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Memória Roda Viva

Listar por: Entrevistas | Temas | Data

Gilberto Dimenstein

4/8/1997

O jornalista defende ações de cidadania e investimentos em projetos educacionais, com o uso das tecnologias disponíveis, principalmente a internet, para alterar o quadro social

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[programa ao vivo]

Matinas Suzuki: Boa noite. No centro do Roda Viva de hoje está o jornalista Gilberto Dimenstein. Aos 40 anos, Gilberto Dimenstein, casado, dois filhos, mora há dois anos em Nova York, onde é correspondente da Folha de S.Paulo. Um dos mais premiados jornalistas brasileiros, Dimenstein ganhou destaque no início dos anos 80, já na Folha de S.Paulo, pela série de reportagens com denúncias sobre escândalos políticos, como “A república dos padrinhos” e [...]. Transformadas em livros, suas reportagens sobre corrupção do poder público lhe conferiram dez prêmios jornalísticos. Nos últimos anos tem se dedicado aos temas ligados à infância e à adolescência. Publicou [o livro] A guerra dos meninos, revelando o assassinato sistemático de crianças no Brasil; Meninas da noite, sobre meninas escravas que se prostituem, e O cidadão de papel, sobre direitos humanos. Dimenstein está lançando agora seu novo livro: Aprendiz do futuro: reflexões sobre cidadania, desemprego, violência urbana e os desafios que o mundo globalizado impõe hoje, especialmente aos jovens. Para entrevistar esta noite o jornalista Gilberto Dimenstein, nós convidamos Marcelo Beraba, editor executivo do Jornal do Brasil; Gilberto Nascimento, editor assistente da revista IstoÉ; Luiza Nagib Eluf, promotora de justiça do estado de São Paulo; Júlio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Menor; Paulo Vitor Sapienza, coordenador do SOS Criança, da Secretaria da Criança e do Bem-Estar Social; Frederic Litto, professor da ECA – Escola de Comunicações e Artes –, coordenador científico da Escola do Futuro; e a Ângela Santos, que é jornalista aqui da TV Cultura de São Paulo. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros. Nós lembramos que você pode participar deste programa fazendo perguntas pelo telefone 252-6525. O código de São Paulo é 011. Se você preferir o fax, use o número (011) 874-3454; ou se você preferir usar ainda a internet, o nosso endereço é rodaviva@tvcultura.com.br. Boa noite, Gilberto Dimenstein.

Gilberto Dimenstein: Boa noite, Matinas.

Matinas Suzuki: Gilberto, [quanto a] esse projeto Aprendiz do futuro, que é um livro, mas também é um programa para ser usado através da internet, poderia explicar um pouco, dar detalhes?

Gilberto Dimenstein: A idéia é a seguinte: nos últimos dois anos, a partir de Nova York, eu tenho feito uma experiência com 100 alunos e nove professores numa escola aqui de São Paulo chamada Bandeirantes, onde a gente tem testado diariamente como se usa a internet em sala de aula para tentar evitar essas bobagens que o Litto também detecta nos trabalhos dele, de um uso de modismo. A partir dessa experiência, que foi muito encantadora para mim, como jornalista, porque no ano passado um grupo de alunos se dirigiu ao diretor, pedindo que não saíssem de férias para continuar trabalhando no projeto. Então, o que aconteceu? A gente foi pensando, pensando, como usar isso em sala de aula para várias escolas. Daí, surgiu o livro, que eu reescrevo nas colunas para a Folha de S.Paulo, e o ano passado foi um ano muito fértil, porque eu estive na Índia, estive na Turquia, Colômbia; morando em Nova York, vinha para o Brasil muitas vezes; encontrei vários personagens por aí afora. Eu reescrevi a coluna de forma didática para uso em sala de aula, ou então para detalhar melhor a questão da cidadania, globalização e desemprego. E a partir daí eu falei: como eu posso tentar fazer desse livro uma porta para a internet, que é essa coisa complexa? Então, o que eu fiz? A gente criou uma homepage junto com o livro, então o indivíduo lê o livro e, na homepage, ele vai fazer um caminhar, ele vai nos botões possíveis da internet. Então de repente ele está estudando sobre cidades, ele vai conversar com [o músico] Gilberto Gil, ou então ele vai na página do Portinari, então é uma forma de você dar uma âncora pedagógica em sala de aula, que é o livro, que é bem detalhado, e ao mesmo tempo você permitir que o indivíduo viaje pelo mundo. É fundamental... a tese básica do meu trabalho, primeiro, é que o aprendiz é o trabalhador do futuro. Quando se tinha o aprendiz, na Idade Média, era um indivíduo que aprendia trabalhando; hoje, o trabalhador do futuro, ele não pode mais parar de estudar. E a segunda questão, para nós do Terceiro Mundo, é que a internet garante recursos para escolas pobres com baixíssimo custo. Você pode ter uma biblioteca de mil, dois mil andares, se você conseguir treinar o professor para usar esse recurso, é um grande avanço. Não adianta também colocar computadores, internet em sala de aula sem treinar o professor, porque é como já acontece no Brasil, e até nos Estados Unidos, é jogar dinheiro fora. Então o livro é uma tentativa de ensinar simultaneamente internet, cidadania e direitos humanos.

Marcelo Beraba: O livro traz...

Matinas Suzuki: Marcelo, deixe...

Marcelo Beraba: Pois não.

Matinas Suzuki: Antes de a gente seguir, então, vou dar o endereço aqui do Aprendiz do futuro: http: – eu não sei como é que se diz isso na linguagem da internet, essas duas barras – www.aprendiz.com.br, aí dá para você anotar. Desculpe, Beraba.

Marcelo Beraba: A minha curiosidade é a seguinte, Gilberto, você elegeu arbitrariamente alguns temas que norteiam o livro, quer dizer, a espinha dorsal: a tecnologia é o bicho-papão; o emprego vai sumir, quer dizer, a questão do desemprego; quanto tempo o ser humano vai viver; somos mesmo todos iguais?; violência. Por que foram esses temas? Alguns deles a gente sabe que são temas que você vem aprofundando, acompanhando há algum tempo, não é? Como é que...?

Gilberto Dimenstein: Na verdade, os temas se complementam, Beraba, porque é difícil você falar em cidadania e direitos humanos se você não fala em questão tecnológica, quer dizer, o indivíduo hoje que não tem direito à internet, não tem direito à computação, é quase que um subcidadão. Porque ele está desprovido de toda uma massa de informações e conhecimentos que um outro indivíduo pode ter. Eu costumo dizer, e escrevi isso, que o sem-computador do presente, o sem-computador de hoje é uma espécie de sem-terra do futuro, quer dizer, ele não vai ter o mecanismo, então o que eu misturei? Eu misturei a questão tecnológica – que é fundamental –, da automação, da globalização, do desemprego, junto com questões de mortalidade infantil, de violência, porque o Brasil – tem um dado interessante no Brasil, de que a gente não consegue fugir –, ao mesmo tempo em que a gente tem que lidar com o século XXI, que é essa questão da automação, que é essa questão da globalização, dos chips, e assim por diante, nós também temos que lidar com um Brasil do século XIX, que é o trabalho infantil, que é o trabalho escravo, que é a prostituição. Então é impossível você imaginar um cidadão vivendo no Brasil sem lidar com essas contradições, em um país que é muito heterogêneo, tanto em termos raciais, também em termos temporais. No Brasil você lida desde com o indivíduo que mora no século XVIII, XIX, até com quem já está na avenida Paulista vivendo no século XXI. Então a temática tenta incorporar essa diversidade brasileira; então eu tenho que falar sobre estresse, porque é uma questão fundamental; eu tenho que falar sobre epidemias também.

Ângela Santos: Gilberto, então o debate sobre cidadania está muito distante do aluno no Brasil hoje?

Gilberto Dimenstein: Não, porque quando eu falo em cidadania, geralmente as pessoas falam... Eu tenho até medo de falar nessa palavra, mas cidadania é uma coisa, é como você lida no dia-a-dia com seu direito. O fato de você pegar, jogar um papel no chão, o fato de você arrancar um telefone público, ele é o mesmo rol de desrespeito que está – embora com gradação diferente – o fato de alguém ser torturado numa cela. É todo um grupo de elencos em que direitos não são respeitados. Eu acho que... por que eu coloco a cidadania como questão fundamental? Porque uma das questões básicas do Brasil que explica o nosso subdesenvolvimento é a falta de uma consciência de cidadania. É a falta de um respeito à comunidade, é a falta de um respeito ao direito. Isso vai em todos os lados. Olha, é interessante, ou São Paulo ou Rio de Janeiro, e eu que estou morando um tempo em Nova York, a gente fica com um olhar meio estrangeiro. Aqui, o pedestre – o Litto também é de Nova York, pode conferir isso –, o pedestre aqui é um acuado, você anda na rua com medo de ser atropelado. Porque o indivíduo atropela, sabe que pode não acontecer nada com ele. Se, em Nova York, a pessoa é atropelada, a vida do sujeito acabou. Então meus filhos, em Nova York, andam na rua com uma sensação de que a rua é deles. Aqui... são mínimos detalhes que, no final, vão compondo uma situação que é uma situação de desrespeito diário. Eu, como brasileiro, me sinto diariamente desrespeitado. É esse trânsito, que é infernal, e não tem uma solução para o trânsito, é a sujeira nas ruas, são as escolas que estão caindo aos pedaços. Então eu acho que o passo futuro do Brasil não é uma questão econômica ou uma questão política; eu acho [que é] uma questão de mentalidade.

Fredric Litto: Gilberto, você ia... Eu olhei seu livro com cuidado, eu achei a parte da cidadania exemplar realmente. E você tocou, no livro, nos pontos nevrálgicos, como as pessoas se comportam em sociedade, quer dizer, quando os homens saem da caverna, saem das suas fazendas e vêm morar em sociedade, em situação urbana, eles têm que ter um comportamento civil um para com o outro, senão a coisa não anda, ou anda muito mal. Então, os seus dois anos nos Estados Unidos, você tem observado diferenças de estrutura em relação ao Brasil, que o leva a crer que... sempre nos seus artigos em geral a gente nota que você diz para o seu leitor no Brasil: “Olha, aqui há uma idéia que nós poderíamos aproveitá-la no Brasil”. Mas eu me refiro a certas coisas estruturais, por exemplo: nos Estados Unidos se tem escoteiros, se tem clubes mirins de basebol em que os jovens aprendem, fora da escola, formas de civilidade, de trabalhar, de cooperar. Aqui no Brasil, quando eu conto para alguém que eu era escoteiro em Nova York, eles acham a maior besteira, como [se fosse] coisa paramilitar...

Gilberto Dimenstein: Eu também fui escoteiro; agora eu posso confessar aqui: eu fui escoteiro com 17 anos de idade, 16 anos de idade. Também achavam que era uma idiotice.

Fredric Litto: Você aprendeu como levar uma velhinha atravessar a rua e tudo mais. Mas nessas diferenças de estruturas, uma outra coisa que eu acho muito importante discutir é o fato de que, nos Estados Unidos, não existe um Ministério de Educação, existe um Departamento de Educação do governo federal, que guarda estatísticas, dá bolsas aqui e ali, mas que não tem a estrutura centralizada. Eu tenho uma amiga no Rio de Janeiro, Barbara Heliodora, que sempre diz que a salvação de educação nos Estados Unidos é o fato que não tem o Ministério de Educação. Você tem observado alguma diferença importante?

Gilberto Dimenstein: Olha, o que eu noto, e talvez seja coisa... A minha passagem em Nova York é um contraponto a uma passagem em Brasília, que eu acho que em Nova York me privatizei e globalizei, então eu saí daquela coisa do estado que é Brasília. O que eu noto de encantador nos Estados Unidos, isso especialmente em Nova York, é isso que você falou – viu, Litto? –, a coisa comunitária. Eu tenho um exemplo que é um exemplo muito próximo: a escola dos meus filhos. A gente mora perto de Harlem, que é um bairro pobre. Então, os pais do bairro se reuniram e falaram assim: “Vamos fazer uma escola pública melhor”. Os pais se reuniram e foram fazer uma escola pública melhor. Conseguiram um andar num prédio, escolheram a diretora e foram para a prefeitura. A prefeitura pagou a escola; mensalmente a prefeitura paga a escola; fizeram curso. Na escola do meu filho não tem ginástica, tem balé, porque não tem espaço para fazer ginástica. E eles estudam jazz porque é perto do Harlem. Então, toda a história americana através do jazz. Muito bem, os pais dirigem a escola, eles vão lá; têm que lavar roupa, têm que limpar o chão, não tem história, você pode ser do New York Times, pode ser da..., sendo pai você tem que trabalhar na escola, e há três semanas saiu uma reportagem sobre essa escola, colocando-a como uma das dez melhores escolas de Manhattan, ou seja, tem uma coisa americana que eu gostaria muito de ver no Brasil – não em forma copiada –, que é uma sensação de que você é dono da comunidade, de que você incorpora espaço público no seu. Eu acho que o brasileiro tem uma mania de sempre esperar do governo soluções, sempre. Isso atrasa o Brasil em 30, 40%.

