se nós ainda não temos os dados essenciais quanto à disponibilidade de urânio. Claro que isso vai estar correlacionado também com o tamanho do programa nuclear brasileiro, que é um outro tema que nós temos que abordar. Qual é o tamanho, quer dizer, o que nós vamos consumir de urânio, quer dizer, por um lado nós temos que saber melhor o que é que nós temos e, por outro, o que é que nós vamos consumir, e, a partir daí, então, podemos começar a conversar. Antes disso não dá.

Antônio Sampaio de Carvalho: Mas o mundo tem disponibilidade de urânio e a pesquisa mineral para identificar e chegar a uma quantificação, ela é caríssima, muito difícil e sem a iniciativa privada possivelmente nós não vamos conseguir, num certo prazo, verificar esse tamanho. Quer dizer, sendo monopólio, tendo as dificuldades, a iniciativa privada não vai fazer o seu investimento nessa área, quer dizer, como sair desse verdadeiro nó, que é...?

Ronaldo Sardenberg: É, sem dúvida esse é um nó, mas eu creio que o problema básico é o problema da pesquisa, porque sem a pesquisa realmente é impossível tomar uma decisão em sã consciência. Eu entendo o seu ponto, quer dizer, quem faz a pesquisa.

Antônio Sampaio de Carvalho: Quem faz a pesquisa? Quem gasta o dinheiro da pesquisa?

Ronaldo Sardenberg: Exatamente. Eu entendo esse ponto, quer dizer, pode se buscar fórmulas aí para que... associar a iniciativa privada na pesquisa. Claro que quando nós... se fala nesse tema, imediatamente a iniciativa privada quer a lavra, que o direito à lavra venha junto, e aí começa uma polêmica que vai além do aspecto comercial e entram outros aspectos.

Roberto Giannetti Fonseca: E por sinal, embaixador, qual será o destino das usinas nucleares diante da privatização do sistema elétrico brasileiro?

Ronaldo Sardenberg: A perspectiva é que as usinas continuem em mãos do Estado, porque elas produzem energia a custos mais altos do que as usinas hidroelétricas. Essa é que é a perspectiva. Hoje em dia há uma usina em funcionamento, que era conhecida como usina vaga-lume Angra 1 [alguns risos], e hoje funciona desde dezembro de [19]94 praticamente ininterruptamente. O maior problema nuclear da usina Angra 1 é a estrada de acesso a Angra, que volta e meia despenca, cai devido às chuvas. A usina Angra 2 está em processo de... de construção, ela vai fazer o teste de vapor em setembro deste ano e o teste final, nuclear, em março do ano que vem, quer dizer, no primeiro semestre do ano que vem ela estará funcionando, então, é isso que existe hoje.

Roberto Giannetti Fonseca: Mas elas continuam subordinadas à Furnas [empresa da administração indireta do governo federal, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, que conta com um complexo de 11 usinas hidrelétricas e duas termelétricas, representando10% da geração de energia do Brasil]?

Ronaldo Sardenberg: Elas estão subordinadas a uma companhia chamada Eletronuclear, que é sucessora de Furnas.

Matinas Suzuki.: Coronel.

Geraldo Cavagnari: Embaixador, eu vou voltar à questão da ciência e tecnologia. Quer dizer, que hoje o Estado banca, o setor público banca 70% da pesquisa, do desenvolvimento tecnológico, 30% está com o setor privado. E as multinacionais, qual é a participação delas nisso?

Ronaldo Sardenberg: Ah, eu não tenho esse número, não.

Geraldo Cavagnari: Porque eu tenho minha dúvida de que a multinacional venha... transfira para cá o desenvolvimento tecnológico.

Ronaldo Sardenberg: Eu também tenho.

Geraldo Cavagnari: E tenho minha dúvida da capacidade do nosso setor privado de bancar 30% desse desenvolvimento tecnológico.

