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Memória Roda Viva

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Renato Borghi

4/5/1998

Um dos fundadores do Teatro Oficina, o ator, com 40 anos de carreira, diz que, em tempos de globalização, o teatro ainda pode interferir na sociedade de forma a melhorar o homem

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Matinas Suzuki: Boa noite. Ele é um dos mais importantes atores brasileiros e está comemorando 40 anos de atividade teatral. No centro do Roda Viva, o ator Renato Borghi.

[Comentarista]: Ele poderia ter ficado conhecido como doutor Borghi, mas no início dos anos 60, Renato Borghi abandonou o curso de direito, levando junto outro ex-futuro advogado, José Celso Martinez Corrêa [ator, diretor e fundador do Teatro Oficina.  Ver entrevista no Roda Viva]. Dessa mudança de rumo, surgiu o Oficina [companhia Teatro Oficina], um dos grupos teatrais mais importantes do país.

Renato Borghi [em entrevista gravada]: O Zé Celso é uma figura importantíssima na minha vida. O Zé Celso, inclusive, por uma coincidência, nasceu no dia 30 de março de 1937, como eu: no mesmo dia, do mesmo mês.

[...]: Foram fazer faculdade de direito juntos...

Renato Borghi [em entrevista gravada]: E ele fez faculdade de direito e cruzou na mesma turma, e lá, nós fundamos o Teatro Oficina.

[Cenas de palco gravadas]: Eu não quero ofender ninguém, meu Deus, eu é que me sinto ofendido por vocês, amargamente ofendido. Vocês não prestam a mínima atenção...

[Comentarista]: A estréia de Renato Borghi no teatro foi anterior ao grupo Oficina. Em 1958, aos 20 anos, foi escolhido por Sérgio Cardoso [Sérgio Fonseca de Mattos Cardoso] para uma peça entre cinquenta candidatos. Sérgio Cardoso teria dito: “O papel é seu, nunca mais abandone o teatro”. Borghi seguiu o conselho. Está comemorando 40 anos de profissão.

[Cenas de palco gravadas]: (...) não se trata de desapontá-la, porque creio na sua aparição espontânea e inelutável. Surgirá, de vozes jovens (...)

[Comentarista]: Depois de se separar de José Celso, no início dos anos 70, Borghi fundou com a mulher, a atriz Esther Góes, o Teatro Vivo.

[Cenas de palco gravadas]: (...) por favor, em vez de me censurar, queira ter a bondade de me apresentar a (...)

[Comentarista]: Também trabalhou como autor: a peça O lobo de Ray-Ban foi escrita por ele.

Renato Borghi [em entrevista gravada]: Mas você se sente assim, brincando de Deus, não é? Você começa a criar um universo da pessoa, o universo de outra pessoa, o conflito que existe entre elas, a traçar o destino delas etc. Então, é uma coisa que dá uma sensação muito gratificante, é muito gostoso brincar com isso.

[Cenas de palco gravadas]: (...) assim não será responsável por tudo quando o nome de papai estiver jogado na lama (...)

[Comentarista]: Na televisão, fez novelas na Globo e na Tupy [primeira emissora de TV da América Latina, fundada pelo empresário Assis Chateaubriand e inaugurada em São Paulo em 18 de setembro de 1950, que manteve-se no ar até 1978].

[Cenas de palco gravadas]: (...) é você toda, toda, inteirinha (...) eu vou te cortar de tesoura (...)

[Comentarista]: Renato Borghi atribui o sucesso na vida artística durante tanto tempo a uma fórmula relativamente simples: juntar a sofisticação do Teatro Brasileiro de Comédia [TBC] com a espontaneidade de artistas populares, como Grande Otelo [o eterno intérprete de Macunaíma. Ver entrevista no Roda Viva] e Isaurinha Garcia [(1923-1993) uma das mais conhecidas cantoras da época de ouro do rádio brasileiro].

[Cenas de palco gravadas]: (...) Yes! Nós temos bananas! (...)

[Comentarista]: Em abril de 1998, Borghi voltou a abrir as portas do velho TBC, em São Paulo, com uma nova montagem de Tio Vânia, [peça] de Anton Tchecov [(1860-1904) dramaturgo russo, entre os mais encenados em todo o mundo].

[Cenas de palco gravadas]: (...) está um tempo ótimo pra se enforcar (...)

Matinas Suzuki: Bem, para entrevistar o ator Renato Borghi, nós convidamos esta noite, o jornalista e escritor, Alberto Guzik, crítico de teatro do Jornal da Tarde, do programa Metrópolis da TV Cultura de São Paulo; o ator Raul Cortez, que interrompeu a filmagem de Lavoura Arcaica, baseado no livro de Raduan Nassar, especialmente para participar desta entrevista. Nós agradecemos ao Raul e agradecemos também à Rede Globo, pela sua liberação para participar deste programa aqui com a gente. A atriz Beth Coelho; nós também queremos agradecer à Rede Bandeirantes pela sua liberação para participar deste programa. A jornalista Daniela Rocha, crítica de teatro da revista Bravo; o autor e diretor de teatro, Hamilton Vaz Pereira; o jornalista Carlos Graieb, repórter da revista Veja; o jornalista e também autor de teatro, Otávio Frias Filho, diretor de redação da Folha de S.Paulo. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Hoje, infelizmente, você não vai poder participar deste programa enviando as suas perguntas, porque o programa foi gravado. Boa noite, Renato.

Renato Borghi: Boa noite.

Matinas Suzuki: Muito obrigado pela sua presença aqui, no Roda Viva.

Renato Borghi: Muito obrigado a vocês. É uma delícia estar aqui neste centro e responder a tantas pessoas queridas que estão aqui em volta...

Matinas Suzuki: Você vê que hoje a nossa mesa...

Renato Borghi: Estou pronto a abrir a alma e contar para vocês tudo o que se passa. É só vocês perguntarem.

Matinas Suzuki: Renato, 40 anos de atividades teatrais. Você está também com uma peça em um dos símbolos do teatro brasileiro, especialmente um marco importante no teatro de São Paulo, que é o Teatro Brasileiro de Comédia. Como é que você está vendo essas coisas: 40 anos de teatro, 50 anos de exercício, como é isso pra você?

Renato Borghi: Foi escolhido, Matinas, de propósito. Porque realmente, eu resolvi fazer teatro sentado naquele teatro, né? Sentado no TBC. Eu vi 15 vezes Gata em teto de zinco quente [peça escrita por Tennessee Williams, que foi para o cinema com Elizabeth Taylor e Paul Newman, em 1958], eu vi 40 vezes, Volpone [de Bem Johnson, autor inglês, contemporâneo de Shakespeare], eu vi uma infinidade de vezes os espetáculos que eles faziam. Aí, Stuart [a peça Maria Stuart, escrita pelo alemão Friedrich Von Schiller (1759–1805)], eu não sei nem quantas vezes eu vi. Então, eu era apaixonado por aquele espetáculo. Quando Cacilda [Cacilda Becker] chegava no centro do jardim, para encontrar com a outra, eram as duas inimigas, e ela falava: “Ah! E esse ar...”, e de repente, ela não tinha muito ar, não conseguia tomar muito ar e eu achava aquilo lindo! Eu ficava encantado, eu ficava parado e dizendo: “Ai, eu quero ver de novo isso! Isso é muito bonito!”. E, de repente, a Cleyde [Yáconis (1923), atriz, irmã de Cacilca Becker] tirava a peruca e era careca por baixo! Era uma coisa impressionante a criação dela, do ponto de vista de detalhes, de personagem! E com o TBC, eu aprendi o que era concepção teatral, porque eu venho de um Rio de Janeiro muito anárquico com o teatro – não é? – e era o teatro de revista, que tinha Grande Otelo, Dercy [Gonçalves (1905-2008), atriz e grande nome das comédias brasileiras, lembrada pela atitude sempre irreverente até sua morte, aos 103 anos. Ver entrevista no Roda Viva], mais as grandes vedetes, Virgínia Lane, Mara Rúbia [célebres dançarinas e atrizes, as “vedetes” do teatro de revista]. Aquela gente toda que fazia um teatro maravilhoso e também os grandes comediantes, Jaime Costa [(1897-1967)], Procópio [Procópio Ferreira], Rodolfo Mayer [(1910-1985)], Alda Garrido [atriz que criou tipos característicos brasileiros, como o personagem mais tarde vivido na TV por Yara Cortes, Dona Xepa], que ninguém mais fala nesse nome, Dulcina [de Morais (1908-1996)] e Odilon [Azevedo (1904-1966)] e a sua companhia. Mas era uma coisa toda organizada em volta, quer dizer, as pessoas ensaiavam com o ensaiador [nome dado ao profissional que distribuía os papéis e acompanhava os ensaios, mais tarde, substituído pelo diretor], e a vedete chegava no final, entrava no meio e fazia a sua exibição de carisma, enfim, de talento, mesmo. Porque eles tinham um talento enorme, o Jaime Costa era uma maravilha de ator! E o que é que eu vou dizer pra você? Quando eu cheguei em São Paulo e vi o TBC, eu entendi o teatro é... de outra maneira, melhor, ué? De repente, tinha um cenário que dizia a respeito da encenação, com a música, uma luz como eu nunca tinha visto! Antigamente, era aquela ribalta chapada, de baixo, né? E aí, eu comecei a ver o figurino e começamos a ver uma série de coisas que formavam, como o Ziembinski chamava, “concepção” ou “cara de ôbra” [imitando o sotaque polonês de Ziembinski], não é? Então, essa cara de obra do Ziembinski, eu fui compreender no TBC e aí, eu comecei a ficar encantado, ia ver, ia ver e entrei para a faculdade de direito, como quem faz... “espera marido”, assim, quer dizer, à espera de teatro [risos]. E lá foi engraçado, porque aí eu encontrei os “maridos” todos, todas as pessoas que fizeram o Teatro Oficina comigo, que formaram esse grupo todo, Amir Haddad [(1937), diretor e ator, criador do grupo Tá na Rua, em 1980], Zé Celso...

Beth Coelho: [interrompendo] Renato, desculpe te cortar, é aí que eu queria chegar. A impressão que dá é que você está fechando um novo ciclo e reabrindo um novo diálogo com o teatro. E o Oficina? Não está sofrendo uma rejeição?

Renato Borghi: Da minha parte?

Beth Coelho: É, quando é que você vai voltar para o Oficina?

Renato Borghi: Quando o Zé Celso me chamar.

Beth Coelho: Você envelheceu, voltando para o TBC?

Renato Borghi: Quando o Zé Celso me chamar eu vou, ué! Ele não me chamou ainda. Eu acho que ele tem medo, não sei o que acontece com ele.

Beth Coelho: E O rei da vela [peça escrita por Oswald de Andrade]?

Renato Borghi: O rei da Vela está proposto, mas é uma coisa que está pronta, ela está proposta, aí. Eu já aceitei a proposta de fazer O rei da Vela.

Beth Coelho: E é verdade que você saiu do Oficina no meio de uma cena de As três irmãs?

Renato Borghi: É verdade. Uma coisa tão... as pessoas dizem que é antiprofissional, mas eu achei tão lindo! Eu achei lindíssimo, [risos] porque eu cindi com ele no meio. Por que é que eu ia sair depois? Como profissional? E eu cindi no meio, depois de 13 anos! Eu cindi mesmo, quer dizer, ele tinha transformado As três irmãs  no Graças, Senhor!

Alberto Guzik: Espera, aí! Não é melhor a gente voltar um pouco para o começo dessa história? Não seria melhor você contar o Oficina, quer dizer, como é que foi essa passagem do ator que viu o TBC, para o ator que foi trabalhar com o Sérgio Cardoso, no Chá e simpatia, e que depois foi para o Oficina? Fala um pouco disso, desse arco histórico.

Renato Borghi: Aí, eu fui fazer o “espera marido”, como eu falei – não é? –, na faculdade de direito. E, claro que uma das únicas ligações que eu tinha com o teatro era estudar canto, com a dona Alice Pinkre, mãe da Nydia Lícia [atriz, mulher do ator Sérgio Cardoso], que era a única pessoa de teatro que eu conhecia. E eu gostava muito de cantar, tanto que eu ia ser cantor contratado pela [gravadora] Philips! Quando eu larguei a coisa mesmo e fui embora, o cara ficou me xingando na porta da boate Karitas: “Você vai ser pobre na vida, vai fazer teatro!”. Porque ele iria me lançar já com um disco, gravadora Philips e uma série de coisas! Eu acho que hoje seria superadíssimo, essa coisa velhíssima, mas, enfim, eu cantava romântico: “Queridinha, nunca mais me abandone” [cantando]. Uma coisa toda, ainda meio Nelson Gonçalves [(1919-1998), uma das vozes mais conhecidas no país, sobretudo pela canção "A volta do boêmio"], meio Agnaldo Rayol [cantor romântico cuja carreira atingiu o auge entre os anos 60 e 70. Sua voz potente se aproxima do estilo operístico e tornou inconfundível sua interpretação de "Ave Maria"], isso ia estar – claro, que talvez eu desse uma guinada no meio e tal –, mas eu acho que eu ia me dar mal com essa coisa. Foi bom o teatro, foi ótimo pra mim, ter feito teatro, não é? E... onde é que eu estava, onde é que eu parei?

Alberto Guzik: Começa... começa do Sérgio para o TBC, assim.

Renato Borghi: Aí, dona Alice, “vocalize” etc., e lá, passavam Nydia Lícia, Sérgio Cardoso, Rubens de Falco [(1931-2008, ator, bastante conhecido na TV, principalmente pelo vilão Leôncio na novela A escrava Isaura], passava aquela gente toda de teatro. Um dia, dona Alice falou pra mim: “Olha, Jorge Fischer [Jr.] vai deixar o teatro, porque quer ganhar dinheiro. Ele vai largar o papel principal de Chá e simpatia” – que eu já tinha visto 10 vezes! –. Aí, ela falou: “Mas você não quer fazer um teste?”, eu falei: “Mas como, fazer teste, dona Alice? Eu tenho medo!”. Aí, ela falou assim: “Não, vai lá”, eu fui. E fui recebido por uma pessoa muito estranha, pessoa de olhos profundos, me deu um abraço, me levou aos porões do teatro Bela Vista, me mostrou as entranhas do teatro. Depois, ele me passou o texto e disse assim: “Essa cena daqui até aqui, você vai para a casa, decora, decore muito bem...”...

Alberto Guzik: Que pessoa é essa?

Renato Borghi: ... “eu não vou lhe dar indicação alguma. Você volta no dia tal para fazer o teste. A Nydia vai estar esperando você no palco”.

Alberto Guzik: Era o Sérgio?