Marcelo Beraba: Mas por que você acha que tem isso, Gilberto, por que você acha que é uma questão cultural e não é econômica? Quer dizer, não tem... é um “nascemos assim”?

Gilberto Dimenstein: Eu acho que nós tivemos uma exposição, Beraba, muito grande, muito longa à escravidão, a forma como o Brasil foi dividido em capitanias hereditárias, a forma como as elites se desenvolveram... Há no Brasil uma sensação de irresponsabilidade, e essa palavra elite está meio desgastada, mas você, quando compara um empresário americano com um empresário brasileiro, os dois querem lucros, os dois são capazes de qualquer coisa. Mas você vê no empresário americano uma sensação muito mais de responsabilidade do que no empresário brasileiro. Morreu o [...] dessa empresa [...]; ele deixou sete bilhões de dólares para uma fundação, sete bilhões de dólares para uma fundação. O Bill Clinton, o Bill...

Marcelo Beraba: Sim, mas [os Estados Unidos] têm leis que incentivam isso, quer dizer, não é uma coisa...

Gilberto Dimenstein: É, têm toda uma estrutura...

Marcelo Beraba: Ele não é caridoso, não é mais caridoso que o brasileiro.

Gilberto Dimenstein: Olha, mas tem uma questão cultural, tem uma questão cultural, Beraba.

Marcelo Beraba: Não, é cultural porque isso vem de muito tempo nos Estados Unidos, e nós não temos essa tradição, por isso é cultural. Agora tem algo que leva para isso.

Gilberto Dimenstein: Tem uma coisa que eu aprendi nos Estados Unidos [que é] muito bonita, das poucas lições de história que eu aprendi. No começo do país, quando eles faziam uma cidadezinha, primeiro, Beraba, eles construíam a escola – e olha que eles eram religiosos – e, depois, a igreja. Primeiro, a escola, depois a igreja. Quando morria o prefeito ou o prefeito se ausentava – não era “prefeito”, mas era [o equivalente] –, o substituto natural era o professor da escola. Então havia uma noção de que a educação era o centro do processo, que era a mola propulsora, então tem uma questão comunitária americana, que vem com a questão cultural, que é o contrário da nossa, a relação não só do empresário. Eu acho que é uma coisa meio disseminada no Brasil de um não respeito ao espaço público. A pessoa pega, joga o lixo no chão, porque o lixo não é dele. A relação do empresário com o Estado no Brasil é uma relação que foi e ainda é... mudou muito, mas é essencialmente corrupta. Se você pegar o número de empresários que se beneficiaram de empréstimos do Banco do Brasil e não pagaram; beneficiaram-se de empréstimos do BNDES, empréstimos da Caixa, reservas de mercado. Olha, a história do desenvolvimento do capital brasileiro é muito parecida com a história da corrupção no Brasil. Corrupção em termos de favorecimento, um número imenso de empresários que não pagam as contas do poder público. O devedor no Brasil é um beneficiário, então é uma falta de..., e isso que você falou da minha coluna [na Folha de S.Paulo], eu acho que um papel da minha coluna foi tentar mostrar, olha: existe alternativa para essa mentalidade corrupta, no sentido de que é uma mentalidade de não respeito à comunidade.

Júlio Lancelotti: Mas qual é a alternativa para o Estado delinqüente? O Brasil é um Estado delinqüente que tem leis que não cumpre, por exemplo: o Estatuto da Criança e do Adolescente é a lei que é desrespeitada pelo poder público, a nível federal, estadual e nos municípios. É relegado a um plano quase de lixo por alguma parte do Ministério Público e do poder judiciário. É um Estado que se delinqüe cada vez mais e passa para a sociedade civil suas responsabilidades. Então o Brasil tem projetos, que você bem conhece, como o Projeto Axé [organização privada localizada em Salvador (BA), sem fins lucrativos, que desenvolve trabalho de defesa e educação de crianças e adolescentes em situação de risco], como a Pastoral da Criança [organização comunitária, ligada à CNBB, da Igreja Católica, que visa a auxiliar no desenvolvimento da criança, do nascimento aos seis anos de idade], como trabalhos de grande magnitude nacional e de defesa da cidadania da criança. Agora é possível a sociedade civil se organiza, num Estado que é delinqüente?

Gilberto Dimenstein: Olha, Júlio, veja só, [...] a gente até já brigou junto, até contra as mesmas pessoas, não é? Eu acho que poucas pessoas conhecem tanto a delinqüência como você conhece. E raras pessoas me contaram tantas histórias de delinqüência como você me contou. Por trabalhar na Praça da Sé, por ver meninas traficando, policiais dando meninas para traficar. Você foi a primeira pessoa que me contou como os policiais usam meninos para poder fazer tráfico de drogas e tal. Olha, eu concordo com você que tem um Estado delinqüente, mas eu também estou sentindo que o Brasil está melhorando em vários aspectos. Eu noto que algumas alternativas, alternativas sociais, têm prosperado mesmo a nível público. Eu estava em Brasília agora... a idéia da Bolsa Escola [implementado em Brasília em 1995, era um programa que assegurava um salário mínimo a cada família carente que tivesse todos seus filhos entre 7 e 14 anos matriculadas na escola pública], adotada pelo PT [no governo Cristovam Buarque], é uma idéia excepcional. Ou seja, o garoto recebe para poder estudar: é uma idéia excepcional. Experiências em Porto Alegre, mesmo essa experiência aqui de São Paulo, de você manter centros de esportes abertos 24 horas. Agora o problema é que a carga social é muito pesada, isso é que me dá medo em relação ao Brasil, viu, Beraba? Porque eu tenho pegado estatísticas americanas de emprego, o desemprego americano é baixíssimo, é 4,8%, parece que tem emprego para todo mundo. Mas quando você vai ver a cidade, tipo Nova York ou Los Angeles, o desemprego é altíssimo. Nova York, com toda a pujança...

Marcelo Beraba: Quando se coloca uma lupa, o negócio é grave.

Gilberto Dimenstein: É, você não pode pegar a média, por exemplo, [a taxa de desemprego em] Nova York é 10%. Em alguns bairros de Nova York o número de jovens desempregados é quase 80%. É ali que você gera as matérias, as matérias de criminalidade. Aí você pega casos de São Paulo e Rio de Janeiro, você tem esse mesmo tipo de fenômeno, você tem uma criação de marginalidades gigantescas, as pessoas não se reciclam, ficam cidades abandonadas, deterioradas, e você não tem um aparato social para encarar. Aí você pega a polícia... A gente viu nessas três semanas, a polícia está habilitada a agüentar esse tipo...? A polícia não consegue enfrentar... Os Estados Unidos têm algo que me deixou em pânico no Brasil: eles gastam em filantropia, os americanos gastam em filantropia 300 bilhões de dólares, que é quase todo o PIB brasileiro, 300 bilhões de dólares, é dinheiro. As escolas recebem fortunas e, mesmo assim, você tem uma situação gigantesca de tensão social. Eu tenho muito medo – se essa é uma coisa que eu posso aprender da experiência americana – do que vai acontecer nos grandes centros brasileiros.

Luiza Nagib Eluf: Mas, veja bem, você fez uma análise aí, da elite brasileira, da questão da educação e tudo. Mas hoje a cidadania realmente é mais concreta na vida nacional, até porque a gente tem uma Constituição melhor, que é de 1988, [Constituição de 1988] uma Constituição que procura proteger os direitos, embora na prática a coisa não aconteça. Mas a questão é a seguinte: como é que a gente chega a essa tal cidadania? Você fala muito da educação e realmente a educação é um ponto, mas além da questão da educação, como é que se mexe nessa questão da cultura brasileira, na questão do Estado brasileiro? O governo, como se comporta? E do empresariado, que é...

Gilberto Dimenstein: Olha, mas, e a imprensa, e nós da imprensa?

Luiza Nagib Eluf: A imprensa também.

Gilberto Dimenstein: Será que nós, veículos, será que nós, comunicadores, nós, imprensa, estamos cumprindo nosso papel? Nós jornalistas adoramos criticar os outros, sempre com razão, não é, Matinas? A gente adora criticar os outros, mas será que nós jornalistas estamos cumprindo nosso papel? Quantas editorias de educação existem no Brasil? O Brasil é um país, olha, o Brasil é um país com problemas de educação seriíssimos. Nós temos trabalhadores, a média de escolaridade é de quatro anos, e você não tem, em geral, editoria de educação; você tem editoria para tudo nos jornais, você não tem editorias de educação. Como é possível, será que nós não somos responsáveis? Eu vejo as televisões brasileiras, o número de imbecilidades que você tem na área infantil, sem nenhuma preocupação pedagógica, e eu... não é porque eu estou aqui na Cultura. A Cultura é um exemplo excepcional; a Cultura é um exemplo excepcional de programas infantis. Veja o financiamento para os programas infantis. A Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] patrocinava, por que não patrocina mais? Então existe um plano de comunicação que é fundamental; você vê que é toda uma série de irresponsabilidades conjuminadas, é a polícia que não funciona direito, é o judiciário que não funciona direito, é o Congresso que não funciona, então você tem uma série de situações que favorece essa relação frouxa diante da comunidade.

Júlio Lancelotti: E o narcotráfico que funciona bem. Eu tenho que perguntar: nessa aprendizagem, como é que funciona o narcotráfico nos Estados Unidos? Porque aqui no Brasil vai muito bem, obrigado. E nós vamos chegar num ponto em que, como o Estado está enxugando e não faz mais política pública, nem aqui em São Paulo nem em outros lugares – exceção tem em Porto Alegre, tem em Brasília, às vezes tem em Belo Horizonte, o pacto de Minas pela educação, tal –, agora o que cresce aqui, de vento em popa, é a corrupção, os empresários associados à corrupção e ao governo corrupto e o narcotráfico. Hoje em dia, aqui na periferia de São Paulo, quem está cuidando das creches é o narcotráfico. O traficante faz churrasco na praça principal do bairro, o delegado vai para comer...

[...]: O narcotráfico está elegendo deputados, vereadores...

Júlio Lancelotti: E o delegado vai para o churrasco, vai para o churrasco, e nós temos que...

Gilberto Dimenstein: O delegado vai para o churrasco?

Júlio Lancelotti: Vai para o churrasco também, e todo mundo sabe, todo mundo sabe, e o narcotráfico cresce, e nós não estamos conseguindo competir com o narcotráfico. As nossas escolas não estão conseguindo, as nossas pastorais, os nosso movimentos populares não estão conseguindo. Em algumas áreas da periferia, nós temos quase que fazer um pacto silencioso com o narcotráfico, não é nem de omissão nem de ação, mas é de política de vizinhança, para você atuar em algumas áreas. Algumas ações pastorais ou de movimentos populares entram em algumas áreas porque o narcotráfico as tolera.

Gilberto Dimenstein: É engraçado, porque nessas áreas, Júlio, que você vai andando, também é dos camburões, não é?

Júlio Lancelotti: É, e mandam o carro da polícia para receber o dinheiro.

Gilberto Dimenstein: Da polícia. Então você sabe, as pessoas que freqüentam essas zonas sabem que, no ponto de narcotráfico... Inclusive eles têm um código de buzinar três vezes.

Júlio Lancelotti: Sim.

Gilberto Dimenstein: Buzinar três vezes para pegar o dinheiro do narcotráfico.

Marcelo Beraba: Mas isso é muito diferente dos Estados Unidos?

Gilberto Dimenstein: Hein?

Marcelo Beraba: Isso que o padre está descrevendo é muito diferente daqueles lugares onde você, colocando uma lupa, tem 80% de desempregados etc, nos Estados Unidos?

Gilberto Dimenstein: Não é tão escancarado.

Marcelo Beraba: Lá?

