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Memória Roda Viva

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Gilberto Gil

1/3/1999

Músico, cantor e compositor, Gilberto Gil tem também atuação política importante na história do Brasil

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Paulo Markun
: Boa noite! Ele diz que desde de criança, ficava em transe, ficava possuído quando ouvia música. E por ser a música a única coisa que o colocava em transe, ele se transformou em um dos maiores músicos da moderna música popular brasileira. No centro do Roda Viva esta noite, o ganhador do Prêmio Grammy de World Music, o cantor e compositor, Gilberto Passos Gil Moreira.

Comentarista: [Durante todo o comentário, imagens e sons de Gil cantando em diversas épocas e lugares]. Ele nasceu em Salvador, mas se criou em Itauçu, interior da Bahia, onde, aos três anos de idade, já manifestava o desejo de ser músico. Cresceu aos sons de bandas e sanfoneiros, de violeiros e cantadores. Cresceu aos sons das feiras, cenário doce de rapaduras e repentistas, de poesia popular. Foi estudar acordeom e, enquanto estudava administração de empresas, também estudou violão. Era final dos anos 50, com a bossa nova de João Gilberto, influenciando uma nova geração de músicos e compositores. Atraído pelos novos estilos do sul, Gil chegou a São Paulo, trazendo nas mãos um diploma de administrador e um violão. Na fervura dos festivais de música, a carreira de executivo dançou. E o que se seguiu depois, a história da música brasileira terá que reservar capítulos inteiros para contar, em detalhes, o volume e o significado da obra desse "vulcão baiano". Em 93, nos 30 anos da Tropicália, diante de uma multidão de novos jovens, e ao lado do eterno amigo e parceiro, Caetano, Gil, subiu ao palco para relembrar, ou refazer, a versão brasileira do movimento de contra cultura, como ficou definido o Tropicalismo nos anos 60, a revolução do novo. Estava ali uma mostra da mudança radical que a música brasileira experimentou através de centenas de composições, marcadas por harmonia criativa e letras de forte conteúdo humanista. Músicas que abordaram a vida cotidiana com sensibilidade, e se transformaram em crônicas de costumes e de época. Hoje, aos 56 anos de idade, com mais de 60 discos e CDs, o Gil da Tropicália, do exílio na Europa, o Gil político e ambientalista, o músico high tech e acústico, reflexivo e extrovertido, virou uma espécie de estação da cultura brasileira. É ponto de referência, releitura da realidade, a redescoberta do Brasil do baião, do xaxado, do choro de Pixinguinha, do prelúdio baqueano, da rapsódia brasileira.

Paulo Markun: Bem, para entrevistar Gilberto Gil, nós convidamos: Washington Novaes, consultor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo; o compositor e cantor, Tom Zé; Lorena Calábria, apresentadora do programa Metrópolis, da TV Cultura aqui de São Paulo; a jornalista Norma Couri, colaboradora do jornal O Estado de S. Paulo; o jornalista Humberto Werneck, redator-chefe da revista Playboy; o jornalista Luis Antônio Giron, crítico musical da Gazeta Mercantil e o jornalista Wagner Calleri, diretor de redação das revistas Bravo e República. O Roda Viva é transmitido em rede nacional, para todos os estados brasileiros, e também para Brasília. E neste programa, ao vivo, você pode participar pelo telefone, fax ou email. Boa noite, Gil!

Gilberto Gil: Boa Noite!

Paulo Markun: Eu queria começar pelo prêmio que você recebeu, questionando o seguinte: esse prêmio estabeleceu uma categoria, há alguns anos atrás, que é essa categoria da World Music, que é pelo que eu entendi, não sou especialista no assunto, é tudo aquilo que não é música americana, nem música latina. Você acha que essa definição de colocar a música de diversos países, dos mais variados países, nesse escaninho, confere com a realidade?

