;

Memória Roda Viva

Listar por: Entrevistas | Temas | Data

Marco Aurélio Garcia

21/6/2004

Um dos fundadores do PT, o assessor para assuntos internacionais do presidente Lula fala das crises do Haiti e da Venezuela e lamenta a morte de Leonel Brizola

Baixe o player Flash para assistir esse vídeo.

     
     

[programa ao vivo]

Paulo Paulo Markun: Boa noite. Num momento de impasse no sistema mundial de comércio, muito gente pergunta quais as dificuldades e as possibilidades do Brasil no mercado internacional. E qual é a chance real que o país tem de aumentar parcerias e achar um espaço melhor no mercado mundial. Na semana passada, representantes de 192 países se reuniram aqui em São Paulo na Unctad, Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento, e discutiram idéias e possibilidades para o novo comércio global. Hoje, o Roda Viva discute esse tema. Nosso convidado é Marco Aurélio Garcia, assessor especial de política externa da Presidência da República e um dos responsáveis pelos novos posicionamentos do Brasil nas relações internacionais.

[Comentarista]: Vem de longe o envolvimento de Marco Aurélio Garcia com assuntos internacionais. Um dos fundadores do PT, em 1980, atuou durante mais de dez anos como secretário de Relações Internacionais do partido, além de ter sido também um dos principais coordenadores dos programas de governo de Lula nas sucessivas campanhas presidenciais do PT. Advogado, filósofo, pós-graduado na Escola de Altos Estudos e Ciências Sociais de Paris, Marco Aurélio Garcia é professor licenciado de história, na Unicamp, a Universidade de Campinas. Foi secretário da Cultura de São Paulo, no início da administração Marta Suplicy [prefeita da cidade de São Paulo no período de 2001 a 2004] e, com a eleição do presidente Lula, assumiu a assessoria especial de política externa da Presidência da República. Foi um sinal do governo de que as relações internacionais brasileiras tomariam rumos diferentes da política tradicional do Itamaraty. A ênfase nas relações sul-americanas ficou clara logo de início. Um dia depois de ter sido confirmado no cargo, Marco Aurélio foi enviado pelo presidente Lula à Venezuela, marcando a participação brasileira na busca de soluções para a crise que ameaçava o governo do presidente venezuelano Hugo Chávez [crise Venezuela]. Rebatendo críticas de que seu cargo conflitava com a ação do Ministério das Relações Exteriores e sempre afirmando que trabalha afinado com o chanceler Celso Amorim, Marco Aurélio Garcia tem papel fundamental na formulação da política externa do governo Lula. Atua tanto nos preparativos das viagens do presidente da República, quanto nos encaminhamentos das negociações que buscam abrir novos caminhos para o Brasil no mercado internacional. Essa política tem se baseado, cada vez mais, na assinatura direta com outros países como forma do Brasil escapar do forte protecionismo dos grandes blocos econômicos, como o dos EUA e da comunidade européia. É nessa perspectiva de encontrar novos parceiros e através de acordos bilaterais que o Brasil busca ter melhores resultados no comércio externo e relacionar esses resultados a um projeto de desenvolvimento interno.

Paulo Markun: Para entrevistar Marco Aurélio Garcia, nós convidamos: Sérgio Malbergier, editor do Caderno Mundo do jornal Folha de S.Paulo; Lourival Sant'Anna, repórter especial do jornal Estado de S. Paulo; Ilimar Franco, repórter de política da sucursal de Brasília do jornal O Globo; Jaime Spitzcovsky, editor chefe do site Terra e membro do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo; convidamos também Reinaldo Azevedo, diretor de redação da revista e do site Primeira Leitura e, Demétrio Magnoli, editor do jornal Mundo, Geografia e Política Internacional dirigido a estudantes. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília pela rede pública de televisão [...] Boa noite, professor.

Marco Aurélio Garcia: Boa noite.

Paulo Markun: Nós vamos começar falando não da política internacional e nem nada disso, mas do fato que aconteceu agora, às 21h20 da noite, que foi a morte de Leonel Brizola, presidente nacional do PDT, uma figura única na história brasileira. Eu sei que você o conheceu bem, não só pelo fato dele ser gaúcho também, mas pelo fato de que na época em que Brizola teve seu maior protagonismo na história brasileira, em 1961, na renúncia de Jânio Quadros, o senhor era vice-presidente da UNE [União Nacional de Estudantes] e acabou indo parar no Rio Grande do Sul. O senhor estava relembrando isso agora há pouco... Primeiro, qual é a avaliação que o senhor faz do Brizola e como o senhor o conheceu?

Marco Aurélio Garcia: Eu acho que é uma perda importante para a política brasileira. É uma figura muito controvertida, mas bastariam alguns momentos da sua extensa carreira política para justificar a sua presença na história do Brasil, na história republicana. E eu acho que um desses momentos, justamente, é o episódio da legalidade [cadeia da legalidade]. Nessa ocasião, nós tínhamos sido recém empossados na União Nacional dos Estudantes quando houve a renúncia do presidente Jânio Quadros, com quem nós havíamos estado na véspera. E, com a tentativa de golpe de Estado por parte de alguns militares, a sede da UNE foi ocupada e os meus colegas de diretoria decidiram que [...] saudoso dirigente estudantil daquela época, que morreu recentemente e eu, pelo fato de sermos gaúchos, deveríamos ir para Porto Alegre para tentar transferir a sede da UNE para lá porque era um dos poucos lugares seguros. Nós estávamos sendo procurados pela polícia e vivendo, talvez, o que seria a nossa primeira experiência de clandestinidade. E foi efetivamente o que nós fizemos, saímos no último avião do Rio de Janeiro e, chegando a Porto Alegre, num dia crucial, que foi o dia em que, justamente, o general Machado Lopes [na época, comandante do III Exército], depois de uma certa hesitação, aderiu à tese da legalidade e nós conseguimos manter um contato com o governador Brizola, e partir daí, acertar as condições que permitiram a transferência da UNE para Porto Alegre. Daí então, ela pôde, pela cadeia da legalidade, conclamar os estudantes brasileiros todos a resistir ao intento de golpe, que havia naquele momento. Depois, evidentemente, cruzei várias vezes com o governador, seja no exílio e, mais recentemente, na história política do PT, nós tivemos muitos encontros e alguns desencontros. De qualquer maneira, eu acho que a política brasileira está mais pobre hoje com a morte dessa figura controvertida, mas, sem dúvida nenhuma, um líder respeitável.

Paulo Markun: Muito bem, vamos falar, então, de política internacional. Qual é o balanço que o senhor faz dessa reunião da Unctad? Houve alguma coisa efetiva ou a política internacional só se move nos interesses do império do governo americano e da sua gigantesca força?

Marco Aurélio Garcia: Veja bem, as reuniões internacionais sempre são muito difíceis de avaliar no imediato. Elas, em geral, são pontos de convergência de certas tendências e também, quando são exitosas, instauram novos períodos. Eu tenho a impressão que a reunião da Unctad reúne essas duas condições. Ela significa, sem dúvida nenhuma, um movimento, por parte dos países em desenvolvimento, no sentido de estabelecer um novo trato, um novo pacto, no que diz respeito às questões econômicas e comerciais. E a impressão que eu tenho também, nos debates aí ocorridos, é de que nós tivemos condições de assentar bases para um novo relacionamento. Um traço que deve ser destacado e que foi mencionado, inclusive, antes da própria reunião da Unctad, é que, nos últimos anos vêm se acentuando muito o comércio sul-sul e vêm se multiplicando também reações muito claras, da parte dos países em desenvolvimento, de práticas protecionistas. Nós tivemos vários episódios que ilustram isso: a reunião de Cancun, onde formou-se o G-20, o próprio rumo das negociações para a formação da área de livre comércio [refere-se à 5ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada em Cancún, no México em setembro de 2003. Foi para essa reunião que chefes de Estados de vinte países em desenvolvimento formaram um grupo, denominado G-20, com o objetivo de discutir e defender temas relacionados à agricultura]. Enfim, eu tenho a impressão que todas esses elementos configuram, sem dúvida nenhuma, uma nova postura dos países em desenvolvimento e nós temos certeza que desaguaram de forma muito positiva na reunião da Unctad, aqui, em São Paulo, e, sem dúvida nenhuma, vão ter desdobramentos posteriores que eu acho úteis.

Paulo Markun: Isso tem uma carga de terceiro-mundismo, novo terceiro-mundismo, ou uma movimentação de países não alinhados? Se é que essas expressões fazem sentido na realidade de hoje...

Marco Aurélio Garcia: Eu acho que essa idéia do terceiro-mundismo é uma idéia própria dos anos... Metade dos anos 1950, talvez até um pedaço dos anos 1970, quando o mundo estava dividido. Havia o que se chamava de primeiro e o segundo mundo, o clima de Guerra Fria, e houve uma tentativa, naquele momento, a partir, sobretudo, da Convenção de Bandung, em 1955 [Conferência de Bandung (1955)], de constituir um grupo de países não alinhados, quase todos ancorados em experiências de desenvolvimento capitalista nacional, com forte intervenção estatal. E que não chegaram, de qualquer maneira, a constituir um eixo muito consistente. Era um eixo que tinha uma projeção ideológica, tinha, sobretudo, grandes figuras que se projetavam no mundo, mas eu tenho a impressão que a repetição de uma experiência como essa do terceiro-mundismo, hoje, não teria muito significado. Nós vivemos em uma nova realidade e, portanto, querer remeter ao terceiro-mundismo, seja por aqueles que querem a volta do terceiro-mundismo, sejam aqueles que criticam que nós estaríamos voltando ao terceiro-mundismo, eu tenho a impressão que não é uma expressão adequada. É preciso pensar a especificidade dessa nova situação.