Ronaldo Sardenberg: Olha, esse crescimento que houve nesses últimos anos foi basicamente do setor privado e não do setor.. em termos relativos... O setor privado brasileiro e estrangeiro. Quanto às multinacionais há um problema. Esse é um problema geral do trato com relação às multinacionais, quer dizer, há certas atividades que elas tendem a ser concentradas nas sedes. A ciência e tecnologia é uma delas. Mas há outras, há o planejamento da companhia, os aspectos financeiros, aspectos até de comercialização, empacotamento, a definição de embalagem, coisas desse tipo - não é? -, que são muitas vezes serviços essenciais para o funcionamento de uma multinacional, de maneira que há esse problema. É claro que o modo de combater isso é dar certos incentivos aqui para que essas... para que sejam feitos os investimentos, o que é feito: há duas leis - não é isso? - que permitem, que facilitam os investimentos na área de ciência e tecnologia e que têm sido usadas.

José Guilhon Albuquerque: Porque há um problema de cultura de ciência e tecnologia eu acho, quer dizer, além dessa questão da desproporção, quer dizer, não é possível esperar que 90% venham do setor público, há uma tendência em concentrar isso em pesquisa básica, com o que eu estou de acordo porque eu vivo da pesquisa básica. Mas evidentemente que a pesquisa básica não se transforma em tecnologia e nem em pesquisa de desenvolvimento automaticamente. Ela precisa ter um interesse privado próximo disso. E há um aspecto aqui [que o de que] não há, digamos, uma cultura da empresa privada brasileira de investir, por uma série de razões, inclusive pelo nosso modelo de desenvolvimento. Então, eu acho que, pelo que eu estou informado, quer dizer, digamos, a estratégia governamental está indo nessa direção de atrair cada vez mais investimentos privados, criar algumas formas de subsídios, e criar parcerias etc. Por exemplo, aqui em São Paulo, a Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo] tem alguns projetos extremamente bem sucedidos. E elas estão também fazendo parcerias até com empresas estrangeiras que estão fazendo pesquisa aqui. Não sei, como é que você espera que essa coisa avance? Nós vamos conseguir mudar essa cultura de não investir em ciência e tecnologia? Só para dar um exemplo, tem uma pesquisa recente agora, com 800 empresários em São Paulo, como é que eles reagiram à abertura, como é que eles reagiram à estabilização etc, fazendo mudanças internas. Apenas 1% mencionou que fez investimento em ciência e tecnologia, 1%. Quer dizer, é um dado...

Ronaldo Sardenberg: É, isso será uma luta, não é? Porque esse é um fator de competitividade. Antigamente não havia esse tipo de mentalidade porque o mercado era fechado, muito cartelizado, fechado, então não havia razão para investir em ciência e tecnologia. Só um doido investiria se você tem o domínio do mercado. Hoje em dia , em que você traz competidores estrangeiros, que se abre a economia para o exterior, a maneira que as companhias nacionais têm de sobreviver, de lutar e ganhar, e prosperar é... uma delas, é trabalhar com ciência e com tecnologia, melhorar sua tecnologia, se associarem entre si até para essa finalidade. De maneira que o caminho é esse... Faz parte, digamos, de um quadro mais amplo de mudança econômica - não é? - que vai além do Brasil. Um quadro que é um quadro internacional, na verdade.

Marcelo Beraba: Embaixador, qual o papel e a importância que tem o serviço de informação e inteligência hoje para o governo Fernando Henrique, para as suas concepções de Estado e...

Ronaldo Sardenberg: Olha, desde o primeiro dia do governo esse setor saiu da Secretaria de Assuntos Estratégicos, [...] um entendimento. Agora, esse setor está em processo de reorganização. Com a criação da Abin [Agência Brasileira de Inteligência, criada com o objetivo de investigar potenciais situações de ameaça e defender o Estado], que é um projeto que está no Congresso e naturalmente se tornará cada vez mais importante, na medida em que esse processo se conclua e a Abin possa finalmente ganhar vida própria. Aí nós estamos passando por uma mudança muito grande no Brasil, e é natural que o serviço de inteligência, que o setores de inteligência também passem por essa mudança. Eles vão ter que se tecnificar, vão ter que demonstrar serviços com relação a esses problemas que nós temos com relação ao futuro do país. Isso eu acho óbvio, eu acho bastante claro.