Gilberto Gil: Não. Eu não creio que confira exatamente com a realidade. Ela tem uma utilidade prática, é, como você falou, criar mais um escaninho, é possibilitar que, digamos assim, um conjunto de manifestações que, de outra forma, não teriam classificação, não estariam disponíveis, nas prateleiras, digamos assim, internacionais, passassem a ter esse conjunto, ter essa classificação.  Eu, até, há uns anos atrás, escrevi para uma publicação americana, chamada Afro-Pop, um artigo que acabou sendo reproduzido aqui pelo Estado de S. Paulo, que se intitulava “A música do mundo é maior que a World Music”. E que queria ter, exatamente sobre esse rótulo, uma visão crítica, em ambos os sentidos. Tudo aquilo que, ao meu ver, faltava com uma abrangência para essa titulação, quer dizer o lado empobrecedor, reducionista, desse título, e colonialista, até um pouco, não é? Mas, ao mesmo tempo, um lado interessante quer dizer, esse lado de complementação, esse lado de reconhecimento, de uma emergência, de toda uma música industrial, não é? De toda uma indústria cultural, ligada à música que surgia na África – e aí eu citava vários representantes, da Nigéria, do Senegal, etc – na América Central, na América do Sul – no Brasil e em outros países – em áreas da Ásia, que não o Japão, enfim, em países, de terceiro e quarto mundo daquelas áreas da Ásia. E eu acho que esse rótulo, como tudo, como qualquer rótulo, faz jus a uma série de aspectos importantes, interessantes e de espaço que precisa ser dado à música internacional, da periferia, fora do eixo Europa - Estados Unidos, e, ao mesmo tempo, é precário, como qualquer outro. [Interferências, mas Gil continua]. Eu nunca me opus, veementemente, ao rótulo, não. Nunca fiz parte da polêmica que ele causa, nunca fiz parte daqueles que atacam a denominação World Music.

Luis Antônio Giron: Agora, esse prêmio Grammy, você não estava esperando muito por ele. Você deu declarações que..., foi meio low profile o teu comportamento.

Gilberto Gil: Porque é assim, em geral com relação a tudo... Aquela história “você está em uma competição, vai ser campeão”, eu nunca acho que vou ser campeão, nunca achei.

Luis Antônio Giron: Você teve contato com o Grammy anteriormente? Você concorreu? Sabe como funciona? [Gil diz que não] Ah, não! Você nunca tinha concorrido!?

Gilberto Gil: Não, eu nunca concorri. É a primeira vez que fui indicado, e eu não sei de nada, não conheço a instituição Grammy, ninguém de lá me telefonou...

Lorena Calábria: Você não foi comunicado?

Gilberto Gil: Eu não fui comunicado. Eu não sei nada até hoje, eu não sei nada sobre o Grammy.

(?) Ah, então vamos comunicar! [risos]

(?) Você ganhou o prêmio Grammy na categoria World Music! [risos]

Gilberto Gil: Eu tenho notícias.... na Bahia, por exemplo, uma pessoa que trabalha na área de discos estava me dizendo: são as gravadoras que apresentam suas armas, seus discos... A cada ano, nas várias categorias. Portanto, provavelmente, tenha sido a minha gravadora, a Warner Music, que apresentou meu disco lá, para concorrer. Na Bahia, esse menino me dizia que: “tem uma pessoa aqui na Bahia que está muito contente porque o disco dela tinha entrado nos quatrocentos primeiros escolhidos do Grammy”. Houve uma primeira seleção, que tinha selecionado, quatrocentos. Dessa seleção, eu acho que ficaram quarenta, desses quarenta, ficaram quatro, ou qualquer coisa desse tipo. O fato é que o disco entrou e foi selecionado, ficando entre os quatro finalistas, mas eu nunca soube nada. E mesmo agora, depois do prêmio ganho, eu não tive ainda nenhuma notícia. As pessoas me perguntam na rua: “E aí cadê o caneco? Quando é que vai receber o caneco? Onde é que você vai receber o caneco?” Eu não sei de nada! [risos]

Humberto Werneck: Você ganhou esse caneco com um disco ao vivo?

Gilberto Gil: É um disco ao vivo.

Humberto Werneck: É um disco menos cuidado, por definição, do que um disco de estúdio.

Gilberto Gil: E melhor! Por isso mesmo, talvez. [risos]

Humberto Werneck: Você acha melhor um disco ao vivo?

Gilberto Gil: Sempre gostei mais dos meus discos ao vivo. No meu caso e, em geral, de muitos artistas, prefiro os discos ao vivo. No meu caso é, evidentemente, muito melhor, porque eu me reconheço muito mais. Me reconheço na minha complexidade, na minha completude, naquilo que é mais forte, e naquilo que é mais fraco em mim.

Humberto Werneck: Quer dizer, o contato com a massa ali que...

Gilberto Gil: Tudo! É de verdade! O disco ao vivo é de verdade. É você em pleno exercício do seu ofício, de cantar, de comunicar, de brincar, de dançar, enfim, de expressar. É a expressão, não é? Você no ato de expressão, absoluta! Que é uma coisa, para mim, fundamental, eu que tenho essa característica, o que me caracteriza é que eu gosto muito mais da música quando eu estou ali, com ela e com aqueles que querem ouvi-la, e querem vivenciá-la. Eu sou um músico de vivência, eu gosto da vivência musical. E ela é, sem dúvida alguma, mais plena quando você faz para o público.

