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Memória Roda Viva

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Arany Santana

15/3/2004

Para a secretária da Reparação de Salvador, é preciso que, paralelamente ao sistema de cotas, melhore-se o sistema de ensino para que todos possam, em igualdade de condições, ingressar na universidade e conquistar seu espaço no mercado de trabalho

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[Programa ao vivo, permitindo a participação dos telespectadores]

Paulo Markun: Boa noite. Descendentes de escravos, pobres e excluídos, há muito tempo os negros brasileiros tentam abrir um espaço social que ainda se fecha a eles. A busca por essa inclusão, depois de séculos de preconceito e desigualdade, está ganhando dimensão no país. Salvador, terra natal de grande parte da população negra brasileira, criou um organismo oficial para tratar exclusivamente dos direitos civis dos afro-descendentes. É a Secretaria Municipal da Reparação, dirigido pela educadora Arany Santana, convidada desta noite do Roda Viva. Ligada historicamente ao Movimento Negro, Arany assumiu a tarefa de transformar em política pública a idéia de reparar os danos sofridos pelos negros com a discriminação racial. 

[Comentarista]: Arany Santana é pedagoga com formação acadêmica também em artes cênicas e especialização em história da África. Professora de língua portuguesa, de cultura africana e de arte-educação, tem uma longa lista de trabalho em escolas, oficinas e entidades voltadas para arte e cultura. Assumiu a Secretaria de Reparação criada pelo prefeito de Salvador, Antônio Imbassaí, em dezembro do ano passado, tornando-se a única representante negra no governo municipal da cidade onde os negros representam 86% da população e formam o principal conjunto de excluídos sociais. Salvador tem um dos mais alarmantes índices de desigualdade social do país. Conseqüência da segregação racial que produziu mais de três séculos de danos e também de indignação contra o preconceito e a desigualdade. “A Bahia sempre teve uma história de insurreições, sempre saiu na frente e ela teria que sair na frente neste momento com uma Secretaria da Reparação. Ela não vai reparar as seqüelas de cinco séculos, mas vai iniciar um processo de minimização das desigualdades” [fala de Arany Santana no VT]. Arany Santana, entusiasmada com a idéia da reparação se oficializar no país, tem uma história pessoal de envolvimento nessa busca. Ela é fundadora do Movimento Negro Unificado, e diretora do Ilê Aiyê, o mais antigo movimento negro do Brasil. Acabou de fazer trinta anos e comemorou o aniversário junto com a criação da Secretaria de Reparação. O Ilê Aiyê, que surgiu inicialmente como um bloco de carnaval, incorporou um trabalho social em suas atividades, que se tornou referência e estimulou o surgimento de outros grupos de ação comunitária. Com três mil associados, realiza projetos culturais e educacionais com oficinas profissionalizantes para jovens e adultos e uma escola de ensino fundamental que atende 150 crianças da comunidade. O mais belo dos belos, como também é chamado, o Ilê Aiyê participou do Carnaval de Salvador este ano com mais de três mil pessoas e, mais uma vez, levou para as ruas temas referentes à realidade do negro, temas da inclusão social há trinta anos reivindicada pelos movimentos negros e que agora começam a entrar na agenda municipal de Salvador, através da Secretaria da Reparação.

Paulo Markun: Para entrevistar a secretária da Reparação de Salvador, Arany Santana, nós convidamos Alba Zaluar, professora titular de antropologia do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a Uerj. Marcelo Santos, vice-presidente de recursos humanos do Banco Boston e presidente da Fundação BankBoston, responsável pelo projeto de Ação Afirmativa Geração 21. Viviane Kulcznski, editora de geral do jornal O Estado de S. Paulo. Michael Haradom, empresário, coordenador nacional da Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania Civis e da ONG Shalon Salan Paz. Flávia Oliveira, repórter especial da editoria de economia do jornal O Globo e Carlos Novaes, cientista político e diretor presidente do Instituto Datanexus. Boa noite, Arany.

Arany Santana: Boa noite.

Paulo Markun: Eu queria começar indo à raiz do problema que, na minha visão, é a etimologia. Reparação quer dizer restaurar. Vem do latim reparare e do latim tardio repara, reparate ionis – este é do dicionário etimológico. Vários dicionários têm diversos significados, inclusive “coação ou efeito de reparar, conserto, restauração de força, satisfação dada ao injuriado, reparação de honra, de injúrias”. E no [dicionário] Aurélio tem aqui “reparação: ato ou efeito de reparar, restauração, reforma, indenização, ressarcimento.” Reparação significa indenizar os descendentes dos escravos também?

Arany Santana: Não. Na nossa concepção, esse foi um achado semântico de que o Fórum de Entidades Negras e o Movimento Negro de Salvador se apropriaram, e nós entendemos reparação no nível de secretaria como oportunização, como abrir brechas, dar oportunidades. O reparar não é o conserto porque as seqüelas que foram deixadas nessa população não têm conserto. É a abertura de oportunidades. Na verdade é oportunizar a um segmento, oportunidades – sendo redundante – a um povo que sempre fora excluído ao longo dos séculos.   

Paulo Markun: O que separa isso da luta contra o preconceito pura e simplesmente?

Arany Santana: O que separa isso? 

Paulo Markun: Sim, do que isso distingue, porque só tem Secretaria da Reparação em Salvador. O Brasil inteiro tem várias secretarias, organizações, instituições que lutam a favor do final do preconceito, contra a discriminação, pela afirmação dos segmentos da comunidade negra, etc, mas nenhum chama reparação.  

Arany Santana: É, eu acho que foi um ato de coragem. Esse nome, por sinal, foi dado pelo prefeito da cidade porque não cabe mais, neste momento, se arranjar nomes bonitinhos com penduricalhos. A questão é esta: é reparar, é oportunizar. Na verdade existem muitos municípios do Brasil com secretarias que, a partir deste ano, estão também pensando nessa reparação. Há uns dois meses atrás, assim que eu tomei posse, eu estive em Brasília com a ministra Matilde [Ribeiro] do Seppir [Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial] e lá nos encontramos. Éramos 25 cidades do país, organismos que funcionam dentro de secretarias, mas sem essa estrutura de secretaria como a nossa. Contudo, a partir deste governo, eles estão preocupados também com essa reparação. Estão preocupados em oportunizar, em traçar políticas, que é o grande objetivo dessa secretaria. Até então não se falava em reparação. Hoje não cabe mais a sociedade se calar, muito menos o movimento negro, que ao longo dos séculos, de 25 anos – quero corrigir –, vem lutando para que exista uma secretaria, não para resolver os problemas da população, não é uma secretaria sozinha e nem o governo que vai deslanchar esse processo de reparação. Mas após a 3ª Conferência de Durban [conferência mundial contra o racismo realizada na cidade de Durban (África do Sul), em 2001], acordos que o Brasil, que o governo brasileiro assinou junto com organizações, com sociedade civil organizada, com o movimento negro, não cabe mais ao Brasil achar que a discriminação racial é um problema dos discriminados nem para os discriminados. É um problema que o governo tem que tomar como agenda e entender que a discriminação é uma questão que vem ferindo os princípios mais nobres da democracia e que vem também entravando o desenvolvimento econômico deste país. 

Flávia Oliveira: Secretária, eu queria lhe fazer uma pergunta em relação aos projetos da secretaria efetivamente. Tem algumas questões de desigualdade racial, por exemplo, a desigualdade educacional e a desigualdade no mercado de trabalho. Quais são suas idéias em relação a isso? São políticas de ações afirmativas, adoção de cotas em universidades, cotas em empresas, no serviço público?  [cotas raciais]

Arany Santana: Bem, as cotas são tão badaladas, né? Essa questão das cotas na universidade é uma questão que Salvador já tomou conta disso. A Ufba [Universidade Federal da Bahia] ainda está em processo de discussão, a Uneb [Universidade do Estado da Bahia] já adotou suas cotas e também as cotas não é muito, não é uma bandeira do movimento negro, não é uma prioridade do movimento negro e também não é uma demanda desta Secretaria da Reparação. A Secretaria da Reparação está muito preocupada com a questão da educação, porque nós entendemos que a reparação vai acontecer na sua plenitude pela via da educação. Os nossos projetos, e não é meu projeto, a Secretaria da Reparação é fruto de uma luta do movimento negro na Bahia e essas idéias são oriundas do movimento. Temos estas duas grandes preocupações que é a reparação pela via da educação e a reparação pela inclusão econômica. É essa a nossa maior preocupação neste momento, muito embora esta secretaria vá também trabalhar em parceira com outras secretarias, a exemplo da Secretaria do Trabalho e Ação Social, a Secretaria da Saúde e da Habitação. Nós ainda estamos caminhando para o terceiro mês de vida, de fundação, de criação. Estamos passando por todo trâmite, toda tramitação de uma secretaria, na elaboração do regimento, na composição do quadro e logo em seguida iremos traçar o nosso planejamento estratégico, recebendo realmente as contribuições dos movimentos que existem em Salvador. Ela não trabalhará sozinha, nem com idéias oriundas das nossas cabeças que estamos no front, mas é uma secretaria com uma composição de toda a sociedade.        