Reinaldo Azevedo: Antes de entrar aqui no tema da soja, que, certamente, vai nos ocupar, tem uma questão extraída da própria apresentação que o Roda Viva fez da sua biografia, a parte mais recente dela, em que diz: "o professor Marco Aurélio Garcia já negou que suas ações entram em contradição com a atuação do ministro Amorim". Então, eu não quero saber a contradição, eu quero saber o que há de diferente mesmo. Considerando que a burocracia do Itamaraty, [mesmo] com altos e baixos, mas conserva uma tradição de independência, até de eficiência, [visto que] durante a ditadura militar reconheceu os regimes marxistas da África, independentemente do que a ditadura fazia aqui dentro. Então, o Itamaraty sempre se moveu ali com certa independência, com um certo “espertismo”, enfim. Por que a gente precisa, por que o Brasil precisa ter um assessor especial para assuntos relacionados às relações exteriores, enfim, na inserção do Brasil no mundo, o que  distingue a sua ação da ação do ministro Amorim, por exemplo?

Marco Aurélio Garcia: Reinaldo, você conhece bem a política internacional. Sabe que esse cargo não é um cargo novo. Esse cargo já foi ocupado em governos recentes por eminentes diplomatas, o embaixador Gelson Fonseca, o embaixador Eduardo, que agora está em Montevidéu, embaixador Seixas Corrêa, que está em Genebra, para citar alguns. Eu acho que o que causou um certo... É o fato de que pela primeira vez, depois de muitos anos, um não diplomata tenha sido indicado, mas eu não sou o primeiro. Eu tenho um antecessor bastante ilustre, que é o poeta Augusto Frederico Schmidt [(1906-1965) poeta da segunda geração do modernismo. Autor de obras como O galo branco, Estrela solitária, entre outras], que foi assessor do presidente Juscelino [Juscelino Kubitschek (1902-1976),também conhecido como JK, foi presidente do Brasil entre 1956 e 1961] e  tinha duas diferenças básicas comigo: em primeiro lugar era um homem muito rico, e eu não sou rico; e, em segundo lugar, era um grande poeta. E eu sou uma pessoa muito prosaica. Então...

Reinaldo Azevedo: E era um conservador também, que não é o seu caso...

Marco Aurélio Garcia: E era um conservador. E parece que teve alguns incidentes com o Itamaraty, diferentemente do meu caso, que eu não tenho. Veja bem, a figura do assessor presidencial para política externa é uma figura que existe em todos os países do mundo. Eu já, outro dia, brincando com alguns colegas  que encontro nas reuniões propus que nós formássemos uma associação... Existem países, inclusive, onde a política externa não só têm duas, três cabeças, mas tem dois ou três vetores distintos. Você sabe perfeitamente que, nos EUA, não há uma sincronia absoluta entre a política do Departamento de Estado, do National Security Adviser, do Pentágono, do Departamento do Comércio, do encarregado das negociações comerciais, que está fora do comércio e da CIA, e assim por diante. No caso brasileiro, nós tivemos uma afinidade muito grande; primeiro lugar, porque ambos, o Ministério das Relações Exteriores e o meu caso, em muito menor escala, obedecemos à mesma orientação que é a orientação do presidente da República e é normal que ele tenha, sobre todas as questões políticas, a última palavra. E, em segundo lugar, porque o ministro Celso Amorim reúne uma relação muito grande... Em primeiro lugar, de respeito, porque eu o considero um grande diplomata, um homem de enorme capacidade intelectual, com um domínio invejável das questões da política internacional. E, em segundo lugar, uma relação também de amizade, eu diria até que nós temos gostos comuns, nós somos cinéfilos, apreciamos uma série de coisas em comum. Isso ajudou muito nas nossas relações. Eu conhecia também muita gente do Itamaraty porque, nos dez anos que eu fui secretário de Relações Internacionais do PT, eu procurei sempre fazer com que as iniciativas que nós tínhamos enquanto partido de oposição, principal partido de oposição, se fizessem sempre em sintonia com o Estado brasileiro. Nós sabemos que a política externa de um país é uma política que tem uma perdurabilidade que vai além dos governos, tem certos princípios, certos elementos que são elementos contínuos. De tal maneira que, todos os deslocamentos que nós fizemos no exterior, aqueles que eu acompanhava com o então candidato Lula, eu sempre fiz questão que o Itamaraty estivesse interado e recebi do Itamaraty uma acolhida muito boa. Quando o Ministério foi objeto de alguns ataques, eu não quero aqui evocar as particularidades, eu saí em defesa pública do Ministério chamando à atenção para o fato de que se tratava de um corpo exemplar da administração brasileira a quem o país muito deve e que Oxalá todas as instituições republicanas no Brasil tivesse os padrões de excelência que o Itamaraty tinha.

Reinaldo Azevedo: O senhor agrega, se me permite, uma experiência nova no Itamaraty, enfim. Eu sou, até por condição estrutural, sou obrigado a concluir que o senhor agrega um valor, uma linha de pensamento ou algo parecido que o Itamaraty, por força própria, não teria. E eu queria saber, enfim, além das suas qualidades intelectuais, que são enormes, eu queria saber um pouco dos bastidores; eu queria saber como se dá essa diferença.

Jaime Spitzcovsky: Aliás, professor, há um certo ruído na sua relação com o chanceler Celso Amorim, pelo menos era o que a imprensa noticiava. A sua primeira ida à Venezuela causou, segundo se soube, reações dentro do Itamaraty e a impressão que se tem hoje é que se achou uma certa acomodação entre o senhor e o chanceler. Como foi esse processo?

Marco Aurélio Garcia: Eu vou lhe explicar, inclusive, fazendo uma pequena correção à apresentação, viu Paulo Markun? Eu, na realidade, fui à Venezuela antes do governo começar. Agora, é interessante observar o seguinte: quando o presidente Lula me pediu que fosse à Venezuela para intervir em uma crise que nos parecia grave, e trazia um grave prejuízo à democracia, à instabilidade no continente, e, inclusive aos interesses do Brasil - o Brasil tem interesses econômicos e políticos na região - a primeira coisa que eu fiz foi contatar o Ministério das Relações Exteriores. E transmiti esse desejo do presidente Lula e recebi uma acolhida ímpar do Ministério. E quero deixar mais claro, inclusive, o seguinte: desde o momento que eu pus o pé em Caracas, até o momento em que eu parti, eu tive o acompanhamento e o aconselhamento muito importante do embaixador Ruy Nogueira, que estava lá e foi, para mim, uma pessoa de enorme importância, na medida em que me deu um quadro extremamente sensato do que estava ocorrendo no país; me aconselhou muito e me ajudou muito naqueles dias difíceis que nós estávamos vivendo. Então, eu, sinceramente, quando vi alguns ruídos, como o Jaime está mencionando, sobre possíveis conflitos meus com o Itamaraty, eu disse: “bom, por falta de divergências de conteúdo, estão querendo estabelecer divergências de pessoas”; só que essas divergências não existiam. E a grande verdade é que não foi capaz de situar nenhum momento, efetivamente, em que o Ministério e eu tivéssemos orientações diferenciadas.

Demétrio Magnoli: O senhor lembrou a Venezuela... Porque o senhor lembrou a Venezuela e a sua viagem à Venezuela, e eu estava lendo aqui uma entrevista na revista Istoé Dinheiro, daquele tempo da viagem, quando o senhor dizia: "queríamos sinalizar que não ficaríamos de braços cruzados diante de um perigoso precedente de se derrubar um presidente eleito". E eu estou totalmente de acordo. Quer dizer, naquela época, o que se armava na Venezuela era um golpe de Estado e o Brasil teve uma participação importante de impedir que esse processo fosse ao fim. Eu queria fazer um paralelo entre isso e o que aconteceu agora no Haiti [em abril de 2004, o Conselho de Segurança das Nações Unidas autorizou uma missão de paz ao Haiti com o objetivo de assegurar a ordem e estabilidade após um período de insurgência com a deposição do então presidente Jean-Bertrand Aristide. A missão foi liderada pelo Brasil que enviou cerca de mil soldados formando o maior contingente brasileiro enviado ao exterior desde a Segunda Guerra Mundial]. Porque aconteceu, no Haiti, um golpe contra o governo eleito. Existia um governo legal no Haiti, mas se criou um conflito político com um bando de bandidos, como chamou o Colin Powell [Secretário de Estado dos Estados Unidos durante o governo George W. Bush (2001-2005)], não fui eu que chamei. Rebeldes armados que foram qualificados como bandidos, o Caricom - Comunidade dos Países do Caribe - lançou uma iniciativa pedindo forças internacionais para a proteção do governo eleito do Haiti. E, ao invés disso, os EUA, com apoio francês, protagonizaram uma intervenção onde se derrubou o presidente eleito, se criou uma fraude, uma narrativa de uma renúncia fraudulenta, hoje, cada vez mais clara e provada. Depois disso, de fato, o Brasil não ficou de braços cruzados. E o que o Brasil está fazendo é coonestar o que aconteceu no Haiti, o golpe contra o presidente eleito, ao aceitar, não só participar, mas [aceitar ser] a liderança de uma força de paz que vai ao Haiti com uma função muito clara, do ponto de vista político, que é estabilizar um país que tem um governo. Um governo que foi criado pela intervenção franco-americana no país, um governo, aliás, com laços muito estreitos com a ditadura de Raul Cedras, que se instalou no Haiti, uma ditadura criminosa e sangrenta, entre 1991 e 1994. O ministro [da Defesa] José Viegas explicou para o Senado que o Brasil estaria liderando a força de paz no Haiti porque seria um caminho para se chegar a uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. E eu queria entender, se a cadeira no Conselho de Segurança da ONU vale a ruptura do princípio da autodeterminação nacional?

Marco Aurélio Garcia: Veja bem, eu não conheço muito bem o depoimento do ministro Viegas no Senado, mas eu quero lhe deixar claro qual é o nosso critério. Em primeiro lugar, nós não participamos do processo de derrubada e/ou renúncia do presidente [Jean-Bertrand] Aristide. Não há nenhum pronunciamento do governo brasileiro nessa direção. Esse é um episódio muito complexo e você sabe perfeitamente, como estudioso das questões internacionais, que até às vésperas - o presidente Aristide deixou o governo, se não me engano no domingo - até o sábado ele era sustentado pelo governo norte-americano e pelo governo francês...