Gilberto Dimenstein: Não é tão escancarado assim, de você buzinar três vezes. Agora o narcotráfico nos Estados Unidos é... tanto que é pesado nos Estados Unidos que tem apreensões gigantescas de drogas, e o preço não sobe, o preço não sobe. Então, no [bairro East] Village – esse teste um amigo meu fez –, no Village... lá, a maconha, em Nova York, eles entregam por telefone. Você liga, as pessoas mandam, e esse amigo nosso fez o teste na casa dele. Eu estava fazendo uma matéria na Folha. Ele pediu simultaneamente maconha e pizza, para saber o que chegava antes... [risos]. A maconha chegou antes, e com a vantagem de que a maconha não precisa vir quente, não é? Então é uma cidade em que... Eles gastam, os americanos gastam por ano, na prevenção e punição de drogas, 65 bilhões de dólares, mesmo assim a droga não pára. Quer dizer, há um sistema de corrupção gigantesco. Eu, por exemplo, tenho uma posição diferente em relação às drogas, até uma posição pela qual eu tenho recebido muitas críticas. Eu acho que drogas têm que ser discriminalizadas e o Estado tem que cuidar da prevenção e do tratamento. Não tem dado resultado a repressão, infelizmente não tem dado resultado. Eu fico pensando, eu como pai: eu tenho um filho de nove e um de seis [anos]. Eu prefiro que – Deus que me livre dessa possibilidade –, mas se meu filho tivesse algum problema, se eu preferisse que ele pegasse droga numa farmácia ou de um traficante... Agora, é justo trancafiar um garoto que usa heroína, que é viciado em heroína, que é viciado em cocaína, é justo você prender alguém com a maconha? Ou seja, é um problema muito sério.

Marcelo Beraba: Agora, Gilberto, nesse tempo em que você ficou lá – você tem contato aqui e tudo mais –, melhorou ou piorou?

Gilberto Dimenstein: O quê?

Marcelo Beraba: O Brasil.

Gilberto Dimenstein: O Brasil melhorou.

Marcelo Beraba: Melhorou?

Gilberto Dimenstein: O Brasil melhorou. Olha, o Brasil, na média, melhorou muito, olha...

[sobreposição de vozes]

Gilberto Dimenstein: O Brasil melhorou, o Brasil melhorou. Hoje você senta numa mesa, você fala de produção, você fala de projetos, a queda da inflação abriu uma perspectiva de uma nova agenda. Nós estamos discutindo problemas muito mais sérios, problemas que o padre Júlio está colocando de narcotráfico, de meninos de rua, de violência, de saúde, ou seja, hoje a gente conhece a cara do Brasil, e ela é muito feia. Nesse sentido, a agenda brasileira avançou, está aumentando uma consciência social no país, os meios de comunicação começam a se sensibilizar, empresários começam a falar em educação. O Brasil melhorou. Agora tem uma coisa que a gente tem que levar em conta, algumas áreas estão se deteriorando, por exemplo: São Paulo, eu acho que é muito difícil, Beraba, você morar em São Paulo e ter muito bom humor, porque [para] qualquer pessoa que mora em São Paulo o bom humor não resiste até as 11 horas da manhã. E São Paulo é formador de opinião, porque é uma cidade... olha, é impressionante, isso é um pouco o olhar estrangeiro que eu estava falando, eu não sei se vocês sentem a mesma coisa. Você olha as pessoas saindo da rua, a rua deixou de ser um espaço público, e o espaço público passou a ser o shopping center, que é uma cidadania falsificada, e as pessoas cada vez mais incorporando a violência, como se fosse uma coisa de rotina. Eu me sinto uma coisa assim meio... eu estava contando uma vez que eu fui numa festa, as pessoas não foram de carro na festa. Não foram por quê? Porque têm medo de que o carro seja assaltado. Você incorporou a loucura na cidade.

Paulo Vitor Sapienza: Mas São Paulo, Gilberto, é o retrato do Brasil. O que migra de gente para cá é um negócio violento. Para você ter uma idéia, por exemplo: a maioria das crianças que se encontram em situação de rua vêm ou de outros municípios, mas principalmente dos estados, de outros estados como Pernambuco, Minas e demais, por quê? Porque São Paulo, você dá uma volta no quarteirão, por exemplo, você fatura de 20 a 30 reais na esmola por dia.

Gilberto Dimenstein: Quanto? 20 a 30 reais?

Paulo Vitor Sapienza: É, por dia fatura uma criança, ou mais...

Gilberto Dimenstein: Então, no final do mês, ele ganha mais que uma professora de ensino médio.

Paulo Vitor Sapienza: Ganha mais que uma professora. Então São Paulo é o resultado dessa crise.

Júlio Lancelotti: Mas uma parte ele tem que pagar para a Polícia Civil, outra parte ele paga para a Polícia Militar, outra parte ele paga para o outro, no fim, diminui.

Paulo Vitor Sapienza: Não. A maioria desse dinheiro, a maioria do dinheiro que ele tem na mão vai para a droga.

[...]: Custo Brasil [risos].

Júlio Lancelotti: Ele não tem imposto de renda na fonte, mas ele tem que pagar para o policial, ele tem que pagar para o outro.

Paulo Vitor Sapienza: Mas você está entendendo?

Júlio Lancelotti: Um delegado está cobrando, aqui em São Paulo, 10 mil reais a 15 mil reais para aliviar o boletim de ocorrência. Então nós temos, esta semana, dois garotos que cometeram atos infracionais na UAP-1 [Unidade de Acolhimento Provisório] da Febem, que é o nosso campo de concentração de plantão aqui em São Paulo, onde para cada vaga estão três adolescentes. E o Ministério Público sabe, o poder judiciário sabe, o governador sabe, mas está tudo lá, onde eles dormem, 15, 18 em cima de cinco colchões no chão, e onde eles são obrigados a ficar sentados o dia inteiro por medida de segurança. Então ninguém pode andar, tem que se arrastar pelo chão porque não pode caminhar. Então essas são as realidades que a gente tem, e a polícia, que chega a cobrar 10 mil, 15 mil reais para aliviar boletim de ocorrência de menino que cometeu ato infracional. Acho que falta para nós, e talvez seja essa diferença, e aí quando você diz que o Brasil melhorou, eu fico muito feliz porque eu estou procurando às vezes onde é que melhorou e não consigo achar. Que a gente vê, em termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, nós damos passos pontuais, então quando há uma experiência positiva em Brasília, a gente vê logo, quando há em Porto Alegre, quando há em Belo Horizonte, a gente vê logo. Mas a gente não vê isso no conjunto do Brasil como uma política pública e como uma decisão que a sociedade brasileira tomou de qualificar a vida das nossas crianças e dos nossos adolescentes. Nesse sentido, eu acho que falta ética e o que existe no Brasil hoje sobrando para exportar é a lógica do cinismo, então se faz um discurso, mas a prática, quando a gente vê a prática, quando a gente vê que nós não estamos nem no século XVIII, lá na UAP-1 da Febem, eu acho que ele está para lá do... e por isso não caminha.

Gilberto Nascimento: Eu acho assim: existem experiências ótimas como a do Projeto Axé. Os empresários hoje estão tendo mais consciência e apoiando, participando, ajudando a desenvolver projetos assim excelentes. Agora, o que não dá muito para entender é por que experiências como a da Bolsa Escola, por exemplo, não são ampliadas, não são reproduzidas...

Júlio Lancelotti: O [projeto] Renda Mínima.

Gilberto Nascimento: E, ao mesmo tempo, a gente vê esse quadro. Eu mesmo fiz uma reportagem recente na Febem, numa outra unidade, onde ele está falando, e a situação também era caótica, absurda, então por que você acha que não muda isso?

Gilberto Dimenstein: É, está muito lento o processo. Agora, quando eu falo “melhorou” não significa que o Brasil esteja ótimo, eu digo o seguinte: o Brasil está ruim, péssimo, mas nunca esteve tão bem, no sentido de que você, com a baixa da inflação, colocou uma nova agenda. Agora, é muito lento o processo brasileiro porque a máquina pública está destruída...

Luiza Nagib Eluf: Então, você não acha que falta Estado...?

Gilberto Dimenstein: A máquina pública, é uma pena que as pessoas não conheçam a máquina pública, a máquina pública está [destruída]... você não pode manter uma máquina pública funcionando com a professora ganhando 300 reais por mês, um policial ganhando 500, 400 reais por mês.

Paulo Vitor Sapienza: E os mecanismos...

Gilberto Dimenstein: Um plantonista me mostrou o contracheque dele, estava 400 reais. Não dá, não é possível, você não gera energia com esse tipo de deteriorização, você não tem cobrança, você não tem sistema de mérito para evolução, está destruído.

Luiza Nagib Eluf: Mas você não acha que, nesse sentido, os governos atuais, tanto estaduais quanto federal, estão tentando enxugar o Estado, quer dizer, estão tornando a situação ainda pior? Porque esse enxugamento na verdade encobre, vamos dizer, um pouco caso com a questão da máquina. A questão salarial vem sendo penalizada porque assim se diminui o déficit público, então vamos pagar pouco porque nós não temos como pagar. A folha [de pagamento] só pode estar comprometida até 70% com pagamento e tal, fora disso é inconstitucional, inclusive, vai passar a ser a partir do ano que vem, então, o que nós estamos tendo? Nós estamos tendo um país que não investe em serviços, e na verdade a população está sem os serviços. Isso é de extrema importância. Agora, tenho a impressão de que o governo está caminhando no outro sentido.

Gilberto Dimenstein: E quanto mais pobre a clientela, pior remunerado é o funcionário, porque...

Luiza Nagib Eluf: Exatamente.

Gilberto Dimenstein: Quando tem que lidar com Banco Central, com Banco do Brasil... são órgãos mais equipados para enfrentar. Aí, quando você vai para a professora primária, para a agente de saúde, aí é um arraso...

Júlio Lancelotti: Agora, na parte social é pior ainda, porque o Estado está enxugando, e tudo o que foi sucateado ele está dando para a sociedade civil. E ainda como o ex-prefeito Paulo Maluf dizia: faça uns chazinhos com as madames, com as senhoras da sociedade. Acho que uma questão séria para nós – você falou de filantropia –, aqui no Brasil fica complicado: filantropia versus política pública. Então, por exemplo: a prefeitura de São Paulo diz que creche, EMEI [Escola Municipal de Educação Infantil] e Centro de Juventude é filantropia, não é política pública, e nós dizemos não, é política pública, tem que ter recurso público nisso, eles dizem que é filantropia. Eu perguntei, esta semana, ao governo municipal como é que vai fazer chá lá no "fundão" de São Mateus e em Sapopemba, onde o povo não tem nem água para beber. Então, eles sucatearam, o Estado sucateou tudo, como é o caso dessa entidade que o Gilberto Nascimento falou, e depois deu para sociedade civil. E como é que a sociedade civil vai pagar o preço do Estado sucateado?

Gilberto Dimenstein: Olha, você sabe uma coisa interessante, aí vem uma experiência de Nova York, que as pessoas já sabem que uma cidade globalizada, competitiva, tem uma massa da sociedade que ela está fora, não tem jeito; então, em Nova York tem uma coisa que é fantástica e acho que explica muito a queda da criminalidade na cidade, que é o que chamam de work fair. Eles estão empregando as pessoas, mendigos; eles pegam os mendigos, empregam para cuidar de praça pública, para fazer pintura e tal. Ganham 600 dólares por mês, 700 dólares por mês. Mas sem [...].

Luiza Nagib Eluf: Mas quem emprega?

Gilberto Dimenstein: A prefeitura. A prefeitura tem empregado 32 mil mendigos ou desempregados crônicos na folha de pagamento para eles não ficarem na rua. E você vê que saiu mendigo da rua; agora eu acho que tem coisa no Brasil que dá para fazer com pouco dinheiro. Essa experiência que você tem, eu li uma estatística, não sei nem se é verdade, porque [com] estatística social eu já caí em vários erros, e todos nós caímos, mas eu li que, na rua, teriam quase seis mil famílias dormindo na rua, não sei se é verdade.

Júlio Lancelotti: Aqui em São Paulo, o levantamento da prefeitura é de cinco mil.

Gilberto Dimenstein: Então aqui, em São Paulo, a prefeitura diz que são seis mil pessoas na rua. Será que não dá para tirar seis mil pessoas da rua?

Luiza Nagib Eluf: Seis mil é pouco.

Gilberto Dimenstein: Será que seis mil pessoas na rua, será que não dá para tirar? Se tem seis mil pessoas, quantos meninos de rua tem em São Paulo?

Gilberto Nascimento: E o número de meninos de rua seria bem menor.