Viviane Kulcsynski: Eu queria voltar a tocar um pouquinho no assunto das cotas nas universidades. Além do que está sendo feito principalmente nas universidades estaduais, como o caso da Uneb, e do Rio de Janeiro, o MEC [Ministério da Educação e Cultura] fala em estatizar algumas vagas em universidades privadas, mas eles ainda não sabem como fazer isso para fazer uma seleção dos alunos negros. A UnB [Universidade de Brasília] – voltando um pouco para a federal – falou que faria uma seleção por fotografia, até então era uma auto-declaração. O que a senhora imagina assim que seria a forma mais adequada de fazer também esse processo de seleção com a minoria?  

Arany Santana: Esse é um detalhe que cada universidade adota a sua fórmula, e cada realidade estadual ou municipal também adota a sua fórmula. Eu acho muito interessante porque essa é uma questão que tem sido muito badalada. Desculpe-me, mas eu vou ter que dizer que hoje se trata essa questão das cotas como se fosse algo assustador, mas a gente entende que tudo que tira privilégio de um segmento causa toda essa polêmica. Toda e qualquer política de cotas, em qualquer parte do mundo onde houve desigualdades, onde houve colonização, é polêmica a priori. Eu, como educadora, admito que as cotas, nesse primeiro momento, se fazem necessárias. É como se fosse uma estratégia radical, uma maneira de se acelerar o processo de igualdade neste país. Acho justo, acho correto e não me detenho muito nessa discussão, porque na nossa terra isso já é fato consumado. Mas eu entendo, como educadora, que é preciso que nós trabalhemos em paralelo a essas cotas, porque nós temos essa demanda reprimida que precisa adentrar a universidade, precisa trilhar, mas nós estamos muito mais preocupados com nossas crianças, nossos jovens, com a melhoria da qualidade do ensino para que esses alunos possam, em igualdade de condições, adentrar a universidade, não só a universidade, como entrar, ser incluído na sociedade através do mercado de trabalho e tal. Então essa questão das cotas eu acho que tem tomado muito tempo de nós trabalharmos em outras ações que venham a fortalecer esse indivíduo para que ele seja inserido na sociedade.

Alba Zaluar: Agora eu estou começando a compreender o que você quis dizer com “criar oportunidades”. Essa valorização da educação básica, no meu entender, e para vários colegas meus, é fundamental, ela é anterior à política das cotas. Ela tem que estar sempre presente e tem que indicar o caminho até a universidade e ao ensino técnico. Porque também não podemos ter um preconceito de achar que toda população deve ter o gosto, deve ter disposição, a capacidade de investir muito no estudo como exige a universidade. Indo à Cidade de Deus [bairro que abriga uma população pobre e apresenta críticos indicadores sociais, situado na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, foi construído em 1960 pelo governo do então estado da Guanabara, como parte da política de remoção de favelas de outras áreas da cidade] onde eu fiz as pesquisas durante muitos e muitos anos, recentemente, o que eu ouvi dos moradores de lá foi um lamento pelo fim do ensino técnico. Eles querem que volte o ensino técnico tal como era praticado durante a década de 80. Eu acho que essa é uma preocupação na melhoria da qualidade do ensino, certamente porque o ensino técnico também precisa do ensino básico de qualidade, não é isso? Mas há todo um debate acerca do porquê os negros e pardos – e depois nós vamos conversar sobre essa separação – e os brasileiros pobres de um modo geral, têm muito mais dificuldade em serem bem sucedidos na escolaridade, então apresentam uma escolaridade, em termos de números de anos, mais baixa do que os brancos privilegiados e também fazem pouco uso, têm poucas oportunidades no mercado de trabalho de fazer uso dessa escolaridade que foi adquirida. E eu queria saber o que vocês têm assim de mais concreto em termos dessa tentativa de compensar as famílias negras, pardas, pobres de Salvador para que esse círculo vicioso da pobreza em relação à escolaridade se rompa?

Arany Santana: Pois é! Essa é uma luta que nós começamos e que é, a longuíssimo prazo, temos certeza disso. Ocorre que nós temos que pensar um pouco no debate, mas que a própria sociedade desconhece o processo histórico que essa população, que nossos ancestrais tiveram na sociedade. Partindo do princípio de que o pior do 13 de maio [de 1888, data em que a princesa Isabel, filha de D. Pedro II, assinou a Lei Áurea, abolindo a escravatura] foi o 14 de maio em que essa população ficou à margem, sem lenço, sem documento, sem habitação, sem essa tal de indenização, na sarjeta. Essa população ficou à margem da sociedade ao longo de muitos séculos. No pós-abolição, esse segmento não foi absorvido pela sociedade. Chegavam os imigrantes e a essa população coube o subemprego, os biscates, etc, tudo o que todo mundo já sabe demais.

Alba Zaluar: Foi a criação dessa cultura maravilhosa, que é a cultura brasileira, não é?    

Arany Santana: Pois é, parece até um contra-senso. Essa cultura que hoje nós usufruímos e que representa tão bem a nossa nação, todo esse legado da música, a música brasileira é desdobramento do samba. O samba que se desdobrou em outros estilos de música, os terreiros de candomblé que salvaguardaram toda essa nossa cultura, do ponto de vista da estética, do toque, da culinária, da nossa religiosidade; o que nós herdamos das senzalas, as comidas, todo esse legado, a religiosidade nossa, os orixás e tudo mais que essa população, mesmo à margem da sociedade, salvaguardou. Isso não é levado em conta, até pouco tempo, porque essa era considerada uma cultura menor. A cultura, o saber científico, o importante, o bom e o correto era o que era veiculado pelo livro didático. Essa cultura nossa, africana, passada de geração em geração, pela oralidade, não era compreendida como uma cultura, como um conhecimento científico...

Alba Zaluar: Posso fazer uma pequena observação? O que eu fico preocupada ouvindo pessoas como você, da qual eu respeito muito os trabalhos, eu tenho certeza que vai ter um impacto muito grande na diminuição da desigualdade, é que não prestam atenção em tudo o que já foi feito em termos de movimentos de escravos durante o Brasil Colônia, o Brasil Império, porque o fato de nós termos hoje essa cultura se deve a essa capacidade de luta do negro brasileiro.

Arany Santana: Eu queria chegar até lá.

Alba Zaluar: [João] José Reis [historiador e pesquisador na Universidade Federal da Bahia], que você deve conhecer...

Arany Santana: Grande pesquisador...

Alba Zaluar: ... fez um belíssimo livro sobre isso.

Arany Santana: A revolta dos malês, grande pesquisador.

Alba Zaluar: É sobre uma revolta nos campos da Bahia, que resultou no direito de exercer os seus rituais, os seus cultos dos ancestrais, etc e tal, e manter nesses rituais o uso dos instrumentos de percussão. Isso foi proibido aos negros americanos em meados do século XVIII. Os negros americanos foram proibidos de bater, eles não podiam batucar. Pouco se diz. Quem diz isso é o Eric Hobsbawn, num livro sobre a história social do jazz. Eu acho essa diferença fundamental, nós temos que pensar sempre nela além de todas as outras a respeito da miscigenação que depois nós, tenho certeza, vamos abordar.

Paulo Markun: Eu só queria que a gente ouvisse a resposta da Arany, por favor.