Renato Borghi: Sérgio Cardoso, claro! Era uma pessoa... ele era estranho, era muito estranho. Eu não sabia se ele... às vezes, estava de bom humor ou mau humor. Tinha dias em que ele me recebia efusivamente e me abraçava, tinha dias em que eu falava com ele, ele fazia um pouco assim [demonstrando distração], fingia que não estava ouvindo, era uma coisa um pouco esquisita [risos]. Mas me ensinou muita coisa. Ele veio com muito carinho, dirigiu detalhe por detalhe, fala por fala. Era o tempo em que se dirigia ainda a inflexão, né? Então, eu tinha que começar de uma determinada maneira, em um determinado tom, em uma determinada frase melódica, eu tinha que começar ali. E aquilo, para mim, não era muito difícil, porque eu era muito musical, eu pegava a coisa mais ou menos fácil. Mas eu fiz o teste. Eu cheguei, encontrei a Nydia no palco, como ele tinha me prometido. Ele me levou ao palco e falou assim: “Essa fala aqui você está aqui; ele te veste o vestido; aqui você tira o vestido, aqui você senta nessa cadeira, aqui você passa pra lá, que pá, pá, pá” e pronto. E não deixou ninguém na sala, o que foi uma maravilha, porque tinha 50 candidatos! Quer dizer: se eu tivesse sido assistido, acho que eu ia ficar muito nervoso, mas não ficou ninguém na sala, só ele. E eu comecei com a santa ingenuidade de que eu não tenho nenhuma responsabilidade. Estreei no teatro Copacabana sem nenhuma responsabilidade e não sabia de críticos, viu, Guzik? Eu não sabia que eles podiam atormentar a vida da gente, que eles podiam até impedir a minha carreira, me dizer que eu era um fiasco total ou qualquer coisa parecida. Eu não tinha noção! O pano abriu, eu cantei [cantando]: “Os prazeres do amor duram só um instante, mas as penas do amor, essas duram bastante” e ouvi a Wanda Kosmo [(1930-2007), escritora, atriz e diretora] falar: “Quem está cantando, é Tom Lee?”, e a peça “fiss” [fazendo uma onomatopéia], foi embora. Então, quer dizer, essa acolhida do Sérgio foi uma coisa muito legal, e eu entrei para o teatro já com uma responsabilidade muito grande, de protagonista de uma peça, que era a primeira peça gay da época! O personagem meu, ele não era gay, mas diziam que ele era, porque gostava de ouvir música clássica, tomou banho pelado com o professor... [risos]

Matinas Suzuki: Eu acho que o Raul, ele queria falar sobre o TBC.

Raul Cortez: Você está cantando, aí, então me lembra uma coisa: você, em uma peça, me disseram que você tinha, tem um agudo assim, absolutamente lindo, tipo Dalva de Oliveira [(1916-1972), uma das maiores cantoras brasileiras de samba-canção e boleros, eleita a “rainha do rádio” em 1951]. Você o usou quando fez o personagem Eunuco. Pode ser?

Renato Borghi: Usei! Usei!

Raul Cortez: É que eu queria uma coisa ou outra: que você demonstrasse esse agudo lindo que você tem [risos] ou então falasse da tua amizade com a Dalva de Oliveira.

Renato Borghi: O que você quer saber da Dalva? Dalva é uma paixão, é uma paixão de seis anos de idade! Eu estou escrevendo uma peça, que não tem nada a ver com ela, mas tem uma cantora, e mistura um pouco. Ela me estuprou a cabeça, mesmo! Foi uma coisa assim, eu ouvi aquela voz, e a minha cabeça foi estuprada por aquela mulher, por aquela imagem, por tudo o que diziam dela, que ela era libertina, ao mesmo tempo era a mãe do ano, era tudo misturado, era uma santa misturada com uma mulher terrível, que os fãs enterravam as pessoas que falavam mal dela na Barra da Tijuca, até o pescoço, de vingança! E eu fiquei apaixonado por aquela mulher. E aí aos 13, eu comecei a fugir de casa pra vê-la cantar no auditório! E o que mais me espantou na Dalva, é que a grande influência dela na minha vida, na minha carreira, até hoje, era a emoção com que aquela mulher realmente cantava. No disco, não dava para entender tanto, o que é que era aquela presença, uma Medéia [personagem da clássica tragédia grega que mata os próprios filhos], vociferando na praça Mauá [área boêmia localizada na zona portuária do Rio de Janeiro], uma coisa fantástica!

Raul Cortez: Você chegou a trabalhar na Rádio Nacional? É verdade, você trabalhou na Rádio Nacional?

Renato Borghi: Não, mentira! Nunca trabalhei na Rádio Nacional.

Raul Cortez: Então, você mentiu em uma entrevista sua! [risos]

Renato Borghi: Eu menti?

Raul Cortez: Se disse que você trabalhou na Rádio Nacional...

Renato Borghi: Não, pode ser o repórter que se enganou também, [risos] mas eu fugi muitas vezes para vê-la cantar.

Beth Coelho: Mas essa força da Dalva, como o Raul falou, eu que não vi a Dalva cantando, eu entendi essa força que você está dizendo. Você cantando, realmente transmite essa idéia. Acho que eu entendi que o Raul queria que você desse uma demonstração, porque você canta muito bem.

Raul Cortez: Pois é, esse agudo.

Renato Borghi: Eu não posso, porque eu estou acabando uma semana de Tio Vânia!

Beth Coelho: Que será?. Canta...

Renato Borghi: “O que será, da minha vida sem o teu amor?” [cantando]. Mas o agudo não dá viu, Raul?

Raul Cortez: Tá.

Renato Borghi: Porque, realmente, eu acabei de fazer Galileu Galilei, emendado com o Tio Vânia, saiu tudo junto, então, deu um trauma aqui na corda vocal, de verdade, mesmo. Eu não estou agüentando, é uma coisa meio pesada.

Carlos Graieb: Já que você falou de Dalva de Oliveira, em Senhoras no camarim, você fez um personagem feminino, não é?

Renato Borghi: É.

Carlos Graieb: E dizem que foi uma espécie de homenagem a muitas mulheres.

Renato Borghi: Muitas divas.

Carlos Graieb: Divas, exatamente, muitas divas e “Dalvas”.

Renato Borghi: Era a Dulcina, misturada com Dalvas, misturadas com Marílias [referência à atriz Marília Pêra], misturadas com todas elas. Que eu... são mulheres que eu amei e que eu amo... [aponta para Beth Coelho]. Estrelas como essa lindeza, com quem eu trabalhei duas vezes e adoro trabalhar, entendeu? Então eu prestei uma homenagem, assim, de fazer a camareira e fazer a estrela, que realmente era uma relação maravilhosa, dúbia, estranha, muito esquisita – né? –, e aí, eu cruzei esses dotes, muitas vezes, de brincar com a voz.

Raul Cortez: E como é que você se sentiu fazendo um papel feminino, no palco? Você, como ator?

Renato Borghi: Às vezes, bem, no princípio, muito inibido. No começo, com salto alto [risos]. Doía demais, eu tinha vontade de dobrar o joelho, eu me sentia muito pouco à vontade! Aí, depois, eu fiz uma coisa deliciosa, quer dizer, eu quebrei o espetáculo!

Raul Cortez: O que é que é isso?

Renato Borghi: Quebrei! Tudo o que tinha que ser de verdade, eu falava: “Olha aqui, essa tomada é de mentira, queriam que eu jogasse uma fumaça, mas a máquina é uma droga, ela não entra! Então, eu não posso prestar homenagem ao Gerald Thomas” [risos]. Aí, o espetáculo foi virando um happening [tipo de espetáculo marcado pela inserção de elementos espontâneos e improvisos a cada nova apresentação], fantástico! Aí, eu comecei a adorar fazer, acabei fazendo para 1.400 pessoas, em São José dos Campos! Foi um sucesso total, porque o espetáculo foi virando outra coisa, foi virando o Vaz Pereira [risos, dirigindo-se ao entrevistador Hamilton Vaz Pereira]! Virou uma delícia, porque eu soltei o improviso! Uma frase – como eu acho que é o teu teatro –, é sugestão poética para uma outra coisa. E de repente sempre, é possível virar um espetáculo no meio. Isso, eu acho maravilhoso no teatro! Nunca precisa ser igual, pode ser sempre um mutante, o teatro é uma coisa mutante. Eu acho que a gente pode começar o personagem de um jeito, pode crescer muito, ou então piorar, também.

Hamilton Vaz Pereira: Me diz uma coisa, mas eu estava gostando da sua história. Aí, você assistiu ao TBC, foi para o Sérgio Cardoso e aí, o que é que rolou?

Renato Borghi: Aí, rolou uma coisa danada – né? –, porque eu fui muito bem recebido pela crítica no Rio, e isso provocou muito ciúme nos jovens da companhia do Sérgio Cardoso. Porque ele tinha uma equipe de jovens contratados, e eu fiquei meio... [risos] maltratado durante uns tempos, dentro da companhia. Saí de lá e voltei para terminar a faculdade de direito, como o meu pai me fez prometer. E foi um cara muito legal o meu pai, viu? Porque tudo o que era preciso avalizar para o Oficina, ele avalizou. O meu pai foi o avalista mor! [risos] Foi uma pessoa que não deu dinheiro, não. Mas ele avalizou tudo. [risos]

Beth Coelho: E mesmo assim, você conseguia sobreviver só com o Oficina, na época? Só com o teatro? Você disse que comprou um apartamento, que você fez quatro viagens?

Renato Borghi: Muito bem! A gente comia nos melhores restaurantes de São Paulo, vivia no Casserole, Le Moulin...

Beth Coelho: O que aconteceu, que hoje a gente não vive mais de teatro só?

Renato Borghi: É o público que anda longe, né? Eu acho, porque naquele tempo tinha muito público: sessão terça, quarta, quinta, sexta, sábado...

Raul Cortez: [interrompendo] Sábado, duas e domingo, duas!

Renato Borghi: ... duas no domingo! No Rio de Janeiro, ainda tinha aquela dupla, na quinta. Então, era terça, quarta, duas na quinta – entendeu? –, sexta, duas no sábado e duas no domingo, cheio de gente! Então, na verdade, tem alguma coisa por aí, que a gente tem que detectar e trabalhar em cima, que é uma defasagem, uma diminuição de público, que começa a acontecer por um processo, que eu acho que não é nada tão mágico. Eu acho que aconteceu um processo dentro da universidade, que era o nosso grande público, de esvaziamento, mesmo, de mudança de professor, de mudança de ensino. Eu acho que houve uma programação feita no país a partir do AI-5, através da televisão, das novelas, de uma série de coisas, que estabeleceu um brasilian way of life [referência ao american way of life, expressão que descreve o modo de vida americano, como forma de se contrapor ao socialismo], um pouco distante das grandes artes e mais perto das grandes fofocas...

Otávio Frias Filho: [interrompendo] E o teatro, você acha...

Renato Borghi: ... “quem vai casar com quem, quem não vai casar com quem, quem é noivo de quem, como é que vai acabar”... a minha família mudou! A minha família era política, de direita, tudo “lacerdista” [referência a Carlos Lacerda, jornalista e político brasileiro, inimigo declarado de Getúlio Vargas, cujas denúncias desencadearam um processo que terminaria com o suicídio do presidente da República, em 1954]! Eles iam às reuniões do Lacerda, ouvir os políticos todos falarem e etc e, de repente, parou tudo! Ficou tudo em frente de uma coisa paralisada, discutindo a vida dos personagens da novela, né? Quer dizer: houve uma mudança no Brasil, a gente sabe que houve.

Daniela Rocha: Mas o teatro não ficou desinteressante, então? Você não concorda, Renato? Quer dizer: o público que deixou ou está deixando de se interessar pelo teatro, ou o teatro não está mais tendo uma resposta, quer dizer, não está sendo mais tão legal ir ao teatro, mais?

Renato Borghi: Eu acho que são as duas coisas, quer dizer, de um lado, a cabeça foi feita pra você admirar um certo tipo de coisa que é um ícone, que você vê aqui na tela. Hoje, por exemplo, eu recebi parabéns, porque a Cultura está me anunciando. Então, o pessoal do banco falou: “Aí, parabéns!”.  Parecia que eu era um ídolo dentro do banco, quando eles me maltratam muito [risos]. Mas como anunciaram que eu vinha aqui na TV Cultura, eles me trataram muito bem. Aí, todo mundo diz: “Ai, vem cá! Vem cá!”. Quer dizer: isso, então, muda essa coisa – não é? –, essa relação é fortíssima, ninguém pode ignorar isso, né?

Beth Coelho: Mas aí, não é público, é patrocinador [o referido banco]?

Renato Borghi: Hein?

Beth Coelho: Mas não é público, é patrocinador?

Raul Cortez: O patrocinador. Fala sobre o patrocinador: não está ajudando a gente, você acha que isso está sendo legal?

Renato Borghi: O patrocinador: nós temos leis, que pareciam, a princípio, maravilhosas, do ponto de vista, assim, democrático. Quer dizer: cada um batalha o seu patrocinador – não é? –, vamos atrás.

Raul Cortez: Uma corretagem.

Renato Borghi: Uma corretagem! Eu ganhei uma gastrite de tanto tomar cafezinho com o patrocinador [risos]! Uma coisa alucinada, eu tomei muito café! E não sai nada e eu...

Beth Coelho: Tem a história do Édipo, também. Do Édipo que é de patrocinador, agora?

Renato Borghi: O patrocinador falou assim: “Eu achei muito bonito, mas eu não posso mudar o final disso? Porque é de mau gosto, tirar o olho...”. Quer dizer: o cara queria mudar o final do “Édipo”, o que é uma loucura! E aí, você tem que ficar com a cara da [margarina] Delícia Cremosa, do Café Caboclo, com a cara de todo mundo! Porque agora, também os produtos censuram! Eles querem ver se você tem um espetáculo que corresponda à imagem do produto. Então, eu acho essa censura mais perigosa, muito mais nociva.

Otávio Frias Filho: E não há uma responsabilidade do teatro, Renato, nesse esvaziamento? Quer dizer, você foi um protagonista do período do apogeu do teatro no Brasil, vamos dizer, entre 65 e 70, e os espetáculos de vanguarda chamavam muito a atenção, magnetizavam toda a polêmica, inclusive política, estética. Acho que ao lado dos festivais de música popular, esses espetáculos eram o que havia de mais importante, de mais controvertido. De lá para cá, de fato, houve esse esvaziamento. Além desse fator político de regime militar etc, do fato de que a nossa época, digamos, é cada vez mais tecnológica, você não atribui algum tipo de responsabilidade ao próprio teatro? Quer dizer: que tipo de autocrítica o teatro deveria fazer desses anos para cá?