José Guilhon Albuquerque: Bom, uma questão, eu não sei se ela pode ser entendida como estratégica, mas a questão das reformas institucionais internas, quer dizer, o fato de que nós temos um sistema eleitoral que tem dificuldade de produzir uma maioria homogênea, o fato de que nós tenhamos um sistema partidário que, de certa forma, vai à contra-corrente de uma lealdade governamental, o fato de que nós não tenhamos uma cultura de responsabilidade entre os eleitos e a população, tudo isso evidentemente tem sido um obstáculo, uma série de obstáculos crescentes para a estabilidade política. Nós podemos considerar, digamos, um esforço concentrado em mudança institucional, sobretudo nessas questões, como um passo para chegar em 2020?

Ronaldo Sardenberg: Eu acho que, sem dúvida. Agora, não creio que este ano, não é? Quer dizer, eu acho que este ano é um ano particularmente infeliz para tratar este tipo de tema, porque é um ano eleitoral e, realmente, seria impossível esperar objetividade de todos os parceiros e até de nós mesmos, não é? Mas ano que vem eu acho que seria o momento ideal para isso, o começo de um novo mandato. Eu acho que no ano que vem essa questão será crucial, se colocará de forma crucial a definição dos rumos institucionais da política brasileira, sem dúvida.

Matinas Suzuki: Eu gostaria de fazer... voltar um pouco na sua biografia. O senhor esteve algum tempo em Moscou, e num período bastante importante da evolução do Estado da ex-União Soviética e essa coisa toda, e as conseqüências para o futuro. Havia muita esperança naquela parte do mundo a partir do momento em que o processo de abertura chegou ao leste europeu e essa coisa toda. E esse processo está sendo bem mais complicado do que se imaginava, inclusive, para o nosso pedaço aqui, a América Latina, anunciavam-se tempos ruins, dizia-se que a mão-de-obra daquele lado do mundo era melhor preparada, tinha maior qualificação, que os investimentos deveriam ser direcionados para aquele setor. Que análise o senhor faz hoje do contexto do leste europeu, um pouco mais geral, mas especificamente da questão da Rússia que o senhor acompanhou mais de perto?

Ronaldo Sardenberg: Olha, eu fiquei quatro anos e onze meses na Rússia, e cheguei na Rússia justamente no momento que Gorbachev estava assumindo o governo, não é? E foi um momento muito rico. Evidentemente, havia muita esperança na Rússia, na União Soviética naquela ocasião, em que os problemas pudessem ser resolvidos. Até certo ponto houve um avanço importante, houve um avanço importante em termos políticos, e na área econômica, enfim, na área de gerenciamento da economia foi o desastre que se conheceu. Hoje em dia a situação é muito, muito difícil de analisar. Eu, pessoalmente, acho que a Rússia é um grande país, é uma grande civilização. Essa é minha visão, decorrente um pouco da vivência que lá tive. Eu nunca imaginei que fosse fácil o caminho. Eu acho que houve uma superestimação muito grande, de que em dois, três anos um país que não tinha nenhuma tradição capitalista, e a tradição capitalista que tinha era de antes da Primeira Guerra, pudesse se transformar no capitalismo padrão; e que os elementos mais ativos do país, que estavam vivendo basicamente na ilegalidade, uma vez passado, mudado o regime, que esses elementos se comportariam de uma forma legal etc. Isso, dentro da legalidade. Isso não ocorreu. Então, nesse momento há uma grande indefinição com relação à Rússia, eu creio, há uma certa apreensão. A esperança maior que se pode ter no fundo é, digamos, essa... eu hesito em qualificar, mas uma relação quase mística que existe entre o Yeltsin [Boris Yeltsin (1931-2007), governou a Rússia de 1991 a 1999, tendo sido o primeiro presidente após a dissolução da União Soviética] e o povo russo, como se ele expressasse a alma russa. Simplificando muito, se podia dizer que o Gorbachev expressava, digamos, a racionalidade russa [risos], [e] deu no que deu, e o Gorbachev sempre teve uma capacidade de captar o que o povo queria. Talvez isso venha... continue a acontecer ou venha a acontecer na próxima etapa, mas nesse momento houve uma grande surpresa com o que se passou lá.