Arany Santana: Eu queria chegar até ao palco da cidade do Salvador porque ela tem uma peculiaridade, uma especificidade. Salvador sempre foi um palco de insurreições – como você chegou à Revolta dos Malês, a Revolta dos Búzios, que nós não chamamos de [Revolta dos] Alfaiates porque para nós foi muito mais significativo. O número de alfaiates era irrisório. Foi muito mais significativo para nós que estamos agora recontando a história em Salvador, os búzios, porque os búzios eram a senha dos revoltosos entre eles. Eles usavam uma argolinha de búzios, um anel e uma pulseira. Isso foi fruto de uma tese de mestrado de uma pessoa de Salvador, e nós nos apropriamos e achamos interessante intitulá-la de Revolta dos Búzios. Salvador foi palco de muitos levantes, muitas insurreições, e essa história nunca foi veiculada para a sociedade. A historiografia oficial sempre distorceu a nossa verdadeira história. Quem contou e recontou essa história, quem tem contado ao longo desses trinta anos foram os blocos afros, movimentos esses dos quais eu faço parte desde o início. O que eu quero deixar claro é isto: que esse saber, que esse conhecimento ficou restrito a um grupo muito pequeno.

Alba Zaluar: E as escolas de samba do Rio de Janeiro, e o jongo [dança afro-brasileira surgida na Baixada Fluminense, da mesma origem que o batuque, ambos ancestrais do samba e do pagode]?

Arany Santana: Bom, a escola de samba do Rio de Janeiro é outra história. Nós contamos a história de resistência do nosso povo, dos quilombos, mas isso nós fazemos há trinta anos e não fica somente no Carnaval. A história que contamos no Carnaval, nós desdobramos ao longo do ano, transformamos em cadernos de educação e trabalhamos com os alunos. E não estando satisfeitos, invadimos a partir de 1996 as escolas públicas do entorno da nossa associação. Isso aconteceu com o Ilê Aiyê, aconteceu com o Olodum, com o Malê Debalê [bloco afro de carnaval, fundado em 23 de março de 1979 por um grupo de moradores de Itapuã que tinham o desejo de ajudar a população carente local e levar seu bairro a participar do Carnaval de Salvador (Bahia)] em Itapuã. Nós resolvemos invadir as escolas levando esse nosso conhecimento dessa historiografia que nós estávamos a descobrir, a escrever e a reescrever, a fim de que forçássemos a barra do sistema público a aceitar essa história que era a nossa verdadeira história. E foi assim que as escolas públicas começaram a se apropriar desse saber e a quebrar esse preconceito de que a cultura que o menino praticava lá fora da sala de aula, da escola, a cultura do tambor, do samba, da dança e da estética era uma cultura que podia adentrar a sala de aula. Então as coisas na Bahia não são tão fáceis assim. Foi difícil para o sistema entender e compreender. Isso é fruto de uma luta de trinta anos. A cidade de Salvador ter hoje uma Secretaria Municipal da Reparação é fruto de uma luta muito antiga que a gente pode se reportar até ao século XVII, XVIII e XIX, então não é uma coisa que foi caída do céu. Fruto de uma luta, fruto da nossa organização, da nossa pressão e da sensibilidade de um governante que teve o saque, que compreendeu, que se aproximou da população negra e que criou essa secretaria no dia 18 de dezembro de 2003.

Paulo Markun: Arany, tenho várias perguntas do telespectador. Vou começar por uma do Marco Antonio Pereira, de Sorocaba, São Paulo, que é o que se diria curta e grossa: porque o negro baiano somente elege governantes brancos?

Arany Santana: [risos] Meu Deus do céu! Acontece, Marco Antonio, que a realidade de Salvador não é diferente do seu estado nem do Brasil. A partir do momento em que houver uma consciência maior da nossa população negra, a partir do momento em que forem oportunizadas chances de candidatos negros se firmarem na sociedade, nós teremos muitos candidatos negros. Ocorre até que temos candidatos, vereadores negros, até mesmo deputados, que são muito poucos. Mas a nós não interessa candidatos negros ou até mesmo vereadores e deputados negros que não estejam comprometidos com a nossa causa, que sejam brancos culturalmente falando. Então candidatos negros para nós não é somente o tom ou matiz da pele, é um candidato negro comprometido com as questões que afligem a nossa comunidade. Mas muito em breve decerto, teremos candidatos negros comprometidos na nossa cidade. Quem sabe talvez muito em breve.      

Michael Haradom: Caríssima secretária, o povo judeu do qual eu faço parte recebeu reparações, é claro que econômicas, por causa do Holocausto na Segunda Guerra Mundial. Particularmente eu acredito que o critério deve valer também para os afro-descendentes. É claro que muita gente se pergunta de onde é que vai sair tanto dinheiro para tanta gente que sofreu todas essas injustiças. Eu queria lhe perguntar o que a senhora acha, como que poderíamos iniciar e começar na prática essa reparação financeira. [reparação para vítimas do nazismo]  

Arany Santana: Acho muito difícil essa reparação financeira. Foi um contingente muito grande, foram quatro milhões dos nossos ancestrais que aqui chegaram na condição de escravos. Eu acredito que hoje, sem nenhum discurso de mágoa, não tenho, não temos mágoa, isso só faz nos atrasar na nossa luta, na nossa caminhada. Este é o momento de inclusão. Mas nós podemos fazer esse ressarcimento, oportunizando a essa população acesso a uma boa escola, acesso à educação que, a meu ver, é a via mais importante da inclusão, porque é a partir daí que o indivíduo pode deslanchar, ter acesso ao mercado de trabalho, ter uma boa saúde, ter habitação. É impossível, depois de tantos séculos, o governo... quem faria esse ressarcimento? O momento do tráfego negreiro, da colonização, da exploração, da devassa que a Europa fez no continente africano e americano, foi um momento político, econômico, social que passou. Ele passou, deixou seqüelas marcantes. Existem seqüelas que ficaram na nossa população muito difíceis de serem sanadas, que foram seqüelas de ordem psicológica. Existe alguma importância em dinheiro que possa vir a elevar a estima de um indivíduo? Existe algum pagamento que possa vir a curar essas pessoas de personalidades deformadas, de seqüelas profundas? O dinheiro não é tudo neste momento. Eu acredito que este é o momento de todos os segmentos da sociedade, iniciativa privada, governo – porque ele sozinho não pode fazer – todos os organismos avançados, todos os que discursam tanto teoricamente por um Brasil justo e igual, dêem as mãos e compreendam que é o momento de reparar não somente os negros, os pobres, e tentarmos dar uma virada e construir um país mais igual e mais justo. Isso cabe para todas as cores e matizes, é a compreensão que a sociedade deve ter: não cabe mais um país tão desigual quanto o nosso.    

Michael Haradom: Eu gostaria só de colocar uma coisa também breve. Existem muitos questionamentos sobre o sistema de cotas no ensino superior. Eu particularmente sou a favor do sistema de cotas, mas eu pergunto: a senhora não acha que nós deveríamos começar muito antes, bem antes, no jardim de infância? Realmente na educação infantil, seja ela privada ou pública?  

Arany Santana: Acho. No meu município em Salvador já existe esse trabalho. Posso me referir ao município que é o universo onde hoje atuo, apesar de ser professora da rede pública há 29 anos. Mas o município já vem com essa preocupação, devo repetir que já foi fruto de uma pressão dos nossos grupos organizados. O município de Salvador hoje com 3790 professores já começou o processo de reparação nesses últimos quatro anos, está com 88% dos professores já graduados e o restante já está em processo de finalização do curso de graduação. Essa é uma realidade que não era vista em Salvador, como em todos outros municípios, eu não sei se todos os municípios cumpriram a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação] em graduar os seus professores. Então isso está acontecendo em Salvador. Os vice-diretores e diretores da escola estão fazendo uma especialização em gestão. E os nossos alunos já estão entrando na rede municipal, porque até então o governo não assumia a educação infantil pré-escolar porque considerava luxo. Na minha terra pelo menos era assim; a educação infantil sempre esteve nas escolas privadas ou naquelas escolinhas improvisadas de bairros que viravam depósitos de crianças. Então hoje o estado, o município está assumindo a educação infantil, é claro que por uma imposição também do governo federal, mas já compreende isso há algum tempo e vem assumindo a educação infantil. E é lá que nós investimos toda nossa esperança. A educação fundamental, que vai da educação infantil e as séries iniciais, é nesse segmento que nós temos feito parcerias com a prefeitura. Hoje as escolas municipais de Salvador têm 73 parceiros e dentre esses parceiros são Ilê Aiyê, Olodum, Malê Debalê, que têm levado a sua pedagogia da alegria, da cultura, e trabalham com esses meninos desde a estética, para que eles assumam a sua estética negra, usando os seus penteados, tendo a música como veículo de formação. É através da música que se conta a história dos antepassados. A rede pública municipal só conseguiu avançar porque fez parceria com esses segmentos da sociedade. Segmentos esses, populares, e que antes não adentravam a escola e era proibido, [com a visão de que] claro, isso não era cultura, isso era algo menor. E hoje já existe essa aceitação. Educação se compreende que não se faz sozinho, se faz de mãos dadas com diversos segmentos.