Gilberto Dimenstein: Porque seriam dois mil? Será que não dá para tirar? Será que é impossível juntar... e eles ficam em lugares em que tem banco, em que tem todos aqueles bancos, será que não dá para tirar, será que é tão difícil assim? Agora, isso que eu acho de um governo; se os meninos de rua estão nessas regiões centrais, estão no Rio, Belo Horizonte, em que tem grupos poderosos, será que não dá para... Tem que esperar o governo municipal para ajudar alguma coisa? É claro que o governo é fundamental. Até em São Paulo tem uma experiência boa mantida por bancos, que eu vi no centro, que até onde eu vejo tem dado passos avante nesse sentido. Júlio, o que eu discordo um pouco de você é o seguinte: eu acho que o papel do governo é muito importante, mas eu acho que o papel da comunidade também é muito importante...

Júlio Lancelotti: Mas veja, Gilberto.

Gilberto Dimenstein: A comunidade se organizando, arrumando, participando das escolas, participando dos centros de saúde...

Júlio Lancelotti: Sem dúvida, mas nós ficamos enxugando o chão; precisa fechar a torneira, nós estamos enxugando esse chão, olha, faz anos. Só a Pastoral do Menor [ligada à CNBB, visa a apoiar a criança e o adolescente empobrecidos e em situação de risco] faz 20 anos que está enxugando o chão e outros estão enxugando o chão também, e ninguém fecha a torneira, então a gente precisa pedir a alguém: pelo amor de Deus, feche a torneira, porque senão nós não vamos mais parar de enxugar o chão, porque se não tiver uma ação preventiva nas periferias... O Centro de Juventude da prefeitura aqui em São Paulo, por exemplo, ele custa muito pouco, nós deveríamos ter um centro de juventude por quarteirão, nós deveríamos ter essas atividades culturais, esportivas, quer dizer: o que eu penso, e isso que eu queria lhe dizer que é importante, e concordando com o que você diz, nós temos propostas, nós não temos só a crítica. Nós temos propostas e temos demonstrado que as nossas propostas dão certo. Acontece que o nosso Estado e a política pública do Estado inexistente não querem que essas propostas dêem certo.

Gilberto Dimenstein: Mas quer ver uma coisa, só para colocar a experiência do Rio de Janeiro, onde o Beraba acompanha melhor, uma das experiências mais bonitas do mundo de cidadania, que é a experiência da Mangueira...

Marcelo Beraba: Da Mangueira.

Gilberto Dimenstein: Na Mangueira, você não tem delinqüente quase, jovem delinqüente na Mangueira. Tem quem trabalha com esporte, com educação, com emprego, e me contaram que traficantes de drogas são obrigados a buscar meninos de outros morros, porque lá não conseguem mão-de-obra, então...

Marcelo Beraba: Está formando uma geração de atletas olímpicos.

Gilberto Dimenstein: De atletas olímpicos, que é uma experiência linda. Acho que todo homem público deveria conhecer a experiência da Mangueira. O que eu acho é o seguinte: que no Brasil nós já sabemos como fazer. A experiência da Mangueira, a experiência do Projeto Axé. Tem experiências de favelas aqui que não têm delinqüência, tem um projeto comunitário. Então, dá para fazer, é barato. Um menino do Projeto Axé não custa 50 reais por mês. Se você colocar na Febem, ele deve custar quanto, 600, 500 [reais por mês]?

Júlio Lancelotti: Dois mil.

Gilberto Dimenstein: Hein?

Júlio Lancelotti: Dois mil.

Gilberto Dimenstein: Quanto custa?

Júlio Lancelotti: Dois mil reais.

[...]: Dois mil dólares.

Gilberto Dimenstein: Cada menino custa dois mil dólares? Se você pegar esse menino e colocar na Suíça... Olha, por exemplo: os meus filhos estão vindo estudar aqui em São Paulo. Eles vão pegar uma escola de elite chamada Vera Cruz, [que custa] 700 reais por mês. Muito bem, então o menino da Febem vale três do Vera Cruz ou três do Colégio Bandeirantes ou três da escola Parque do Rio de Janeiro. Daí, você vê a loucura que é, dois mil reais por um menino na Febem.

Matinas Suzuki: Gilberto, eu vou pedir licença para mudar um pouco o assunto. Eu tenho aqui algumas perguntas para você. A Ana Lúcia Amaral, que é procuradora da República, aqui em São Paulo, ela pergunta se adianta treinar professor para utilizar internet, essa coisa toda, se não houver uma preparação e um treinamento com os alunos, e o Reginaldo Cremonezi, também de São Paulo, [pergunta]: “Hoje temos escolas muito mal equipadas, sem qualquer estrutura. O que você acha que deve ser feito para que possamos utilizar o seu método da internet e colocar à disposição dos nossos alunos toda essa tecnologia que sabemos que está à disposição?” E o Francisco Pinheiro Batista, de Teresina, no Piauí, diz o seguinte: “Estou achando a entrevista muito interessante. Faço parte de uma comunidade de bairro muito pobre, aqui em Teresina. De que maneira o senhor poderia nos ajudar a ter acesso a essas informações para poder aplicá-las aqui em nossa comunidade?”.

Gilberto Dimenstein: Olha, vou tentar resumir numa questão só, que puxa pela primeira questão, o seguinte: esse projeto é um projeto que envolve, essencialmente, o professor. Então, o que é fascinante dessa experiência é que nós estamos treinando simultaneamente professores em vários estados. Só no Paraná, vão ser 2,5 mil professores treinados, porque se a gente não apostar nessa idéia – não é, Litto? –, de que o professor é o centro do processo pedagógico, que a máquina é apenas o acessório, não funciona, a gente já sabe disso. Mas quando me perguntam o que é ideal numa sala de aula, eu digo o seguinte: o que é melhor: um bom professor sem computador ou um mau professor com computador? Nós não temos dúvidas de que um bom professor sem computador é melhor do que um mau professor com computador, mas um bom professor com computador é imbatível, porque ele recupera, ele garante ao aluno recursos que ele não teria. Eu vi no Harlem, por exemplo, uma experiência tão bonita, talvez tenha sido a experiência mais linda de educação e formação que eu vi na minha vida. Eles ensinaram Dante Alighieri para meninos no Harlem. Os garotos colocaram a Divina comédia na internet. Tiveram que entrar na Divina comédia e colocar em web, então existe uma... Você, com internet na mão, você tem uma biblioteca na sua cidadezinha, independente de a cidadezinha não ter nada. Agora, o fundamental é treinar o professor. Esse projeto está sendo colocado em 33 [...] no Rio de Janeiro; ele está sendo colocado em Brasília; ele vai [...] escolas públicas de São Paulo, sem contar as escolas privadas; a Fundação Bradesco vai colocar nas suas escolas também. Então nós estamos criando uma comunidade que possa trabalhar com a idéia de cidadania em sala de aula. Eu acho que não dá para pensar em educação sem internet no futuro. Mas também não dá para pensar em educação no Brasil sem cidadania, porque é um elemento tão importante como matemática, como português, porque é o que dá para o indivíduo a capacidade de se virar na sociedade.

Fredric Litto: A tecnologia sem os valores humanos realmente não vai resolver nada, não é?

Gilberto Dimenstein: Não, você sabe uma coisa que nos Estados Unidos acontece, está se mudando muito a visão sobre tecnologia, então muitas escolas perceberam que não dá para fazer laboratório na escola, não dá para fazer laboratório porque eles fazem laboratório e quando os garotos vão trabalhar, o laboratório está defasado, então tem um projeto americano que está crescendo – chama-se School-to-work, escola para o trabalho –, que as empresas viram escolas. Então, na quinta ou na sexta-feira os alunos estudam na própria empresa, porque aí a empresa sabe que vai poder contratar o estudante. E mais interessante é que muitas empresas hoje, e esse é um exemplo importante para o Brasil, condicionam a abertura de novos negócios à mão-de-obra, qualidade da mão-de-obra. Olha, e hoje, esse talvez seja o fato mais importante para a gente ressaltar no desafio brasileiro. Hoje, o trabalhador brasileiro tem em média quatro anos de escolaridade. De cada dez profissões abertas nos Estados Unidos, oito necessitam dois anos de faculdade. Um policial de Nova York necessita dois anos de faculdade, ou seja, se o Brasil não mexer nessa relação que há entre escolaridade e produtividade de trabalho, a chance de crescimento do Brasil está – lamento muito – inviabilizada. O Brasil não consegue crescer... não adianta o IPEA vir com esses numerozinhos, e o IBGE, porque não há chance, porque você não tem quem manipule a máquina, se não tiver um conhecimento de matemática, de linguagem, para poder manipular.

Fredric Litto: Num artigo seu, de duas semana atrás, você diz que o Brasil gasta, em média, por volta de 600 reais por ano por aluno, investimento em educação, e nós sabemos que os dados dos Estados Unidos são, em média, de oito a nove mil dólares por ano por aluno em investimento. Em comunidades mais ricas, vai até a 13, 15 mil dólares. Você acha que o Brasil vai poder competir, nas décadas que vêm, no mercado internacional, com mão-de-obra tão desqualificada? O Claudio de Moura Castro, num artigo na [revista] Veja, dois anos atrás, diz mais ou menos o seguinte: a educação no Brasil não vai mudar porque o povo brasileiro não exige uma educação melhor. O que você acha disso?

Gilberto Dimenstein: Olha, eu não concordo com isso. Eu acho que educação é um valor brasileiro [...]. Eu me lembro na campanha do Lula [para presidente, provavelmente nas eleições de 1994], houve um dado interessante, que os pobres falavam assim: eu não voto no Lula porque ele não tem educação, não tem educação formal. Mas na USP ele era votado, ou seja, a educação é um valor, e tem um dado que não é muito colocado, mas os meninos insistem em ficar na sala de aula. É que a sala de aula é que os expulsa. Se você pegar o tempo que a criança fica na escola, eles demoram doze anos para completar oito, então há uma insistência, as pessoas percebem esse valor. Agora, é isso que ele estava falando, está destruído...

[sobreposição de vozes]

Gilberto Dimenstein: Você não monta sistema educacional com professor que ganha 300 dólares [por mês]. Olha, um professor que não lê jornal não tem condições de ser professor. Lamento muito, não dá para você ser professor sem ler jornal, você não sabe o que é o mundo. Eles não têm dinheiro... aliás, uma das idéias do nosso projeto é fazer com que o professor leia internet, ou na sala de aula, até para não precisar comprar jornal.

[...]: Não faça isso, não.

Gilberto Dimenstein: Não, se um professor não pode ler jornal, ele lê na internet, lê a Folha, lê o Estado,O Globo, lê a Gazeta do Povo, daí que eu tento mostrar que a internet é uma coisa que tem alta eficiência em país subdesenvolvido.

Paulo Vitor Sapienza: Você não acha que essa escola, hoje no Brasil, ela não é mais atrativa? Porque, veja bem, a gente evolui na internet, no campo do conhecimento, e uma série de outras coisas, e a escola, eu acho que ela não evoluiu. Hoje, uma criança não quer muito mais saber se delta é igual ao b ao quadrado, tabela periódica, ela quer outros tipos de informações e de respostas. É uma coisa interessante, ela não quer mais ficar na sala de aula. Você acabou de dizer...

Gilberto Dimenstein: A escola no Brasil é montada com a idéia de que o saber é chato, em geral, então as pessoas acham que você aprender tem que ser chato. E eu que fui da turma dos rebeldes que não conseguiam prestar atenção, tive uma visão mais clara disso. Você estuda física distante de química, de biologia; você estuda português distante de história; então são cadeiras distantes que o indivíduo não vê a função disso. Enquanto não tiver uma mudança de como ensinar e os professores se prepararem para isso... Por exemplo, a questão da internet, da computação, vai exigir que o professor mude de postura, mude para melhor, ou seja, o professor vai ter que ser um facilitador diante desse mundo de dados. Que adianta ele chegar na sala de aula [e dizer] “Olha, as informações são essas, essas, essas”, se o garoto pega no computador as mesmas informações? A estrutura da educação do Brasil, em geral, é chata, e as escolas públicas fazem o garoto memorizar, que é uma bobagem. Imagine se você precisa saber [quais são] os afluentes do rio Amazonas. Imagine se você precisa saber se isso aí tem alguma importância. Então a escola pega o número de idiotices, enumera e diz: se você souber o número de idiotices, você passa de ano, que não tem o menor conteúdo com a realidade. Eu acho que a educação, hoje, em função desse impacto tecnológico, você tem que ser criativo, flexível, tem que ter filosofia em abundância, tem que ter artes em abundância, música. A escola tem que ser um espaço em que você exercite criatividade. Claro que tem que ter história, mas não dá para pensar escola sem filosofia, sem artes, sem música, tem que ir ao museu. É muito mais importante isso, tão importante como você ensinar a raiz quadrada.