Renato Borghi: Atribuo! Atribuo, em primeiro lugar, o fato do teatro deixar de falar da realidade. Parou! De repente, depois de 80, 82, 83, 84, parou! Ficou plumas, lantejoulas, paetês: “vamos esquecer o passado! É de mau gosto falar que a gente viveu sob um regime militar, é de mau gosto falar que houve tortura no Brasil, é de mau gosto relembrar esses períodos todos! Isso não pode falar, isso não pode falar”, e aí: “vamos fazer comédia, vamos fazer comédia, vamos fazer pesquisa de mercado”. Aí, a gente se danou!

Otávio Frias Filho: Mas ao mesmo tempo...

Renato Borghi: Pesquisa de mercado danou com a gente! Porque o artista tem que lançar moda! O artista, ele não tem que entrar na moda! E nós entramos em um estado de subserviência que nunca tínhamos vivido!

Otávio Frias Filho: Mas, ao mesmo tempo, o público gosta de comédia, se tem espetáculos que tem algum tipo de...

Renato Borghi: Que ótimo! Eu sempre gostei! Eu montei Com a pulga atrás da orelha, O amante de madame Vidal! Com o maior prazer eu faço essas coisas! Só que não é o único teatro. O terrível é quando fica o único teatro, quando fica a única coisa! Aí, existe o empobrecimento no repertório, do público, para participar de eventos com uma multiplicidade de ofertas culturais!

Carlos Graieb: Eu acho que, acho que comédia é um pouco vago demais, não é? Porque sei lá, Shakespeare fazia comédia, Aristóteles fazia.

Renato Borghi: É verdade, é verdade.

Carlos Graieb: O que é que você quer dizer com comédia no Brasil, a que você está se referindo, exatamente?

Renato Borghi: Acho as comédias, inclusive, muito boas, como Porca miséria, como Pérola, o que mais? Comédias que têm feito grande sucesso no Brasil. Só que o repertório teatral não é feito só disso, quer dizer, ele é feito de uma multiplicidade de ofertas, né? De repente, a gente tem o Raul Cortez fazendo Ricardo III e aí, pô, é uma maravilha! Tem que ver! E aconteceu um momento no teatro brasileiro que deu uma esvaziada – você tem toda a razão –, mas deu uma esvaziada por nossa causa, que ficamos preocupados, fazendo pesquisas de mercado! E as pessoas queriam saber: “o que é que você quer ver? Tragédia, drama ou comédia?”. O público, é claro, escrevia o quê? Claro: “comédia”. Resposta – aquele lugar comum, tenebroso –: “a vida já é tão pesada, por que é que tem que haver tristeza no teatro?” [risos]. O que, às vezes, não corresponde à opinião do público, porque ele vai ver, às vezes, uma coisa pesada e adora! Mas na hora de escrever, ele fala assim: “Não! É comédia, tem que ser leve etc". E nós entramos em uma bobagem na década de 80, muito grande, muito perniciosa.

Raul Cortez: Mas você não acha que economicamente, também, foi terrível para nós, esse período todo? Era muito difícil você montar uma peça, muito difícil, até hoje em dia, você ter atores contratados ou um elenco técnico muito grande e tal?

Renato Borghi: Raul, a diferença é tão grande querido, tão grande, porque eu mantive 40, 30 pessoas contratadas!

Raul Cortez: Quando?

Renato Borghi: Hein? No Oficina.

Raul Cortez: Pois é, em que ano?

Renato Borghi: Sessenta. Até 70, eu ainda consegui trazer, por exemplo, no Marragoni, um elenco de 20 e tantas pessoas contratadas! E de repente, é inviável. De repente, você tem que conseguir patrocínio, até para cobrir a folha [de pagamento].

Raul Cortez: É.

Renato Borghi: Porque a bilheteria não está devolvendo a folha! Então, a gente está vivendo um problema tão agudo, do ponto de vista financeiro, que o patrocínio agora, a gente pede, pensando em cobrir até a folha de pagamento, não é verdade? É uma coisa meio aguda, mesmo, o que está acontecendo. E sei lá! É uma diferença brutal! Por exemplo, para quem tem 40 anos de profissão, que pode olhar década por década, pode perceber que esse dinheiro da década de 60 pagava todo mundo, e o dinheiro do bolso do sobretudo – porque não tinha investimento – era colocado em outro espetáculo e que, além do mais, sobrava, para o Zé Celso, para mim, para a gente ir passear na Europa e ver os teatros que se faziam na Polônia, na Tchecoslováquia, em Berlim etc. Quer dizer, é uma diferença brutal, o que se passa na realidade teatral hoje em dia! É muito mais difícil para quem está começando e para quem está terminando, também. [risos] De certa maneira, porque a barra é pesada.

Daniela Rocha: Mas volta um pouquinho, Renato. Na sua história, você estava falando sobre a questão do Sérgio Cardoso etc. E daí, você estava fazendo a faculdade de direito no Largo São Francisco?

Renato Borghi: É.

Daniela Rocha: E o Zé Celso passou por você e te ouviu cantar. Foi isso mesmo?

Renato Borghi: Ai! O Zé Celso foi uma coisa na minha vida! Tão séria, [risos], porque o Zé Celso é um vendaval que passou na minha vida! Eu andava no Pari Bar, que era o bar em que iam todos os intelectuais da época, e estavam lá aqueles filósofos todos, o Escobar, que casou com a Ruth Escobar, Celso Paulino, aquela gente toda, e aí, a única coisa que eu sabia fazer era cantar! Então, eu cantei! “Canta aí, Renato!”. Eu cantei Chão de estrelas. Aí, o Zé Celso olhou pra mim e falou assim: “Nossa, como você tem uma voz linda! Como você canta bem! Nossa! Eu componho!”. Eu falei: “É? Eu também componho!”. Aí, ficou aquela coisa: “Mostra a tua música, eu mostro a minha...”, começamos a mostrar, aí, nós começamos a levar as músicas para a Maysa [(1936-1977), cantora e compositora brasileira ligada ao bolero, ao samba-canção e à bossa nova], para a Ângela Maria [(1928) cantora, eleita "rainha do rádio" em 1954 e considerada uma das cantoras mais populares do Brasil], para as divas todas, né?

Alberto Guzik: Você se lembra de cantar uma música, alguma música dessa época, sua e do Zé Celso?

Renato Borghi: Do Zé Celso? Lembro! Eu jamais esquecerei! Chamava Nada. Ele vai ficar danado comigo, de lembrar isso![cantando]: “Nada, a minha vida é um vazio/ não sinto calor nem frio. Nada, não vivo alegre nem triste/ porque coração já não existe, a desilusão levou. Sou como uma pedra” - olha o intelectual – “que nem no caminho está. Perdido no rochedo, quem é que vai me encontrar?”. [risos]

Beth Coelho: Você que fez?

Raul Cortez: É bem da época. E a outra que ele compôs...

Matinas Suzuki: Bem Maysa, mesmo!

Renato Borghi: A outra que ele compôs, também, maravilhosa! Que era Um vento forte para o papagaio subir, que foi a primeira, foi amadora do Oficina, [cantando]: “Eu hoje vou fugir com o vento, vou até o firmamento – essa é linda! –, vou ver a Terra brilhar/vou abrir bem os meus braços/ me lançar por esse espaço a ventar, a ventar...” essa música era muito linda!

Alberto Guzik: Como é que se deu essa transição dos compositores para o teatro?

Renato Borghi: Hum?

Alberto Guzik: Como é que se deu a transição dos compositores para o teatro, compositores que não foram adiante, não é? Por quê?

Daniela Rocha: Compositores e estudantes de direito?

Alberto Guzik: Vocês não fizeram carreira como compositores, né?

Renato Borghi: Não.

Alberto Guzik: Mas como é que começou o teatro?

Renato Borghi: Não, não fizemos, porque aí que nós começamos a falar de teatro... o negócio todo foi o meu teste com o Sérgio Cardoso. Eu ganhei aquele teste, fui fazer uma temporada, e o Zé Celso foi ver. Ele era o meu colega do terceiro ano da faculdade de direito e ficou fascinado de eu ser um ator profissional, [risos]. Ele falou assim: “Você é um ator profissional, já vive do seu próprio dinheiro, isso é uma loucura! Você já recebe um salário e não sei o quê, eu também quero ser um profissional e tal”. Aí, voltei para São Paulo, ele já tinha feito amadoristicamente aqui Um vento forte para o papagaio subir e ele tinha escrito uma peça para mim, A incubadeira – né? – que é um asmático, preso à mãe e que um dia...

Alberto Guzik: [interrompendo] E que ele é um animal durante o dia, não é?

Renato Borghi: Ele quebra a farmacinha de remédio, arrebenta tudo e sai para a vida, corajoso, e fica bom da asma! Uma maravilha de peça, [risos] um sucesso, que era para ficar 15 dias no Arena, e ficamos seis, sete, oito meses no teatro fazendo essa peça! Porque as mães, os filhos, uma identificação total! Eu também entendo; é uma loucura, né?

Otávio Frias Filho: Renato, eu queria que você comentasse um pouco, o fato, de quem trabalha no teatro, normalmente é muito supersticioso, não é? Então, não se pode desejar boa sorte antes do espetáculo, não convém o ator usar verde...

Renato Borghi: [interrompendo] Essa, eu não sabia. [risos]

Otávio Frias Filho: Em uma peça do Shakespeare...

Raul Cortez: Eu vou contar uma também.

Renato Borghi: Não uso mais. [risos]

Raul Cortez: Que maravilha, não é?

Otávio Frias Filho: Tem uma peça do Shakespeare, cujo nome não pode ser repetido, a chamada Tragédia escocesa, e assim por diante. Como é a sua relação com essa superstição? Consta até que você tem o hábito de jogar açúcar da calçada para a bilheteria?

Renato Borghi: Na sua peça, eu joguei muito! [risos] Em Rancor, eu joguei açúcar pra chuchu! Deu certo, foi bom. Cada dia que eu jogava açúcar, ferve, enchia lá, era uma maravilha! Vem da porta – eu vou ensinar para vocês – você vem da porta com o “açuquinha”, vai indo, entra na bilheteria disfarçadamente, sem a bilheteira perceber, passa nas costas da coitada, [risos] joga um pouquinho na gaveta e depois vai embora.

Beth Coelho: Eu vi isso, eu acompanhei isso! É a pura verdade! No dia seguinte, nós tínhamos que matar baratas. [risos]

Renato Borghi: Mas é assim mesmo, eu tenho essas superstições. Quando falam – né? –, quando dizem que uma coisa é boa, eu faço.

Hamilton Vaz Pereira: Você está com uma história incrível, de cantor, de compositor e de música. Mas não houve a vontade, a necessidade de fazer um musical esses anos todos, ou você fez?

Renato Borghi: Eu fiz.

Hamilton Vaz Pereira: Fez?

Renato Borghi: Fiz, fiz.

Hamilton Vaz Pereira: E como foi?

Renato Borghi: Foi... não foi o que eu esperava.

Hamilton Vaz Pereira: Não? Por quê?

Renato Borghi: Foi aquela barra, não foi uma coisa, um espetáculo que eu não gostei, não sei.

Hamilton Vaz Pereira: Ah, é?

Renato Borghi: Eu olhei, não gostei do cenário, da encenação, não gostei de muita coisa. Foi um espetáculo, para mim, que não deu muito certo. Mas as músicas eram uma delícia de cantar, eu cantava [cantando]: “você vai me seguir aonde quer que eu vá”.

Matinas Suzuki: Mas então, o que o Hamilton está dizendo, é um musical feito por você, que você tenha escolhido as músicas, que você tenha feito o repertório?

Renato Borghi: Não, esse é o Elifas Andreato [artista gráfico, cenógrafo e jornalista, famoso pela criação de capas de discos (LPs), CDs e publicações impressas, que dedica-se com sucesso também à criação de textos, de cenários e figurinos do teatro] que vai fazer. Eu ainda vou fazer, um show.

Beth Coelho: E de que mais você não gostou, Renato, o que mais você não gostou, quais foram as outras peças?

Renato Borghi: Ah, muitas coisas!

Beth Coelho: No Oficina, por exemplo?

Renato Borghi: Hum?

Beth Coelho: No Oficina, por exemplo?

Renato Borghi: Não tem. Não. Eu passei a não gostar depois. No Oficina não tem, [risos] o que eu vou fazer? É verdade! No Oficina, quer ver, a primeira peça foi A vida impressa em dólar. Era uma delícia de peça, toda ela feita em um método, trabalhada com [Eugênio] Kusnet [(1898-1975), ator russo radicado no Brasil, que destacou-se como diretor e professor de teatro, baseando-se no método Stanislavisk] de ponta a ponta. Depois, vem Uma rua chamada pecado, que era uma delícia de espetáculo, dirigido pelo Boal [Augusto Boal], maravilha! Que eu fazia aquele carteirinho que viaja, que entrega o jornal. A estrela da noite era a Maria Fernanda [(1928) atriz consagrada no teatro, famosa também na TV, em particular pela ousadia ao interpretar dona Sinhazinha, uma personagem adúltera morta pelo marido coronel, na telenovela Gabriela, em 1975]. A Maria Fernanda beijava pra valer, e ela me dava um beijo e mordia aqui [mostrando o lábio - risos]. Aí, o elenco todo ficava esperando para ver como é que eu ia sair, entendeu? E, às vezes, eu saía realmente machucado, porque ela vinha com tudo, sabe? “Jovem, você parece um príncipe saído das mil e uma noites”. Aí, vinha e dava aquele beijo! Um dia, eu tive que pisar no pé dela, para ela parar de morder, porque a dor era insuportável. [risos]

Raul Cortez: Você recebeu a visita da Vivien Leigh. Foi nessa peça?

Renato Borghi: Quem?

Raul Cortez: A Vivien Leigh [atriz de origem inglesa, imortalizada como a personagem Scarlet O’Hara, do clássico ... E o vento levou, pelo qual ganhou o Oscar, em 1939. Mais tarde, recebeu outro Oscar por viver Blanche Dubois, em Uma rua chamada pecado] chegou a ver?

Renato Borghi: Veio, veio! Nós convidamos. A gente era muito atrevido, não é, Raul? Você trabalhou com a gente, você lembra que era tudo atrevido!

Raul Cortez: Ainda é. Não é?

Renato Borghi: A gente foi lá, convidou, trouxe a mulher. Ronaldo Daniel que é o Ron Daniel, diretor, importantíssimo na Inglaterra, nos Estados Unidos, era cidadão inglês etc, ele ia fazer às vezes, falando as coisas todas em inglês, uma placa de prata bem cafona para dar pra ela, e ela disse que não queria imprensa. Mas, quando ela chegou à porta, alguém traiu e tinha um cara com uma máquina.

Daniela Rocha: Um paparazzo.