Humberto Werneck: Menos asséptica?

Gilberto Gil: Menos asséptica, de verdade, ao vivo! A palavra já diz, música ao vivo! [risos]

Norma Couri: Gil, outro brasileiro que ganhou o Grammy foi Roberto Carlos.

Gilberto Gil: Eu até não me lembro, queria que vocês me lembrassem, a categoria. Ah! A categoria latino. Que ainda existe? Ah! Sim, permanece existindo...

Norma Couri: Eu queria saber se é verdade que há alguns anos atrás, mas precisamente em 76, se não me engano, ele se recusou a gravar Se eu quiser falar com Deus, dizendo que o Deus dele, não era o mesmo Deus que o seu.

Gilberto Gil: Eu nuca conversei isso com Roberto, já tive várias notícias. Eu li no jornal, alguma coisa assim. Por duas vezes eu mandei canções a ele, uma vez ele me pediu, quando nós fomos premiados com aquele Troféu Imprensa, se não me engano. É um troféu que o Sílvio Santos dava todos os anos, que era uma imitação de um Oscar, e tal. Naquele ano, em 73, eu e Roberto ganhamos como “melhor cantor do ano”, naquela premiação, do Sílvio Santos. E fomos, evidentemente, na mesma ocasião receber o prêmio. Nos encontramos no estúdio, e foi ali que Roberto me disse pela primeira vez: “Faça uma música para mim, e tal, gostaria de poder cantar uma música sua”. Eu me lembrei disso, e um dia fiz a música, a canção, ora como é o nome, agora, meu Deus? A canção que fala: “como seus cabelos crescem agora”, me esqueci o nome da canção. E eu mandei para ele, e ele não gravou, e também não falei com ele sobre isso. Anos depois, eu, pensando no fato de novo, aquela coisa, quem não gostaria de ter uma música gravada por Roberto? Nossa esfinge maior, nosso ícone maior, assim, da música popular. E eu, lembrando, fiz o Se eu quiser falar com Deus e mandei para ele, também não gravou e também não nos encontramos, depois disso, para tocar no assunto. Mas eu soube pela imprensa que ele teria dito isso, que o Deus dele é diferente. O que eu acho que é absolutamente justo, Roberto é um cristão, um homem que tem um Deus de confissão, conhecida, não é?

Norma Couri: E o seu Deus qual é?

Gilberto Gil: O meu é uma vaga, das ursas maiores, menores, uma vaga idéia, é um deus impessoal, é quântico, é tudo, é um mistério, não é? O deus sem nome ou tem vários nomes, pode ser, é uma mistura dos deuses bárbaros, com os deuses das confissões, com deuses das não confissões, os deuses, enfim...

Norma Couri: É algo incompreensível, como você já disse?

Gilberto Gil: É algo incompreensível mesmo! Uma vez eu até disse, foi aqui mesmo, no último Roda Viva que eu fiz, eu dizia que Roberto até tinha razão, ele me ensinou uma lição ao recusar essa música, ele me ensinou que ele professa uma fé concreta, direta, estruturada e tal. E se recusava a qualquer coisa que ameaçasse essa segurança, essa certeza, esse universo que ele tem. E isso é uma lição para mim, eu até agradeço a Roberto, isso é bacana, ele está me dando uma lição profunda sobre isso. Agora, eu continuo com esse deus vago.

Paulo Markun: Esse seu deus vago, ele sempre foi parte do seu jeito de encarar o mundo? Ou ele apareceu, digamos assim?

Gilberto Gil: Apareceu! Ele começou com uma coisa mais parecida com a do Roberto, evidentemente, eu sou de uma família de formação católica. Meu pai era agnóstico, como ele gostava de se caracterizar. Minha mãe não, minha mãe é católica, até hoje, professa, uma mulher de fé, uma mulher, enfim, de vida católica profunda. E eu comecei aí, e fui estudar em um colégio de padres, e durante muitos anos eu tive aquela confissão, ali fechada e tal, acreditava naquela idéia do Pai, e nas três pessoas da Santíssima Trindade. O Pai era aquele homem, velho, barbudo, e que mandava na Trindade, ele era o chefe da Trindade, tinha o Espírito Santo, a pomba do Espírito Santo, Jesus Cristo, e tal. Mas o Deus Pai, aquele, era ele que mandava na história, e tal. E aos poucos, com o passar do tempo, com a maturidade, com a adolescência, com autonomia digamos assim, a individuação, se pronunciando em mim, eu me tornando um indivíduo mais autônomo, e tal, e com os estudos dos pequenos elementos de filosofia, que acabaram aparecendo na minha vida  mais adiante, o estudo comparado de religiões, o estudo da eubiose, enfim, das escolas esotéricas, e tudo isso, aí o deus foi ficando múltiplo, muito variado...