Demétrio Magnoli: Não, ele aparentemente era sustentado.

Marco Aurélio Garcia: Bom, eu não sei se aparentemente ou não, mas eu sei que havia sustentação. Essa sustentação deixou de existir. O que me parece que lança sobre o episódio mil e uma interrogações. Nós só, efetivamente, nos manifestamos sobre o tema, nós sabíamos que o Caricom queria uma intervenção naquele momento, antes que houvesse a transferência, estávamos dispostos a participar com tropas nessas circunstâncias. O problema é que a situação se precipitou. Depois disso, nós tínhamos que tomar uma posição: ou o Brasil participava ou o Brasil não participava. A participação em tropas de paz é um ponto do programa de governo do presidente Lula e do programa do PT de muito tempo. Há muito tempo nós defendemos isso.

Demétrio Magnoli: ...Mas você defende qualquer participação, mesmo no caso da derrubada de um governo legítimo?

Marco Aurélio Garcia: A nossa participação ou ausência de participação não iria repor o governo Aristide. O governo Aristide caiu, ele renunciou ou foi deposto, é um episódio - insisto - nebuloso; não há elementos conclusivos sobre isso, independentemente da nossa vontade. O que nós estamos participando lá é no sentido de, primeiro lugar, o cumprimento de um mandato das Nações Unidas, isso me parece essencial. Em segundo lugar, houve uma consulta prévia que o Ministério das Relações Exteriores realizou junto aos países do Caricom. Terceiro lugar, nós estamos absolutamente convencidos de que era importante “latino-americanizar” uma solução do Haiti, justamente, fazer com que países que tinham tido uma relação de apoio, de sustentação, de desestabilização anterior deixassem a região. Então estão saindo as tropas, sejam dos Estados Unidos, sejam as tropas da França. E, finalmente, o presidente Lula foi muito enfático e o fez de maneira explícita no seu discurso no Itamaraty, no dia do diplomata, dizendo que mais do que uma presença militar, o que nós estamos interessados, efetivamente, é contribuir para uma reconstrução econômica e social desse país. Eu conheço o Haiti, eu estive lá há alguns anos, como secretário de Relações Internacionais do PT, e eu confesso que poucas vezes vi um estado de desagregação, de anomia social e política...

Demétrio Magnoli: Mas o fato de se ter um governo que é associado à ditadura de Raul Cedras e que foi colocado no poder de uma maneira ilegítima, por um intervenção estrangeira, ajuda o país a se reconstruir?

Marco Aurélio Garcia: Eu acho que o que ajudará o país a se reconstruir é uma intervenção da comunidade internacional no sentido de obter um processo de transição democrática no país, e que garanta a participação da forças de oposição. Inclusive, existem figuras iminentes na oposição haitiana.

Demétrio Magnoli: O Aristide poderia participar das eleições?

Marco Aurélio Garcia: Eu acho que não há nenhum inconveniente.

Demétrio Magnoli: Mas o governo do Haiti acha que há inconvenientes...

Marco Aurélio Garcia: Esse é um problema que será resolvido no tempo. Nós estamos ainda recém... As tropas brasileiras estão chegando lá; elas têm uma missão, fundamentalmente, de desarmamento e o Brasil quer contribuir de forma enfática no processo de reconstrução econômica e social do país. E, evidentemente, ajudar também na transição institucional. Você pode estar, aliás, os brasileiros podem estar seguros que nós não participaríamos de uma aventura naquela região nem em qualquer outra parte do mundo, menos ainda de sustentar forças com as quais nós não temos ainda nenhuma afinidade e que não contribuem para a democracia do país. Um dos problemas que existem no Haiti, Demétrio, você sabe perfeitamente, é que o país tem um déficit democrático muito grande. E esse déficit não foi sanado pelo governo Aristide, lamentavelmente. Eu não quero entrar em detalhes maiores, aqui não me parece conveniente, mas, digamos, o dossiê Aristide não é muito melhor do que outros dossiês...

Demétrio Magnoli: Mas, pelo menos, ele era o governo eleito do país.

Marco Aurélio Garcia: Ele era o governo eleito do país, sem dúvida nenhuma, e nós não contribuímos para a sua derrubada e nunca contribuiríamos para...

Demétrio Magnoli: Mas estão contribuindo para sustentar um governo não eleito.

Marco Aurélio Garcia: Nós não estamos contribuindo para sustentar um governo não eleito. Nós estamos contribuindo para o processo de reconstrução. A outra possibilidade era, simplesmente, ficarmos fora. Mas nós acreditamos que contribuiríamos muito mais participando do que de fora, sobretudo, se a nós é atribuída a função de comando. No que diz respeito à questão do Conselho de Segurança, não quero fugir dela, evidentemente, se o Brasil aspira, e é legítimo que assim o faça, um lugar no Conselho de Segurança, seria um pouco complicado já que, no momento em que nós somos chamados para responsabilidades que correspondem a de países que têm peso internacional, nós disséssemos "não, não queremos participar".

Paulo Markun: Muito bem, professor Marco Aurélio, vamos fazer um rápido intervalo e nós voltamos daqui a instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva que esta noite entrevistando o assessor especial de assuntos internacionais da presidência da República, o professor Marco Aurélio Garcia [...] Professor, Orlando Éder, de Montes Claros, Minas Gerais, universitário, pergunta: quais são as chances do Brasil conseguir essa cadeira no Conselho de Segurança da ONU e quais as conseqüências, ao conseguir isso?

Marco Aurélio Garcia: Eu acho que as chances estão vinculadas ao processo de reforma das Nações Unidas, que foi desencadeado a partir do ano passado, quando houve uma série de pronunciamentos, dentre os quais, o  do próprio presidente Lula, mas também o pronunciamento importantíssimo do secretário geral Kofi Annan, no sentido de que a ONU tinha que mudar. Eu acho que a crise do Iraque [Guerra do Iraque], sem dúvida nenhuma, expôs a fragilidade das Nações Unidas e colocou na ordem do dia a sua reforma. Foi criada uma comissão de alto nível que está discutindo a reforma da ONU, da Assembléia Geral, do Conselho Social e também do Conselho de Segurança. E aí vai se colocar o tema da ampliação e incorporação de outros países na condição de membros permanentes. Eu acho que, se houver essa mudança, e há possibilidade, isso vai depender, entre outras coisas, da evolução da situação internacional, do peso maior dos temas do multilateralismo... O Brasil é um forte candidato, na medida em que é um país com peso importante na sua região. Da mesma forma, são fortes candidatos outros países.

Sérgio Malbergier: Agora, professor, você não acha um pouco exagerado essa ênfase na cadeira do Conselho de Segurança? Eu estava conversando com um embaixador importante no Brasil, recentemente, e ele dizia que circula uma piada entre os embaixadores em Brasília "se quer agradar ao Brasil, basta dizer que apóia a sua candidatura no Conselho de Segurança", aí já se tem meio caminho andado... Não há um exagero um pouco nessa busca? Um objetivo relativamente difícil porque vai ser complicada a escolha desses novos membros?

Marco Aurélio Garcia: Eu não acho que haja exagero. O governo tem colocado isso de forma muito equilibrada, nós não temos feito nenhum tipo de pressão, nós temos tido, inclusive, adesões muito espontâneas de países importantes. Eu acho que a questão tem sido colocada de forma equilibrada. As ênfases da política externa brasileira, evidentemente, não estão aí, elas estão em outras questões. Eu acho que isso seria mais uma conseqüência do que propriamente um objetivo perseguido com fúria, por assim dizer.

Ilimar Franco: Professor, tenho duas questões aqui. O governo Lula foi muito criticado nos últimos dez dias porque teria vacilado na defesa dos interesses brasileiros na questão da soja. O fato concreto é que hoje se levantou as restrições às importadores brasileiras que operam na China, mas haverá um prejuízo de um bilhão de dólares em relação aos grãos que foram exportados e foram desenvolvidos. Então, uma pergunta: se, de fato, o governo brasileiro vacilou, como o senhor vê essa questão. A segunda questão é a seguinte: como o senhor explica que o presidente Lula tenha atitudes diferentes... Por exemplo, ele vai a Cuba e não se reúne com a oposição ao regime cubano. Ele vai a Moçambique e se reúne com a oposição ao governo moçambicano. O que é que determina isso?

Marco Aurélio Garcia: Bem, vamos começar com a primeira questão. Eu acho que os ruídos sobre a questão da soja, ao meu juízo, são inadequados. O tema da soja, para aqueles que tiveram lá, o Lourival, que estava em Xangai, em Beijing, quando nós estivemos lá, o tema já apareceu lá. Havia, enfim, alguns embates que tinham sido contaminados, e, num determinado momento, isso contaminou o conjunto da exportação, contaminou no sentido de criar uma desconfiança. Nós, lá mesmo, tomamos iniciativas muito grandes, o ministro [da Agricultura] Roberto Rodrigues esteve reunido com o ministro da Quarentena - a China tem um Ministério da Quarentena, para ver a importância que eles dão ao tema - e nós acertamos certos procedimentos de ordem técnica que nos permitiriam chegar a uma solução. Bom, depois teve uma sucessão de embargos. O governo, simplesmente, não quis adotar uma política estrepitosa e o que nós fizemos foi uma negociação muito precisa e teve efeitos extraordinariamente rápidos. O simples fato da embaixada brasileira em Beijing comunicar ao governo chinês que o presidente Lula estava interessado em conversar por telefone com o presidente Hu Jintao [presidente da China, eleito em março de 2003], já suscitou uma nota do presidente  Hu Jintao, que não estava em Beijing naquele momento, estava viajando no exterior. Uma nota em que se dizia que não haveria problema e que o problema se resolveria pelos canais técnicos, como de fato se resolveu. Hoje, nós temos uma boa notícia desse tipo e eu acho que os prejuízos que houve naquele momento serão, evidentemente, ressarcidos no fluxo das exportações.