Ângela Santos: Gilberto, hoje, conversando com uma professora, uma coordenadora de centro de juventude na periferia, ela me falou uma coisa [com] que eu fiquei muito chateada. Eu perguntei a ela o que ela achava de uma medida que a secretaria de Estado deve adotar no próximo ano de comunicar faltas ao Ministério Público, isso em toda a rede, todo o estado, coisa que vinha sendo feita por pequenos municípios. Aí ela falou que tinha o caso de uma criança lá que está com ela, que a criança não vai para escola porque não tem quem a acorde. Os pais vão trabalhar, a mãe vai trabalhar, enfim, ela fica sozinha em casa. Por outro lado, tem uma pesquisa que foi publicada recentemente sobre o jovem infrator, dizendo que 60% deles, simplesmente, não estavam freqüentando a escola quando foram pegos, quando foi determinada a medida de restrição de liberdade. Aí eu lhe pergunto: antes de a gente pensar no treinamento com a internet, não precisaria o Estado entrar numa área social, melhorar essa área social e o professor tornar mais interessante a escola, com o computar, sem o computador?

Gilberto Dimenstein: Você tem razão...

Ângela Santos: Porque o professor não consegue lidar hoje com esse perfil do jovem marginalizado.

Gilberto Dimenstein: Olha, o nosso problema é que a gente tem que lidar com tantas coisas ao mesmo tempo, difícil saber onde começar, quando você fala em educação. Tem que saber o treinamento do professor, o salário do professor. Eu peguei uma pesquisa uma vez no Ministério do Planejamento que diz que 75% das escolas públicas não têm banheiro ou [o banheiro] não funciona. Então, às vezes, [dizem]: “Você está falando de internet em escola que não tem banheiro e tal”. É que a minha visão é a seguinte: é que internet é um meio tão barato, desde que as pessoas sejam treinadas para você ter uma biblioteca em sala de aula, que você economiza tantos recursos. Agora, nós estamos afogados numa crise social, tudo que a gente fizer vai ser pouco, por mais que a gente faça é pouco, por mais rápido que a gente faça é lento. Agora você veja o seguinte: existem várias iniciativas já no Brasil de escolas dando certo, escolas públicas. Você pega Minas Gerais, você já tem vários efeitos do processo em Minas Gerais; no Paraná, a mesma coisa. Agora, você sabe quando a escola melhora mais? É quando ela depende do governo, mas também depende da comunidade, quando a comunidade se envolve na construção da escola, porque se o pai não se envolve, se a mãe não se envolve, é muito difícil e muito complicado.

Marcelo Beraba: Gilberto.

Matinas Suzuki: Beraba, posso ler? A Ruth Azevedo, do bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, que é assistente social, faz aqui um desabafo. Diz assim: “Como ampliar a cidadania com o desmonte que vem sendo feito, desde Collor, das políticas sociais públicas, saúde, educação, assistência social, previdência etc, com cortes de recursos, desprestígio aos sistemas descentralizados, preconizados pela Constituição de 1988? Entregar as políticas sociais à iniciativa privada e responsabilizar a sociedade civil não é uma forma de desresponsabilizar o Estado num país de mais de 30 milhões de indigentes? O que você acha do desemprego gerado pela reestruturação produtiva? Como dizer que o país melhorou com o desemprego crescente?”.

Gilberto Dimenstein: É, quando falo que o país melhorou, sempre vai ter momentos em que o país... situações em que o país está ruim. Agora, repito: o fato de o Brasil não ter que lidar com uma inflação tão alta, estar crescendo é um ponto favorável ao Brasil; agora, o que ela falou também é correto. Existe o problema do desemprego, que é explosivo no Brasil, porque você pega na questão européia ou na questão americana, você tem um colchão imenso. Nos Estados Unidos a pessoa tem vale...

Matinas Suzuki: O crescimento no Brasil é com taxas bem baixas, não é?

Gilberto Dimenstein: Não, não...

Matinas Suzuki: Para as necessidades do país.

Gilberto Dimenstein: A taxa é baixa, e mesmo se fosse uma taxa alta, também seria uma taxa baixa, e pior, ele é mais cruel em algumas regiões urbanas de alta concentração, então cria uma situação explosiva, e você não tem um aparato nem administrativo e nem dinheiro para agüentar isso. Eu acho que as situações... Se você me perguntasse: qual a principal questão social brasileira? É o desemprego localizado nesses centros que você não tem como lidar, porque o que acontece é o seguinte: os jovens nem entram no mercado de trabalho, eles entram na delinqüência, eles entram nas drogas, entram no narcotráfico, isso é grave. Agora tem que saber como que a gente começa a lidar, por exemplo: eu acho que tem algumas soluções que podem começar a minimizar o problema. Por exemplo: a escola. A escola não tem que ser sala de aula, tem que ser um centro social, porque a escola não deve fechar, começa de manhã e vai até de noite. Você tem que tentar envolver a comunidade. Você tem que fazer escola como um centro de geração de renda. A Bolsa Escola tem que ser ampliada, como o Gilberto falou, tem que ser ampliada nacionalmente; as televisões, os meios de comunicação têm que ser mais generosos em divulgar campanhas que reduzam doenças, que reduzam uso de drogas. Então é todo um processo que também não adianta culpar só... esse que é o ponto - viu, Matinas? – o que ela falou, acho que não adianta culpar só o governo, tem coisas que não adianta, porque a rua tem que se organizar, se a rua está com lixo, tem que se organizar. Se a escola está ruim, o bairro tem que saber como que melhora essa escola.

Marcelo Beraba: Gilberto, a gente está rodando, rodando, rodando...

Luiza Nagib Eluf: Quer dizer, no fim as associações de bairro são a solução?

Gilberto Dimenstein: Não, é mais do que isso. É uma mentalidade de você se ocupar do setor público...

Luiza Nagib Eluf: Eu sei, mas você tem que se organizar para isso. Como é que você começa essa organização? Qual o ponto de partida? A rua está suja, ou reclamar para quem? Ou fazer o quê. Vou tocar no meu vizinho, vou dizer vamos sair aí para limpar a rua, como...

Gilberto Dimenstein: Não, você pode não sujar a rua.

Luiza Nagib Eluf: Sim, eu não sujo, mas eu vejo que está suja.

Gilberto Dimenstein: Então, você pode não sujar a rua. Esse que é o princípio; pode parecer uma coisa boba, mas é o seguinte: você pega um marmanjão com filho, o sujeito pega e joga o lixo na rua. É um detalhezinho. Ou então você pega os telefones públicos em que vocês vão, estão todos deteriorados. Porque eu acho também que há um detalhe sociológico interessante. É o seguinte: eu acho que a pessoa faz isso porque não se sente respeitado pela cidade, é interessante quando você vai ao metrô de São Paulo, o metrô é limpo, é engraçado porque...

Marcelo Beraba: Mas tem o lance da impunidade e da punição. O metrô tem uma vigilância, também não é só a questão que o cara entrou lá dentro... Alguns desses casos, por exemplo, telefone, trânsito. As pessoas sabem que não vai acontecer nada. No Rio a gente fez uma matéria; estão multando, 1700 multas por dia na Linha Vermelha, [mas] não acontece nada; esses 1700 são multados, mas não têm que pagar, não tem nada. Então eu acho que tem um lado de impunidade também nisso, não é só uma questão cultural...

Gilberto Dimenstein: Você está certo.

Marcelo Beraba: Nos Estados Unidos, por exemplo, se pune, não se pune?

Gilberto Dimenstein: Mas você está certo. Mas também tem uma... Acho que o indivíduo no metrô se sente um pouco mais respeitado, porque o metrô é limpo. O metrô de São Paulo, não sei qual...

Marcelo Beraba: Gilberto, você vê Brasília agora. Brasília era só acidente de trânsito, terrível, [então] botaram aqueles pardais [radares], não é isso? Diminuiu. A população está berrando lá, está gritando, querem que tire a vigilância.

Gilberto Dimenstein: Não, mas lá em Brasília aconteceu uma das coisas mais engraçadas. Lá em Brasília um juiz deu uma liminar suspendendo os pardais...

Marcelo Beraba: Pois é.

Gilberto Dimenstein: E agora [...] por isso que os políticos estão defendo o seguinte. Eu nunca vi, olha isso, é coisa de piada, os pardais são radares escondidos para que as pessoas não andem [com excesso de velocidade]. Lá em Brasília é uma loucura o que eles andam em velocidade.

Marcelo Beraba: Exatamente.

Gilberto Dimenstein: Aí os políticos estão defendendo que anunciem quando vem o pardal; aí isso parece piada de português.

Marcelo Beraba: Aí diminui, passa, depois...

Gilberto Dimenstein: Você só vai cumprir a lei naquele [trecho]... então o anúncio é o seguinte: olhe, a dez metros vai ter um radar secreto. Aí você vê...

Marcelo Beraba: Eu acho que a impunidade tem um peso grande nessa história.

Júlio Lancelotti: E o individualismo. Eu acho que o que o Gilberto está propondo, achei preciosíssimo quando você falou da importância da filosofia, da música, da arte, da cultura, a escola como um centro de cultura, um centro para as pessoas pensarem, onde o saber é prazeroso, dá alegria do saber. Agora nós estamos de certa forma marchando ou andando na contramaré, porque toda mensagem que a mídia bombardeia, que cultura bombardeia, neste momento, é o individualismo. Os próprios levantamentos, a Globo fez agora um levantamento sobre aquele malfadado programa Você decide e coloca, e quando entra dinheiro, a ética vai para o brejo. Então existe uma questão ética, uma falta de confiabilidade, a questão da impunidade e a questão também... E aí, quando você fala da organização popular, eu ia lhe fazer uma pergunta um pouco incendiária, mas acho que a sua opinião é muito importante nesse sentido. As organizações populares são muito bombardeadas no Brasil, e você sabe que nós passamos por uma fase de destruição das ONGs. Não quero dizer que todas as ONGs sejam boas e que nem todas andavam por bons caminhos, acabava tendo corrupção até para conseguir determinadas isenções a nível federal. Mas houve um bombardeio enorme sobre as ONGs, depois a questão dos movimentos populares. E aí eu lhe perguntaria: o que significa para você, hoje, a nível de sua vivência no Brasil e a nível do seu distanciamento e da sua reflexão na distância, que é muito importante, o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra [MST]?

Gilberto Dimenstein: Olha, eu também tenho uma resposta um pouco incendiária nesse lado, talvez aí a gente vá discordar. Se me falarem que o movimento sem-terra é para criar uma renda mínima para você manter o indivíduo na terra, ele não vindo para cidade, eu concordo. O que eu não me sensibilizo é a idéia de uma prioridade nacional a questão da terra, porque a vocação das pessoas é sair do campo, é o campo se mecanizar e, no caso dos sem-terra, Júlio, eu acho que tem muita maluquice junta, tem muito radicalismo, tem muita exacerbação, tem aposta não só na questão da terra, mas na aposta geral. É claro que eu tenho que ficar preocupado com a questão dos sem-terra. As pessoas estão vindo para cá. Agora eu não sei se a melhor solução, neste final de século, é fazer uma reforma agrária, eu não sei se tem dinheiro para isso; pode até parecer cruel eu falando isso, mas se há uma escassez de recurso, me parece de muito mais bom senso jogar isso em programas de geração de renda vinculados à educação, e que possa absorver essa mão-de-obra que vem para cidade, do que para terra. Eu acho que estão exacerbando. O que eu vejo eles falarem, o que eu vejo eles proporem de tomada de terras, de desafio, eu acho que desacredita até o próprio movimento, Júlio. Desacredita até o próprio movimento.

Júlio Lancelotti: Agora, ninguém nunca investiu mais em educação do que o movimento sem-terra, não é? Você vê que o movimento sem-terra é eminentemente, hoje, um movimento que assume a proporção que assume, e se inicia uma campanha enorme na mídia de desacreditar e de destruir o movimento sem-terra, neste momento. Por isso que eu quis lhe fazer essa pergunta.

Gilberto Dimenstein: Mas eles ajudam [a campanha de desacreditá-los]. Quando eles se propõem a tomar escolas na marra, que até seria uma idéia bonita...