Renato Borghi: E ela falou: “No, no, no, no!” [gestos exagerados, imitando um sotaque feminino inglês]. Entrou pelo Oficina adentro sem conhecer! Se afundou lá dentro, desceu as escadas e foi parar no porão, enfiada num caixote. Aí, eu fui lá, peguei ela pelo braço e falei: “Miss Leigh [...] please, lets’go”, aí ela: “No, press, no!” [“press” em inglês, “imprensa”]. Aí, ela me deu o braço igual a Blanche Dubois, e nós subimos vagarosamente até o teatro. Era de tarde, a Maria Fernanda fez duas cenas pra ela – né? – da Blanche Dubois. Aí, o Ronaldo entregou uma placa de prata para a Vivien Leigh. E depois, ela ficou muito amiga da mãe da Maria Fernanda, da Cecília Meireles, que estava doente, estava mal, no hospital. E a Vivien Leigh passou a ir lá, todo dia, ficar sendo companheira mesmo, nesse hospital, com a Cecília Meireles.

Raul Cortez: E “comia” o Maurício Nabuco [ator, escritor, diretor e produtor], não?

Renato Borghi: Quem?

Raul Cortez: A Vivien Leigh!

Renato Borghi: Com o Maurício Nabuco? Não! Ela trouxe um caso lindo lá da Inglaterra.

Raul Cortez: Mas ela comeu o Maurício Nabuco, também, que eu sei. [risos]

Renato Borghi: Aí, isso eu já não sei. Mas que ela trouxe um cara lá da Inglaterra, um jovem ator, um "protegido", daqueles assim, ela trouxe!

Beth Coelho: Renato, por falar em Vivien Leigh, que foi uma visita aí que você recebeu, e o Living?

Raul Cortez: Isso!

Renato Borghi: Nossa! Agora deu um pulo, não é? [The] Living Theatre [companhia de teatro sediada em Nova Iorque que se opunha à lógica comercial dos espetáculos da Broadway, defendia que não deve haver limites entre o palco e a platéia, devendo os atores interagirem com o público, questionando, fazendo provocações]! Living Theatre foi uma história muito engraçada, porque nós fomos comemorar, 69 para 70, depois de ter feito A selva da cidade, que foi um, talvez, o meu último espetáculo realmente realizado, inteiramente, dentro do Oficina –, depois, comecei a entrar em guerra com o Zé Celso, comecei a discordar, comecei a não ficar feliz lá dentro e começou um caminho que foi dar na minha saída, já em 72 –. Bom, nós fomos festejar, eu e ele, a passagem de 69 para 70 na Europa, na França, e queríamos demais falar com Living, porque o que mais tinha na época eram publicações sobre Living Theatre! Tinham mil livros, roteiros do Paradise now, roteiros do Frankenstein [espetáculos encenados pelo grupo de teatro], roteiros de tudo! A gente lia fascinado.

Alberto Guzik: Aliás, eles acabaram com o Festival de Avignon?

Renato Borghi: Uma coisa louca! A gente tinha paixão pelo Living só de ler os livros. E queríamos demais conhecê-los! Aí, um dia no metrô, eu falei para o Zé Celso: “Vamos falar que a gente é... que nós somos produtores do Brasil e que vamos convidá-los para virem ao Brasil, para fazer um espetáculo com o nosso grupo. Eles estão na casa “Non Pierna la Mente!”. O endereço, a gente tinha. Aí, chegamos lá e falamos aquela balela na porta, e eles receberam a gente muito bem. E dois meses – não, dois meses, não, minto – cinco meses depois, eles estavam no Brasil sem avisar nada!

Beth Coelho: Hospedados onde?

Renato Borghi: Estavam no Brasil e foram morar em minha casa! Eu fui morar no hotel Coliseu, que é um hotelzinho barato que tinha ali perto do Oficina. Eles ficaram na minha casa, a Judith [Malina (1926)], o Julian [Beck (1925-1985), casado com Judith, ambos fundaram o Living Theater], uma filha chamada Rebeca, que era um inferno de menina! Fazia xixi no tapete! [risos] E mais um bando de gente. E aí, começaram aquelas coisas que me deixavam muito aflito, julgamentos, sabe, Otávio? Sabe a coisa de julgar as pessoas, botar você sentado em uma cadeira e julgar, ver se você era apto para o Living ou não, se você era careta, se não era careta. Aliás, essa coisa de caretice começou aí, se era careta, se não era careta, se você era uma pessoa do sistema, se não era do sistema, não sei o quê e tal, começou...

Otávio Frias Filho: [interrompendo] Era meio “maoista” [referência à ideologia originada nas propostas de Mao Tse Tung, que prega de forma radical, entre outras práticas, a anulação dos interesses próprios em interesse do bem coletivo] o negócio?

Renato Borghi: Tinha gente tão exagerada, Otávio, que para dizer que eles eram liberados, eles falavam assim: “Pois não, sou eu?”, tiravam a roupa toda e já ficavam peladinhos, sentados no meio, para dizer que era liberado, entendeu? Era uma coisa muito louca!

Beth Coelho: E você foi aprovado ou não?

Renato Borghi: Eu nunca quis trabalhar com eles.

Otávio Frias Filho: Mas no teatro...

Renato Borghi: [interrompendo] Eu fui divergente, nunca quis trabalhar com o Living Theatre. Não quero! Eles passavam pelo Galileu Galilei, eles davam risada, e eu ficava muito “puto” com isso! Desculpe, pode falar isso no ar, não pode?

Matinas Suzuki: Claro.

Renato Borghi: Pode! Ficava irritadíssimo com aquele tipo de atitude, eu não gostava, apesar de, em um contato pessoal, ser fascinado pela Judith Malina e pelo Julian, que eram pessoas inteligentíssimas e informadíssimas. E bruxíssimos, bruxíssimos!

Alberto Guzik: A Judith Malina disse uma vez, até em tom de ameaça, que um dia ela ainda ia publicar os trechos do diário dela, referentes às reuniões do Oficina.

Renato Borghi: De mim, não deve ter nada, porque eu não fui.

Alberto Guzik: Você nunca participou de nenhuma reunião?

Renato Borghi: Eu não quis saber! Eu falei: “Não quero”. Porque no momento em que a proposta era nos aceitar para trabalhar no Living, eu falei: ”Eu estou com um trabalho enorme com o Oficina, agora, pra ser aceito para o Living Theatre. De maneira nenhuma”.

Beth Coelho: Aí, começa o seu processo de...

Renato Borghi: [interrompendo] Começa. Começa muito aí o meu processo de separação.

Beth Coelho: ... rompimento com o Oficina?

Alberto Guzik: Mas você ainda teve...

Renato Borghi: O Zé Celso não foi aceito, também, não foi aceito. Flávio Império também não foi aceito, ninguém foi aceito. Todo mundo que tinha cabeça não foi aceito. E aí, eu comecei a encontrar, dentro das minhas gavetas, triângulos com três cabeças de touro cortadas, que era a minha cabeça, a da Ítala [Nandi] e a do Zé Celso, quer dizer, começou a aparecer uma mandingada, uma coisa – aliás, eu adoro uma mandinga! – mas essa, me dava medo! Porque minha cabeça cortada, eu ficava aflito com aquela história, não é?

Alberto Guzik: Mas Graças, Senhor não foi uma decorrência disso?

Renato Borghi: Foi.

Alberto Guzik: E você mergulhou de cabeça – não é? –, durante um tempo, pelo menos?

Renato Borghi: Paguei para ver.

Alberto Guzik: Não mergulhou de cabeça, então?

Renato Borghi: Mergulhei, porque eu, quando digo, eu entro. Eu entro.

Alberto Guzik: Conta essa história.

Renato Borghi: Entrei, entrei com tudo. Fiz o roteiro, trabalhei junto do roteiro, fiz tudo. Junto, corri o Brasil, experimentei em Brasília, em Goiás. E fui um elemento crítico muito presente, quer dizer, às vezes, discordante de certas coisas, que o Zé Celso sabe muito bem disso, e eu não estou mentindo. Como entrar, por exemplo, no DCE [Diretório Central de Estudantes] em Goiás e encontrar umas baianinhas, uns frevinhos, umas coisinhas assim, bem cafonas! E aí, todo mundo entrar de faca em cima daquilo e cortar. Eu achava brutal, né? Eu achava fascista, mesmo, não achava legal. E a ponte de Mandassaia [município em que foi encenada a peça A jaula, do Oficina] também, que para mim pareceu uma construção mentirosa, porque eu tinha...

Alberto Guzik: Conta um pouquinho essa história, que é importante, naquele momento?

Renato Borghi: É, porque a gente trabalhou carregando pedrame cantando um hino religioso, que não faz muito a minha cabeça, [cantando]: “Uma ponte de pedra, uma ponte entre nós e vocês”. A população não ajudava nada, eram só os atores, e a gente carregando as pedras e jogando no leito do rio. Um rio profundo, as pedras não apareciam nunca, entendeu? Até que teve uma hora em que eu cheguei em um lugar e perguntei: “Escuta, onde é que se consegue pedra?”. O homem falou: “O caminhão, ali, pode levar o senhor em uma pedreira”. Eu falei: “Pelo amor de Deus! Mas como caminhão? Pois se não entra caminhão aqui, o que se diz é que a cidade é cercada de rio por todos os lados!”. E ele falou: “Não, tem uma ponte do outro lado”.

Raul Cortez: Renato, você desculpe, eu não quero interromper Renato, mas eu acho que...

Renato Borghi: Entendeu? Eu falei que aquele trabalho tava furado, e o Zé Celso não quis parar o trabalho.

Raul Cortez: Eu acho que o Graças, Senhor, que eu participei, inclusive, e, quer dizer, do início...

Renato Borghi: [interrompendo] Você participou do Qual é.

Raul Cortez: ... tinha uma proposta de roteiro, maravilhoso...

Renato Borghi: Você participou do Qual é!

Raul Cortez: Nós ficamos do início?

Renato Borghi: De 24 a 48 horas trancados dentro de um Qual é, tenebroso, ainda!

Raul Cortez: Pois é, mas esse roteiro foi muito bem elaborado, o Graças, Senhor era um grande espetáculo, que foi estreado...

Renato Borghi: Era lindo, é importantíssimo.

Raul Cortez: Antes de ser censurado.

Renato Borghi: É importantíssimo!

Raul Cortez: Pela censura, aqui...

Renato Borghi: É importantíssimo! Eu até gostaria de deixar esclarecido para vocês, aqui, o que aconteceu foi uma coisa de processo histórico, que não é nem psicológico. Eu tinha descoberto Galileu, eu tinha descoberto O rei da vela, grandes personagens, o prazer da palavra, de representar! E o Zé Celso descobriu o processo oposto, o processo de animação cultural, do happening, da coisa feita junto com o público. Então, quer dizer, a história nos separou. Não foi nem a psicologia, foi a história que nos separou em um determinado momento.

Beth Coelho: E hoje, nessas peças, as últimas que eu vi, Édipo de Tebas, Galileu, você estava falando que o Zé Celso os separou, quer dizer, tinham os atores chamados atores animadores, e que houve uma cisão e que aí, você talvez seria o ator personagem.

Renato Borghi: Nós éramos – como é que eles chamavam a gente, meu Deus? – os que eram do corpo só etc, eram a “regimália”, e nós éramos... tinha um nome... os representativos, qualquer coisa assim.

Beth Coelho: Ou seja, houve uma cisão aí, me parece?

Renato Borghi: Houve. Vem desde o carnaval do Galileu.

Beth Coelho: A minha pergunta é assim: hoje, nas últimas três peças que eu vi tua, em Galileu, Édipo de Tebas, a impressão que eu tenho...

Renato Borghi: [corrigindo] De Tabas.

Beth Coelho: ...ah! Desculpe, Tabas. Que falha horrível, essa, desculpe...

Renato Borghi: Não, horrível nada.

Beth Coelho: Horrível, eu não posso confundir esse tema.

Renato Borghi: É Tebas o normal. Tabas é que é um absurdo, que a gente inventou.

Beth Coelho: Enfim, a impressão que eu tenho é que você, os teus trabalhos, têm uma diferença, quando você está atuando junto com – principalmente, atores jovens –, que a maioria faz, são atores animadores, e você ainda é um ator ligado ao texto, ou seja, um ator personagem. Você sente essa diferença, por questão de técnica, de experiência? O que é que é?

Renato Borghi: É, é experiência. Eu acho que é porque é muito mais fácil você animar uma platéia do que fazer um personagem, isso é, sem dúvida...  quer dizer, eu não sei, também... agora eu estou falando besteira... deve ser muito difícil, também, encarar uma platéia, do ponto de vista de animador, que é uma coisa que eu acho que – vai aqui um elogio de coração ao Marcelo Drummond [ator e diretor do Oficina] –, ele faz divinamente bem! Quando ele faz, eu fico encantado de ver ele fazer, que é uma tática de lidar com essa platéia cara a cara! Como se fosse um Chacrinha! Que é uma coisa maravilhosa, um talento que eu não sei se tenho, porque eu sou muito ligado ao universo da personagem. Eu adoro o fato de representar o Galileu, O rei da vela, o Tio Vânia, enfim, essas coisas são umas das coisas que me encantam no teatro, a fala...

Beth Coelho: Mas o teatro, o Galileu, por exemplo, não tinha como encenação, como resultado...

Renato Borghi: [interrompendo] Tinha.

Beth Coelho: ... cênico, não tinha esse chamado “teatro de animação”, ou seja, uma ligação direta com a platéia?

Renato Borghi: Tinha, tinha o trabalho da Cibele Forjaz, que também é uma pessoa do Oficina – né? –, que tem uma grande influência do Oficina, uma diretora, eu acho que de porte, de gabarito. Ela vai fazer coisas bem importantes, eu acho, vai dar frutos importantes para o teatro brasileiro, mas tem essa... essa linguagem de uma pessoa que vive dentro do Oficina?  Eu não tenho tanto, porque eu já estou afastado há muito tempo, não é?

Alberto Guzik: Agora, Renato, voltando para o Graças, Senhor, um pouco, você pensou alguma vez – eu acho que havia uma grande ambição naquele projeto, que era fazer do teatro e da vida a mesma coisa –, quer dizer, o projeto era fazer com que o teatro interferisse diretamente na vida?

Renato Borghi: Exatamente.

Alberto Guzik: Foi muito frustrante perceber que não era exatamente isso, quer dizer, que... como é que você percebeu o fracasso?

Renato Borghi: Eu não sei, eu fui...

Matinas Suzuki: [interrompido] A gente precisa fazer um pequeno intervalo, e a gente volta daqui a pouquinho.

Renato Borghi: Com prazer.

Matinas Suzuki: Com o Renato Borghi respondendo a essa pergunta do Guzik, até já.

[intervalo]

Matinas Suzuki: Bem, nós voltamos com o Roda Viva, que esta noite está batendo um papo com o ator, Renato Borghi. Infelizmente, você não vai poder participar deste programa porque ele foi gravado. Antes de ir para o intervalo, o Guzik estava fazendo uma pergunta. Eu interrompi a sua pergunta, desculpe, dá para você repetir a pergunta para ele?