Reinaldo Azevedo: Professor, mas me perdoe, uma coisa, sem esquecer da segunda questão, que não pode ser perdida, do Ilimar. Nesses dias, o senhor sabe e eu sei, que não há nenhum problema com a soja brasileira. Ela está absolutamente adequada aos padrões europeus, aos padrões americanos e boa parte desses contratos chineses não tem nenhuma especificação sobre isso, os chineses têm se entupido de soja em contratos futuros que eles fecharam, e eles queriam aquilo que eles conseguiram: derrubar o preço da soja, que hoje caiu a mais de cem dólares a tonelada. Ou seja, é a brutalidade do jogo comercial. O senhor, evidentemente, não lhe cabe a palavra, assumo eu como jornalista, mas foi uma grande picaretagem que a China fez com o Brasil. E aí a questão que me parece grave é a seguinte: é com esse país, na ida do presidente Lula lá e em alguns fóruns internacionais, que o Brasil tem dito que quer estabelecer uma nova geografia comercial...

Marco Aurélio Garcia: Não só com esse país.

Reinaldo Azevedo: Não só com esse país, sem dúvida. A China, África do Sul, a Índia. Mas a China, por conta do seu mercado, por conta de ser o maior comprador de soja do mercado brasileiro, evidentemente, e porque o agrobusiness é o que responde uma maior parte do superávit comercial brasileiro, é evidente que a China é peça fundamental, considerada a economia complementar do Brasil. A China deu um pequeno exemplo aí de um jogo bruto, digno de qualquer país que, eventualmente, a gente... No discurso, muitas vezes, tem tratado com uma certa ligeireza... E a China, por exemplo, a China não é exportadora de capital, nem nunca vai ser, ela recebe capital...

Marco Aurélio Garcia: Não é verdade. A China está exportando capitais para o Brasil, por exemplo, agora. Acabamos de fazer...

Reinaldo Azevedo: O Brasil hoje tem uma... Os investimentos estrangeiros, no Brasil, ainda hoje são sofríveis, o senhor deve admitir...

Marco Aurélio Garcia: Sim.

Reinaldo Azevedo: Certamente não será da China que a gente vai receber o capital que a gente espera para investir em alguns setores... Eu me pergunto se a China não é a demonstração de que essa nova geografia que o Brasil busca está com um discurso um pouco atabalhoado aí, na questão da soja, a soja brasileira é boa...

Marco Aurélio Garcia: Eu estou entendendo aonde você quer chegar. Houve problemas efetivos com soja, escuta, nós não podemos negar isso. O que nós fizemos foi proteger claramente os nossos produtores, o presidente foi enfático nisso, tanto é assim que tomou medidas da gravidade de estar até em contato com o presidente. E enviamos, imediatamente, uma missão para lá e tomamos uma precaução que havíamos tomado com os europeus e que não havíamos tomado antes. E foi de ter técnicos, porque há técnicos europeus que controlam a qualidade da soja aqui. E, nós pedimos, justamente, que os chineses façam a mesma coisa para que esse problema seja resolvido. Agora, eu sei qual é o objetivo da sua observação, que é absolutamente pertinente.

Reinaldo Azevedo: É uma preocupação objetiva, eu quero saber se a gente não está indo em um caminho um pouco perigoso...

Marco Aurélio Garcia: Quando nós falamos em uma nova geografia econômica, nós não estamos dizendo que nós vamos destruir a velha geografia econômica. Para ser muito preciso: nós não estamos querendo substituir os EUA e a União Européia pela China, pela Índia, etc. Nós, sim, descobrimos que nesses países há oportunidades extraordinariamente importantes de incremento comercial. Aliás, as estatísticas demonstram isso claramente. E também que nós poderíamos acelerar, inclusive, investimentos recíprocos. No caso da China, há poderosos investimentos que vão ser feitos na área siderúrgica, mesmo na área do agrobussiness, no setor de infra-estrutura, etc que já foram acordados, alguns, inclusive, foram tornados públicos. E nós constatamos, examinando também os fluxos comerciais dos últimos anos, que a progressão das nossas relações com esses países, talvez, não tanto com a Índia, mas queremos que, com a Índia, essa questão se conserte rapidamente. A progressão é espetacular. Por exemplo, o mundo árabe, onde houve tantas críticas por causa da visita do presidente Lula, depois que o presidente esteve lá, nos seis primeiros meses que se seguiram a essa visita, praticamente, o crescimento médio de comércio com essa região foi da ordem de 70%, em alguns casos muito mais.

Reinaldo Azevedo: Ele é muito pequeno, né, professor.

Marco Aurélio Garcia: Crescimento.

Reinaldo Azevedo: Sim, crescimento, mas a base é muito pequena.

Marco Aurélio Garcia: Não é tão pequeno assim. Nós temos países, como os Emirados, que nós temos um comércio de mais de um bilhão de dólares, como é pequeno?

Lourival Sant'Anna: Professor, ainda na China, e depois você responde a de Moçambique e Cuba. Ali, depois da reunião do presidente Lula e do presidente Hu Jintao, a gente não ficou um pouco com a sensação que o Brasil ofereceu um monte de coisas e saiu meio com "mãos abanando"? Lembra como foi? Olha, o Brasil reconheceu que só existe uma China, aquela velha questão...

Marco Aurélio Garcia: Já afirmou há muito tempo...

Lourival Sant'Anna: Reafirmou essa política e tal. Em relação à política de direitos humanos, ele reconheceu a China como uma economia de mercado - "vamos pensar, vamos estudar, vamos juntos acertar alguns setores e tal". E em relação ao Conselho de Segurança, que é o que interessava ao Brasil, a China não fez uma afirmação. Ela disse assim: "Somos a favor da democratização, da reforma do Conselho de Segurança", e ao mesmo tempo, como o senhor mesmo disse, já vinha vindo esse balde de água fria aí da soja...

Marco Aurélio Garcia: Eu posso lhe assegurar o seguinte. Bom, em primeiro lugar, eu acho que nós temos que entender e, particularmente, conhecer como funcionam os mecanismos de decisão na China, o Jaime esteve lá anos e sabe bem disso, o tempo com o qual os chineses trabalham é diferente do nosso. Eu me lembro que, quando houve o bicentenário da Revolução Francesa, o presidente chinês foi convidado, entre outros personagens do mundo, a opinar sobre o impacto da Revolução Francesa e ele disse: "é um acontecimento muito recente para nós nos manifestarmos". Pois bem, o tempo lá é diferente. Eu estou absolutamente convencido que nas conversações que nós mantivemos, inclusive, sobretudo, em relação ao tema específico do Conselho de Segurança, nós saímos plenamente satisfeitos. E, por outro lado, os engajamentos de ordem comercial e econômica, em termos de investimentos, também nos satisfizeram enormemente. Os chineses normalmente, nessas visitas, acertam dois ou três contratos, conosco, eles acertaram dez. Sem falar em dezenas de outros que estão sendo implementados, que estão sendo encaminhados, por conta da iniciativa dos empresários brasileiros, sejam os empresários do agronegócio, sejam os empresários industriais, ou da área comercial propriamente dita. Então, nós estamos muito otimistas com a relação. Aceditamos que as metas que foram fixadas para o crescimento dos intercâmbios comerciais e de investimentos entre Brasil e China vão ser plenamente...

Lourival Sant'Anna: Tem um aspecto de desigualdade nessa relação, eles vêm com investimentos, ferrovias, portes, etc e nós pagamos com commodities [produtos primários usados na fabricação de produtos industrializados].

Marco Aurélio Garcia: Não, nós estamos lá participando de investimentos em áreas sofisticadas, como a da indústria aeronáutica. Nós temos uma presença na fabricação de ônibus... A mais poderosa empresa de fabricação de ônibus, que é brasileira, no mundo, está instalada lá com muito bons resultados. E eu acho que, justamente, o que foi aberto, entre outras coisas, foi... Deu-se um pouco de tranqüilidade e impulso para que outros empresários que têm o que produzir na China possam chegar até lá. Nós não queremos ficar eternamente nessa condição de exportadores de commodities. Agora, nós não vamos abrir mão das exportações de commodities, por quê? Porque as commodities brasileiras, o agronegócio brasileiro, não é simplesmente como era no passado. Ele é resultado, entre outras coisas, de ganhos de produtividade, de tecnologia, de avanços muito importantes. O empresário rural, hoje, é um empresário...

[sopreposição de vozes]

Paulo Markun: Jaime.

Jaime Spitzcovsky: Eu queria lhe perguntar, professor, sobre China: não dá um pouco a impressão de que a relação bilateral é aquele namoro que não tem sincronia, na hora em que o homem gosta da mulher, a mulher não está tão interessada no homem e vice-versa. Eu me refiro a isso pelo seguinte: nos anos 1990, quando se criou a expressão "parceria estratégica" para falar das relações China-Brasil, quem dava mais atenção nesse relacionamento era Pequim. Eu me lembro que em meados dos anos 1990, o political  bureau do Partido Comunista Chinês, dos sete integrantes, seis deles vieram ao Brasil. Ou seja, naquele momento, meados dos anos 1990, era a China que estava muito interessada no Brasil e o ele não deu muita bola, estava muito mobilizado com seus problemas internos e hoje parece que ocorre o inverso. O Brasil acordou para a China, tardiamente, e a China hoje, depois que entrou para a OMC [Organização Mundial de Comércio], que mudou um pouco o seu status no cenário internacional, está olhando com outro patamar de relacionamento, talvez, mais preocupada com relações com os EUA, com a UE [União Européia], com o Japão. O senhor acha que é exatamente essa história: no momento que a China se interessou pelo Brasil, não houve correspondência, e agora o Brasil está interessado na China e ela olha para o outro lado.