Carlos Novaes: Bom, desde que eu estudo os dados sociais do Brasil, aprendi que do meu ponto de vista não há nada mais sério do que a questão racial, do que o problema do negro no Brasil. Seja pela sua importância demográfica, seja pela escandalosa desigualdade, seja pela brutalidade que foi perpetrada contra a população negra, seja pela importância econômica que os negros tiveram ao longo de todo o processo de formação da sociedade e do Estado brasileiro. De modo que quando você vê uma pessoa como a senhora, na posição em que está, o que sempre me preocupa é saber o seguinte: a senhora tem um cargo político, foi indicada politicamente num estado que é controlado por uma fortíssima e sólida oligarquia. Eu gostaria de saber o quanto – mudando um pouco de assunto – quais são os pontos que a senhora entende que são os principais obstáculos para alguém como a senhora, que representa o movimento negro, que representa a população negra num estado e numa cidade de amplíssima maioria negra, e que, no entanto, não tem o controle político, não tem o poder político nem econômico, quais são as dificuldades que a senhora vê como centrais para desempenhar o seu trabalho? E o quanto a senhora avalia que há de tentativa de cooptação quando as oligarquias se voltam para as lideranças negras na tentativa de perpetuar o seu poder, de se viabilizar? E o quanto é difícil ou não driblar isso, mantendo autonomia e independência?     

Arany Santana: Gostei do “driblar isso”. Eu me sinto absolutamente à vontade, como secretária municipal hoje, estar secretária municipal hoje, porque todos na minha cidade, inclusive o executivo, sabem da minha história de militância. Todos também sabem que eu não tenho vinculação política com nenhum partido. Não sou ligada a nenhum partido político, o meu partido é o partido da negritude. E entendo que a luta para o combate das desigualdades raciais, a luta por essa inclusão é suprapartidária. Sinto-me absolutamente à vontade. O executivo conhece o meu ponto de vista, todos os políticos de esquerda, de direita, de centro, sei lá o quê, sabem da minha missão, sabem da minha posição, sabem da minha vida. Então eu me senti à vontade até porque essa secretaria não foi uma dádiva caída dos céus, e acho que foi muito importante existir essa secretaria. E acredito também que fui escolhida porque não tenho vinculação partidária e porque sou um quadro interessante dentro do movimento negro, desculpe, mas acho que sou. Acho que foi um acerto muito grande terem me escolhido para ser porque eu tenho seriedade com o que faço, tenho compromisso com a minha população, circulo em qualquer espaço: de direita, de esquerda, ricos, pobres, negros, não negros. Tenho uma circulação livre, tenho minha cabeça livre. Quanto a cooptar, me cooptar, estar à mercê, acho muito difícil a essa altura dos acontecimentos. Eu, aos 52 anos de idade, uma professora de 29 anos de carreira, fundadora de movimento negro; estou com muitos parceiros do próprio movimento, de todos os segmentos da sociedade, porque todos esperavam esse momento. Não existe cooptação, acho que estou muito à vontade, muito segura, porque essa secretaria é algo irreversível, não tem mais retorno. Essa é uma grita da nossa população. E estou muito bem calçada por todos os segmentos, com diversos colaboradores. E acredito que não é essa a intenção de cooptação. Mesmo sabendo que o estado da Bahia e que a cidade [Salvador] é coordenada, comandada por oligarquias e tudo mais, mas o movimento negro está acima de tudo isso na nossa terra. Nós sabemos, ao longo desses trinta anos, que nenhum partido político levantou a bandeira da discriminação racial. Eu sou prova disso porque venho acompanhando e fazendo essa militância há trinta anos, desconheço qual o partido político do meu estado que teve como bandeira a questão da discriminação racial. Então eu continuo muito à vontade porque não me iludo que nenhum partido tomará como bandeira principal o movimento, as nossas questões. O que hoje alguns segmentos progressistas da sociedade, até mesmo o governo federal atual, tem compartilhado, tem se sensibilizado, nós entendemos que essa luta continua sendo uma luta solitária daqueles que fazem o movimento e que acreditam em dias melhores. Nós estamos um pouco cansados do discurso teórico dos segmentos, até mesmo avançados e vanguardistas da sociedade, do discurso de um país igual, igualitário, de um país mais justo, mas não passa do discurso teórico. Essa questão das cotas hoje é a grande indignação da sociedade. É isso que nos assusta sempre. É por isso que a luta nossa é uma luta solitária.       

Marcelo Santos: Secretária, como executivo, eu queria trazer a discussão um pouco para o campo mais prático. Nós temos o projeto Geração 21 [ação afirmativa com 21 jovens negros da cidade de São Paulo, que atua na promoção de atividades que desenvolvam talentos, o aprendizado de tecnologia, de outras línguas e linguagens, de freqüência a eventos culturais e conhecimentos sobre a história dos povos afro-brasileiros e africanos], com o apoio do Geledés [organização política de mulheres negras, criada em 30 de abril de 1988, que visa combater o racismo e o sexismo, valorizar e promover as mulheres negras em particular e a comunidade negra em geral] e da Fundação Palmares [entidade pública brasileira ligada ao Ministério da Cultura, cuja missão é reforçar a cidadania, a identidade, a ação e a memória dos grupos étnicos formadores da sociedade brasileira, além de fomentar o direito de acesso à cultura e à ação do Estado na preservação das manifestações afro-brasileiras], e a senhora, no início do programa, falou que dá oportunidade. Agora a senhora tem uma grande oportunidade. Na prática, de forma bem objetiva, o que uma secretaria como essa pode ajudar num segmento importante da sociedade, não só o governo que participa desse esforço, mas as empresas? De forma prática, existe um plano estratégico, existem pessoas habilitadas? A senhora acabou de falar também que tem muita dialética, mas a prática é... Como é que na prática essa secretaria, como um ramo importante da sociedade, vai poder ajudar o movimento negro a concretizar o objetivo a que se propõe?

Arany Santana: Bem, na área da inclusão econômica, por exemplo, nós vamos fazer parcerias, contratos, temos alguns projetos já encaminhados. Mas eu vou dar um exemplo da nossa articulação. Essa é uma secretaria que foi criada com a finalidade de traçar políticas e diretrizes voltadas para essa população, a população afro-descendente, com ênfase na inclusão econômica, mas em parceria com as diversas secretarias. Mas na prática, como você diz, o que nós pretendemos fazer? Existe uma exclusão, existe um desemprego muito grande em todo o Brasil. Há uma grita muito grande dos jovens, dos jovens que não entram na universidade e que logo cedo precisam trabalhar. Existe um jovem que está na escola, no ensino fundamental, e um jovem que concluiu o ensino médio e não conseguiu adentrar a universidade nem tem emprego. Esse jovem é quem mais tem buscado essa inclusão econômica. Nós temos a preocupação do lado da educação, mas como a professora Zaluar disse, nem todos têm a vocação para ir à universidade, ele quer trabalhar. O que fazer? A nossa secretaria está preocupada em traçar políticas de inclusão. Um exemplo prático do que nós já estamos fazendo. Os alunos da escola pública, a demanda de jovens que não têm emprego na cidade... Para mim foi um momento histórico em Salvador, o Movimento Negro, a Secretaria da Reparação sentarem com empresários de quatro grandes firmas de call centers, que totalizam 12.500 empregos. Movimento Negro, Secretaria da Reparação sentarem na frente de quatro empresários para negociar vagas para alunos de escola pública. Eu acho que foi um momento muito importante para nós. Por que nós pudemos, desta feita, falar com os empresários? Em outros tempos não teríamos essa oportunidade, mas a minha fala já é uma fala de governo. Então o encontro, o compromisso já é de mais seriedade. Até porque nós, Secretaria de Reparação, como governo, sabemos que essas empresas tiveram isenções nos impostos, e agora nós podemos ir lá buscar nossa contrapartida. Mas sem chocar, sem falar de cotas, porque é algo que realmente choca as pessoas neste momento neste país, mas atentando para esses empresários, trabalhando a sensibilidade deles, a fim de que eles absorvam nas suas empresas, jovens da escola pública de Salvador. Assim sendo, eles estariam ajudando o desenvolvimento da cidade e inclusive absorvendo nas suas empresas pessoas que têm a cor, o tom e o ritmo da cidade de Salvador, visto que nós somos 86% de população negra ou mestiça. Então, na prática nós já fizemos uma primeira negociação e pretendemos traçar políticas a fim de que sejam absorvidos a partir de concursos públicos existentes, de empresas, porque estão chegando muitas empresas em Salvador. A partir inclusive de descobrir vocações na comunidade negra para fazermos empreendedores, para que essas pessoas também não pensem que todos vão ter emprego de carteira assinada. É um momento em que as pessoas podem descobrir suas vocações e ter uma renda para sobreviver. É essa a nossa preocupação, mas nosso foco de atenção ainda está preso à educação também. São muitas frentes, vocês não imaginam quantas demandas têm chegado à secretaria. Desde casos de violência, casos que afligem a população, e nós não temos estrutura, mas tudo deságua por lá. Tivemos que interferir até mesmo no Carnaval.