Roberto Giannetti Fonseca: E o pós Yeltsin, o senhor tem alguma previsão [do] que é que pode?

Ronaldo Sardenberg: Acho que isso ninguém sabe...

Roberto Giannetti Fonseca: É uma boa pergunta...

[Risos]

Ronaldo Sardenberg: Eu sei que há brasileiros que conhecem bastante a Rússia, não é? Inclusive na área financeira, que têm operado lá. Talvez esse pessoal que está tendo essa experiência dentro desse sistema econômico hoje vigente lá, esse sistema político, possa dar um depoimento mais interessante que o meu.

Matinas Suzuki: O José Niemeyer, que é pós-graduando em relações internacionais da USP, ele faz duas perguntas: “Eu gostaria que o senhor comentasse dois pontos: a assinatura do Tratado de Não-Proliferação de Armas [diz respeito ao TNP, Tratado de Não-Proliferação Nuclear, acordo internacional firmado em 1968 que estabelece a competência dos países para desenvolver armas nucleares, permitindo que os demais desenvolvam a tecnologia nuclear apenas para a geração de energia e para fins pacíficos. A fiscalização é exercida pela Agência Internacional de Energia Atômica] e como anda a construção do submarino nuclear brasileiro.”. E ele faz uma outra pergunta: “Do ponto de vista geopolítico e geoestratégico, não seria importante o aumento de verba do orçamento da União às Forças Armadas?”.

[Risos]

Ronaldo Sardenberg: O aumento de verba é um assunto tabu, acho, na administração pública.

[Muitos risos]

Ronaldo Sardenberg: Ah, o TNP: o governo brasileiro expressou a sua intenção de aderir ao Tratado de Não-Proliferação. Isso ainda depende de que o assunto passe pelo Congresso, há mensagem ao Congresso e ao Senado sobre esse aspecto. E se trata, no fundo, de uma normalização, tendo em vista que o TNP hoje tem... é... o seu... é composto de maneira quase universal, apenas quatro países não fazem parte do TNP, e por razões muito distintas das do Brasil. As do Brasil eram questões de princípios, os outros países tinham problemas, têm problemas específicos de natureza nuclear, quais sejam: Israel, Paquistão, Índia e, de certa forma, por uma razão mais ideológica, Cuba. Então, o que houve foi uma certa correção de algum atraso que havia. Curiosamente, essa questão não despertou maior polêmica. Curiosamente talvez não, talvez sintomaticamente não tenha despertado maior polêmica, mais ainda não está completa, ainda está em processo. A questão do submarino, o submarino está em construção lenta, lenta [...], e ele hoje tem um valor mais de desenvolvimento tecnológico do que propriamente militar, no sentido que não há uma previsão a curto prazo para que esse submarino se coloque no mar, mas ele tem tido um grande papel no sentido de capacitar os engenheiros brasileiros a conceberem um reator nuclear de pequeno porte e também tem toda a área de segurança nuclear, que é muito importante. Eu acho que nós estamos fazendo avanços muito importantes na área de segurança nuclear, na área de atendimento a emergências e coisas desse tipo, porque nós estamos dando atenção crescente, atenção realmente importante a esses campos.