Marco Aurélio Garcia: Eu não acho que a China esteja olhando para o outro lado. Eu acho que a China está olhando para muitos lados. Dentre eles, está olhando para o Brasil também. Eu acho que nós não queremos ter a pretensão de nos substituirmos no relacionamento com a China aos EUA ou à UE. Sabemos exatamente qual é o nosso tamanho. Agora, nós temos certeza, confiança que existe uma fronteira de expansão do nosso relacionamento econômico e comercial com a China muito grande, e que ele pode estar, ainda por cima, avalizado por uma série de acordos políticos na esfera internacional. A China compartilha conosco a idéia de que nós precisamos ter um mundo mais multilateral, que há necessidade da reforma das Nações Unidas, enfim, que nós precisamos de uma política de paz; uma série de valores internacionais que não significam coincidências políticas e ideológicas dos dois regimes, são diferentes, tem cada um a sua especificidade. E nos mostram que uma atuação conjunta pode significar concretamente o quê? Algo que é completamente fundamental para nós: uma mudança nas relações de forças internacionais. Nós vivemos em um mundo muito difícil. O Brasil vive em um mundo muito difícil e isso, os brasileiros muitas vezes não se dão conta. E é de fundamental importância que nós nos associemos a todos que querem um mundo mais aberto, um mundo menos assimétrico, como ele é...

Demétrio Magnoli: Professor, eu compartilho essa idéia, veja, eu acho que não há um confronto aí. Eu participo completamente desse entusiasmo chinês... E é só você olhar para as estatísticas e vai se ver que, quando se fala em aumento do comércio sul-sul, 70% disso é a emergência da China no mundo, nos últimos 15 anos. Isso é o aumento do comércio sul-sul, e o Brasil está participando desse processo, o que é muito bom. A minha dúvida vem quando o senhor expande a idéia da parceria no plano político, não pela idéia da multilateralidade, aí eu concordo inteiramente, mas no entusiasmo maior no plano político pela China. Eu digo isso porque nós estamos, de fato, em um contexto muito difícil no mundo. Por exemplo, a questão dos direitos humanos está muito difícil no mundo. Depois que os EUA criaram a figura do combatente ilegal, começam a surgir notícias de que Abu Ghraib [prisão de extensa área localizada em Abu Ghraib, no Iraque] não é um elemento singular no mundo. O centro de tortura de Abu Ghraib faz parte de uma rede internacional, a qual fazem parte centros de tortura no Afeganistão, a base off-shore de Guantánamo e, segundo as últimas notícias, cerca de 32 bases espalhadas pelo mundo, inclusive navios em alto mar são centros de torturas instalados. Quer dizer, no mundo há uma regressão do paradigma dos direitos humanos, e isso é muito grave. A primeira parte da minha pergunta é: como o governo brasileiro vê essa regressão do paradigma dos direitos humanos ligada à guerra ao terror de Bush [Guerra do Iraque]? E a segunda parte da minha pergunta: na viagem de Lula à China, houve uma troca de notas muito problemática, a China agradeceu o papel protagonista que o Brasil desempenhou na Comissão de Diretos Humanos da ONU barrando uma condenação da China. Eu não acho que, de maneira nenhuma, seria errado que Lula fosse a Pequim para condenar a China, não se trata disso, mas coisa diferente é barrar, ativamente, uma condenação à China na Comissão dos Direitos Humanos. E coisa pior ainda, na minha opinião, é quando o ministro Celso Amorim diiz que não há o que se criticar quanto aos direitos humanos na China, pois ela introduziu o respeito aos direitos humanos na sua Constituição. Ou seja, na verdade, o Brasil está elogiando a China em relação a um regime que desrespeita sistematicamente os direitos humanos, no momento em que a maior potência do mundo rompe com os princípios do direito internacional sobre o direito de guerra, sobre o direito humanitário e por aí afora. E a segunda parte da minha pergunta é: eu fiquei envergonhado com essa declaração do ministro Amorim, como brasileiro. Quero saber se o senhor ficou.

Sérgio Malbergier: Eu quero acrescentar uma coisinha, professor, também junta com a pergunta sobre Cuba e Moçambique, o senhor, em uma entrevista à Folha, houve uma pergunta que é: o Brasil reconhece que há repressão em Cuba? E a resposta do senhor foi: "Não, o Brasil não reconhece". Eu quero saber...

Marco Aurélio Garcia: Leia bem a entrevista, porque é do seu jornal e o seu jornalista botou isso no lead [abertura ou parte mais importante da matéria jornalística], mas a minha resposta no texto está diferente. Eu vou lhe explicar: primeiro lugar, nós estamos, sem dúvida nenhuma, o Demétrio tem razão, nós estamos vivendo uma situação muito difícil, do ponto de vista dos direitos humanos no mundo inteiro, no mundo inteiro. O Brasil tem optado, e isso não é uma decisão do governo Lula, é uma decisão que antecede, por uma postura muito criteriosa e cautelosa nessa questão, procurando não ser um país de certificação. Nós achamos que é muito complicado ser um país de certificação, em primeiro lugar, porque nós temos que olhar para nós mesmos.

Paulo Markun: O que quer dizer isso? Só parar explicar melhor...

Marco Aurélio Garcia: Um país que distribui certificados [afirmando] que tal país é contra os direitos humanos, que o outro é cúmplice e assim por diante...

Demétrio Magnoli: Distribui certificados ao contrário, que foi o que o ministro Amorim fez...

Marco Aurélio Garcia: Nós vamos chegar lá. Porque nós vimos que um dos países que faz isso teve que adiar um pouco o seu relatório sobre direitos humanos porque, justamente, caiu em cima essa temática. Nós apreciamos, no caso chinês, e eu quero lhe dizer que essa visão antecedeu a própria visita do presidente Lula à China e eu vou lhe contar um pequeno episódio: eu estive, em fevereiro, na China, acompanhando uma delegação da Internacional Socialista. O PT não faz parte da Internacional Socialista, mas o ex-primeiro ministro Antonio Guterres [primeiro-ministro de Portugal, entre 1995 e 2002, foi presidente da Internacional Socialista. Em 2005, recebeu o cargo de alto comissário para os refugiados das Nações Unidas] pediu ao presidente Lula que indicasse um delegado seu para acompanhar algumas missões internacionais da IS. Evidentemente, o presidente pediu que eu o fizesse, nós mantemos toda nossa independência e autonomia em relação à Internacional, mas nos pareceu que era útil estar lá. E nas discussões que nós tivemos, que foram discussões sejam com o Partido Comunista Chinês, sejam com o próprio governo, que são a mesma coisa, nós constatamos que não é só pelo fato desse tema ter sido incorporado na Constituição, que por si só eu acho que algum significado tem, é porque esse tema passou efetivamente a ser parte integrante das preocupações, das conversações que nós mantivemos. Eu quero, inclusive, ser mais preciso, não só as questões relacionadas com os direitos humanos, de uma maneira geral, mas um tema bastante espinhoso na China, sobre o qual, inclusive, a mobilização internacional muitas vezes fala é a questão dos direitos trabalhistas, que são considerados um dos déficits democráticos que a China tinha. E há uma disposição do governo, e eu acho que essa disposição parte, fundamentalmente, da própria constatação de como evolui a sociedade chinesa. Você sabe perfeitamente que não é possível que um país evolua numa determinada direção sem que essa evolução econômica e social não venha a ser traduzida também em mudanças de natureza política. Mas o que eu quero...

Demétrio Magnoli: Eu concordo com tudo isso; a minha pergunta: é por que o Brasil tem que certificar que a China vai bem em relação aos direitos humanos, quando isso está contrário a todos os relatórios das entidades internacionais de direitos humanos?

Marco Aurélio Garcia: Porque nós apreciamos esse processo de evolução que está... Quisemos, através dessa apreciação, estimulá-lo. No que diz respeito à questão que o Ilimar colocou, veja bem, nós adotamos, em relação a Cuba, e eu quero, Sérgio, simplesmente, precisar o seguinte, quando o seu repórter me perguntou se havia repressão, eu disse: “não nos cabe dizer se há ou se não há”. O lead da matéria dá só que “não há”, por quê? Porque isso corresponde a uma postura que nós adotamos, enfim, é uma posição que as pessoas podem não estar de acordo, mas é a posição, inclusive, que o Itamaraty tem de longa data, que é a de não individualizar determinados casos, não politizá-lo unilateralmente. E obter, através de diplomacia, muitas vezes silenciosa, resultados melhores. Nós acreditamos que, em determinados momentos, a diplomacia silenciosa, e já temos vários indícios disso, é uma diplomacia mais exitosa. Agora, evidentemente, que, se quiser fazer um confronto entre os valores que animam o governo brasileiro e os valores que animam outros governos no mundo, se verá que há uma diferença muito grande.

Jaime Spitzcovsky: E especialmente sobre Cuba, o que o senhor teria a dizer sobre a situação dos direitos humanos naquele país?

Marco Aurélio Garcia: Eu não... Veja bem, eu quero insistir nisso: nós não temos a disposição de ficar, enquanto governo, opinando sobre a situação dos direitos humanos em Cuba, na Arábia Saudita...

Reinaldo Azevedo: Mas o governo brasileiro é contra as execuções?

Marco Aurélio Garcia: Nós somos contra todas as execuções.

Reinaldo Azevedo: E, portanto, não podemos condenar em fóruns públicos e multilaterais?

Marco Aurélio Garcia: Nós condenamos. Se você observar o voto que nós tivemos de abstenção na Comissão de Direitos Humanos ano passado, quando o tema das execuções se colocou, verá, corretamente, que nós fizemos uma enfática condenação, não só das execuções, mas, inclusive ao próprio processo que nós acreditávamos que estava cercado... A abstenção corresponde a essa posição histórica, eu insisto, nossa, que é de não politização, de não individualização de casos... E nisso aí nós temos sido acompanhados por um número crescente de países.

Paulo Markun: E Moçambique?

Demétrio Magnoli: O Brasil é candidato a uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. E não se pode ser um candidato de uma cadeira no Conselho de Segurança na ONU e não ter posição sobre fatos muito relevantes. Quando os EUA criam a figura do combatente ilegal, geram uma rede internacional de detenção e tortura ilegal, passando ao lado da Convenção de Genebra, em nome da guerra ao terror, me parece que um candidato a um Conselho de Segurança da ONU deve e precisa ter alguma coisa a dizer sobre isso. Porque isso é ainda mais sério do que o que acontece em Cuba e na China, já que se trata da maior potência do mundo e de um país, até outro dia, comprometido, pelo menos verbalmente, com a defesa desses princípios que hoje são abandonados.