Washington Novaes: No seu disco Quanta...

Gilberto Gil: Chegando até aí!

Washington Novaes: [continua com a pergunta]: ...Você entra por um outro caminho. Hoje se diz muito que a ciência, a linguagem da ciência se aproxima da linguagem dos místicos, da poesia, na medida em que ela não consegue ter uma linguagem que possa definir realmente tudo que chega a ela. E me parece que, nesse disco, você entra um pouco, quer dizer, entra bastante, por essa questão, essa mistura da ciência com o religioso e com o popular brasileiro. Você mistura Quanta, com vendedor de guaiamum, com pílula de alho e com eubiose e com uma porção de coisas. Mas qual é a visão que você tem do mundo de hoje, com relação a essa linguagem que você está falando?

Gilberto Gil: Tem muitos que se recusam a admitir uma aproximação eficaz, ou pelo menos veraz, das ciências com as religiões, porque acham que são campos difíceis, que a gente corre o risco de cair em um relativismo vazio, que os princípios aristotélicos etc, etc, etc, devem permanecer, que o objeto de estudo da ciência é um objeto que não deve se misturar com esse vagar da coisa religiosa, enfim. Mas, o que me parece, na leitura que a gente vem fazendo nos últimos anos, do desenvolvimento das ciências, especialmente neste século, as ciências que tratam da matéria, da concretude, da matéria da existência, da matéria, a palpabilidade, o que é matéria, existe, ocupa espaço, como é ela no tempo, no espaço, essas coisas todas. Principalmente depois da relatividade, mais ainda da mecânica dos quanta, essa coisa chegou numa proximidade, assim, de um abismo, um abismo para o mistério mesmo, que é ameaçador dessa possibilidade de resguardo que a ciência possa reivindicar como sua, essa possibilidade de estar sozinha isolada do mistério. Eu vejo que a ciência cada vez se embaralha mais. Embaralha as cartas.

Paulo Markun: Isso começa no (...?), por exemplo, que tem na sua obra.

Gilberto Gil: O (...?) ainda é um discurso mais sobre o orgulho, do ser moderno em relação à tecnologia. O que o Novaes estava falando, o disco Quanta, já é uma coisa mais sobre filosofia mesmo, uma coisa mais filosófica, relações mais filosóficas mesmo entre objeto de estudo da ciência, objeto de busca da ciência e objeto de busca da religião.

Washington Novaes: Mas a ciência já chegando a afirmar, a se perguntar, hoje, se o universo é infinito, a proximidade ficou muito grande.


Gilberto Gil: É claro. Eu, do meu modo de perceber, com o que eu tenho da minha sensibilidade, eu vejo aproximações cada vez mais indiscutíveis, entre uma religião, uma religiosidade, uma idéia religiosa que é povoada por muitos deuses, deuses de muitas procedências, de muitas cores, de muitas possíveis definições e explicações.  E, por outro lado, uma ciência também com muitas novidades, muita coisa, muita aproximação com o mistério.

 Washington Novaes: E onde é que entra a pílula de alho e o vendedor de caranguejo?

Gilberto Gil: Aí é música. Essas canções foram canções que entraram no disco, não para discutir essa questão. As músicas que tratam do tema do disco, são umas oito ou dez delas, são Quanta, o Átimo de pó, a Estrela, a Ciência em si, que fizemos eu e o Arnaldo Antunes em parceria, e algumas outras. As outras canções do disco são música popular, sem escolhas definidas por esse tema.

Tom Zé: Todo o tiro aqui foi na direção no seu córtex, eu agora queria fazer uma tentativa de atirar no hipotálamo.[risos] E queria começar com uma brincadeira de ladrão, assim, dizem que o Prometeu foi ladrão nas oitavas, então eu queria roubar a TV Cultura, fazendo uma pergunta só, para pagarem meu cachê, para eu trabalhar mais um pouco. [risos]

Paulo Markun: Você não vai conseguir! [risos]

Tom Zé: Não? É capaz!

Gilberto Gil: O cachê. [risos]

Paulo Markun: Eu vou é cutucar para ele perguntar mais, que eu conheço!