Matinas Suzuki: Agora, embaixador, o senhor está em contato com os militares... Que tipo de análise o senhor poderia fazer, o senhor acha que há uma... as Forças Armadas brasileiras estão preparadas, estão se modernizando, do ponto de vista de uma compreensão do que está acontecendo no mundo hoje? Há uma visão moderna de qual seria o papel  de um... das forças militares em um Estado moderno, neste mundo onde as mudanças geopolíticas que a gente vem acompanhando são bastante grandes, onde não há sinais aí de nenhum desequilíbrio? O senhor mesmo falou que não temos ainda, não há nenhum inimigo à vista, alguma coisa deste tipo. Que análise que o senhor faz hoje? Eu acho que essa é uma questão que muita gente tem curiosidade na sociedade brasileira.

Ronaldo Sardenberg: Olha, todos nós precisamos nos modernizar, civis e militares. O que está acontecendo na nossa geração é um negócio terrível, porque nós auferimos um certo conhecimento, digamos, por exemplo, sobre a União Soviética,  não é? E, de repente, aquilo que era um conhecimento político passou a ser um conhecimento histórico. Você pega um livro, tira os livros de uma estante e passa para outra, não é verdade? E isso ocorre com todos. Nas Forças Armadas está ocorrendo um fenômeno similar. A relação que nós temos estabelecida no Brasil hoje entre civis e militares é uma relação crescentemente produtiva. E eu digo isso, enfim, inclusive por comparação, no contexto regional. Há outros países na região em que as relações civis e militares, civil-militares ainda estão muito mais complicadas, muito mais complexas. No Brasil nós temos conseguido avanços importantes apesar das dificuldades conhecidas. De maneira que há, há esse processo. Eu posso falar, inclusive, de cadeira, nesse caso específico, porque a SAI [Secretaria de Assuntos Estratégicos] tem uma composição civil-militar, talvez seja o único órgão brasileiro que conta paritariamente com civis e militares, e isso tem sido muito criativo no nosso ponto de vista.

José Guilhon Albuquerque: Se você permite uma outra nota geográfica, você viveu aquela efervescência nacionalista dos anos 50 - né? -, a expectativa de modernização do Juscelino [Juscelino Kubitschek (1902-1976), presidente do Brasil entre 1956 a 1961. Foi o responsável pela construção da nova capital federal, Brasília, executando assim o antigo projeto da mudança da capital para promover o desenvolvimento do interior e a integração do país. Na área econômica, estabeleceu o plano de metas com o objetivo de promover a industrialização do país], a crise do janismo [referência a Jânio Quadros (1917-1992) que, eleito presidente do Brasil em 1961, renunciou ainda no primeiro ano de mandato] etc. E esse tempo todo você sempre pensou no Brasil em termos de presente e em termos futuro. Olhando agora, em termos da sua geração, da nossa geração, o que é que te surpreende hoje no Brasil? O que [é] que há de inesperado? O que [é] que não era... que não dava para pensar antes?

Ronaldo Sardenberg: Bom, eu acho que nós, naquela época, obcecados pelo desenvolvimento econômico, eu digo nós, você e eu [risos], nós esquecemos do desenvolvimento social, na verdade, e nós éramos relativamente menos atentos aos aspectos sociais do que somos hoje, ou que temos que ser hoje; todos os brasileiros são hoje. Hoje houve uma revolução dentro do Brasil no sentido das mentalidades, no sentido de dar primazia aos aspectos sociais. Esse é um aspecto. Outro aspecto é que naquela época nós falávamos muito em produção e nada em produtividade. E hoje nós entendemos que produção e produtividade vêm sempre juntos. Eu estou falando do tempo que nós tínhamos 15, 16 anos, 17, 18, por aí. Bastante tempo atrás. De maneira que isso são novidades no Brasil. Outra novidade importante é essa aproximação com a Argentina: isso é uma coisa histórica, uma coisa absolutamente... se tivesse que ter escrito uma lista de coisas improváveis eu poria lá, bem na frente, uma relação excelente entre Brasil e Argentina. Nós sabemos que toda relação tem algum problema, mas que essa relação está funcionando de uma maneira surpreendente. Então há muitos aspectos surpreendentes, na realidade. Agora, o que eu acho que está acontecendo é que o país está reagindo também a um novo quadro internacional, quer dizer, essas coisas não vêm apenas de impulsos internos, não. É que nós vivemos num quadro internacional que é marcadamente diferente de décadas anteriores, tanto do ponto de vista político, econômico, quanto social.