Alberto Guzik: Claro. Eu havia perguntado a respeito do Graças, Senhor, era um projeto onde havia nitidamente a ambição de fazer com que o teatro interferisse na vida, modificasse a vida, a arte seria, enfim, tão forte quanto a realidade. Isso não aconteceu, eu queria saber o que é que você pensa a esse respeito? E como é que você viu esse processo?

Renato Borghi: Olha Guzik, Graças, Senhor é uma coisa, e isso que você perguntou é outra.

Alberto Guzik: Do Graças, Senhor: o Graças, Senhor tinha esse...

Renato Borghi: Porque eu acho que o teatro é uma coisa muito forte, é que mesmo nesse período cibernético, de globalização, de alta tecnologia etc, é o que vai nos restar como possibilidade de interferir na civilização de alguma forma, de melhorar o homem, de trazer novas possibilidades de plugar o homem com uma sociedade mais justa, mais gostosa.

Alberto Guzik: Concordo plenamente.

Renato Borghi: Eu acho que é o teatro, ainda, esse caminho! Eu não acredito que o teatro está superado. Não vai acabar nunca, não vai morrer nunca e acabou!

Alberto Guzik: Mas o projeto de Graças, Senhor? Era a isso a que eu estava me referindo.

Renato Borghi: A história é outra. É o seguinte, quer dizer, as coisas que eram propostas como os primeiros exercícios anteriores ao Graças, Senhor, como a construção dessa ponte – quer dizer – eu flagrei que ela estava furada e fui o elemento crítico referente à construção dessa ponte, não é verdade? Como na Bahia, de repente, se pedia às pessoas para queimar a Carteira de Identidade e queimar Carteira de Trabalho. Não adianta, porque ele vai ter que tirar outra, eu acho que não é por aí! Nós temos que descobrir outras coisas que realmente não obriguem o cidadão a repetir na vida uma coisa que, até, inclusive, é chata e que ele já fez. E eu comecei a ser um elemento dentro do grupo, completamente diferente do que fui, porque fui [antes] uma inspiração dentro do grupo. Eu fui uma pessoa que discutiu todos os projetos com o Zé Celso, que decidimos tudo o que nós íamos fazer etc. E a partir de um certo momento, eu era um elemento discordante, uma pessoa que não concordava com muita coisa, que fazia uma crítica muito... muito realista, muito ligada mesmo a ... uma pessoa do quê? Inclusive, tinha uma coisa na época que eram as rãs e as cotovias; as rãs eram as pessoas que ficavam na terra, ligadas à realidade, e as cotovias, cantando [gesto de assovio]. Eu fiquei de rã um tempo, até que eu me cansei e falei: “Não, o que é que há! Eu também sou cotovia! Que história é essa de rã pra cima de mim?”. Nunca, não é? E aí, eu fui embora, fui ser cotovia por minha conta.

Beth Coelho: Eu queria saber como que você foi embora.

Renato Borghi: Não queria saber dessa brincadeira, pelo amor de Deus, não é? [referindo-se, ainda à “rã”]

Beth Coelho: Eu queria saber como você foi embora. Ele não fala como foi embora! Pode voltar agora...

Carlos Graieb: Deixa eu engatar com esse tema que ele estava falando, que é do teatro interferindo na vida. Você interpretou muitas peças do Brecht [Bertold Brecht], o Oficina fez várias peças do Brecht, que era um autor comunista, que está fazendo 100 anos de nascimento esse ano. Quer dizer, esse projeto do teatro levar adiante uma ideologia política tinha alguma coisa a ver com o que vocês faziam?

Renato Borghi: Tinha a ver com nós, atores, integrantes do Oficina, quer dizer, a base: Fernando Peixoto, eu, Zé Celso, Ítala Nandi etc. Estávamos muito mais à esquerda de Deus Pai todo poderoso, do que à direita. Mas não ligados ao Partido Comunista, não é, Raul? Você sabe disso, não é?

Raul Cortez: Eu sei, mas isso também não...

Renato Borghi: Nunca fui ligado ao Partido Comunista. Aliás, até tentei entrar, mas tinha umas reuniões em que a gente era obrigado a decorar umas cartilhas e depois as pessoas ficavam cobrando aquelas cartilhas da gente. E depois, era uma coisa meio “clube do bolinha”, e a gente era meio insubordinado, do ponto de vista até do comportamento, da sexualidade, de tudo o mais. E aí, não houve muito acerto com esse Partido Comunista. A gente nunca pertenceu.

Otávio Frias Filho: Quem foi o professor de Brecht, de vocês?

Raul Cortez: Embora tivéssemos sido acusados de comunistas, no momento em que nós estávamos fazendo – isso é verdade ou não? – Televisão Paulista [emissora de TV que manteve atividades desde 1952 e que foi adquirida por Roberto Marinho, da Rede Globo, nos anos 60]... não era essa que tinha na [rua] Nestor Pestana, não foi?

Renato Borghi: Foi.

Raul Cortez: Junto com o [autor e diretor] Walter Jorge Dust.

Otávio Frias Filho: O Zé Celso com o Nestor Pestana?

Renato Borghi: Não, o Zé Celso estava no Oficina dele.

Raul Cortez: No Oficina.

Renato Borghi: A gente fazia televisão na TV Excelsior [referência equivocada a outra emissora, que funcionou no Rio de Janeiro, de 1963 a 1970, quando foi cassada pelo governo militar de Médici] paulista...

Raul Cortez: Na Televisão Paulista.

Renato Borghi: Na TV Paulista, com ele.

Raul Cortez: E nós fomos juntos, todo o grupo do Oficina, e estávamos prestes a integrar o elenco do teatro, da Televisão Paulista. E fomos dados lá como comunistas, por alguém, e nós tivemos que optar entre o Oficina e a Televisão Paulista. Evidentemente, que nós todos voltamos para o Oficina.

Renato Borghi: Foi.

Raul Cortez: Não foi assim?

Otávio Frias Filho: Quem foi o professor de Brecht de vocês, Renato? Quer dizer, vocês fizeram duas pequenas revoluções, pelo que eu entendo, não é? A revolução Stanislavski que vocês aprofundaram no Brasil, o método do Stanislavski, da interpretação realista, que deu base pra todo o cinema americano etc e poucos anos depois, vocês fizeram uma virada e adotaram uma linha de interpretação, de concepção mais brechteana, eu entendo que o Kusnet foi o grande professor de Stanislavski.

Renato Borghi: Sim.

Otávio Frias Filho: Quem foi o professor de Brecht, do Oficina e de vocês?

Renato Borghi: Ninguém.

Otávio Frias Filho: Vocês próprios?

Renato Borghi: Fomos nós mesmos. Nós vimos várias montagens de Brecht feitas no Brasil, que a gente achava que estavam equivocadas, porque as mensagens eram muito duras. Era uma coisa de chegar à frente, uma hora que o personagem tem que falar: “Não, que maldição de guerra! Maldita, seja a guerra!”, na Mãe Coragem [e seus filhos, de Brecht]. Chegava e falava: “Maldita seja a guerra!”. Então, ficava uma coisa de uma mensagem dura, carcará, chata, insuportável, e a gente foi intuindo que Brecht não era por aí. E lendo, lendo muito e discutindo muito, porque a gente vivia em permanente discussão dessas coisas, a gente descobriu que o afastamento, o distanciamento ou qualquer coisa parecida com essa palavra, não tinha nada a ver com essa chatice dessa mensagem dura, não é? Se você canta uma canção ponderando sobre uma cena, já há o afastamento da cena, um comentário crítico da cena, não é? A postura de representar a cena como quem assistiu a um fato já é completamente diferente de estar vivenciando completamente. Pode ser extremamente interessante. O que eu acho que nós descobrimos pela nossa própria intuição, pelo nosso próprio gosto. Eu acho que fiz, com o Zé Celso, dois Brecht lindos, o Galileu, que era um espetáculo belíssimo, e Na selva da cidade, que eu não tenho palavras. Zé Celso, como você fez lindo aquilo!

Alberto Guzik: E é engraçado que foi o contrário, não é?, vocês fizeram primeiro um Brecht de absoluta maturidade, um texto completamente equilibrado, sereno, e depois, vocês voltaram para fase “porra louca” dele, que é aquela coisa do...

Renato Borghi: [interrompendo] Mas tem! Para tudo isso há uma explicação histórica, não é? Quer dizer, a gente fez esse Brecht maduro, para responder ao AI-5, o Galileu. Tanto, que as fardas da Inquisição eram verde-oliva. Toda a Inquisição era vestida de verde oliva. Então, a gente respondeu dessa forma, mostrando como é que um homem que descobre uma coisa tão importante como o Galileu é obrigado a abjurar. Esse era o sentido, não é? Hoje em dia, é completamente outro o sentido.

Carlos Graieb: É, trinta e tantos anos depois, qual é o sentido?

Renato Borghi: Eu acho que o sentido hoje é de que a ciência só tem sentido... é o último discurso dele: “Não há alívio da canseira da existência humana”, como ele disse, “vocês cientistas acham que basta muito saber, por amor do saber. Essa vossa ciência vai ser uma religião e as suas máquinas vão ser as novas aflições e nada mais. E vai chegar um tempo em que o abismo entre vocês e a humanidade pode crescer a tal ponto, que a cada grito de alegria de vocês, grito de quem descobriu uma coisa nova, responda um grito universal de horror.” E esse é o momento em que a gente vive, em que a ciência pode, realmente, entrar em favor da humanidade. Ela pode entrar a serviço do alívio da canseira da existência humana, ou ela pode, simplesmente, como diz essa autora francesa, a Viviane Forrester, em Horror econômico, criar um quinto da humanidade com tecnologia de ponta, com direito a tudo, dinheiro transferido aqui, só no teclado, não é? Com todo mundo muito bem, todo o conforto, e de repente, quatro quintos da humanidade deprimidos, porque não tem trabalho, porque não tem razão de existência. É quase um genocídio!

Otávio Frias Filho: Renato...

Renato Borghi: Então aí, a coisa fica... mas eu acho que tudo isso é transformável, nada disso precisa acontecer. Eu acho que tudo isso são hipóteses que podem acontecer, se nós, através até da nossa arte – não é, Miltinho? – através do teatro, não discutirmos essas questões. Eu acho que o teatro está desplugado, está na hora de plugar o teatro de novo...

Otávio Frias Filho: O teatro brechteano queria criticar o...

Renato Borghi: ... com a realidade, com as coisas.

Beth Coelho: É por isso que você diz que ama a televisão, atualmente?

Renato Borghi: Eu adoro televisão, eu sou viciado em televisão! Eu vejo televisão, inclusive, para gritar, para dizer: “Ai, que coisa horrível!”. Sabe, tem horas que a gente vê jornal e não acredita no que está vendo e discute, berra, porque é uma forma de você estar em sintonia imediata com os fatos. Depois você lê o jornal, compara, lê os editoriais e tudo. Mas a televisão é uma coisa muito importante. Como dizia o MacLuhan [Marshall McLuhan], “o meio é a mensagem”. Só o fato de ela existir já é uma coisa fantástica. Agora, como ela é utilizada é uma outra questão. Aí, já entrou o "mercadão", entrou uma outra coisa, agora.

Hamilton Vaz Pereira: Eu gostaria de voltar ainda à permanência no teatro: 40 anos. Você falou principalmente aqui, dos 14 primeiros anos, ou seja, o momento Oficina. Eu queria conhecer um pouquinho, ou saber um pouco dos outros anos, do período solo, assim, quais foram os momentos?

Renato Borghi: Nunca foi muito solo pra mim.

Hamilton Vaz Pereira: Não muito solo?

Renato Borghi: Passou a ser solo depois de certo tempo. Aí, eu conheci uma mulher linda, maravilhosa, deslumbrante, talentosa, que quando eu vi em Dom Juan, que ela entrava e fazia:  “Dom Juan”, eu caí de quatro, apaixonado, que era a Esther Góes. Eu fiquei doido! Cortejei pela primeira vez uma mulher! Eu peguei uma caixa de maquiagem que eu tinha trazido da Polônia, que cheirava a baunilha, eu dei de presente para ela, aí falei:  “Toma aqui, para você ficar mais linda”. Aí, fiquei alucinado e comecei a fazer teatro, depois que eu saí Oficina, com ela. Formei uma companhia com ela, casei com ela, tive um filho com ela. Ela era uma pessoa... eu trabalhei sempre muito na paixão, e ela me dava uma grande inspiração. Tanto, que O que mantém o homem vivo foi um dos mais belos espetáculos que eu fiz fora do Oficina, um espetáculo realmente muito bonito, muito inspirado, e a inspiração fundamental era a figura da Esther.

Otávio Frias Filho: Renato, a propósito disso, o Brasil tem uma tradição de grandes atrizes: a Cacilda Becker, a Fernanda Montenegro, Marília Pêra.

Renato Borghi: É um matriarcado danado, né?

Otávio Frias Filho: Danado. Uma outra faixa de geração, a própria Beth Coelho, que está aqui. No entanto, não é tão comum, digamos, haver grandes atores – quer dizer, com as devidas ressalvas, o próprio Raul está aqui para nos lembrar disso –, mas eu tenho a impressão de que é mais freqüente haver grandes atrizes do que grandes atores. Isso é uma característica até do Brasil, se é que você concorda com a premissa? Se é uma coisa do teatro em si, como é que você vê isso?

Renato Borghi: Eu acho que é uma coisa da sociedade brasileira. Os homens precisam ganhar dinheiro. E como o teatro é uma coisa que está meio dúbia, eles saem para empregos. Eles vão ser administradores de empresas, embora tenham talento. E as mulheres, às vezes, elas conseguem dar um tempo e ficar no teatro. Mas não é verdade isso, que só têm grandes atrizes! Têm grandes atores, onde é que está o [Gianfrancesco] Guarnieri [(1934-2006), ator e dramaturgo nascido na Itália, ícone do teatro brasileiro, celebrizado pelo drama Eles não usam black-tie, levado também ao cinema, em 1981, entre outros textos voltados à discussão dos problemas sociopolíticos brasileiros. Ver entrevista no Roda Viva]? Onde é que está o Raul Cortez?

Otávio Frias Filho: Não, claro, eu mencionei. Mas eu digo, é mais freqüente, talvez você...

Renato Borghi: E, meu Deus do céu, quanta gente no teatro, você representou, que coisa maravilhosa! [dirigindo-se a Raul Cortez]

Raul Cortez: É muito mais freqüente acontecer com as atrizes.

Otávio Frias Filho: Mas é muito, muito...

Raul Cortez: Apesar de, hoje em dia, vermos grandes atores de televisão, não é? Estão lá, justamente, para poder ganhar o dinheiro. Grandes atores é uma ironia.

Renato Borghi: É.