Júlio Lancelotti: Mas por que o governador Mário Covas, por exemplo, fechou tantas escolas em São Paulo?

Gilberto Dimenstein: Mas ele está errado nisso.

Júlio Lancelotti: Pois é, fechou. Nós temos muitas escolas fechadas, prédios e prédios e prédios de escolas públicas fechadas.

Gilberto Nascimento: Caindo aos pedaços também.

Júlio Lancelotti: Agora, não poderiam ser outras coisas? Entregar para a comunidade fazer ali centros culturais.

Gilberto Dimenstein: Claro.

Júlio Lancelotti: Nós temos proposto: por que nós não temos nas nossas escolas estaduais uma hora da capoeira? Um momento em que os adolescentes, a juventude da periferia possa ir lá ter seu grupo de capoeira, seu grupo de arte.

Gilberto Dimenstein: De música.

Júlio Lancelotti: Seu grupo de cultura, de rap. O Sapopemba vai realizar agora no nosso centro de defesa um festival de rap – o centro de defesa do Sapopemba onde trabalha o padre Savério e um missionário italiano que está aqui no Brasil –, um grande movimento de rap em que vão vir vários estados. A escola estadual, para ceder a quadra, está cobrando um aluguel, quando isso deveria de ser um programa, uma política pública.

Gilberto Dimenstein: Mas tem uma coisa... ele falou de ONG, é uma coisa tão encantadora a criatividade de ONG. Aqui em São Paulo tem um projeto com gangues de grafiteiros...

Júlio Lancelotti: Na PUC.

Gilberto Dimenstein: Na PUC, que eles pegaram os grafiteiros, começaram a trabalhar de forma construtiva com a grafitagem. Eles estão fazendo verdadeiras obras de arte com a grafitagem, então essa questão do respeito, quando a comunidade se sente respeitada, ela devolve com o respeito, quando a cidade se sente desrespeitada... Uma vez me ensinaram o seguinte: quando você for pedir emprego num lugar ou for ser contratado, em primeiro lugar vá ao banheiro dessa empresa, porque lá você vê se a empresa é boa ou não. Se o banheiro estiver destruído, se tiver papel no chão, é ali que o empregado se vinga da empresa. Então eu acho que, quando você tem uma relação de respeito, tanto na empresa como na comunidade, há um retorno. Você vê que em empresas que apostam no seu funcionário, valorizam um funcionário, valorizam o capital humano, o retorno é de criatividade, o retorno é de empenho. Agora, quando a empresa é mesquinha, é pequena, o retorno é comprometido.

Marcelo Beraba: A gente está falando muito de governo, governo de maneira genérica. Gostaria de ouvir a sua opinião sobre o governo Fernando Henrique Cardoso, cujo passado é um passado de um professor universitário, ética, quer dizer, todos esses conceitos, e é um governo hoje contestado em alguns desses pontos que foram colocados aqui. Qual é a avaliação sua do governo Fernando Henrique Cardoso?

Matinas Suzuki: Gilberto, o Eder Bransilque, de São Caetano, e o Gilson Limeira, de Santo André, fazem a mesma pergunta: qual a sua avaliação do governo FHC, essa coisa toda.

Gilberto Dimenstein: Olha, se eu pudesse estabelecer... a verdade é que o Fernando Henrique ele está sendo beneficiário pelo ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso. O grande ato do governo Fernando Henrique Cardoso foi o ato do ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, que foi [com relação] à inflação [refere-se ao Plano Real]. Então, esse ponto essencial eu acho que foi uma grande conquista, mas que já veio do ministro da Fazenda. Eu gosto muito de algumas políticas do governo na área de direitos humanos. Eu acho que o governo deu um grande avanço em colocar alguém como José Gregori, da Secretaria dos Direitos Humanos. Eu acho que tem coisas muito interessantes na área de educação básica, e nisso o [ministro da Educação] Paulo Renato [Souza] avançou bastante. Gostei da idéia do Provão [Exame Nacional de Cursos, criado em 1996, pelo Ministério da Educação, com o objetivo de avaliar os cursos de graduação da educação superior no Brasil, quanto aos resultados do processo de ensino-aprendizagem]; eu gosto dessa idéia de colocar mais recursos na educação básica. Agora, é muito lento esse processo. Se me perguntarem de um a dez, eu diria que [o governo] está um pouquinho acima de seis. Mas eu acho que é acima da média. Ele passaria na minha avaliação, eu sou...

Marcelo Beraba: Quer dizer: você não concorda com os que criticam diretamente [o governo], dizendo que ele não tem política social?

Gilberto Dimenstein: Não. Tem política social, só que ela é fraca, ela é mal implementada, talvez por falta de vocação, mas também porque a máquina está destruída. É muito difícil [...] política social com essa máquina quebrada. Eu acho também que ele poderia ter se impulsionado mais, mas uma área chave do governo – é aí que eu faço a ressalva –, que é a área de educação, é a área em que ele está indo melhor na área social. Eu acho que o Paulo Renato tem feito, acho que até esse programa de computadores que eles estão fazendo – não é, Litto? –, se não tomar cuidado vai ser um desastre. São 500 milhões de dólares que podem acabar num desastre. Eles até estão tentando tomar algumas precauções.

[...]: Gilberto.

Gilberto Dimenstein: Para não fugir à questão, eu acho que é mais positivo do que negativo o governo Fernando Henrique Cardoso. Eu não sei se é porque eu morei também muito tempo em Brasília, que eu vi o seguinte: eu morei em Brasília, eu vi o [último presidente do regime militar, João Batista] Figueiredo, depois eu vi o [José] Sarney, depois eu vi o [Fernando] Collor, depois eu vi o Itamar [Franco], e teve um tempo em que, se o Itamar saísse, assumiria o [presidente da Câmara dos Deputados] Inocêncio de Oliveira, então era qualquer coisa ali...

Júlio Lancelotti: Você é muito generoso pela comparação.

Gilberto Dimenstein: Não, mas é a comparação que eu tenho. Eu vi isso em Brasília, eu vi o Figueiredo, eu vi o Sarney, vi o Collor e o Itamar, então qualquer coisa que viesse ali, tinha uma grande chance de ser melhor, mas você imagine que tinha um tempo em que a primeira-dama não lia livro. Hoje, pelo menos, a primeira-dama escreve livro; então houve uma mudança de...

Júlio Lancelotti: [interrompendo] Gilberto, o presidente também escreve, mas pede para a gente esquecer [o que escreveu] depois [risos].

Gilberto Nascimento: Hoje você tem essa preocupação, por exemplo, de tentar levar computador para a rede pública. O seu projeto, por exemplo, é uma coisa ótima, interessante. Eu vejo, eu custo a acreditar em ver, por exemplo, as escolas da periferia de São Paulo com a internet, o professor que não tem dinheiro para comprar jornal e que também não tem o computador na sua escola. Então a gente vê o governo com o projeto de levar computador para todas as escolas do país. Agora, a gente fica assim profundamente triste e tal quando começa a receber denúncias de escolas, por exemplo, em Minas Gerais, que estão comprando computadores superfaturados, está se pagando uma fortuna, um preço muito maior.

Gilberto Dimenstein: E o perigo. Você sabe que colocaram televisão nas escolas, sumiram os televisores, ou o pessoal não sabe se quer usar. Isso daí é muito delicado, porque você tem que dar uma máquina acoplada a um... como ela falou, tem que ser uma máquina acoplada a um projeto pedagógico. Agora, eu acho que quando você faz uma coisa bem feita, em várias partes do mundo funciona. Você tem no Rio de Janeiro favelas com escolas de computação, [com] que nós estamos até trabalhando juntos, então dá para fazer. Sabe, essa molecada que vem aí tem uma habilidade muito grande em informática.

[sobreposição de vozes]

Gilberto Dimenstein: Eu vi meu filho...

Matinas Suzuki: Por favor, posso fazer uma pergunta pessoal que estou vendo pelas conversas? Estou longe de criticar a internet, estou longe também de não usufruir dos benefícios da internet, mas eu temo que esteja passando aí para muita gente o seguinte: basta ter uma internet, basta ter um computador e acessar a internet que já vai resolver o problema da educação no Brasil, quer dizer: eu sei que você não está dizendo isso; agora, você poderia esclarecer bem: até onde você acha que é eficiente, e como é que ela pode ser realmente bem utilizada?

Gilberto Dimenstein: Olha, eficiente...

Matinas Suzuki: Eu tenho a impressão de que está passando, até pelo tipo de pergunta que está chegando aqui, está passando essa impressão, de que bastou instalar, plugar na internet, essa coisa toda, e os problemas de educação daquela escola estão resolvidos.

Gilberto Dimenstein: Olha, não basta ter uma televisão ligada para você ter um bom programa. Imagine, você tem uma televisão... Não adianta você ter um rádio; você tem que ter uma programação no rádio, o essencial, Matinas, o essencial, de que não dá para fugir, é que o professor tem que ser um professor que estimule a curiosidade, todo o resto é detalhe, todo o resto é detalhe. Agora, se o indivíduo no final do século não conseguir manejar a linguagem informática, ele está despreparado para o mercado. É um detalhe, agora esse detalhe da internet, o que ele propicia? Ele propicia que você tenha como sala de aula o mundo, você não pode abrir mão desse processo como também não pode abrir mão do livro. O livro é fundamental no processo pedagógico. Você tem que usar todos os recursos possíveis em sala de aula. Olha, se falassem: “Gilberto, qual o único recurso [que você escolheria] se você tivesse que tirar tudo, tudo, tudo, tudo?”. Eu tiraria lousa, eu tiraria parede, deixaria só o professor. Aliás, como era na Grécia, onde o professor saía andando com o aluno conversando. E não funcionava? Agora, quantas pessoas se formaram... Isso que eu digo, tem pessoas que mudam o mundo porque tiveram um grande professor. Eu acho que todo mundo tem uma história, aqui, de um professor que mudou, que abriu um mundo. Tem uma história bonita: pouco tempo antes de o Paulo Freire morrer, ele estava lá em casa, em Nova York, e lá um grupo de educadores nova-iorquinos e americanos, todos reverenciando o Paulo Freire, e no final da festa, no jantar, uma professora se aproximou e falou assim: professor Freire, se o senhor tivesse que dizer uma única característica do professor, qual deveria ser essa característica? Ele não pensou duas vezes, ele falou assim: “Deveria ser gostar de viver”. E eu fiquei pensando nessa frase: por que gostar de viver? Porque quando você gosta de viver, você é um curioso, e quando você é um curioso, você passa a paixão pelo conhecimento. Nada disso é internet, Matinas, não tem a menor importância. Agora, se você é um indivíduo curioso, com um bom professor, você tendo à mão um instrumento como esse, você vai para Nova York, vai para Paris, você vê exposição do [pintor espanhol Pablo] Picasso. Agora, é um detalhe do processo, [mas] um detalhe que se você usar bem, repito, você coloca numa pequena cidadezinha do interior uma biblioteca de mil, dois mil andares de graça.

Matinas Suzuki: Gilberto, eu acho o seguinte: não há um risco nesse processo de uma centralização muito forte, na medida em que você canaliza todo o conhecimento para um tipo de canal? E você começa a perder as experiências da diversidade, as experiências locais etc e tal, que são igualmente tão importantes quanto o conhecimento [...], porque a lógica de tudo isso é que vai ser tanto mais fácil você usar quanto mais você puder direcionar para alguns centros ou pólos de produção de conhecimento que você possa acessar mais rápido. A hora em que todo mundo começar a acessar as mesmas bibliotecas, as mesmas fontes de pesquisa, os mesmos autores etc e tal, você pode estar correndo o risco de deixar a diversidade de fora.

Gilberto Dimenstein: Eu acho que é o contrário, Matinas, eu acho que a tendência é valorizar o local. Por exemplo: nesse nosso projeto Aprendiz do futuro, cada escola...

Matinas Suzuki: Porque, por exemplo: eu acho mais importante do que acessar a biblioteca do Congresso Americano, pôr uma biblioteca numa cidade do interior [do Brasil]. É mais caro, muito mais difícil, mas num projeto ideal... Ou você tem as duas coisas, porque você vai ter coisas na biblioteca do Congresso americano que você não vai conseguir ter na sua biblioteca pequena da sua cidade. Mas eu estou fazendo uma observação de leigo.