Luciano Suassuna: Embaixador, a respeito dessa integração social, não sei se é uma coisa que a pasta do senhor trata diretamente, enfim, mas tem toda uma demanda do movimento negro, por exemplo, para que haja uma proposta de ação afirmativa no Brasil. Eu, primeiro, queria saber se é alguma coisa que o senhor trata...

Ronaldo Sardenberg: Olha, é o seguinte: com relação ao movimento negro, há um grupo que foi criado pelo presidente, no Ministério da Justiça, e eu tomei a iniciativa de pedir que a SAI fosse justamente parte desse grupo. Eu considero que a situação das populações negras no Brasil é uma situação que demanda a atenção de todos os brasileiros, não apenas dos negros, e nós estamos trabalhando nisso. Inclusive, agora, nós estamos chegando a um entendimento com os movimentos negros para que eles nos ajudem a formular cenários com relação ao futuro dos negros no Brasil, entendeu?  Quer dizer, dentro desse quadro geral, desses cenários muito amplos, nós pretendemos desenvolver alguns cenários específicos. Por exemplo, cenários para a Amazônia. Cenários para a Amazônia e para os oito países amazônicos, se é que isso é possível, em conjunto com os oito países. Cenários para a população negra, e outros. Então, esse é um aspecto que nós temos trabalhado.

Luciano Suassuna: [Interrompendo] E nesse ponto o senhor defende propostas de ação afirmativa? Cotas para universidades...

Ronaldo Sardenberg: Eu não podia afirmar isso, que trataremos isso dessa forma, não, entende? Quer dizer, eu acho que nós vamos ter que discutir com os movimentos negros, quer dizer, o que é preciso, antes de mais nada, é que a gente discuta os temas abertamente, ponha em cima da mesa. Agora, eu não tenho uma posição inicial de um lado ou de outro, não.

Matinas Suzuki: Embaixador, bom era inevitável que a gente tivesse que voltar ao tema da Amazônia, porque estou recebendo aqui bastantes perguntas sobre a questão e... o Beethoven de Sá, que é do Rio de Janeiro, pergunta: “Por que o governo não proíbe o desmatamento de madeiras nobres, principalmente por madeireiras estrangeiras que chegam ao Brasil só para desmatar e ir embora com o lucros fabulosos?”. O Fábio Henrique, de Andradas, Minas Gerais: “Até quando o Brasil vai suportar o desmatamento na Amazônia sem tomar uma posição enérgica?”. O Mendes Mauri, de Joinvile: “Se existem tantos estrangeiros na Amazônia garimpando e saqueando a região, atacando a biodiversidade, por que aqueles grupos que ajudaram a combater o incêndio de Roraima foram alvo de tanta resistência?”. E o Anguile Cardoso Ferreira, do Horto Florestal: “O senhor, que foi embaixador do Brasil na ONU, qual é a visão e interesse que a comunidade mundial tem na Amazônia? Como o Brasil pode se defender politicamente desses interesses?”.

Antônio Sampaio de Carvalho: Posso juntar aí uma questão? No começo do ano os jornais publicaram que uma comissão da Câmara Federal que tratava especificamente da exploração florestal da Amazônia teria recomendado que se suspendesse completamente, por dez anos, qualquer exploração florestal na Amazônia. E a SAI teve alguma participação nesse momento, ali. Então, estrategicamente, quer dizer, a exploração florestal da Amazônia, como é que se coloca diante da situação atual?