Raul Cortez: Claro, mas estão lá para ganhar dinheiro. Infelizmente, essa é a visão deles, quer dizer, da arte de representar. Por falar em arte de representar, você faz uma diferença muito grande, não é?, de ator-artista e ator, como é que é isso?

Renato Borghi: Faço sim.

Raul Cortez: É?

Renato Borghi: Eu acho que tem o ator burocrata, que é aquele que presta serviço, que é até uma certa facilidade, que resolve alguns personagens, tem uma naturalidade. Às vezes, até se sai melhor do que o ator-artista. E o ator-artista é aquele que realmente está impregnado da obra, da missão que ele tem no teatro. Ele está encarando a permanência dele dentro do teatro, dentro de uma... de uma outra maneira. Ele está preocupado com o teatro, com o país dele, com a sociedade, ele está preocupado com o papel do teatro dentro dessa sociedade! Ele está com projetos – projetos que esse ator burocrata não tem. Não tem projeto nenhum: é um personagem, depois outro, um teste de comercial, outro teste, outra coisa; não está preocupado com coisa nenhuma.

Otávio Frias Filho: Quais são os responsáveis...

Hamilton Vaz Pereira: Mas aí, entram as mulheres, as mulheres na minha curta experiência, não é?, diante dos seus 40 anos, as mulheres são muito mais homens dentro do teatro.

Renato Borghi: Eu também acho.

Hamilton Vaz Pereira: Elas produzem muito mais, elas são muito mais "caxias".

Renato Borghi: Olha aí, um homem, olha um “homão” [apontando para Beth Coelho]!

Hamilton Vaz Pereira: Elas são mais... elas enfrentam essas coisas.

Renato Borghi: Uma coisa louca!

Hamilton Vaz Pereira: Essas peças, escolhem os seus diretores, elas vão à luta, os homens são uns bolhas!

Raul Cortez: É que a gente vive em uma sociedade machista. Para as mulheres é muito mais fácil.

Carlos Graieb: O interessante é que as mulheres fizeram os musicais, que você nunca fez nos últimos anos.

Raul Cortez: O homem nunca pára um trabalho. Mas para ela, é muito mais fácil, ela propõe uma proposta, ela seduz...

Renato Borghi: Você quer uma mulher mais forte que a Bibi Ferreira [Abigail Izquierdo Ferreira, 1922, atriz, diretora e dramaturga, filha de Procópio Ferreira]?

Raul Cortez: A Ítala Nandi, do Teatro Oficina.

Renato Borghi: Ela impõe respeito que é uma loucura, não é?

Daniela Rocha: Renato, eu queria entrar um pouquinho na questão do teu projeto como artista, quer dizer...

Renato Borghi: Sim.

Daniela Rocha: ... você agora, nesse momento, está montando espetáculos com atores jovens. Você, que tem 40 anos de carreira, que saiu de um Oficina, enfim. E o que se comenta, é muito freqüente, que as pessoas saiam do espetáculo falando assim:  “O Borghi é um show de interpretação, o que não acontece com o resto do elenco”, que o resto do elenco não é, assim...

Renato Borghi: No Tio Vânia, não é verdade, porque está cheio de gente ótima!

Raul Cortez: Eu também acho que não, eu assisti ontem e eu não acho isso, também.

Daniela Rocha: Existe uma, uma...

Renato Borghi: O Tio Vânia tem a Leona Cavalli, maravilhosa.

Raul Cortez: Pode não ser um show de interpretação, mas tem grandes atores.

Renato Borghi: Tem a Mariana [Lima], maravilhosa. Pode ser que aconteceu uma vez ou outra, mas não é uma coisa freqüente.

Daniela Rocha: Onde eu queria entrar é o seguinte, a questão da pesquisa...

Renato Borghi: [continuando seu raciocínio] Agora, eu acho importante delegar. Eu tenho 40 anos de teatro, o que mais eu quero? Eu tenho que delegar, eu tenho que trabalhar com as pessoas, eu tenho que entregar para elas!  Se eu sinto que o Élcio Nogueira é um ótimo diretor, eu tenho que deixar ele dirigir!

Daniela Rocha: Você ensina as pessoas?

Beth Coelho: O que é que é um ótimo diretor? O Élcio, que tem 25 anos de idade?

Renato Borghi: Porque eu estava fazendo Pequenos burgueses com 25! Por que é que agora as pessoas que têm 25 não podem fazer?

Beth Coelho: Não, não digo em relação a isso.

Renato Borghi: Mas podem! Elas estão aí, elas estão fazendo!

Daniela Rocha: Mas, Renato, você não sente que existe uma falta de pesquisa, os atores agora, eles estão mais...

Renato Borghi: [continuando seu raciocínio] Alguns.

Daniela Rocha: ... talvez até mais acomodados. Eles, os diretores e atores, não estão se dedicando tanto à pesquisa, como vocês do Oficina faziam por conta própria?

Renato Borghi: Alguns, outros se dedicam seriamente, profundamente!

Daniela Rocha: Quer dizer, a gente vê uma..

Renato Borghi: Outros ainda respiram teatro, ainda vivem teatro, estudam teatro, perguntam sobre teatro, ainda estão 24 horas ligados ao teatro, graças a Deus! Existem...

Carlos Graieb: [interrompendo] Alguém dirige inflexão, hoje em dia?

Renato Borghi: ... essa geração que está chegando aí, e que é mais recente do que o pessoal da década de 80... Porque o pessoal da década de 80 com grande talento de encenação, eles são maravilhosos, do ponto de vista, assim, da beleza do espetáculo, da coisa caleidoscópica, não é?, Aquele gelo seco, aquele foco no olho, aquela coisa precisa, exatidão, aquilo tudo mais. O ator ficou muito retraído, ficou muito prejudicado, ficou muito atrás...

Daniela Rocha: [complementando] Aguardando o diretor.

Renato Borghi: ... da encenação, não é? Quando eu acho que a grande força do teatro, quer dizer, começou com o ator e vai acabar com o ator. Quem pode encantar a platéia somos nós.

Beth Coelho: Você realmente se deixa dirigir pelo Élcio, por exemplo?

Renato Borghi: Sem dúvida! Sem dúvida nenhuma!

Beth Coelho: Não, eu acredito perfeitamente, porque eu te dirigi.

Renato Borghi: Você sabe que eu sou dócil pra chuchu!

Beth Coelho: Exatamente, generoso.

Alberto Guzik: Quais as armas do ator Renato, como é que é a coisa da técnica e o uso da técnica e da emoção na construção da personagem? O que é que o ator... como é que é isso? Como é que... como é que se processa a construção de uma personagem?

Renato Borghi: Nossa! Que pergunta, heim Guzik!? Acho que em primeiro lugar, segundo o meu velho mestre, o Eugênio Kusnet, é saber o que é que ele quer, o que é que ele quer das pessoas que estão com ele na peça. O que é que ele quer na obra, o que é que ele quer na peça.

Alberto Guzik: Mas como é que se passa isso para a própria pele?

Renato Borghi: Se passa através de vários processos, de procurar isso na tua própria vida. Ou, quando a sua vida é pequena, por exemplo, para viver um Édipo. É pequena! Eu não vou encontrar isso na minha vida, não vou! Imaginação: eu acho que a imaginação é a grande arma do ator. Eu acho que a Beth, por exemplo, é uma atriz de uma imaginação enorme, ela tem uma coisa que, quando ela passa em uma cortina, eu digo: “Meu Deus! Ela deu vida para essa cortina, como é que foi?”. Essa história é uma coisa toda que está ligada a um processo mental de imaginação, mesmo, de... “se eu fosse essa pessoa, se isso estivesse acontecendo comigo”, e aí, se começar a se colocar em uma situação da qual você nem tem referências. Não posso ter referência de um filho que descobre que está transando com a mãe, que matou o pai, que arrancou o olho [referindo-se ao personagem Édipo]; é complicado! Aí, só mesmo dentro do terreno da imaginação, e aí, a imaginação vai longe.

Beth Coelho: O Antunes Filho...

Renato Borghi: A imaginação vai longe.

Beth Coelho: Ô, Renato, por falar em ator, o Antunes Filho, ultimamente, anda falando que o ator não sabe falar e está trabalhando com isso, lidando com isso, lá no grupo dele.

Renato Borghi: O Antunes fala, não é? Ele fala. Eu li hoje, 30 entrevistas dele! Ele fala que é uma maravilha! Aliás, fala coisas belíssimas sobre teatro, eu respeito demais ele. Porque é uma pessoa, realmente, que a gente sente, que é teatro. Ele vive teatro, respira teatro, vive para o teatro, e a coisa dele toda é teatro. Você pode até não concordar com o que ele está fazendo, mas ele é teatro puro! E isso, para mim, é em primeiro lugar, assim, uma coisa que eu respeito muito.

Beth Coelho: Você acha que o ator não sabe falar?

Renato Borghi: Hein?

Beth Coelho: Você acha que o ator não sabe falar?

Renato Borghi: Não está sabendo falar, não. Ele tem razão. Nós estamos fazendo um naturalismo curto, pequeno, uma coisa de quem tem um “bum” aqui dentro e não tem expressão pra fora. Eu acho que o gestual do ator está todo de... [gesticulando exageradamente]. Concordo com o Antunes, quando ele fala: – “Eu vou cortar a mão de abano!”, porque fica todo mundo “pa, pa, pa, pa, pa, pa, pa, pa, pa” [novamente gesticulando]. O que é que quer dizer isso? Por que isso? Para que isso?

Alberto Guzik: Então, além da imaginação, a técnica é muito importante, também?

Renato Borghi: Ah, sim, sem dúvida, sem dúvida!

Carlos Graieb: Você falou no começo da entrevista que quando você começou a encenar se dirigia em torno da inflexão da frase. Tem alguém que faça isso, hoje em dia?

Renato Borghi: Não, eu não tenho encontrado.

Beth Coelho: Só você e o Gerald Thomas?

Renato Borghi: Hein? Eu não vi, eu não trabalhei com o Gerald Thomas – que, aliás, existe um mito aí, que eu não gosto do Gerald, você sabe disso, não é verdade!. As coisas que eu tenho lido do Gerald, eu acho ótimas, eu acho que ele é um cara, sabe?, de uma sacação enorme, com um sentido de... ele tem uma gargalhada niilista a respeito disso tudo que nós estamos falando aqui. Eu tenho a impressão de que ele estaria debochando profundamente em casa, desse meu apego ao teatro, desse meu amor ao teatro, dessa minha coisa, e com muita propriedade, porque estaria jogando outros valores em cima disso. Um cara que contesta. Eu acho a obra dele muito interessante. Eu acho um cara legal, muito mais legal do que eu acho essa geração caleidoscópica.

Otávio Frias Filho: Renato, você está sendo assistido, agora por, sei lá, centenas de milhares de jovens no país inteiro. A pergunta clássica: que conselhos você daria para um jovem que quer virar um bom ator?

Beth Coelho: Um exemplo é o filho dele, não é?

Renato Borghi: Trabalho, trabalho, trabalho, trabalho, cultura, cultura, cultura. Eu acho que o ator é uma antena parabólica, uma coisa ligada com o mundo inteiro. Ele é uma coisa que recebe todas as correntes da sociedade, ligada com o mundo, ele é uma coisa que tem que estar a par do que se passa na política, na literatura, nas artes plásticas, na cultura, o máximo que ele puder – claro, porque ele não é onipotente –, quer dizer, mas o máximo que puder, esse interesse de ligação com o mundo. Ele é, como diz o Zé Celso, na linguagem dele, é “xamã” [espécie de sacerdote em determinadas culturas, sobretudo indígenas], é “pai de santo”, é “cavalo” [na linguagem da umbanda, um médium que incorpora espíritos], das tendências sociais, né?, para poder receber essas tendências, essas forças. É preciso que a gente se prepare muito, tem que estar muito preparado.

Beth Coelho: Renato, o teu filho fez isso, Renato?

Daniela Rocha: Renato, você como ator tem algum cacoete?

Renato Borghi: Muitos.

Daniela Rocha: Quais são eles?

Renato Borghi: Eu sou acusado de ter cacoetes. Mas Cacilda Becker também tinha, [risos] ora essa. Ela falava sempre assim de um jeito... meu pai diz que ela parecia uma japonesa, que não tinha ponto, vírgula, nada, que era tudo de um jeito só. E eu adorava ela! Pronto, então, me agüentem.

Beth Coelho: Mais quais são os teus, Renato?

Renato Borghi: Hein?

Beth Coelho: Quais são os teus?

Renato Borghi: Não sei, mas dizem que eu tenho, então eu aceito. As pessoas falam, elas é que falam.

Raul Cortez: Posso falar algum, Renato?

Renato Borghi: Eu não estou vendo, não é?

Raul Cortez: Posso falar um, posso falar um?

Renato Borghi: Pode.

Raul Cortez: Você, desde que te conheci como ator, [risos] você tem uma mania de olhar para a platéia e você não vê ninguém. E todo mundo diz: “Ele não pára de olhar para a gente”.

Renato Borghi: Mas é verdade, eu não vejo ninguém, mesmo!

Raul Cortez: Você não vê ninguém.

Renato Borghi: Eu sou míope! Eu não vejo nada, não vejo nada, não vejo nada!

Raul Cortez: Você reconhece isso?

Renato Borghi: Reconheço. É possível. Não é vontade de ver a platéia, mas é, talvez, de intuir se pegou bem ou não. [risos]

Matinas Suzuki: Renato, eu não sou do mundo do teatro, mas eu tenho uma curiosidade muito grande. Aliás, é uma pergunta até que, toda vez que tem um ator aqui, eu acabo fazendo essa pergunta. Tenho muita curiosidade sobre esse tema, e a gente estava falando, por exemplo, aqui, da Cacilda. E pouca gente, hoje, pode dizer que viu a Cacilda. Você tem angústia com relação a isso? Quer dizer, o grande trabalho que você fez, as novas gerações, provavelmente, não terão como saber se foi um grande trabalho ou se não foi um grande trabalho. Saberão pelos relatos, saberão pela história, saberão contados por outras pessoas, mas não terão essa experiência, como você pode, hoje, rever um filme da década de 20, como você pode reler um romance...

Renato Borghi: É verdade, é verdade.

Matinas Suzuki: ... do século passado, como se pode ouvir uma música. Isso te dá alguma angústia?

Renato Borghi: Dá.

Matinas Suzuki: Com relação ao seu trabalho?

Renato Borghi: Dá.

Daniela Rocha: Aproveitando essa pergunta, Renato...

Renato Borghi: [continuando o raciocínio] Dá sim, dá.

Daniela Rocha: Aproveitando a pergunta, Renato, você se recente por não ter um teatro próprio para você trabalhar?

Renato Borghi: Também. Não gosto disso. Eu gostaria de ter uma sede, gostaria de ter uma sede para desenvolver um repertório.

Daniela Rocha: Você se recente de não ter um Oficina, por exemplo?