Gilberto Dimenstein: Matinas, nós dois sempre pudemos ter esse tipo de acesso. Porque você vai para Nova York, vai para Paris, vai para... nós temos esse acesso, você tem esse acesso. Na Folha de S.Paulo você tem um banco de dados. Agora, tem esse pessoal que não tem nada de nada de nada. De repente, fala-se o seguinte: olha, com essa maquininha você vai ter alguma coisinha. Por exemplo: nesse nosso projeto, o que nós estamos fazendo? Cada escola vai remontar essa homepage a partir... Quando eu falar em globalização, ele vai ter que remontar a homepage a partir da vivência local. Isso aí em que você tocou, eu acho que é uma coisa muito interessante. Eu acho que a educação é uma coisa local, ou seja, você pode até ter uma visão geral, mas você tem que valorizar a sua comunidade. A escola do meu filho estuda jazz porque ela está ao lado do Harlem; então o Harlem passa a ser o princípio fundamental para ele pegar educação. Não existe educação abstrata; você tem que valorizar a sua comunidade. A educação de São Paulo tem que ser em São Paulo; aqueles elementos todos da cidade têm que ser incorporados ao currículo, e deixa a homepage para depois.

Fredric Litto: Gilberto, muitas vezes a justificativa para colocar o computador na escola é por quem vai preparar o jovem para usar esse instrumento no seu trabalho no futuro. Outras vezes, a justificativa é para ajudá-lo a pensar de novas formas, usar imagens, sons etc. Eu estou convencido, gostaria de saber sua opinião sobre isso, se em um país como o Brasil, com tanto menino pobre e tanto menino que tem baixa auto-estima, que a melhor justificativa para ter o computador na sala de aula, em todas as salas de aula, é a possibilidade de aumentar essa baixa auto-estima do aluno, deixando o aluno mexer, navegar e com isso ver que ele é capaz de fazer muito mais do que o sistema atual de educação permite. O que você acha?

Gilberto Dimenstein: Olha, o computador para um tipo de aluno vagabundo é uma maravilha, porque tem um aluno – que eu acho que me incluía – que é o aluno vagabundo interessado, então, se você deixa o vagabundo interessado no computador com internet, ele faz... aliás, é a categoria que melhor se beneficia é o vagabundo-rebelde-interessado, porque ele vai procurando, ele vai estudando, ele consegue professor em sala de aula e tal. Eu tenho essa [opinião], agora existe uma coisa interessante da classe média, aí o Matinas está puxando uma coisa que é uma forma correlata a isso. O pai exige que a escola tenha computador – pai de classe média –, e a escola coloca na porta: “Escola com computador”. Isso é uma bobagem. Olha, isso é uma bobagem. Porque não adianta você falar assim: a escola tem televisor. E daí que tem televisor? Escola tem rádio. E daí que tem rádio? Olha, eu garanto que o básico de informática você aprende em um mês, Litto. Em um mês a gente ensina. Não precisa passar quatro, cinco anos... Isso é bobagem, é igual a uma máquina de escrever; o fundamental é como você adéqua isso a um processo pedagógico. Engraçado que o pai de classe média fala assim: aquela escola não tem computador; isso é uma bobagem, isso é uma asneira. E o pai de classe média fica contente: meu filho está numa escola que tem computador. Imagine...

Paulo Vitor Sapienza: Agora, Gilberto, você não acha que você fala de globalização, computador, internet, você não acha que esse excesso da humanização da máquina e a banalização do ser humano, onde o ser passou a ser segundo plano, ou seja: o ter é muito mais importante que o ser? Não está tirando das nossas crianças uma etapa fantástica, chamada infância, e colocando nelas a falsa adolescência, em que nós estamos caminhando cada vez mais para um processo de esfriamento das relações humanas? Nós estamos fazendo com que a fraternidade, o relacionamento, princípios primordiais para o desenvolvimento do ser humano sejam jogados em segundo plano, e cada vez mais nós estamos nos fechando dentro de um computador, de uma máquina, outras coisas mais. Você não acha que a gente corre um risco muito sério?

Gilberto Dimenstein: Isso num todo, viu? Você está colocando uma questão... Eu tenho 40 anos hoje. A idéia do brincar era brincar na rua; acho que [para] todos nós aqui. O brincar era brincar na rua, o brincar era trocar, era você fazer um estilingue, e se você pegar em termos pedagógicos, tem uma importância você cortar a madeira, fazer um estilingue, você vai testando, tal. Agora, o problema é que as pessoas vão se sentindo sufocadas, por exemplo: o que é o shopping center, senão a cidadania falsificada? É a rua ideal, que não tem sujeira, ou que tem pouca sujeira, que não tem bandido, tal. Mas para você entrar nessa rua, você tem que ser um consumidor, então a entrada da cidadania no shopping center é via consumo, não é aquela coisa... Talvez seja o lado mais bonito de Nova York, se me perguntarem: o que é lindo em Nova York? Não é a Broadway, não são os museus, andar na rua é a grande diversão.

Fredric Litto: E não tem shopping center em Nova York [risos].

Gilberto Dimenstein: Não. Não tem shopping center em Nova York. Não tem shopping center em Nova York porque também é um shopping center a céu aberto, no sentido de que...

Luiza Nagib Eluf: Não, mas tem as lojas de departamento, tem muitas lojas de departamento, é a mesma coisa.

Gilberto Dimenstein: Não, mas não tem shopping center, porque seria tão horrível. A rua é tão interessante, e é tão bonito você andar na rua, você [...] os indianos, pegando... Eu acho difícil você morar em Nova York e não se apaixonar pela cidade. Eu acho que quem mora em Nova York e não se apaixona é porque deve ter algum problema [risos].

[sobreposição de vozes]

Gilberto Dimenstein: Quem gosta de gente, de gente com seus defeitos, se apaixona por Nova York.

Matinas Suzuki: Gilberto, tem muita gente aqui na internet, eu não vou, são vários, dizendo que você está muito americanizado, que você está muito...

[...]: [Como a] Carmen Miranda.

Matinas Suzuki: O Roberto Rocha, de Curitiba, [está] dizendo que nós não podemos competir com os Estados Unidos que, na realidade, são muito diferentes, enfim.

Gilberto Dimenstein: Não é americanizado, é o seguinte: eu estou pegando coisas que eu acho positivas lá e falando assim: olha, pessoal, isso daqui não presta, esse daqui presta. Se eu morasse na Suécia, eu também estaria colocando. Tem coisas que eu acho lindas lá, que é essa visão comunitária; tem coisas que eu acho horrorosas lá, que é uma coisa fria no relacionamento.

Júlio Lancelotti: Quando você falou a história do banheiro, eu fiquei pensando assim: que você diz que vai à empresa olhar o banheiro para ver se a empresa é boa. Será que nós do Terceiro Mundo não somos o banheiro do Primeiro Mundo? Será que eles não estão lá tão bem porque nós estamos em um banheiro tão estragado?

Gilberto Dimenstein: Júlio, eu não sei, porque eu acho que se a gente...

Júlio Lancelotti: [interrompendo] Nós não estamos pagando esse beneficio...?

Gilberto Dimenstein: ...souber aproveitar as oportunidades desse processo, a gente pode crescer. Agora, vai depender disso que ele está colocando, até quando nós temos um sistema de conhecimento...

Júlio Lancelotti: Não, mas eu estou dizendo...

Gilberto Dimenstein: Porque você pega países como Singapura...

Júlio Lancelotti: Economicamente, na questão da globalização, o que nós estamos pagando de serviço da dívida externa, quer dizer, na verdade nossas crianças, nosso povo, estão sofrendo, estão vivendo a situação que vivem porque outros estão vivendo muito bem. Nós não teríamos que levantar um pouco o nível aqui e talvez baixar um pouco o de lá? Ou mesmo nessa dialética de que lá também existe o Terceiro Mundo, como aqui também existe um Primeiro Mundo, eu acho que tem uma relação. Por que a África está abandonada do jeito que está? Por que os Estados Unidos têm tão pouco interesse na África? Por que países como a Somália não têm nem governo constituído mais, não tem congresso, não tem nada, estão nessa miséria? Por que isso?

Gilberto Dimenstein: Mas a culpa não é da globalização, isso aí veio antes da globalização.

Júlio Lancelotti: Sim, mas fabricando tudo isso e construindo tudo isso, essa economia toda que existe cada vez mais globalizada vai fazendo, tem uma relação. Nós estamos tão pobres porque outros estão tão ricos. Na mesa deles sobram tantas comidas porque na nossa falta tanta. Eu acho que há uma relação, e que o grande passo que se pode dar é usar esses instrumentos, como você tem colocado, também nessa questão da solidariedade internacional, e perceber a filosofia do direito, a filosofia da convivência internacional, quer dizer, pensar esses problemas a um nível de co-responsabilidade.

Gilberto Dimenstein: É que tem um cinismo, tem um cinismo, olha o cinismo americano, fazendo um contraponto ali no Matinas. O pessoal fica falando em paz, mas os americanos começaram a vender armas para a América Latina, isso é um absurdo, quer dizer: eles ficam falando em pacifismo e vendem armas para a América Latina para criar uma corrida armamentista. Então, nesse ponto eu fecho com você. Precisa ter um sistema internacional para trabalhar com a África, trabalhar com a América Latina, de solidariedade, até por uma questão de interesse desses países. Porque onde o africano vai morar? O africano vai morar na Europa, isso vai lotar as ruas da Europa, ele vai lotar as ruas de Manhattan, da Flórida, o pessoal da América Central.

Paulo Vitor Sapienza: Gilberto, outro dia – eu volto novamente no campo da fraternidade e da tecnologia - outro dia uma pessoa de classe média, muito bem desenvolvida, perguntava para mim: “Pô, Paulo eu estou com um problema muito sério com meu filho”. Quantos anos tem seu filho? “Seis anos. Eu dou amor para ele, carinho, ele tem computador, ele tem disco, ele tem tudo que você pode imaginar de tecnologia, mas ele não tem o amor do pai, a participação, o convívio, levar essa criança no cinema, outras coisas mais”. A que conclusão que eu chego e lhe pergunto: será que daqui a 30 anos o desafio não vai ser nós termos a coragem de pôr em prática aquilo que nossos avós faziam há 40 anos? A fraternidade, beijar alguém com amor, a dignidade, será que num determinado momento essas crianças não vão chegar numa certa complexidade, com 20 anos, com um tédio brutal de ter tantas informações, mas não ter o mais importante: o fator humano? Isso que me preocupa. Será...?

Gilberto Dimenstein: É duro, você sabe que você está me perguntando uma coisa que me pega, acho que pega todos nós aqui. É duro ser pai contemporâneo hoje, porque ao mesmo tempo em que você tem a noção dos traumas psicológicos, a vida moderna é tão horrorosa no sentido de que você não tem aquele espaço da conversa na mesa que a gente tinha com nossos avós. O que acontece? A televisão é a nossa babá, a babá dos nossos filhos. Não tem a conversa, não tem a troca, e nada disso substitui. Quem já morou nesses lugares mais calmos ou teve umas famílias mais tradicionais, o prazer de você aprender com os avós, aprender com os pais é uma coisa tão rica, e eu acho que tem uma neurose nas crianças atuais por causa do consumo, porque a gente fica se sentindo culpado, porque a gente não dá tempo, então você entucha o menino de brinquedo, aí você tem... Aqui em São Paulo e no Rio de Janeiro, você tem um processo de estresse, que o garoto sai da aula, aí vai para a natação, depois da natação vai para o judô, depois do judô...

Júlio Lancelotti: E ainda tem o bichinho virtual.

Gilberto Dimenstein: E ainda tem o bichinho virtual, aí não sei o quê, chega às oito horas o garoto está arrasado, porque passou por um corredor polonês de atividades. Aí vê os pais e dorme. Olha, você vê aí, cada um tem que ter motorista, obviamente que você não consegue manter essa atividade sem ter motorista. O garoto fica dentro do carro indo da natação para o caratê, do caratê para a aula de artes, e é um processo de desencargo de consciência.

Luiza Nagib Eluf: Mas isso não é um problema da escola brasileira também? Porque nos Estados Unidos, por exemplo, a escola fornece aula de natação, auto-escola, aula de artes. Você faz tudo, outros idiomas, você pode aprender espanhol, alemão, na escola, aqui não. A escola dá o mínimo. Mesmo as escolas particulares, e a família tem que providenciar o resto, levando para lá e para cá.