Ronaldo Sardenberg: Olha, no ano passado, antes dessa comissão se constituir, nós tivemos um grupo interministerial que foi presidido, por assim dizer, ou coordenado pela SAI. Inclusive eu tive uma participação direta nesse grupo, e nós levantamos uma série de problemas na área de madeireiras, quer dizer, nós fomos muito francos e diretos e levantamos os problemas que nós pudemos levantar, que são variadíssimos, o campo é enorme. Vai desde o desmatamento puro e simples, até o fato de que há 17 milhões de brasileiros na Amazônia e que essas pessoas têm que ter emprego, enfim. Algum, um bom número delas ganha cinco reais por árvore que abate, o desperdício é da ordem de 27 árvores para cada árvore aproveitada etc.. Há uma série de estatísticas aterrorizadoras. Mas nós trabalhamos nisso e esse relatório foi aprovado pela Câmara de Recursos Naturais e foi distribuído nos diferentes ministérios. Supõe, inclusive, treinamento, supõe uma série... valorização do trabalhador, uma série de aspectos, relações com os países vizinhos, é uma coisa muito ampla. De maneira geral a questão do desmatamento é tratada como se fosse um problema simples, porque parece simples, a pessoa vai lá, corta uma árvore e acabou-se. Na realidade isso é toda uma cultura, em parte vem de séculos anteriores, em parte são certas atividades predatórias atuais, contemporâneas, modernas etc. O governo tem tomado providências. Do ponto de vista legal foram estabelecidas restrições ao corte de árvores, da ordem de... que nenhuma propriedade pode cortar mais do que 20% de sua área, nenhum proprietário, [o] que já é um avanço. Agora... Ah [lembrando-se subitamente], aumentou a fiscalização também. Agora, não é um problema simplesmente de decisão legal e de fiscalização, não. Quer dizer, é um problema mais amplo, é um problema de organização do mercado, não é? Quer dizer, há um interesse em que o Brasil efetivamente use a sua madeira, agora, tem que ser um uso racional, um uso que não seja destruidor do meio ambiente. Várias formas têm sido aventadas, há uma experiência piloto na criação, na exploração e manejo de uma floresta nacional, licitação desse manejo, no Pará. Então, há uma série de medidas, há uma série de medidas, é um problema muito complicado. Agora, eu particularmente, pessoalmente, fico satisfeito que o problema seja debatido e seja discutido, não é,? Que isso tenha virado um problema nacional, quer dizer, que hoje em dia, nós estamos aqui, já discutimos bastante sobre a Amazônia, a Amazônia se tornou um tema central. E eu acho fundamental que seja assim, acho fundamental que as questões amazônicas sejam debatidas em nível nacional e não apenas em nível amazônico, não é? Isso é uma riqueza nossa, uma riqueza do país, e que, no fundo, somos nós hoje que temos que estar nessa luta, mesmo aqueles que há dez anos atrás não eram ambientalistas sequer, não é?

[...]: Que é seu caso, confesso num artigo, não é?

Ronaldo Sardenberg: Quem sabe, não é? Quem sabe [risos]? Mesmo esses têm que sair em campo para justamente preservar essa riqueza e fazer com que essa riqueza seja explorada de uma forma racional, ou seja, de uma forma sustentável no correr dos anos.

Matinas Suzuki: Embaixador, como o senhor é o secretário dos Assuntos Estratégicos tem telespectador que acha que o senhor tem estratégia para tudo. O José Francisco Lerner, por exemplo, pergunta: “Qual a estratégia do senhor para o Brasil ganhar o penta?”.

[Risos gerais]

Ronaldo Sardenberg: Bom, passa para o Ronaldinho e o Romário... [risos]

Matinas Suzuki: Embaixador, muito obrigado pela sua presença no Roda Viva aqui nesta noite. Obrigado aos nossos entrevistadores. Obrigado pela sua atenção e participação. Eu lembro a você que o Roda Viva volta na próxima segunda-feira às 10h30 da noite. Até lá, uma boa noite e uma boa semana para todos.

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