Marcelo Santos: Rapidamente, qual que é a estrutura da secretaria, só para gente entender?

Arany Santana: Bom, a estrutura da secretaria é formada por órgão colegiado, que é o Conselho das Comunidades Negras. Ela tem o secretário, o subsecretário, uma estrutura de assessoria técnica, três assessores técnicos; tem as coordenações, a coordenação administrativa, tem um gestor de núcleo. E essas coordenações, que são as rodas da secretaria, a coordenação de ações para reparação se desdobra em duas subcoordenações: coordenação de promoção empresarial – que se desdobra em duas coordenações – e coordenação de relação institucional – que também se desdobra. Estamos montando aos poucos porque não queremos inchar. Então a partir das demandas, nós vamos crescendo a nossa secretaria que ainda vai fazer três meses.

Flávia Oliveira: Secretária, eu queria voltar um pouquinho. A senhora já falou mais de uma vez na questão das cotas, que é um debate que choca, e eu queria voltar a esse ponto. Choca por quê? Porque o Brasil, nós já temos, por exemplo, cotas para pessoas portadoras de deficiência, não é? Nos concursos públicos, teoricamente nas empresas privadas, enfim, choca a discussão de cotas para negros, por que choca? [cotas raciais]

Arany Santana: Bem, eu acho que há uma irresponsabilidade muito grande no tratamento das cotas. Eu acredito muito que esta rede de televisão possa vir a promover um amplo debate sobre essa questão. Para se entender as cotas é preciso que se faça uma retrospectiva histórica, a fim de que a população tenha esse entendimento melhor, e compreenda o porquê das cotas. O sistema de cotas é apenas uma das opções de ação afirmativa, uma apenas. Ele se faz necessário neste exato momento porque existe uma demanda reprimida que precisa entrar, porque entre a escola pública e a escola privada existe um abismo muito grande. Essa demanda reprimida que está aí jamais terá chance de entrar na universidade, se não houver, se não for adotada essa ação afirmativa. Mas não que ela seja a solução do problema. O problema é muito mais estrutural, é muito mais de base. Existem cotas para idosos, existem cotas ou ações afirmativas para deficientes, existem nos partidos políticos, a mulher tem prioridade. Por que todo esse estardalhaço nas cotas para se adentrar a universidade? Então a gente percebe que isso está muito... porque está tirando o privilégio de alguém. É preciso que a sociedade comece a digerir isso, e nós, inclusive, termos a responsabilidade de tratar essa questão de forma mais responsável. Eu tenho alunos, eu tive alunos, eu estou secretária, mas eu sou professora, que são terminantemente contra as cotas. Alunos afro-descendentes, e alunos também não negros, que são pobres e que estão na escola pública e que são meus alunos. Eles são contra porque existe um propósito, um firme propósito de distorcer essa ação afirmativa que deu certo em vários lugares, e que decerto dará certo aqui. Mas eu, como... nós, como Secretaria da Reparação, estamos muito mais preocupados com a melhoria da qualidade do ensino. Como educadora, é essa a minha fala, mas eu não descarto as cotas, elas precisam ser discutidas. Cada estado, cada universidade aplica à sua maneira, mas tem obrigação e a responsabilidade de abrir esse debate, esclarecendo melhor principalmente a população que precisa ser beneficiada e que atualmente está com a cabeça inclusive contra, terminantemente contra, achando que as cotas são uma forma de minimizá-lo cada vez mais, de inferiorizá-lo, porque ele não teria competência para adentrar a universidade, não fosse via cotas, e não é nada disso.

Paulo Markun: Secretária, Luiz Bianchi, de São Carlos, em São Paulo, desempregado, diz o seguinte: “Professora Arany, sou branco, pobre e pai de quatro filhos.  Os meus filhos não têm direito às universidades, sendo que os negros possuem 40% das vagas. Seria justo 40% para os pobres, independente da cor? A senhora não acha que isso é preconceito?”. E José Roque Carvalho, de Salvador, na Bahia, pergunta: “Por que a senhora não luta pela vaga de 50% nas universidades públicas para alunos oriundos da rede pública e 50% para alunos da rede particular?

Alba Zaluar: Eu ia lhe fazer a mesma pergunta. Se você acha que essa reserva de vagas para a escola pública não cobriria o problema da pobreza de um modo geral com todas as desigualdades presentes entre as raças nessa desigualdade?

Arany Santana: É certo que quando se definem as cotas para alunos oriundos da escola pública, lá no meio existem alguns alunos não negros, mas que estão na mesma condição. 

Paulo Markun: Dependendo da região, muitos. Em Santa Catarina, a grande maioria; no Rio Grande do Sul, também. Em Salvador certamente a grande maioria é de negros; mas no Rio Grande do Sul ou em Santa Catarina... Santa Catarina tem setecentos mil afro-descendentes, mas lá os estudantes pobres não entram nas escolas, não há lá política nenhuma de cotas, nem para negros e muito menos para rede pública. Só para registrar que o Brasil tem essas realidades distintas, não é? 

Arany Santana: Exatamente, mas quando se trata de Salvador, com uma população negra de 86%, para mim que estou na sala de aula, que sempre estive há 29 anos, é gritante, são 99% de negros, e o percentual que sobra é muito pequeno e insignificante para qualquer tipo de... não é de reclamação, eles irão no bojo. Porém cada estado, cada município tem suas especificidades. Eu posso falar pela realidade da minha cidade, que é a segunda cidade mais negra do mundo depois de Lagos, na Nigéria. Salvador tem especificidades. O sistema de cotas em Salvador tem que levar também as suas especificidades, muito embora não seja a demanda da nossa secretaria. Os organismos lá já estão dando conta dessa questão. A nossa preocupação, como secretaria, é pela educação de qualidade, é pela inclusão pela educação, é pela inclusão pela via do emprego, da geração de renda, do trabalho; é pela saúde que passa também pela educação, é pela boa habitação que passa também pela educação. Então, nós nos articulamos para a melhoria, para a inclusão na sociedade desse segmento, principalmente com o peso maior pela via da educação. Existem outros órgãos que dão conta das cotas nas universidades, e nem mesmo o Movimento Negro de Salvador está preocupado com as cotas, ele está preocupado com problemas mais estruturais, com a base do problema.

Viviane Kulczynski: Eu queria lhe perguntar se isso não passa por um Estatuto da Igualdade Racial que tem sido debatido pela ministra Matilde Ribeiro. Ela disse que o Estatuto da Igualdade Racial provavelmente ainda não saiu porque o Congresso tem 3% de negros na sua formação, e isso estaria impedindo... não impedindo, mas levando a uma lentidão na aprovação desse estatuto. O que o estatuto poderia ajudar exatamente nisso, nessa fundamentação, nesses direitos todos que envolvem educação, saúde, habitação?

Carlos Novaes: E o que é o estatuto? Acho que seria bom a senhora também explicar um pouco o que é o Estatuto da Igualdade Racial?  