Marco Aurélio Garcia: Olha, Demétrio, nós temos nos manifestado sobre esses temas no âmbito do Conselho de Segurança, do qual o Brasil faz parte hoje, não como membro permanente, mas, enfim, tem um mandado de dois anos. E mesmo sobre alguns temas de segurança internacional, quando nós não estávamos no Conselho de Segurança, nós também nos manifestamos. Você deve estar lembrado da posição que nós adotamos, por exemplo, com relação à Guerra do Iraque. Nós tivemos uma posição absolutamente clara e naquele momento não foram poucos os que disseram: “vocês estão assumindo uma posição arriscada porque isso vai criar dificuldades com os EUA”. E, em realidade, não criou nenhuma dificuldade com os EUA. Muitos não gostaram dessa posição.

Paulo Markun: Só para... Moçambique...

Marco Aurélio Garcia: Agora, só para não deixar o Ilimar sem resposta... Quando nós tivemos em Moçambique, a oposição buscou - e o presidente achou que era perfeitamente plausível que um partido que estava, inclusive, em vésperas de disputar uma eleição, viesse a ter contato conosco. E, inclusive, a partir daí, se estabeleceu a idéia de que poderia haver outros tipos de conversação - o partido [de oposição] nos buscou. Recentemente, passou um grupo da Unita [União Nacional para a Independência Total de Angola, partido de oposição em Angola] por Brasília, de Angola, pediu conversação e nós mantivemos. São partidos que estão legais, que estão funcionando, no caso do Unita há, inclusive, uma co-participação do governo, ainda que em posição minoritária e muito crítica ao governo do presidente José Eduardo Santos [presidente de Angola desde 1979. É também presidente do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), partido da situação no país], nos parece absolutamente normal esse tipo de procedimento.

Sérgio Malbergier: Professor, em relação ao governo venezuelano que o senhor conhece bem, tem bastante contato com Hugo Chávez, havendo, no início do governo Lula, antes mesmo de ir para o governo, uma certa identificação, um apreço ali entre os dois governos. E de um tempo para cá, os registros que vêm surgindo é de que há um distanciamento, até grande, entre os dois governos, e o Lula estaria muito decepcionado com o comportamento do presidente Chávez. Há até relatos que o Chávez deixou de vir ao Brasil agora para a Unctad porque o governo não ofereceu a segurança que ele requisitou, há também relatos de que em Guadalajara Lula não quis recebê-lo para uma conversa bilateral. Isso é verdade, é isso mesmo que está acontecendo?

Marco Aurélio Garcia: Nem é verdade a primeira parte da sua pergunta, de que haveria um enamoramento entre os dois governos, e nem a segunda parte, de que estaria havendo um distanciamento. Há uma muito boa relação do presidente Chávez e do presidente Lula, do governo venezuelano com o governo brasileiro, que não nos ia impedir de manter durante todo o tempo, inclusive no período que eu estive lá, que foi o período mais difícil, uma interlocução com a oposição. O presidente Chávez não veio agora, eu imagino que por razões óbvias, ele está metido em uma campanha pelo referendo, onde ele está, entre outras coisas, jogando com a sorte do seu governo. Então é óbvio. E em Guadalajara, por uma razão muito simples... Nós já nos encontramos várias vezes... Eu acho que não houve nenhum presidente com o qual o presidente Lula tenha encontrado mais do que com o Chávez. Em Guadalajara, nós tivemos onze reuniões presidenciais. Houve vários presidentes que nós não pudemos manter relações, pois ficaram à porta da sala esperando e não houve possibilidade. Nós passamos vinte e quatro horas em Guadalajara, voltando da China e tínhamos compromissos aqui no Brasil, mas não houve nenhuma queixa. Inclusive, não estava - eu posso até lhe assegurar - não estava programado o encontro do presidente Lula com o presidente Chávez, em Guadalajara. Assim, as relações continuam no bom estado que sempre estiveram. Nós temos o maior interesse de que a Venezuela, mais do que qualquer outra coisa, possa se reconciliar, esse é o grande problema. O problema da Venezuela não é saber se tal ou qual setor vai ganhar, se o governo ou oposição vão ganhar, o grande problema é que nós precisamos que a Venezuela encontre um quadro de reconciliação nacional. Isso me parece um aspecto fundamental e que vai ser uma tarefa difícil. Nós temos bons relacionamentos, negócios importantes do Brasil que estão na Venezuela e queremos manter essa relação. E o presidente Chávez e o presidente Lula têm uma relação pessoal muito boa. Aliás, é difícil não ter, a não ser pelos setores da oposição, uma boa relação com o Hugo Chávez, que é uma pessoa muito encantadora.

Paulo Markun: Nós vamos fazer mais um rápido intervalo e voltamos daqui a pouco.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva esta noite entrevistando o assessor especial de assuntos internacionais da Presidência da República, professor Marco Aurélio Garcia. Professor, em vários artigos e entrevistas que o senhor deu, logo no começo do governo Lula, o senhor apresentou uma diferença que haveria entre a política externa do governo Fernando Henrique e o governo Lula e era mais ou menos resumida no seguinte: o presidente Lula iria expor as idéias centrais do seu modelo que era um modelo baseado no enfrentamento das questões sociais, fome, analfabetismo, crise da saúde e habitação, entre tantas outras marcas da exclusão. Depois, o senhor disse para o Valor Econômico, no dia 31 de janeiro de 2003: "o problema é que não havia homogeneidade entre o discurso interno de Fernando Henrique e o externo. Já o presidente Lula fala lá fora a mesma linguagem que fala aqui dentro, o discurso que ele faz em Davos [no Fórum Econômico Mundial] é o mesmo que faz em Porto Alegre, no Fórum Social Mundial. Ele se projeta  - isso são palavras suas - "na política externa, como principal porta-voz do país, coincide com o que ocorre aqui dentro". O senhor acha, um ano depois, um ano e meio depois praticamente, que é realmente isso? Quer dizer, a política externa brasileira repete o  que é feito aqui, o senhor acha que está havendo essa ênfase no setor social e esse enfrentamento tão entusiasmado da fome, do analfabetismo, da crise da saúde e da habitação, que justificaria a atitude do governo Lula lá fora?

Marco Aurélio Garcia: Em primeiro lugar, quero dizer que lá fora, sem dúvida nenhuma, o governo Lula introduziu itens novos na agenda. O tema do combate à fome, da exclusão social. Na esfera internacional, sem dúvida nenhuma...

Paulo Markun: A sensação que eu tenho é que aqui dentro não está acontecendo...

[risos]

Marco Aurélio Garcia: Vamos por partes. Então, eu quero dizer que, nesse particular, houve aspectos de descontinuidade, eu quero dizer claramente, Paulo Markun, que nós não estamos muito preocupados se houve continuidade ou descontinuidade, sem dúvida nenhuma, houve elementos novos. No que diz respeito à situação interna, eu acho que também. Evidentemente que nós podemos, provavelmente, avançar na política externa em uma velocidade maior do que nós avançamos na política interna...

Paulo Markun: ...Não precisa cumprir o esperado?

Marco Aurélio Garcia: Talvez seja por isso... Por razões óbvias. Agora, o governo, de qualquer maneira...

Reinaldo Azevedo: Quais seriam as razões óbvias? O senhor disse que não deu para cumprir por razões óbvias.

Marco Aurélio Garcia: Porque as dificuldades que nós enfrentamos no âmbito internacional, nesse particular, são dificuldades menores. Eu vou chegar lá, não se preocupe. Nós fizemos um esforço muito grande, no sentido de implementar esse programa de Bolsa Família, que é um programa que hoje está cobrindo quatro milhões e meio de famílias com rendimento duas vezes superior ao rendimento que possuíam essas mesmas famílias nos programas do governo anterior. E nós estamos firmemente decididos que esse programa de bolsa será estendido, até 2006, para  o conjunto das famílias que encontram-se em situação de carência alimentar. Bom, então, isso no que diz respeito a esse tipo de política. Agora, nós sabemos que essa política, evidentemente, não é a política central. O que vai modificar a situação do país, o que vai permitir efetivamente o enfrentamento do tema da exclusão social, o tema das brutais desigualdades que cercaram o desenvolvimento do capitalismo no Brasil é um outro tipo de crescimento, um crescimento que tenha, efetivamente, na distribuição de renda, não um conseqüência, mas um fator. Quais são as razões óbvias? As razões óbvias é que encontramos uma situação crítica, do ponto de vista macro-econômico do país, não preciso dar os dados, os dados são conhecidos  pela sociedade brasileira. Nós tínhamos uma ameaça de inflação forte; nós estávamos em uma situação de descontrole cambial; nós estávamos com um déficit de conta corrente elevadíssima; nós estávamos com o risco Brasil em 2400 pontos; nós estávamos com uma taxa de juros em 26%. Todos esses indicadores evoluíram de forma positiva.

Jaime Spitzcovsky: O risco Brasil e o câmbio pioraram porque o Lula não disse, antes da eleição, que iria fazer esse tipo de governo.

Marco Aurélio Garcia: O Lula disse de forma muito clara isso num documento chamado Carta ao Povo Brasileiro  [documento assinado em junho de 2002, pelo então candidato à presidência da República, Lula e o Partido dos Trabalhadores, atestando que respeitaria os contratos nacionais e internacionais, caso vencesse as eleições] e eu não quero voltar ao passado. Mas já que o passado está sendo introduzido aqui, muito bem, assumamos o passado. O que houve, naquele momento, foi o seguinte: alguns, sentindo que havia uma dinâmica mudancista na sociedade brasileira, tentaram estabelecer um terror político no país. O candidato da oposição, naquele momento, desenhou que cenário? Que cenário foi desenhado? Que o Brasil iria se transformar numa mistura de Argentina e Venezuela.