Renato Borghi: Me recinto, eu sinto muita saudade do Zé [Celso] também.

Raul Cortez: Mas fala desse ressentimento, que você começou a dizer?

Renato Borghi: É, na verdade, eu acho que eu fui um ator que fiz muito pouco televisão também, né? Quer dizer, eu devo ter 50, 60 peças para o quê? Cinco novelas? Então, quando eu começo a falar de novelas, as pessoas pensam que eu estou falando de raiva, de ter sido repudiado etc. Mas, na verdade em 68, quando a “TV máxima” do Brasil foi fundada [referindo-se à Rede Globo], eu tinha acesso à informação, era um jovem irreverente, uma pessoa com um caráter até, de uma certa forma, violento, e não conseguia calar a minha boca. E, então, de certa maneira, eu dei várias entrevistas falando sobre a participação dessa televisão no golpe de 64 e, depois, na sua própria formação em 68 etc. E eu fiquei uma pessoa vetada no computador, lá. E pouco tempo depois – quando tinha computador. Antes, era na ficha, uma “persona non grata” nessa emissora –, o que prejudicou a minha carreira bastante, porque eu não pude ser tão popular quanto eu pensei, quando eu era criança, que eu queria ser cantor da Rádio Nacional. Queria ser tão popular quanto a Emilinha Borba [(1922-2005) cantora. Iniciou sua carreira na década de 1930 e fez parte do grupo dos cantores da chamada “era do rádio”] e a Dalva de Oliveira! Então, eu nunca fui uma pessoa tão popular assim, eu fui um ator...

Otávio Frias Filho: [interrompendo] Prejudicou e favoreceu, porque talvez você fosse...

Renato Borghi: ... que teve um grande reconhecimento, não é.

Otávio Frias Filho: ... um ator fast food, se tivesse tomado outro caminho?

Renato Borghi: É, exatamente. Mas isso aí é uma coisa complicada de resolver, viu? Porque entre você saber que você fez uma carreira conseqüente e que eu não posso me queixar porque eu fui dono dela, quer dizer, eu escolhi o repertório que eu queria fazer, quase ninguém me obrigou a fazer nada. Eu quase sempre fiz, porque eu decidi que ia fazer. Quer dizer, se deu errado ou deu certo, a responsabilidade é minha, não é de mais ninguém, né? Mas apesar disso, eu gostaria de ser mais popular, de ser mais conhecido do povo, que o povão conhecesse o Renato Borghi nas suas peculiaridades.

Alberto Guzik: Mesmo que isso implicasse...

Renato Borghi: Nos seus cacoetes, não é?

Alberto Guzik: Mesmo que isso implicasse uma rarefação na consistência da tua carreira? Você faria esse pacto com o... fáustico [referindo-se ao romance Fausto, de Johan Goethe, em que o personagem-título faz um pacto com Mefisto, o Diabo, em troca de fama e fortuna]? [risos]

Renato Borghi: Eu sou tão vaidoso que eu acho que sim. [risos]

Beth Coelho: Por falar em pacto, Renato, lembra da cena cinco, em Rancor, da peça do Otávio, que você fazia ali o jornalista Dadá?

Renato Borghi: Ah, eu fazia aquilo, porque ninguém conhece a história.

Beth Coelho: Um Mefisto, ali, um jornalista mefistofélico e tal, não é?

Renato Borghi: Exatamente.

Beth Coelho: Como é a tua relação com a crítica?

Renato Borghi: Ah!

Beth Coelho: Aproveitando o Guzik aqui do lado.

Alberto Guzik: Por quê? Ele vai me bater? [risos]

Renato Borghi: Eu acho que sempre foram muito chatos, em geral, mesmo aqueles considerados bons, aquelas maravilhas que a gente fala assim: “Ah! No tempo de fulano, no tempo de cicrano”. Eu acho eles meio chatos, quer dizer, que eles nunca foram muito com o coração tão aberto quanto a gente esperava que fosse, não para fazer elogio, mas até no próprio comentário crítico. Eu acho que tem um fechamento, uma coisa acadêmica, uma coisa de corrente, tem uma coisa fechada, enjoada, que eu não gosto, que eu sempre briguei com eles, bastante! E na verdade, com algumas pessoas, eu briguei justamente; com outras pessoas, eu briguei injustamente. Como foi o caso do Sábato Magaldi [(1927-), crítico teatral, jornalista, professor, ensaísta e historiador], que um dia falou mal de um espetáculo que eu tinha feito. Aí, eu briguei com ele, xinguei pela imprensa. Aí, ele respondeu, foi para o mural da universidade, um escândalo! Aí um dia, eu dei um abraço nele e disse: “Desculpe, porque realmente, você tem toda a razão”. E aí, pronto, isso acabou, não é? Mas hoje, eu me ressinto muito de um espaço para a crítica, e, Otávio... antigamente, a gente tinha um tempo para falar do diretor, da dramaturgia, do cenário, do figurino, da luz, das interpretações. As críticas eram divididas em três partes, isso tudo dava ao teatro um prestígio, sabe? Um espaço que hoje a gente se ressente muito de não ter, faz muita falta essa coisa. Porque conta a historinha rápida da peça para o público, “pa, pa,pa, pa, pa, pa, é um homem que aos 47 anos, descobriu que não viveu e aí então, pa, pa, pa” e acabou. Quer dizer, aí, depois, falar três ou quatro coisas sobre as interpretações e acabou! Então, eu acho muito curto o espaço, até para o crítico poder fazer uma crítica inteira do espetáculo, e que você se beneficie dessa crítica. Uma coisa que eu acho muito legal – o Guzik é remanescente dessa época –, são os críticos que eram a favor do teatro, quer dizer, eles queriam ver o teatro crescer, o Décio [de Almeida Prado (1917-2000), crítico teatral, ensaísta e professor] queria ver o teatro crescer, o Sábato, eles queriam ver o teatro dar certo! Metiam o pau na gente, mas eles queriam ver o teatro dar certo! Então, eles acompanhavam a evolução, o movimento, a criação, o trabalho da gente de peça para peça, de coisa para coisa. Então, isso...

Beth Coelho: [interrompendo] Eu sou da nova geração. Por que tudo que é passado é melhor, hein?

Renato Borghi: ... tudo era muito bom, esse espaço que a gente tinha, não é?

Beth Coelho: Renato, porque é que... eu sou da nova geração, eu não entendo isso, eu fico com muita inveja! Porque tudo que é passado é melhor? O Sábato é melhor, o Décio é melhor...

Renato Borghi: Eu não sei se é melhor.

Beth Coelho: A Cacilda era melhor! Eu fico angustiada de não ter participado disso!

Renato Borghi: Não é melhor que você a Cacílda, é mentira! Não, não é verdade isso, não é verdade!

Hamilton Vaz Pereira: Mas existe...

Renato Borghi: Tem coisas maravilhosas agora!

Hamilton Vaz Pereira: .. mas existe assim, década...

Renato Borghi: Ele é maravilhoso [dirigindo-se a Raul Cortez], adoro o teatro que ele faz!

Hamilton Vaz Pereira: ... década de 60 é um colosso, me dizem. Eu assisti alguma coisa.

Renato Borghi: Foi mesmo, foi mesmo.

Hamilton Vaz Pereira: Foi mesmo.

Renato Borghi: Foi.

Hamilton Vaz Pereira: Década de 70, nem pensar, nem se comenta! Em nenhum momento, se menciona os anos 70. Já foi para 80! Eu quero fazer uma pergunta para você...

Renato Borghi: Os 70 foi uma coisa...deixa eu explicar para você rapidamente o que foi os 70?

Hamilton Vaz Pereira: Sim.

Renato Borghi: Resistência. Foi teatro de resistência à ditadura. Então, a gente deixou de fazer coisas que sonhava, mesmo. Eu queria fazer Ricardo III, abri mão de tudo para fazer peças como Murro em ponta de faca, que era pela volta do exilado, e não deu para fazer peças que realmente faziam frente, metaforicamente – porque isso é metáfora, não podia ser direto à ditadura –. Foi uma época de resistência! Mas ainda é uma época em que nós tínhamos um grande público universitário, que nós tínhamos uma resposta de público muito grande. Onde a barra começa a pesar é de 85 pra cá, que os efeitos da coisa começam a aparecer.

Hamilton Vaz Pereira: Sim, mas me diga uma coisa: nesse momento em que, digamos, em um primeiro momento da sua trajetória é dito assim: “O Oficina realizou coisas incríveis etc”, o público era quente porque os estudantes iam lá e não sei o quê. Existe uma lenda maravilhosa, que inspira as pessoas que fazem teatro e tal. Eu queria saber de você o seguinte: os anos passaram, estamos aqui em 98. Aí, eu digo a você assim, como é, como é aquele esforço que você, que vocês fizeram na década de 60, aquela coisa, aquela criação teatral encantadora? Como é que você pensa, isso? – os meus companheiros, hoje, estão assim, eu estou assim – aquele público que era efervescente, naquele momento maravilhoso, estão agora com quê?,  50 anos de idade, não sei o quê?, como é que você vê aquele público?

Renato Borghi: [corrigindo] Eu estou com 61, gato.

Hamilton Vaz Pereira: ... como é que você vê aquele...

Renato Borghi: [insistindo] Sessenta e um, não é nada de 50.

Hamilton Vaz Pereira: Parabéns para você.

Renato Borghi: Sessenta e um.

Hamilton Vaz Pereira: Eu quero saber: como é que você entende, hoje, aquelas pessoas que fizeram aquilo, com aquele público que assistiu aquilo, hoje?

Renato Borghi: Olha, eu...

Hamilton Vaz Pereira: Quando você pensa nessa geração, o que é que você pensa?

Renato Borghi: Eu acho que o teatro tem que retomar o seu papel de ponta, sabe? De ponta de lança. Ele pode fazer isso e não está fazendo porque está atrelado a uma mercadologia barata, ele está querendo fazer uma coisa que seja de imediata resposta de público. E a gente não sabe a resposta do público, essa é que é a verdade. De repente, se esse homem [dirigindo-se a Raul Cortez] entra dentro de um Shakespeare, pode ser uma resposta de público extraordinária! A gente não sabe qual é a resposta do público e a gente fica nessa mercadologia, nessa coisa de... sabe? Quantitativa! É o quanto entra, o quanto sai. O que é que dá mais, o que é que dá menos. Essa não é uma linguagem do teatro. Quando eu tive o Oficina, não se chamava Companhia de Teatro Oficina. Chamava no papel. Mas para nós, era Teatro Oficina, te-a-tro! E a gente fazia te-a-tro! Essa continua sendo a minha paixão! Eu quero fazer teatro, eu não estou me importando com essa coisa, sabe? Não consegue entrar na minha cabeça! Me dou mal, às vezes, fico devendo, entendeu? Mas de repente, o que importa é fazer teatro. Teatro é que fala na vida da gente! E é preciso replugar o teatro brasileiro de uma vez por todas com a sociedade brasileira! Eu tenho um desejo enorme, vão me chamar de demagogo, mas, por exemplo, quando eu vi o filme Central do Brasil, sabe o que é que mais me comoveu? Não foi o filme, foi ver aquelas pessoas entrando e saindo do trem, entrando e saindo do trem. Eu falei assim: “Ai meu Deus, quando eu cheguei a São Paulo, tinham três milhões e 500 mil habitantes. Hoje, tem 15 milhões! E a gente não responde à demanda cultural dessa cidade!”.

Carlos Graieb: Deixa eu te perguntar uma coisa?

Renato Borghi: [continuando o raciocínio] Não respondemos. É preciso fazer teatro periférico, é preciso fazer teatro... eu já fiz Galileu no Nordeste, em quadra de basquete, dá certíssimo!

Carlos Graieb: Eu queria colocar a idéia da...

Renato Borghi: [continuando o raciocínio] Claro, com estrutura, com luz, microfones, todo um processo que precisa ter vontade política de um Ministério da Cultura, da secretaria da Cultura, de toda essa gente para ajudar! Mas que acontece, acontece! As pessoas querem! Quando eu vou às casas de cultura fazer uma bobagem qualquer, enche de gente! E eles me perguntam até passar da hora, sobre todas as coisas. Então, quer dizer, as pessoas estão curiosas, elas precisam, elas querem. E porque é que nós não vamos dar? De fato, vamos ter que dar educação, mas cultura? Ninguém dá cultura! Porque é que ninguém fala em cultura? Não pode separar uma coisa da outra! Nisso, eu concordo com aquele ministro da Cultura... eu não sei se era ministro da Cultura, o Portela...

Otávio Frias Filho: Eduardo Portela.

Renato Borghi: Eduardo Portela.

Otávio Frias Filho: Ministro da Educação e Cultura.

Renato Borghi: Quer dizer, não pode separar educação da cultura, nem a cultura da educação. A gente faz, educa fazendo cultura e faz cultura educando. Não dá para separar as coisas, entendeu? Então, não adianta você ensinar uma pessoa a ler, se você não diz a ela o que de bom ela pode ler. Acesso a que coisas maravilhosas ela pode ter com a leitura que adquiriu! Então, eu acho, de verdade, que o caminho está sendo replugar o teatro à sociedade brasileira, e não dessa gente que vai ver teatro só para depois comer pizza e falar: “Olha como ela estava, nossa, ela envelheceu. Ah, mas a plástica caiu um pouco, o cotovelo estava um pouco assim, a mão estava um pouco...”. Essa gente não está interessando... [risos]

Carlos Graieb: Agora...

Renato Borghi: [continuando] ... muito. Me interessa é a sociedade brasileira, o povão que está trabalhando!

Carlos Graieb: Mas essa sociedade brasileira vê o Ratinho [apresentador que faz programa de TV sensacionalista e apelativo]. O Ratinho, inclusive, usou a palavra que você usou, da “popularidade”.

Renato Borghi: Eu vou fazer a estréia da minha peça no [programa do] Ratinho!

Carlos Graieb: Ele disse que o que queria na vida dele, era ser popular. E ele chegou a ser popular, ele é popular, hoje. Então, você acha que essa popularidade é boa e qual seria...?

Renato Borghi: Não é isso o que eu estou falando.

Carlos Graieb: Mas essa, a gente pode pensar que essa sociedade brasileira...

Renato Borghi: Eu estou falando em fazer o teatro em um sistema periférico, fazer em Osasco, em Campo Limpo, entendeu? Em quadras de basquete, levar Galileu, levar Tio Vânia, levar peças nacionais, levar um tremendo repertório.

Carlos Graieb: Mas como é que você lida com esse popular? Como é que você lida com os populares, vamos dizer, o público que assiste ao Ratinho, como é que ele vai assistir ao Galileu, por exemplo?

Renato Borghi: Muito bem! Ele fica encantado, hipnotizado, ele adora! Pois é uma história linda, está falando de uma pessoa excepcional, que descobriu que a Terra não é o centro, que ela vive em torno do Sol, e tudo isso mudou! Você acha que eles não ficam interessados? Ficam!