Arany Santana: O Estatuto da Igualdade Racial está causando uma polêmica muito grande porque ele prevê um fundo e esse fundo é a grande questão. Eu estive no mês de janeiro com o senador Paulo Paim [(PT-RS), autor do projeto de lei que cria o Estatuto], e ele estava discutindo sobre essa questão. Eu fui me apresentar a ele, falando acerca da secretaria e perguntei a ele sobre o destino do Estatuto da Igualdade. Acho muito difícil que ele seja aprovado. Não é somente pela ausência de parlamentares negros, não é somente por isso; é porque o estatuto é uma ameaça muito grande para a nossa sociedade...

Carlos Novaes: Por quê? O que ele é?

Arany Santana: O estatuto tira muitos privilégios, ele vai ferir aqueles que são contra essas políticas de inclusão... 

Carlos Novaes: Mas o que ele diz exatamente? Seria bom a senhora explicar um pouco qual é o... O que esse estatuto prevê e por que ele é tão polêmico e há tantas dificuldades de vê-lo aprovado?   

Arany Santana: É polêmico porque ele prevê um fundo e é esse fundo que cria toda essa polêmica.

Carlos Novaes: O que é esse fundo?

Arany Santana: Esse fundo vai beneficiar, esse fundo vai ser dirigido para a área da saúde, para a área da educação, vai beneficiar naturalmente políticas mais agressivas, mais profundas que venham a desenvolver essa população mais rapidamente sem ficar à espera de governos. Esse fundo tem criado muita polêmica, e eu não acredito que ele seja aprovado, não somente pela ausência dos parlamentares negros.

Viviane Kulczynski: Mas não é um contra-senso, por exemplo, a gente entregar um relatório à ONU [Organização das Nações Unidas] com anos de atraso, e ver uma cobrança externa na falta de políticas públicas? Por que não aprovar logo um estatuto?

Arany Santana: Bom, isso não depende... isso não é tão simples, não é? Eu acho que eles talvez pudessem explicar melhor essa situação. Eu sinceramente prefiro não emitir opiniões em relação ao estatuto, porque para nós tem sido uma espinha atravessada na garganta. Eu vi a primeira versão do estatuto. À essa segunda versão eu não tive acesso ainda. Há muitos anos que Paulo Paim vem fazendo esse estatuto e vem reformulando ao longo do tempo por conta dessas pressões. Eu não tive acesso às últimas versões, só sei dizer que tem um deputado que é baiano, que é ligado à igreja, inclusive à Igreja Universal, que é uma das pessoas que mais têm apoiado o estatuto e que foi seu relator, mas eu ainda não me aprofundei em relação a esse estatuto.     

Alba Zaluar: Arany, você falou em tratar essa questão, a ação afirmativa das cotas, com responsabilidade. Eu gostei muito disso. Eu queria que você aprofundasse um pouco essa sua reflexão sobre o que é tratar essa questão com responsabilidade. Primeiro lugar: temos o problema da composição racial brasileira, que é extremamente miscigenada, que é complicada de separar simplesmente entre brancos e não brancos, negros e não negros, não é? Eu vinha até com uma blusinha listrada de branco e negro e acabei desistindo da idéia. Para a maior parte dos intelectuais brasileiros que pensaram essa questão, está muito claro que no Brasil existe essa dificuldade básica, não só no Brasil, mas em toda a América Latina. Tanto é que nos Estados Unidos essa dificuldade aparece na classificação racial dos que migram, dos que vão da América Latina para os Estados Unidos e que não são classificados nem como brancos, nem como negros, são classificados como latinos hispânicos, e os brasileiros acompanham essa classificação. Bom, então nós temos aí um problema: negros e pardos. Vocês, no movimento negro, estão juntando negros e pardos, como se os pardos não fossem também descendentes dos indígenas brasileiros, eles são. É o que o nosso Darcy Ribeiro [escritor, antropólogo, pedagogo e político, um dos mais importantes intelectuais brasileiros. Ver entrevista com Darcy Ribeiro em www.rodaviva.fapesp.br] chamava raça cósmica, a mistura das três raças. Meus filhos são a mistura das três raças, a maior parte dos meus amigos também, no Rio de Janeiro. Então eu fico muito preocupada, porque há uma tendência, na hora de estabelecer as cotas, de juntar negros e pardos. E na hora de verificar quem realmente é negro, aí eliminar aqueles que parecem brancos, mas que podem ter uma ascendência ou indígena – que não pode ser excluída também – ou africana, mas que não é só africana, é africana, é portuguesa, italiana, é francesa, é judaica, é árabe e é indígena, é tudo, não é? Essa é uma questão. E a outra questão que também é muito importante quanto a tratar isso com seriedade é que a educação... nós também sabemos, vários colegas meus, economistas que estudam o problema da desigualdade social no Brasil – Marcelo Neri [economista e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas], Simon Schwartzman [sociólogo, é ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pesquisador no Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade no Rio de Janeiro] etc –  chamam atenção para o fato de que educação, só, não vai resolver. Nós temos que fornecer a essas pessoas, ativos, com os quais elas sejam capazes também de transformar a sua vida, como o microcrédito, o direito de propriedade, que nas favelas, por exemplo, não existe. Há todo um movimento no Rio de Janeiro, hoje, pela favela-bairro, de transformar essa situação no governo César Maia [era prefeito do Rio de Janeiro em 2004]. Eles estão avançando muito nesse sentido. E eu queria saber se a sua secretaria está pensando também nessas coisas que eles...    

Arany Santana: Está sim, até porque ela está ligada a uma secretaria de desenvolvimento econômico que já faz esse trabalho, e essas ações estão passando para a nossa secretaria. Mas é claro que nós vamos... Para fazer essa inclusão, essa reparação, nós temos diversas pernas, mas nós estamos apenas começando. Então há uma aflição muito grande, inclusive de você que me pergunta, e da própria população, de perguntar: “e isso, e a inclusão econômica, e emprego, e a saúde, e a educação, e o plano de saúde?”. São muitas demandas. Realmente é como se essa secretaria fosse solucionar os problemas da população. Ela sozinha não soluciona absolutamente nada. Ela é um veículo de articulação, é um veículo de formular políticas; ela vai estar buscando as oportunidades, se articulando, fazendo os contatos, estabelecendo convênios, coordenando, fiscalizando, fazendo cumprir. Então, articulação é o verbo forte dessa secretaria, ao mesmo tempo em que ela também irá promover essas políticas de inclusão pela via do microcrédito e tal. São muitos os projetos. Agora essa questão que você levantou da cor, da raça, isso é muito complexo e você sabe disso. É uma tremenda confusão que começa pelo IBGE. E existe uma forma muito brasileira de não falar de raça e sim de tom, apesar de que raça é ideológico, eu sei muito bem disso.

Alba Zaluar: É um conceito do século XIX que a biologia moderna diz que não tem o menor fundamento.    

Arany Santana: Não tem o menor fundamento, mas nós estamos impregnados dela. Então nós não falamos em raça, nós falamos em tom e matiz de pele. Então o tom, o matiz da pele não é indicativo de coisíssima nenhuma, nós sabemos muito bem disso. Mas no momento em que você tem a epiderme mais escura e o outro tem basicamente a mesma origem, com a epiderme um pouco mais clara, este tem muito mais oportunidade, porque eu fui vítima disso. E isso nós vemos no dia-a-dia. É óbvio porque as pessoas só vêem o que a vista alcança, é o tom e o matiz da pele. Então você é excluído também pelo seu tom de pele. Como discernir, como...

Alba Zaluar: [interrompendo] Excluído de onde Arany, eu fico muito preocupada, excluído de onde? Onde você é excluída? No cinema, no hospital público, na entrada da escola pública? É no emprego ou é na polícia, o tratamento na polícia, no sistema de justiça brasileiro? Onde é que o negro é mais...

Arany Santana: Você citou vários.

Alba Zaluar: Eu sei, eu citei vários propositalmente, eu queria que você fizesse uma gradação. Onde o negro é mais excluído, é mais discriminado no Brasil?

Arany Santana: A cor da pele dele é o crime que ele carrega. Para ser incluído no emprego...

Alba Zaluar: Emprego?