Gilberto Dimenstein: Agora, o pai de classe média hoje, [o pai] padrão, se você fala com um professor ele vai lhe contar, ele quer que a escola trate de matemática, português, da vida sexual do filho dele [...], da ética, quer tudo. Você tem que cuidar, e tem também que cuidar dos problemas psicológicos do pai [risos]. É verdade, o professor tem que cuidar do pai que está brigando com a mulher... Então eles colocam uma carga na escola e tiram uma carga da família. O Litto, que é educador, é capaz de dizer mais, [mas] eu acho, eu tenho uma suspeita – cientificamente não é comprovado – de que o processo educacional é 60%, 70% a família, e o resto é a escola. Uma boa família, estimulante, que leve a museu, que leve a cinema, que leve a teatro, que converse, é uma família que garante o processo educacional, e a escola vira um complemento, ainda mais numa época como essa, ou seja, quando alguém fala assim: a escola é boa? Sim. Mas se a escola é boa e a família é uma desgraça, a desvantagem do estudante é muito grande.

Fredric Litto: Você está esquecendo outra parte, a parte informal da preparação do jovem, que são os clubes, grupos religiosos, os escoteiros, equipes de esporte, toda essa coisa forma o jovem.

Gilberto Dimenstein: Eu, no meu caso, que era um aluno difícil, para não dizer péssimo aluno. Todo boletim que vinha, minha mãe fazia um estraçalho na minha... Eu tive um lado que tinha uma formação religiosa judaica freqüente, então a escola não era uma referência, mas eu tinha toda sexta-feira, todo sábado lá na sinagoga, então se discutia, se pensava, movimento sionista... Então tudo isso se agregava, havia toda uma questão comunitária que lhe dava uma, uma...

Fredric Litto: Perspectiva.

Gilberto Dimenstein: Um acréscimo.

Fredric Litto: Perspectiva.

Paulo Vitor Sapienza: Eu acho também que houve um afastamento do processo. Nós nos afastamos dessas crianças e desses adolescentes, nós não discutimos mais as nossas culturas. Uma coisa interessante, outro dia eu discutia com um menino lá um CD do [cantor e compositor] Milton Nascimento, e explicava para ele. Tivemos a paciência de explicar a letra e tudo mais. Passada uma semana, ele telefonou: “tio Paulo, dá para você comparar o CD do Milton Nascimento para mim, ou a fita do Milton Nascimento?”. Nós precisamos discutir mais cultura, nós precisamos estar mais presentes, isso que eu queria. Houve um afastamento, e as crianças e os adolescentes estão soltos para uma televisão, para uma tecnologia e um progresso. Eu digo que o capitalismo brasileiro é um campeão em fazer frustrados, pois você precisa cada vez ter mais, mais. Se você tem um relógio, você precisa de dez, se tem um carro, precisa de trinta. [E isso] está começando a trazer uma desordem, que é um agravante muito maior do que a gente imagina. Outro dia...

Marcelo Beraba: Na década de 60, falavam isso do gibi, falavam isso da televisão, que estava começando, quer dizer: eu não sei se é tão diferente assim, não...

Paulo Vitor Sapienza: Não, hoje está muito sério.

Marcelo Beraba: E a nossa geração...

Gilberto Dimenstein: Beraba, o contato humano está mais difícil, você não acha?

Marcelo Beraba: Não sei.

Gilberto Dimenstein: O contato humano, pessoal. Tem pessoas – aí eu fecho com Matinas – pessoas que preferem falar por internet do que o contato pessoal. Para mim, é coisa de doido, não é? Você achar que é melhor ficar numa tela do que num contato humano é coisa de doido. Agora, eu acho que o contato, aquela família que se reúne, conversa, senta na mesa, isso daí foi sumindo, isso daí foi sumindo e criou uma lacuna. Talvez um pouco da ansiedade, da ansiedade dos nossos filhos derive de uma falta de estrutura familiar que deu uma segurança, uma referência para o...

Matinas Suzuki: Gilberto.

Gilberto Dimenstein: Inclusive limite.

Luiza Nagib Eluf: E qual é a influência da televisão? A televisão não educa? Dizem que a família e a escola educam; eu acho que a televisão educa muitíssimo também.

Gilberto Dimenstein: A televisão deseduca...

Júlio Lancelotti: Deseduca.

Luiza Nagib Eluf: Sim, sim, educa negativamente, vamos dizer.

Gilberto Dimenstein: A televisão deseduca, porque no Brasil não tem controle sobre a televisão. As pessoas acham que controlar é censurar. O nível de promiscuidade... olha, nada contra a vida sexual. O nível de promiscuidade na televisão brasileira, você vê novela, a cama é um terço... É como se as pessoas vivessem um terço da vida [na cama].

[...]: E bebidas.

[sobreposição de vozes]

Gilberto Nascimento: A nossa imprensa, por exemplo, ela é ética? Você vê, por exemplo, recentemente a gente teve o episódio aqui do caso da TAM, do acidente da TAM [refere-se provavelmente ao acidente ocorrido em São Paulo com um Fokker 100 da TAM – em 31/10/1996 –, que resultou na morte de 99 pessoas], que uma figura lá foi colocada nas capas, execrada como... Qual o papel da imprensa? Você acha que ela é ética, ela contribui para essas questões todas que a gente está discutindo? Ela se omite?

Matinas Suzuki: Gilberto, só para completar, o João Batista Paschoalote, de São Carlos, pede para você fazer uma comparação entre a imprensa brasileira e a imprensa americana.

Gilberto Dimenstein: Olha, eu tenho notado na imprensa brasileira, a partir daquele caso da Escola Base, toda uma reflexão ética, e tem vários jornalistas cutucando esse processo de forma muito produtiva. Eu acho que nós da imprensa temos que fazer uma mea-culpa, e eu não estou fora desses erros. A gente entrou num processo no Brasil de denúncias, de pancada. Acho que todos nós aprendemos. A gente entrou em um processo em que tudo parecia corrupto e negativo, e a gente saiu dando pancada. Eu acho que felizmente nós somos... Eu, se pudesse voltar, não teria feito algumas coisas que eu fiz, teria sido menos leviano em algumas coisas. Eu acho que é um processo em que a imprensa está reaprendendo a ser mais precisa, ser mais meticulosa, até porque o leitor está melhorando. Tem muitos jornalistas na imprensa brasileira favorecendo esse debate. Agora, na comparação com a imprensa americana, é difícil, porque é tão díspar, mas você tem na imprensa americana grandes veículos de comunicação. Eu acho que eles são imbatíveis em qualidade. Eu acho que o Wall Street Journal é um jornal excepcional, acho que não tem nada próximo no Brasil, de qualidade, detalhismo. E o New York Times é uma delícia de jornal. Você sente como o jornal transpira a cidade. Agora, o que eu aprendi com a imprensa americana é como é bem coberta a cidade, como eles descobrem a cidade, as histórias da cidade. Às vezes eu noto falta na imprensa brasileira das histórias da cidade, de como a cidade é coberta. A imprensa do Rio é melhor nisso, Beraba, eu acho, não sei se é porque o carioca tem mais – uma vez você me falou isso –, que o carioca tem mais paixão pela cidade. Um editor de Cidades do New York Times me falou uma coisa em uma reunião em Columbia: “Olha, nós do New York Times cobrimos cidades como a gente cobre esporte, tem que ter uma dose de torcida, porque as pessoas moram na cidade”. Eu noto que a cobertura da cidade, aqui em São Paulo pelo menos, não tem a riqueza... o que é lindo no New York Times, que é o maior jornal do mundo, mais importante, não é a parte nacional nem econômica, é a parte de cidades, são os personagens...

Marcelo Beraba: Os bairros, os quarteirões...

Gilberto Dimenstein: Os bairros, é uma coisa. Você se sente... às vezes você lê o jornal no Brasil, e como o jornal é muito oficialista, no sentido de cobrir muito o governo, você não se identifica. As manchetes em geral são de Brasília, são de temas econômicos e que têm pouco a ver com o dia-a-dia...

Marcelo Beraba: Você acha que isso melhorou? Lembro-me de discussões nossas há cinco, seis anos atrás...

Gilberto Dimenstein: Lá no Carpe Diem.

Marcelo Beraba: A desestatização da notícia, você se lembra?

Gilberto Dimenstein: É porque eu estava na sucursal de Brasília...

Marcelo Beraba: Mas você acha que melhorou isso?

Gilberto Dimenstein: Eu acho que está melhorando um pouco, está melhorando, mas ainda acho que a cidade, que o cotidiano não transpira, no jornal, como devia transpirar.

Matinas Suzuki: Nós estamos chegando ao final, vamos fazer algumas perguntas aqui. Se você puder responder rapidamente, está bom? O Paulo Rogério Ribeiro, de Vila Prudente, aqui em São Paulo, bancário, diz o seguinte: “Tendo em vista que somente a elite tem acesso aos melhores cursos nas universidades públicas, como na USP, por exemplo, você não acha que esses alunos deveriam pagar mensalidades, [para] o governo reverter o dinheiro para melhoria da escola pública? Isso não seria uma forma de distribuir renda?”.

Gilberto Dimenstein: Eu acho que escola pública [deveria ser] para os pobres e escolas privadas para os ricos. Quem puder pagar uma faculdade deveria pagar. Hoje, um aluno universitário custa, por mês, mil reais. Não é justo dar um subsídio para aluno rico de mil reais por mês. Então, eu acho o seguinte: vamos garantir bolsa de estudo para quem não pode e cobrar do aluno [que pode pagar]. Aliás, acho que um dos absurdos nacionais é você fazer que o meu filho, no futuro, não pague escola pública ou uma faculdade. São mil reais por mês. Eu acho que isso daí, eu nem reverteria para escola pública, eu colocaria na faculdade para melhorar o salário do professor, que trabalha, para melhorar os laboratórios.

Matinas Suzuki: Gilberto, o Rodrigo Vinícius, sociólogo, aqui está pegando no seu pé. [Ele] diz o seguinte: Dimenstein, você não se acha bonzinho demais? Você acredita mesmo que o mundo há de sempre caminhar para melhor? Que a civilização é o cavalgar incessante da justiça sobre a injustiça? Não vê nenhuma complicação nesse modo de ver as coisas? É ingenuidade, é bom-mocismo? Ou esse mundo que você prega não seria um tanto chato?

[sobreposição de vozes]

Gilberto Dimenstein: Talvez fosse chato. Mas é como que eu chego aqui num programa de televisão, sendo jornalista, e vou pregar sacanagem? “Olha, pessoal, é melhor que as pessoas se matem, que a gente perca os meninos de rua”. Você já imaginou chegar numa posição como essa? Aí o cara diz assim: “Parabéns, você está sendo realista, você está pregando...”. Não dá, já tem tanta malandragem no dia-a-dia. Ainda vem um jornalista aqui para pregar mais [malandragem]?

Marcelo Beraba: Como você se define hoje politicamente?

Gilberto Dimenstein: Putz, já não sei mais...

Marcelo Beraba: É tão obsoleto isso... [risos].

Gilberto Dimenstein: Isso aí parece meu filho Gabriel, de 5 anos. Estava lá no Central Park vendo dois times de judeus com solidéu jogar, aí ele perguntou assim: “Papai, afinal, você é judeu ou vegetariano?” [risos]. Foi mais ou menos assim.

Matinas Suzuki: Gilberto, o Luiz Eduardo Flores, a Fátima Caftel, a Ligia Queiroz, a Beatriz Bergamim, todos mandam parabéns pelo seu trabalho. Acham que é um trabalho importante e que tem que ser continuado. Eu tenho aqui vários pedidos. Se você pode dar o seu endereço na internet. Você pode dar?

Gilberto Dimenstein: É gdimn@aol.com. Posso fazer uma correção? Aquela matéria [...], que você falou, foi uma obra coletiva, aliás, o Marcelo Beraba participou. Quer dizer: eu participei ali, mas foi um pedaço... para também não ficar uma... já que a gente está falando em precisão e ética, fica essa correção aqui.

Matinas Suzuki: Está certo. Bom, o livro está aqui, o projeto Aprendiz do futuro, e se der para a gente pegar o endereço outra vez do projeto, porque há muitos pedidos para pegar o endereço, você pode ler o endereço aqui: http://www.apendiz.com.br. Gilberto, muito obrigado pela sua presença aqui nesse programa.

Gilberto Dimenstein: Obrigado você, Matinas.

Matinas Suzuki: Muito obrigado a nossa bancada de entrevistadores. Obrigado pela sua atenção e sua participação. E o Roda Viva volta na próxima segunda-feira às dez e meia da noite. Até lá. Uma boa semana para vocês e uma boa noite.
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