Paulo Markun: Candidato da situação. Ele parecia de oposição, mas era da situação.

Marco Aurélio Garcia: [risos] É verdade. Ele agora é de oposição de São Paulo. Mas enfim, o candidato, naquele momento disse isso: que havia uma mistura de Venezuela e Argentina e isso seria o governo daqui, caso o Lula ganhasse Quando ficou absolutamente claro, naquele momento, a partir, sobretudo da Carta ao Povo Brasileiro, nós deixamos claros quais critérios nós iríamos operar. Evidentemente que nós não tínhamos a percepção do nível de agravamento da situação brasileira. Esse nível de agravamento não decorre, vamos ter claro, não decorre simplesmente da ameaça petista. Porque não foi a ameaça petista que fez com que a dívida pública interna brasileira crescesse em oito anos, de sessenta bilhões de reais, para oitocentos bilhões de reais. Não foi isso. Esse era um problema real que estava instalado no governo Fernando Henrique quando resolveu combater a inflação e produziu os resultados que nós sabemos. E o presidente Lula tem dito reiteradamente o seguinte: "eu fui eleito porque o país vivia uma crise. Entende? Então, eu não posso me queixar dessa crise porque ela, entre outras coisas, contribuiu para a minha eleição". Agora, isso não exclui o fato de que, diante dessa crise, ele tivesse que adotar medidas difíceis, amargas, duras...

[sobreposição de vozes]

Demétrio Magnoli: Eu queria propor uma volta à política externa, mas no tema que o Paulo Markun lançou sobre a continuidade e a descontinuidade. Em novembro de 2000, o Jornal do Brasil publicou uma entrevista do senhor em que se perguntava: e a Alca? [Área de Livre Comércio das Américas (Alca): acordo comercial idealizado pelos Estados Unidos em 1994 proposto para todos os países da América, exceto Cuba, que previa a derrubada gradual das barreiras alfandegárias do comércio entre os Estados-membros] E a sua resposta foi literalmente: "nós somos contra. O governo brasileiro -  naquela época, governo Fernando Henrique - está em uma "sinuca de bico" [expressão popular para situação que se fica acuado, com dificuldade de tomar posição] porque se sabe que a Alca significa uma destruição do nosso sistema produtivo. A Alca é um desastre". Bom, a minha pergunta é: o governo brasileiro atual está em uma "sinuca de bico" sobre a Alca ou essa posição que o senhor levanta é um ruído com o ministro Amorim, porque o ministro Amorim disse que o governo brasileiro quer fazer a Alca. Então, eu queria saber se aqui há um ruído ou se o senhor está em uma "sinuca de bico"?

 Marco Aurélio Garcia: Não. Eu não estou em "sinuca de bico" nem o governo Lula, menos ainda com o ministro Amorim. A Alca, naquele momento, era uma coisa, a Alca deixou de ser aquilo.

Demétrio Magnoli: Mas a Alca mudou tanto?

Marco Aurélio Garcia: Mudou. Na reunião de Miami, nós conseguimos propor outro tipo de negociação. É isso. E o impasse atual que existe exatamente decorre do fato de que, apesar dos EUA terem aceitado esse outro modelo da Alca flexível, da Alca possível, como alguns chamam de Alca light...

Demétrio Magnoli: A Alca deixou de ser um desastre?

Marco Aurélio Garcia: Não, ela não deixou de ser um desastre, veja bem, eu não estou dizendo que ela deixou de ser um desastre, ela mudou de natureza. O que estava acontecendo naquele momento era o seguinte: a Alca, tal como estava colocada, previa não acesso livre aos mercados, porque os Estados Unidos não abriam mão das medidas de proteção. Mas sim...

Demétrio Magnoli: Ele não abre mão?

Marco Aurélio Garcia: Calma, vamos lá. Mas sim, significava completamente que haveria liberalização de investimentos, de compras governamentais...

Demétrio Magnoli: Não significava... Não havia um acordo da Alca assinado naquele momento? A Alca, naquele momento...

Marco Aurélio Garcia: Esta era a proposta hegemônica e não havia contraproposta nessa direção.

Demétrio Magnoli: Havia. A proposta brasileira era contrária a isso. Como hoje é.

Marco Aurélio Garcia: Mas, na prática, nós estávamos tendo... Ela não tinha sido instituída com o devido respeito às normas de negociação. Somente na reunião de Miami é que, efetivamente, nós paralisamos isso...

Demétrio Magnoli: Mas professor, é argumentável que, na reunião de Miami, a nossa situação ficou muito pior. Porque se decidiu, na reunião de Miami, eliminar a necessidade de que todos concordem sobre o conjunto do tratado. Em Miami, se decidiu que vai haver um tratado, quase que um tratado quadro, e sobre as definições da Alca, cada um depois fará tratados bilaterais ampliando seus compromissos.

Marco Aurélio Garcia: Demétrio, essa não é a Alca original.

Demétrio Magnoli: Claro que não, ela é muito pior.

Marco Aurélio Garcia: Por quê?

Demétrio Magnoli: O perigo que nós enfrentamos é que os EUA com o seu poder hegemônico aplicado bilateralmente, negociando com o Paraguai, negociando com o Chile, como acabou de negociar com o Chile, colocou uma série de tratados cruzados...

Marco Aurélio Garcia: [falando ao mesmo tempo] ...Mas isso era inevitável, de qualquer maneira, mesmo se nós nos retirássemos os EUA teriam esse poder...

Demétrio Magnoli: ...Onde se troca concessão desses países na área de serviços, por concessões dos EUA na área de acesso a mercados. O que nos deixaria em uma situação de isolamento na América tendo apenas um tratado quadro e tendo os países latino-americanos concorrendo conosco em condições vantajosas de acesso aos mercados nos EUA.

Marco Aurélio Garcia: Isso não é verdade.

Demétrio Magnoli: Isso que foi criado em Miami...

Marco Aurélio Garcia: Isso não é verdade.

Demétrio Magnoli: Eu não sei se aquela Alca era um desastre, talvez fosse. Mas depois de Miami ela ficou.

Marco Aurélio Garcia: Veja bem o seguinte, essa possibilidade sempre esteve na ordem do dia, de que, não avançando as negociações, fosse no governo Lula, fosse no governo Fernando Henrique, ou qualquer outro governo, os EUA tomassem a decisão de fazer negociações bi ou multilaterais tentando excluir o Brasil. Eu acho o seguinte: a Alca só tem sentido com o Brasil. A Alca, sem o Brasil, não existe. É outra coisa. E é uma coisa que os EUA e qualquer outro país do mundo poderão fazer tranquilamente por sua conta, independentemente. Nós não vamos ficar isolados por uma razão muito simples. Porque o mercado brasileiro e o sistema produtivo brasileiro são suficientemente importantes hoje para interessar a esses países da América do Sul. Esses países manterão, como mantêm, relações intensas. E, Demétrio, você lembra perfeitamente, na época em que o chanceler da Argentina falava que: "nosotros vamos tener relaciones carnales com os EUA", e eles estavam, na realidade, tendo relações carnais conosco. E a Argentina, naquele momento, vendia cerca de 31% de seu comércio exterior ao Brasil e 16% com os EUA. Então, ficavam um pouco dormindo conosco e sonhando com os EUA, o que é uma bobagem. Isso acontecerá de qualquer maneira. O que houve foi uma decisão serena, uma decisão clara, uma decisão soberana do Brasil de proteger o nosso sistema produtivo, inclusive, o sistema agrícola e dizer o seguinte: os senhores não podem mais continuar com esse "lero-lero" de que vamos fazer uma zona de livre comércio, mas ao mesmo tempo, não se tem acesso aos mercados, à agricultura norte-americana que continua fortemente - não só a agricultura, como setores industriais também - mas que continua fortemente protegida por subsídios, medidas antidumping, medidas sanitárias, etc. Eu acho que isso repôs o tema da Alca de forma diferente. Por isso eu digo: "a Alca que hoje está em discussão é radicalmente distinta daquela". Agora, o que nós sempre insistimos foi o seguinte: nós, enquanto governo, não temos, em relação à Alca, uma postura ideológica. Admitimos que a sociedade tem todo o direito de fazer críticas, ou de apoiar... Têm setores que apóiam e setores que criticam a Alca por questões ideológicas, nós respeitamos essa postura. Agora, o governo não tem essa postura. O governo tem que consultar, basicamente, o quê? O interesse nacional. E o interesse nacional nos indicou que a melhor postura que nós deveríamos adotar era a postura do ministro Amorim, que formulou primeiro e depois teve a condição de implementá-la na reunião de Miami.

Paulo Markun: Professor, vamos fazer mais um rápido intervalo e voltamos daqui a instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva esta noite entrevistando o assessor especial de assuntos internacionais da Presidência da República Marco, Aurélio Garcia. Professor, uma crítica recorrente do então presidente do PT, depois candidato Lula, ao governo Fernando Henrique sempre foi a quantidade de viagens internacionais que o Fernando Henrique fazia [dizendo] que ele estava muito mais preocupado com o exterior do que com aqui, conhecia muito melhor Paris do que Cabrobó, e assim por diante. No entanto, ele assumiu a Presidência e fez uma quantidade de viagens maior do que as viagens do presidente Fernando Henrique Cardoso. O que muda?

Marco Aurélio Garcia: Bom, em primeiro lugar, nós tínhamos uma clara percepção de que os problemas do país estavam muito ligados à expansão do Mercosul e da América do Sul. Quer dizer, quisemos associar completamente à solução dos nossos problemas as viagens na América do Sul. Eu diria que praticamente metade ou 60% das visitas que o presidente Lula fez no ano passado, as visitas internacionais, foram centrados no Mercosul e na América Latina. Evidentemente também nós resolvemos explorar novos territórios. Eu não tenho nenhum problema de ir para Paris...

Paulo Markun: Mas o presidente Fernando Henrique também esteve na China.

Marco Aurélio Garcia: Esteve na China. Eu diria que o nosso roteiro foi...

Paulo Markun: Mais pragmático?