Arany Santana: Emprego, sim. É o tal emprego da boa aparência. A projeção dele no emprego também depende do tom e do matiz da sua pele. A polícia o confunde também, claro. A mulher... eu, como mulher, sou um testemunho disso, sobre a mulher e negra. A discriminação é uma overdose, ela é dupla. Então para mim, aos 52 anos de idade, tenho muitas histórias para contar. Eu hoje, como secretária, sou uma exceção. Hoje eu posso não ser mais discriminada porque estou secretária, mas a mulher igualzinha a mim, da minha idade, que mora lá no [...], continua sendo discriminada, continua não sendo admitida para ser recepcionista ou para trabalhar no shopping...

Paulo Markun: Mas não seria o caso, secretária, de – desculpe interromper – de a gente lutar para que a lei Afonso Arinos [a Lei 1390/51, de autoria do deputado de mesmo nome,  estabeleceu a proibição da discriminação racial no Brasil, sendo esta punida nas formas da lei] fosse exercida. Eu vou citar uma história que aconteceu em que eu participei como observador. Em 1980, no Rio de Janeiro, a jornalista Glória Maria, que hoje trabalha na TV Globo, foi proibida de entrar num hotel, foi posta para fora de um hotel onde ela ia encontrar um sujeito que era branco e europeu. E eu participei como repórter, sem que as pessoas que estavam lá soubessem que eu era jornalista, como se eu fosse advogado dela, de uma conversa com a direção desse hotel, uma grande rede multinacional, em que todas as ofertas e todas as chantagens foram feitas para que ela não seguisse adiante e não entrasse com a denúncia na polícia de discriminação racial. Não seria o caso do Movimento Negro e da própria Secretaria da Reparação lutar para que essa lei fosse cumprida? Porque ela é descumprida 24 horas por dia no Brasil. E quem é jornalista, por exemplo, eu digo jornalista porque a gente observa as coisas e acompanha a ação da polícia. Ela é descumprida de tal maneira que se reflete nas estatísticas de morte, quer dizer, a população negra jovem está sendo dizimada pela ação da polícia, porque negro jovem na favela é traficante. Esse é o sinônimo. Não seria o caso de bater firme nessa tecla?

Arany Santana: Também. São tantas teclas a serem batidas. Só vou fazer uma retificação. A Afonso Arinos cai a partir do momento em que surge a lei Caó [Lei n.º 7.716, de 5 de janeiro de 1989, proposta pelo Carlos Bezerra (PMDB/MT), que tornou o racismo crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei], que é de 1988, não é verdade?

[Sobreposição de vozes]

Alba Zaluar: Transforma o racismo em crime inafiançável.

Arany Santana: É crime inafiançável. E uma das atribuições, uma das finalidades também, um dos objetivos dessa secretaria é fazer cumprir certas leis. Mas no nosso país as leis foram feitas para não serem cumpridas. Infelizmente essa é uma verdade. Todos os dias as pessoas são discriminadas em diversos espaços deste país. Em Salvador existe um grupo de advogados afro-descendentes, em Salvador também formou-se um grupo; fizeram uma especialização, uma pós-graduação em cima do Artigo 5 da Constituição, voltado para as questões da afro-descendência. Nós já temos advogados preparados para essa questão. O que ocorre é que esses processos não vão adiante, o que ocorre é um descaso ainda acerca da discriminação e do preconceito. A sociedade ainda vê isso como algo insignificante porque a discriminação não é algo que fere a sua pele, nem que arranca, nem que lhe mata naquele momento. Mas a morte moral de quem é discriminado é muito maior. O que aconteceu com o dentista [Flávio Ferreira Sant’Anna, negro, 28 anos, foi executado a tiros por policiais, sem chance de defesa, em fevereiro de 2004, na zona norte da cidade de São Paulo, ao ser confundido com um ladrão que havia roubado um comerciante], além de o terem assassinado , é que começaram a assassiná-lo moralmente. Isso ocorre todos os dias. O [caso] do dentista teve visibilidade porque ele era filho de um militar, mas no dia-a-dia morrem muitas pessoas, jovens e crianças, em todas as partes do Brasil. E é preciso que se tome uma atitude mais agressiva em relação a isso. Eu penso muito, nós pensamos muito em fazer um trabalho de formação de policiais; eles desconhecem a sua própria história, porque eles são oriundos de um currículo branco como vocês são e eu também. Nós não temos acesso, não tivemos acesso a muitos conhecimentos acerca da história da gente, da nossa ancestralidade. Eu acredito que um trabalho também de educação com essas pessoas e reciclagem com o policial seria muito importante para que ele visse o seu semelhante como um igual e que tem uma história semelhante à dele. Por isso que eu defendo tanto a questão da educação, do acesso ao conhecimento histórico.

Paulo Markun: Secretária, tem aqui a pergunta de Hélio Souza da Silva, tecnólogo eletrônico, aqui de São Paulo, que diz o seguinte: “Como é que a senhora vê a novela que sugere “preta da cor do pecado?”. [refere-se à novela Da cor do pecado que teve a atriz Taís Araújo como a primeira protagonista negra na Rede Globo e Giovanna Antonelli, atriz branca, como a antagonista da trama, a vilã]

[risos]

Flávia Oliveira: Deixe-me complementar, porque eu queria lhe perguntar justamente sobre essa questão das mulheres negras. Estamos nós aqui na base dessa pirâmide de desigualdade: são as que têm as maiores taxas de desemprego, são as que invariavelmente iniciam a vida profissional como domésticas, têm menores salários, enfim, enfrentam toda a sorte de preconceitos. Então só pegando carona aí na pergunta da Preta [referindo-se à novela citada], como vivem as pretas? 

Viviane Kulczynski: Ainda pegando carona, lembrando que na ficção também, isso  começou com a Camila Pitanga [atriz negra], acho que na última novela [Belíssima, exibida de 2005 a 2006 pela Rede Globo], sendo uma médica, e agora você tem uma protagonista, mas com esse "da cor do pecado". 

Arany Santana: É um retrocesso terrível, a essa altura dos acontecimentos parece brincadeira. Mas nós, mulheres negras, temos a mesma história. Temos origem humilde, a mulher que consegue ascender teve o mesmo passado. Acredito que você, como mulher negra, Flávia, teve também uma trajetória difícil, de escolaridade. Mas ainda somos oriundas de escola pública na época em que a escola pública era de qualidade. A minha trajetória também não foi diferente da de ninguém. Uma família numerosa de sete filhos, um pai marceneiro, uma mãe doméstica, uma cidade do interior da Bahia, uma cidade extremamente racista, em que na prática de famílias numerosas e negras, o nosso destino seria trabalhar no armazém de café ou trabalhar na cozinha da população, das pessoas brancas, donas de fazendas de gado. Mas o meu pai teve o saque de que ele não queria que nosso futuro fosse igual ao dele, a minha mãe também. E viemos para Salvador. Isso foi depois da Revolução de 64, que meu pai já militava um pouco e meu irmão também. Então ele teve a tenda dele devassada pelo movimento, pelo golpe de 64, porque lá era espaço de encontro de políticos daquela região. E dentre esses políticos, estava Waldir Pires, que era nosso conterrâneo e vizinho. Ele tinha um sonho de pegar aqueles profissionais – meu pai que era um grande marceneiro, o vizinho que era um grande ourives, o outro que era carpinteiro, o outro que era pedreiro – juntar esses profissionais e mandar para São Paulo, para tomar um curso, para ensinar a arte e o ofício aos meninos da nossa cidade. Isso em 1963, 1964, mas veio o golpe militar, e meu pai também foi perseguido e todo esse sonho caiu por terra. A partir daí nós resolvemos migrar para Salvador. Eram cinco mulheres, negras – é claro – e dois homens. E foi muito difícil para nós, que queríamos estudar, ocupar um espaço naquela cidade que era bem maior. Então eu comecei a ser discriminada desde os 14 anos de idade e eu aprendi também a me defender das discriminações e dar a volta por cima. E a coisa mais importante que aconteceu na minha vida foi estudar. E a grande academia, depois da academia de fato, foi a academia do bloco afro. Foi lá, em contato com o terreiro, que eu aprendi muito da minha história que até então eu não conhecia porque não havia sido veiculada pelo livro didático. Com as mães de santo dos terreiros, com a tradição oral, com os casos que eram contados, foi a partir dali que eu comecei a utilizar o instrumental que a universidade, a academia me deu para escrever os temas do bloco, para transformar isso em conteúdo, para transformar isso em caderno de educação e levar um pouco dessa história para as escolas do entorno da liberdade. E foi assim que nós invadimos a escola, levando essa cultura, levando essa história. Isso para mim foi muito importante, mas enquanto isso, me firmar no mercado de trabalho, eu só consegui entrar na universidade pela via da educação mesmo. Fiz um curso de letras e fui ensinar em escola pública porque era lá que estava a minha população, trabalhando com a educação de jovens e adultos. Então passei pelas dificuldades que eles passaram também. Eu sempre estudei à noite e trabalhei durante o dia para sustentar os meus estudos. Então se para o homem negro, a situação é difícil, para a mulher negra, muito mais, porque ela sempre foi vista como objeto, como cidadão de quinta categoria, de segunda categoria. Entre o homem e a mulher negra, a mulher negra ganha muito menos do que o homem negro. E essa novela, para mim, para nós, lá em Salvador, é um retrocesso incrível. Não é algo muito, um despropósito... 