Carlos Graieb: Não sei.

Renato Borghi: Ah, ficam! Eu tenho certeza, eu tenho feito essa experiência!

Raul Cortez: Eu fui assistir ao próprio Tio Vânia como você está levando, que é o Tchecov, você está levando de uma forma popular.

Renato Borghi: Você viu que resposta linda?

Raul Cortez: Eu vi ontem, com um público bem popular..

Renato Borghi: Que resposta maravilhosa!

Raul Cortez: [continuando o raciocínio] ... inclusive, de uma... financeiramente de pouca acessibilidade. O espetáculo é um preço barato, e a reação é fantástica, porque é feito de uma forma popular.

Renato Borghi: O espetáculo, o Tio Vânia, é no teatro da prefeitura, então, o preço é doze [reais] e é seis, o estudante. Isso já provoca um movimento. Claro, depois que a gente também pegou o TBC, deu uma pintada nele, botou luz na porta, botou bar, botou uma série de coisas que precisava acontecer, porque ele estava parecendo o santo sepulcro [local onde Cristo teria sido sepultado, em Jerusalém], uma coisa esquisita – a gente realmente deu uma mudada nele.

Daniela Rocha: Aliás, você investiu dinheiro seu nisso, não foi?

Renato Borghi: É.

Daniela Rocha: Você pagou para mudar.

Renato Borghi: Eu tenho dinheiro da prefeitura que está prometido, mas que não saiu, não saiu até agora.

Raul Cortez: Agora disso, a prefeitura está querendo cobrar 20% de um teatro que estava jogado fora, ali?

Renato Borghi: Está.

Raul Cortez: Cheio de rato?

Renato Borghi: Está, está querendo. Por quê?

Raul Cortez: Mas como ele pode cobrar 20% de um teatro público?

Renato Borghi: Quando eles entram com o patrocínio, precisam cobrar um percentual.

Raul Cortez: Você recebeu o patrocínio?

Renato Borghi: Não, ainda não entrou, ainda não foi remetido.

Raul Cortez: Mas vai entrar?

Renato Borghi: Eu acredito que sim, eu espero que sim, se não eu vou fugir de São Paulo. Mas eu espero que sim. [risos]

Raul Cortez: Está vendo? A gente esbarra nisso.

Renato Borghi: Hein?

Raul Cortez: Você quer fazer um teatro popular e você não pode, porque você não tem ajuda nenhuma.

Renato Borghi: Não, eu vou falar com o secretário, quarta-feira.

Raul Cortez: Você abaixa o teu ingresso, para ter público no teatro.

Renato Borghi: E vou pedir a ele: “Por favor, quer dizer, a doze e seis, e vocês ainda me cobram 20%, eu ainda tenho que pagar 8,5% de Imposto de Renda sobre cada ingresso que entra, porque eu sou microempresa, quer dizer, aí fica quase impossível a gente poder dar aos atores, aquilo que eles precisam para viver”, não é?

Daniela Rocha: Você ambiciona transformar o TBC em um núcleo, em um centro cultural e, de repente, até com um repertório...

Renato Borghi: [interropendo] Eu tive essa idéia.

Daniela Rocha: ... de peças suas?

Renato Borghi: Eu tive essa idéia, eu escrevi sobre essa idéia. O Élcio fez um trabalho lindíssimo, caprichadíssimo. A gente fez um fundo maravilhoso – que é para impressionar –, com um [quadro de Paul] Cèzanne no fundo. E aí, escrevemos sobre a maravilha que podia ser o TBC, se tivesse aulas de dramaturgia, de interpretação, de história do teatro, ligar o TBC ao [bairro do] Bixiga! Porque é um absurdo, o Bixiga não sabe que tem o TBC! Ele tem um teatro popular, é gente popular, o pessoal do Bixiga é de baixo poder aquisitivo, podiam se beneficiar enormemente desse teatro, como cursos, como cultura. E eles não sabem que eles têm esse teatro! Então, eu me propus a integrar isso como um grande centro cultural, que funcionasse de manhã até de noite, porque é um absurdo, em um espaço enorme daquele, com um teatro embaixo, um teatro em cima, teatro do lado, do outro lado, parado até as nove horas da noite, para quê? Com os empregados coçando o saco, que história é essa?

Daniela Rocha: Você entraria como, nesse...

Renato Borghi: [continuando] Pra quê isso?

Daniela Rocha: ...centro cultural, bloco, você entraria como?

Renato Borghi: Hein?

Daniela Rocha: Você daria aulas de interpretação?

Renato Borghi: Com o maior prazer.

Daniela Rocha: O que mais você faria? Você administraria esse centro cultural?

Renato Borghi: Também, com o maior prazer.

Daniela Rocha: Quer dizer, dependendo de uma conversa, se...

Renato Borghi: Com o maior prazer, com o maior prazer!

Daniela Rocha: Se desse carta branca, você transformaria?

Renato Borghi: Certamente, eu tenho condições, pelo meu nome etc, de chamar pessoas de peso, para, de repente, dar uma aula de história do teatro, para dar uma aula de interpretação, para fazer uma série de coisas.

Raul Cortez: Aula de interpretação: como é que você se sente dando aula de interpretação, você como ator?

Renato Borghi: Eu adoro! Raul, tem horas que você tem vontade de matar o aluno, não é? Tem horas que você tem vontade de torcer o pescoço dele, para ele cair duro! Porque aí, ele vem com uma bobagem, você ensina, ensina, ensina, e ele fala: “Mas como é que eu faço para entrar na televisão?” Eu tenho vontade de esbofetear, dá vontade de bater, mas... [risos]

Alberto Guzik: Renato, qual foi a coisa mais importante...

Renato Borghi: [continuando] Eu gosto muito de passar os segredos, os segredos da bruxaria.

Alberto Guzik: É isso, qual foi a coisa mais importante que te ensinaram no teatro, qual foi a coisa, qual foi o ensinamento de ator mais importante que você aprendeu?

Renato Borghi: Muitas, muitas, é difícil. Madame [Henriette] Morineau [(1908-1990) atriz francesa, consagrada no Brasil, com uma carreira de mais de 60 anos], que dizia – eu estava preocupadíssimo com uma cena, vou fazer para vocês – eu tive que fazer. Pode levantar?

Matinas Suzuki: Cuidado, cuidado com o microfone, só.

Renato Borghi: Pode levantar assim até aqui, pode?

Matinas Suzuki: Até aí eu acho que vai.

Renato Borghi: Eu tinha que fazer uma cena em Andorra, que eu falava assim: “Dizem que judeu gosta de dinheiro, que judeu é avarento, que judeu é isso, é isso, é isso, é isso e aquilo, mas é verdade: eu gosto de dinheiro.” E eu fazia tudo rodando, rodando, não é? E ela dizia: “Non! Vem cá! Agora, tu vais aprender uma coisa: quando tu raciocinas, “dizem que judeu gosta de dinheiro, e mais isso, e mais isso, e mais aquilo”, tu andas. E quando tu dizes “eu sou judeu, porque gosto de dinheiro”, então, tu paras, porque tu estás assumindo”. Isso foi de uma sabedoria extraordinária, do uso do espaço, da compreensão, de onde a palavra pode estar em agitação, de onde ela deve estar parada, não é? Ela sabia, nossa como ela sabia, essa mulher! Ela me ensinou muita coisa! O Kusnet me ensinou muita coisa!

Beth Coelho: O teu filho tem aprendido bem?

Renato Borghi: Muito.

Beth Coelho: Tem sido bom aluno, então?

Renato Borghi: Ele é um ator maravilhoso, ele é muito espontâneo. Ele faz as coisas vindas de dentro, é um poeta. Eu me orgulho muito dessa coisa da poesia dele. Ele também tem composições musicais, músicas lindíssimas. Ele escreveu uma poesia para você, lembra?

Beth Coelho: Tão bom...

Renato Borghi: Ele é... ele é um poeta, um artista, um ator. Ele é um cara, que eu estou esperando grandes coisas, assim, não no nível de grandeza, mas coisas boas que ele possa vir a fazer.

Daniela Rocha: Eu queria que você falasse um pouquinho sobre a tua carreira como dramaturgo, você tem...

Renato Borghi: [interrompendo] É tão pequenininha, não é?

Daniela Rocha: Você não pretende retomar? Você escreveu três peças?

Renato Borghi: Eu estou no meio de uma peça.

Daniela Rocha: Escrevendo ou atuando?

Renato Borghi: Eu não digo o nome aqui, porque o nome é muito bom. [risos]

Beth Coelho: Tem outros autores, que podem roubar.

Renato Borghi: Não vai aparecer o nome, porque quando eu fiz aquela peça, Decifra-me ou devoro-te, o nome era Que rei sou eu?. Aí, quando eu estava em Curitiba com meu filho em férias, vindo lá de Piçarras – que, aliás, era chatésimo aquilo, lá! – quando eu cheguei em Curitiba, de passagem, para consertar o carro que quebrou no caminho, eu estava deitado no hotel e fala: “Próxima novela da Globo: Que rei sou eu?”. Eu digo: “Hã? O quê? É a minha peça!”. [risos]

Renato Borghi: Pronto, estava lá o nome na novela! E eu tive que mudar o nome para Decifra-me ou devoro-te. Então, essa eu não digo nem a mim mesmo, o nome da peça, porque eu gosto muito do nome dela.

Beth Coelho: Renato...

Daniela Rocha: É para quem? Você está escrevendo para quem, Renato?

Renato Borghi: Eu estou escrevendo...

Renato Borghi: Estou pensando muito no Raul, não sei se ele vai gostar.

Raul Cortez: Para mim? O lobo de Ray-Ban, que foi ótimo...

Renato Borghi: Eu estou pensando muito em você. Quando eu escrevo nisso, eu estou pensando demais, não sei se é porque você fez O lobo de Ray-Ban tão lindo. Aliás, eu quero te agradecer em público, o trabalho que você fez no Lobo, foi muito bonito.

Raul Cortez: Você sabe que eu fui a Montevidéu agora, por causa da televisão, da lei [...] e ganhou, prêmio e tudo, mas ganhei um prêmio por O lobo de Ray-Ban e todos até hoje, lembram do O lobo de Ray-Ban, que nós fizemos, quando foi?

Renato Borghi: Oitenta e sete, oitenta e oito...

Raul Cortez: É, que fizemos um festival lá. É inacreditável, lembram até hoje da peça, eles falam.

Renato Borghi: Depois disso, eu fiz o Decifra-me ou devoro-te e aí não deu mais tempo. Aí, foi o curso de interpretação...

Raul Cortez: Mas, sobre O lobo de Ray-Ban...

Renato Borghi: ... e a formação de grupo e vai, vai, vai, vai.

Raul Cortez: Renato...

Renato Borghi: [continuando o raciocínio] Não tive mais tempo de escrever.

Raul Cortez: E em O lobo de Ray-Ban, o meu personagem era, realmente, o Zé Celso? Até quanto era o Zé Celso? [risos]

Renato Borghi: Não, não. Era mais você.

Raul Cortez: Não tinha sua história, infelizmente.

Renato Borghi: Era um personagem de teatro. O primeiro ator de manto e coroa, que as pessoas perguntavam: “É você?”. Eu digo: “Não. Eu sou um ator meio humilde para esse. Esse aí é um... é um primeiríssimo, assim, daqueles fantásticos”...

Raul Cortez: Ele é um grande diretor de teatro acima de tudo.

Renato Borghi: Hein?

Raul Cortez: Ele é um grande diretor de teatro acima de tudo.

Renato Borghi: Ele tinha a companhia de teatro. É uma companhia permanente de teatro.

Matinas Suzuki: Renato, infelizmente nós estamos...

Renato Borghi: [interrompendo] Que pena!

Matinas Suzuki: ... chegando ao fim, pois é! O tempo passou rapidíssimo.

Renato Borghi: Eu estava achando tão bom, eu passaria a noite inteira, aqui, falando com vocês.

Matinas Suzuki: Quando o programa é bom, passa rapidíssimo. Quarenta anos de teatro: o que você gostaria de fazer daqui para a frente?

Renato Borghi: Teatro popular.

Matinas Suzuki: Algum personagem específico, algum...?

Renato Borghi: Personagens, são os mais variados possíveis. Eu gostaria de fazer um Shakespeare, que eu nunca fiz na minha vida. Já fiz [Maximo] Gorki [(1868-1936) escritor russo, cuja obra retrata a dura realidade do proletariado, antes e durante a revolução bolchevique. Entre seus textos estão A canção da ave de rapina (1901), Albergue noturno (1902) e A mãe (1906)], já fiz Tchecov, já fiz uma série de autores importantes, já fiz Otávio [referindo-se ao entrevistador Otávio Frias], mas não fiz Shakespeare. E eu tenho muita vontade de fazer, um Próspero, um Lear ou um Ricardo III [personagens das peças A tempestade, Rei Lear e Ricardo III, respectivamente, todas escritas por Shakespeare]. São personagens que pairam, assim, na minha cabeça, que eu tenho vontade de fazer.

Beth Coelho: Já fez Plínio Marcos [(1935-1999) um dos mais importantes dramaturgos brasileiros, cuja obra densa levou aos palcos histórias e personagens do submundo. Ver entrevista no Roda Viva]?

Renato Borghi: Não, mas já fiz uma coisa ótima, fiz muitas cenas dele com alunos. E quase sempre são os melhores resultados do curso.

Matinas Suzuki: Renato, muito obrigado pela sua presença aqui no Roda Viva.

Renato Borghi: Obrigado a vocês todos, muito obrigado e, deixa eu falar da minha peça!

Matinas Suzuki: Por favor.

Renato Borghi: Por favor. Não percam Tio Vânia de Tchecov, foi um dos maiores autores da dramaturgia universal, está sendo feita no TBC, a preços populares, e a gente está de coração lá naquele palco, fazendo uma história linda, linda, linda, para vocês todos! Então, venham, porque eu garanto que vocês não vão se arrepender. Eu acho que pela resposta do público, as pessoas vão gostar, não é? Os críticos podem até fazer umas restrições, mas o público gosta muito!

Matinas Suzuki: Renato, me deixa confessar uma coisa aqui que, ver você fazer Galileu Galilei há muito tempo atrás, foi umas das coisas muito importantes e marcantes na minha vida. Então, eu convido você agora...

Renato Borghi: Tem que parar com essa história de muito tempo atrás e ver agora!   

Matinas Suzuki: Então, pois é, eu convido todos a ver o Tio Vânia com Renato Borghi. Agradeço a presença da nossa bancada de entrevistadores, que hoje foi fantástica, a sua atenção, infelizmente você não pode participar desse Roda Viva, fica para a próxima semana, está bom? Até segunda-feira às dez e meia da noite. Uma boa semana e uma boa noite para todos.

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