Marco Aurélio Garcia: Não só mais pragmático, como refletia novas prioridades. Nós estivemos em cinco países africanos, em cinco países árabes, na Índia, na China, tudo isso concentrado em um período de um ano e meio. Sem dúvida nenhuma pode ter havido, da nossa parte, não só do presidente Lula, mas de todos nós, um certo afã oposicionista de criticar as visitas. Mas o presidente Lula, inclusive este ano, diminuiu bastante. A vida dos presidentes hoje é muito complicada, porque, independentemente daquelas visitas que eles querem fazer, as viagens que eles querem fazer, têm aquelas viagens que eles têm que fazer.

Paulo Markun: Agora, só para a gente entender... E nesse tipo de visita, a sensação que dá para o grande público... Aliás, não para o jornalista, que, teoricamente, entende mais que o grande público, mas a sensação  que a gente tem é a de que qualquer presidente vai lá, encontra, cumprimenta, passa em desfile as tropas, aí senta em uma mesa, discute aquilo que eles vão assinar... A impressão que se tem é que está tudo resolvido antes, aquilo é só jogo de cena. Seja qual presidente for, não estou dizendo que é o presidente Lula, o Fernando Henrique ou qualquer outro. O senhor mencionou aqui que em certos casos o comércio brasileiro melhorou depois disso. Por que melhorou?

Marco Aurélio Garcia: Melhorou porque a política tem um lado simbólico, é evidente. Visitar um país, dependendo do status que se dá essa visita, da cidade que será visitada, da hora que se chega, tudo isso influi enormemente. Mas eu acho que tem um outro aspecto importante que a sua pergunta me permite tocar, que é o problema da implementação de acordos. O que é muito espantoso é que, muitas vezes, nós temos acordos que são estabelecidos e que dormitam nas gavetas.

Paulo Markun: O Brasil e México, recentemente...

Marco Aurélio Garcia: Ou quando não dormitam nas gavetas, lá pelas tantas, um funcionário de terceiro ou quarto escalão diz: "isso aqui não é assim, não vou implementar". Nesse particular, o presidente Lula tomou uma decisão e nós, na assessoria, junto com o Itamaraty estamos fazendo um processo de acompanhamento estrito de tudo que foi acordado de todas as visitas, para saber quem acordou; quais são as autoridades; quais são os prazos; se está adiantado ou atrasado, se está atrasado, por que e quais medidas devem ser tomadas... Às vezes, exigem uma portaria, um decreto ou, às vezes, até uma mudança legislativa. Então, essa é uma das preocupações porque senão, efetivamente, o presidente Lula sempre tem essa preocupação, ele não quer se encontrar de novo com um presidente um ano depois e repetir a mesma agenda do ano anterior, como se nada tivesse sido encaminhado. E hoje nós tivemos a felicidade de constatar que, justamente, nas duas conversas que o presidente Lula manteve aqui em São Paulo com o presidente da Namíbia [Sam Nujoma (1990 a 2005)] e, agora  com o presidente da Colômbia, nós pudemos constatar que muitas das coisas que haviam sido acordadas estão sendo encaminhadas. Mas, de qualquer maneira, a nossa preocupação muito forte é para que nada fique no papel.

Ilimar Franco: Agora mesmo o senhor falou em afã oposicionista. E, respondendo a pergunta da Alca, o senhor respondeu o seguinte: eu não estou numa sinuca de bico, a Alca mudou. O que eu lhe pergunto é o seguinte: a economia do Brasil mudou ou o PT tem alguma autocrítica a fazer em relação ao discurso que ele fazia quando estava na oposição?

Marco Aurélio Garcia: Não, evidentemente que a economia do Brasil mudou. Ela não tem as mudanças que nós gostaríamos que ela tivesse, mas nós fizemos um ajuste de natureza macro-econômico que, ao nosso ver, cria condições para uma inflexão importante, inflexão, diga-se de passagem, que já dá os primeiros sinais. Alguns podem discutir se esses sinais são sustentáveis, se são duradores ou não, isso é um outro problema: eu acho que sim.

Ilimar Franco: Esse ajuste já era feito pelo governo anterior e também era criticado.

Marco Aurélio Garcia: Me desculpe, não era feito. Se tivesse sido feito, nós não teríamos que enfrentar... Nesse particular, eu quero ser muito enfático, eu acho que houve uma descontinuidade. Dizer que nós estamos fazendo a política do presidente Fernando Henrique Cardoso no âmbito macro-econômico, ao meu juízo, é equivocado. Nós estamos fazendo exatamente aquilo que o presidente deixou de fazer.

Reinaldo Azevedo: Eu queria entender porque ela não é mais conservadora. Eu queria ouvir a sua argumentação técnica sobre porque ela não é mais conservadora... O superávit primário do governo Fernando Henrique, considerando as receitas extraordinárias, não chegava a 3%, era 2,75%, se não me engano. Esse superávit, agora puro sangue, sem receitas extraordinárias, é de 4,25%. O superávit é um dado importante. Se a gente pegar a questão orçamentária, professor, hoje ela está em 3% do orçamento. O segundo semestre, agora, tende a ser maior, sempre é, mas dificilmente se vai cumprir a execução orçamentária. Em relação à política de juros hoje, dado o cenário internacional, mais conservadora não podia ser. E agora esse conservadorismo foi referendado, já que a pressão inflacionária continua aí. Hoje mesmo o relatório consulta semanal do Banco Central constatou que a pressão inflacionária está aí, e, portanto, se fosse cumprir o centro da meta da inflação, que é 5,5%, simplesmente não vai baixar a taxa de juros. O  que muda, do ponto de vista da qualidade. Quer dizer, para o brasileiro que está lá do outro lado, enfim, o que mudou? Não vou entrar no mérito do desenvolvimento sustentável, eu acho que não consegue e nem acho que o crescimento seja esse. O IBGE comparou coisas desiguais e chegou a um crescimento, tecnicamente, de 1,5%, que na minha opinião e de alguns economistas respeitáveis, não é verdadeiro. De qualquer modo, ainda que seja, chegaremos a um crescimento de 3,5% depois de um decréscimo de crescimento de 0,2%. Dizer que mudou, o senhor diz: "não há continuidade". Eu diria: ela é mais severa, do ponto de vista técnico, ou se o senhor usar uma linguagem convencional, se a do Fernando Henrique era neoliberal, esta é ainda mais neoliberal. É ultra neoliberal...

Marco Aurélio Garcia: Veja bem o seguinte. Não vamos confundir medidas que tem que ser adotadas em um determinado momento com uma estratégia geral de desenvolvimento. São coisas absolutamente diferentes. Quer dizer, nós fomos obrigados a lançar mão desses instrumentos num quadro que se desenhava como catastrófico. A grande expectativa que se tinha no país, no final de 2002, era a de que nós iríamos ter uma inflação de 10% ao mês, de que nós iríamos ter um desordenamento completo das contas internas, que o dólar iría disparar, enfim.  Todo o cenário internacional, naquele momento, era um cenário de desorganização total, de anomia da economia brasileira, e que levaria, aos seis meses de governo, á constatação: "viram, esses moços aí não são do ramo, não podem administrar". E nós conseguimos. A grande verdade é que nós conseguimos... De forma conservadora, você tem toda a razão, são formas conservadoras. Nós gostaríamos de ter encontrado um país arrumado. Um país arrumado que nos permitisse enfrentar os problemas do desenvolvimento de uma forma distinta...

Reinaldo Azevedo: Mas seriam eleitos em um país arrumado?

Marco Aurélio Garcia: Por que não? Por que não?

[sobreposição de vozes]

Paulo Markun: Professor, uma última pergunta: aquela história da viagem para a Venezuela... Aliás, uma situação muito singular porque o senhor recebeu as instruções para essa viagem, se não me falha a memória, quando o presidente Lula estava fazendo a barba, na mesma barbearia que ele fazia ali, perto do Instituto Cidadania, não é isso?

Marco Aurélio Garcia: Pelo contrário, eu prestei contas da viagem na barbearia.

Paulo Markun: Aí já era a volta, então, tinha ido antes ainda...

Marco Aurélio Garcia: Isso.

Paulo Markun: Eu queria que o senhor respondesse o seguinte: qual o balanço que o senhor faz desse período que o senhor está lá, que tipo de trabalho lhe ocupa mais e qual o grau de satisfação que o senhor tem?

Marco Aurélio Garcia: Em primeiro lugar, tenho um grau de satisfação muito grande. Eu tenho... Evidentemente eu sinto falta de meus alunos, dos meus colegas professores, eu sinto falta de poder estudar mais, de poder ser mais reflexivo. Eu sinto falta de uma certa independência de, como intelectual, expressar minhas opiniões, e agora eu sou um funcionário do governo e como tal, eu sou obrigado a ser moderado nas minhas palavras.

Paulo Markun: Mas o senhor está funcionando bem pelo visto aqui em uma hora e meia de programa...

Marco Aurélio Garcia: Obrigado. Agora, eu tenho uma enorme gratificação porque eu me sinto partícipe de uma grande aventura, no sentido positivo que o termo tem, de transformar o Brasil, e, particularmente, de transformar, mudar o lugar que o Brasil ocupa no mundo.

Paulo Markun: Você acha que, com esse ano e meio de governo do PT, tem ainda esse sinal da insígnia da aventura presente?

Marco Aurélio Garcia: Sem dúvida nenhuma, na minha área, particularmente. Então, eu tenho certeza que muito brevemente o que eu disse outro dia a um grande amigo meu que estava um pouco inquieto com os rumos do governo, ainda que muito satisfeito com o rumo da política externa, e eu disse a ele: "Fábio" - se tratava de um querido amigo, Fábio [Konder] Comparato - "a política externa é a ponta do iceberg".

Paulo Markun: Muito obrigado pela sua entrevista, obrigado a nossos entrevistadores e a você que está em casa, na próxima segunda feira estaremos aqui com mais um Roda Viva, na segunda que vem com a prefeita de São Paulo, Marta Suplicy. Uma ótima semana e até lá.

Sobre o projeto | Quem somos | Fale Conosco