Alba Zaluar: A vilã é branca e loira.

Arany Santana: A vilã é branca e loira, mas no título A cor do pecado, que é escrito nas costas largas de um negro, está subentendido que a cor do pecado é negra. Então a partir do momento em que a protagonista da novela, pela primeira vez, é uma negra, denomina-se a cor do pecado de negra. É extremamente preconceituoso e muito cruel a essa altura dos acontecimentos.

Marcelo Santos: Dentro dessa linha e aproveitando duas perguntas que parecem diferentes, mas elas se complementam, se você perguntar para 99% da população brasileira, ela vai dizer que não é racista, mas ela vai dizer que existe o racismo. Isso estatisticamente não bate. Então eu queria saber como é que a senhora vê o comportamento desse processo. E a segunda pergunta é sobre o sistema de cotas, que é um sistema importante, mas que não é o único. Quais são os outros sistemas que podem vir a contribuir? Porque 45% da população é negra ou parda, e apenas 2% estão nas universidades. Nos Estados Unidos, onde temos 35 anos de ações afirmativas, de trabalhos, nós temos 15% da população americana negra nas universidades. Nós temos 2% aqui. Então a primeira pergunta é um pouco conceitual, a segunda é prática. A primeira tem a ver com o comportamento; e a segunda, quais são as outras formas de poder incluir a população negra dentro das universidades, conseqüentemente ter...

Arany Santana: A pergunta primeira repete.

Marcelo Santos: A primeira pergunta era sobre: se 99% da população diz que não é racista, mas diz que tem racismo, qual o porquê desse comportamento brasileiro? A quem a senhora atribui o racismo?

Paulo Markun: 99% não é racista, mas mente.  

[risos]

Arany Santana: É uma contradição, ele diz que não é racista...

Marcelo Santos: Dá vergonha ser racista, a verdade é essa.

Arany Santana: É. Não é racista, aí ele arranja argumentos: “até mesmo a minha bisavó era negra”, “eu até tenho uma pessoa na minha casa que eu crio desde pequenininha com maior amor e carinho”, “eu até...”. Então são diversos disfarces, isso realmente é a tônica, é a marca brasileira de dizer que não é racista, justificando que até gosta. Um coleguinha do meu filho freqüenta aqui, mas se você for objetivo e disser “sua filha namoraria [um negro]”, basta um rapaz negro se aproximar da filhinha, é uma ameaça. Então esse é um artifício que a nossa população tem, racista. Eles são racistas. Ele diz assim: “eu não sou racista, mas até que existe” [o racismo]. Mas todos nós, na verdade, devemos admitir que temos uma pontinha de racismo porque nós fomos treinados para tal. É uma mácula muito grande, a marca, o pecado de ser negro. Traz o estigma da escravidão, da inferioridade, do que fede, do que cheira mal, do que não pensa, do que não raciocina. Tudo na nossa linguagem, que nós precisamos revisar, atribuído à cor preta ou negra é inferior, é negativo. Então, de sã consciência, quem é que quer ser negro, pelo amor de Deus. Ninguém quer ser, as pessoas buscam estratégias de embranquecimento ou buscam estratégias de dizer que não são racistas, mas existe, na verdade é uma mazela muito profunda que todos nós temos. Nós somos treinados para gostar daquele padrão, existe toda uma mídia, toda uma orquestração para admirarmos e acharmos positivo, certo, bonito aquele padrão.

Michael Haradom: Secretária, eu gostaria de voltar ao assunto de trabalho. Eu dirijo uma empresa química que chama Fersol e dá prioridade à contratação de mulheres afro-descendentes, [pessoas de] terceira idade e deficientes. Essa é uma decisão política da empresa. Entre um homem e uma mulher para o mesmo cargo, a gente escolhe uma mulher. Se ela for afro-descendente ainda melhor. Hoje eu posso disser que nós temos 61% de mulheres dentro da empresa, 38% de afro-descendentes. E aí vem a minha pergunta para ti. A questão de discriminação no mercado de trabalho pode ser corrigida com ações afirmativas voluntárias ou o caminho legal, o caminho da lei é mais eficiente? E se for, como fazer cumprir a lei?

Arany Santana: É, nós temos uma prática de um país que tem uma série de leis que não são cumpridas. Eu prefiro, no seu caso, é um caso muito especial, a sua vontade, algo voluntário. Você compreende, absorve, porque tem compromisso, não é preconceituoso e tem hoje como experiência que essas pessoas são iguais, têm inteligência, produzem bem. Mas existem pessoas que não pensam como você pensa, então é preciso que existam leis mesmo. Nós vivemos num país que precisa ter lei para respeitar criança, respeitar adolescente, lei para respeitar idoso...

Marcelo Santos: Para usar cinto de segurança.

Arany Santana: Cinto de segurança, sanções, penalidades que as pessoas não respeitam. Então a lei é uma ferramenta, é um instrumento para forçar. Mas o que é preciso que exista é outros órgãos ou até a sociedade organizada fiscalizar, fazer cumprir. Talvez em outro planeta exista essa voluntariedade de se absorver. Porque se neste país não existisse tanto racismo, tanto preconceito, não fosse tão desigual, não precisaria criar Secretaria da Reparação, nem a Seppi, nem leis, nem cotas, nem coisa nenhuma. Estamos falando bobagens. Não precisava existir. É muito difícil você ver um jovem, uma pessoa atravessar outro na rua, um ancião, ou levantar-se do ônibus para dar lugar a outro. É preciso que haja leis para que se respeite o idoso.  

Michael Haradom: É um abraço à opção da lei nesse caso, secretária?

Arany Santana: Infelizmente. Infelizmente, mas correndo o risco de tentar fazer cumpri-la, fiscalizar.

Paulo Markun: Secretária, nosso tempo acabou, eu queria fazer uma pergunta final que mereceria um programa inteiro, mas ela é obrigatória. Não existe o risco – e essa pergunta que eu estou fazendo aparece em todos os programas aqui na TV Cultura em que a gente aborda a questão racial – do racismo ao contrário?

Arany Santana: Essa pergunta realmente é clássica. Não existe o risco do racismo ao contrário? Acho que não, não existe o risco do racismo ao contrário. Hoje estamos num novo estágio. Eu sou aqui uma representante do Movimento Negro de Salvador, trinta anos de militância, 25 anos do Movimento Negro político. E lhe garanto que neste momento, nós não temos mais esse ranço, essa mágoa. Queremos soluções, porque eu acredito que este é o momento de buscarmos e caminharmos para a igualdade da raça humana. Esta raça que está perdendo muito das suas características primeiras, de humanidade, de solidariedade, de ética e de irmandade. Então reparar para mim significa união. União de todos os tons e matizes, de todos os segmentos, de todos os partidos, independente de qualquer coisa. Precisamos mudar esta nação e caminhar para a igualdade para minimizar essas distorções.

Paulo Markun: Muito obrigado pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores. E informamos a você, que está em casa, que na próxima segunda-feira nós teremos aqui no centro do Roda Viva, o espanhol, Alberto Navarro, que é chefe da Delegação da Comissão Européia no Brasil. Ele vai participar do programa dez dias antes do aumento de 15 para 25 o número de países que integram a União Européia, e evidentemente poucos dias depois do atentado a bomba em Madri que modificou já a situação da Europa. Uma ótima semana e até segunda.

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