Tom Zé: Eu fiz um plano legal, porque, não sei, a alegria tem aquela coisa, só para poder a gente dar outro tiro no hipotálamo, não é? Aquele verso que diz: “e você que me esqueceu, aquele abraço”, então, eu aí, dou esse tiro, depois digo assim, a gente podia tratar da alegria, como aquela coisa que lava a alma, como uma série de coisas, que eu poderia tentar descrever e coisas superiores que eu nem sei. Sim, da alegria. E você, agora, pode se dizer que foi atingido por uma coisa que, no mínimo, pode dar uma leitura do prêmio, pode dar..., mas também que tem um componente da alegria, uma felicidade, do homem se sentindo compensado, de todas as coisas que a gente guarda de quando era criança, de todos aqueles pequenos "futucões" que a gente tomou. Parece que isso responde ao pai, à mãe, aos tios, aos desafetos. Então, aí, eu queria que você pagasse isso a prestação, você tanto pode falar disso agora, como pode no correr da conversa, qualquer momento que isso vir, você dizer: “Não, deixa eu atender um pouco aquela pergunta sobre a alegria, a felicidade”.  Porque de todo o modo nem sempre a gente tem uma pessoa que vá tratar isso nas alturas que você pode tratar, e que a gente avalia pelo modo como você tratou já diversas coisas. A gente nem sempre tem, como se diz, um objeto de pergunta que possa nos oferecer material tão fino, né?

Gilberto Gil: [risos] E a alegria, mas... eu tenho falado muito à imprensa e a todos que me perguntam. A atribuição de mérito, quer dizer, é uma coisa que é motivo de alegria. Se você chega em um lugar e alguém reconhece que você, enfim, tem seu...

Tom Zé: “Abri a porta e a mais bonita olhou pra mim”.

Gilberto Gil: Não é!? Aqueles versos da minha música, você lembrou bem, quando você abre a porta, e alguém diz assim: “que bom, que sorriso, bem vindo, você aqui, sua presença perfuma o ambiente”, coisas desse tipo. Quando você recebe um prêmio, está implícito não é? Você melhora, como diz o Arnaldo “o seu olhar melhora o meu”, naquela música que o Arnaldo fez, quer dizer, esse olhar de reconhecimento sobre nós melhora nosso próprio olhar sobre o mundo. Acho, que é um diálogo importante, e nisso reside a alegria, nessas conferências de prêmio e tal. O povo na rua é muito..., nesse sentido... Eu estava em Salvador, no Pelourinho, no dia da premiação, pela manhã e as pessoas passavam, eu estava lá, vendo umas coisas, tinha ido na sede dos Filhos de Gandhi, fazer uma reunião, e tal, e estava ali esperando a hora de começar a reunião, e as pessoas passavam na rua e diziam: “É hoje, Gil, estamos torcendo”, e tal, aquela coisa. Isso é a mesma uma alegria que nos dá uma vitória esportiva, não é? As vitórias culturais, literárias, etc e etc. Então esse prêmio tem esse tipo de coisa, me deu muita alegria, me deu essa coisa de rever, minha mãe ligou, minha irmã, meus parentes todos, meus amigos, as pessoas...

Tom Zé: Sua irmã mora onde?

Gilberto Gil: Em Salvador.

Tom Zé: Ela falou [a comentarista] Itauçu ou Ituaçu?

Gilberto Gil: Ituaçu, a menina falou quando estava apresentando o programa.

Lorena Calábria: Aproveitando essa história do prêmio...

Gilberto Gil: Eu acho que o prêmio dá muita alegria, é irrecusável isso.

Lorena Calábria: Eu acho que você vai concordar comigo. Só tem uma pessoa que gosta mais de prêmio do que artista, e é a gravadora. E até onde eu sei esse prêmio parece mais uma vitória do artista sobre a gravadora, pelo seguinte... [risos]. Você sabe do que eu estou falando! Você demorou um tempão para conseguir convencer a W.A a lançar um disco ao vivo, você já tinha lançado disco duplo, depois uma versão mais enxuta e esse disco ficou um tempão para sair. E com esse prêmio acaba sendo quase um reconhecimento de que o artista estava certo! Tanto que o próprio diretor da gravadora deu uma declaração dizendo que é aí que está a diferença entre o artista e o executivo da gravadora. Você sente isso como uma vitória?

Gilberto Gil: E não é isso, não. E há diferença entre as políticas de mercado e as políticas mais culturais, quer dizer, esse disco, evidentemente, não é um disco que venderia muito, ou qualquer coisa desse tipo. O mérito que está sendo atribuído ao disco é o seu mérito musical, é a sua qualidade, é o seu arrojo, é a coragem, é a audácia, é o fato dele apresentar, com especialidade, as possibilidades de grandeza de um artista, quer dizer, na sua interação profunda com os músicos, com a sua música, com aquilo que ele gosta mais de fazer. Que é a música desenfreada, aberta, ali no palco acontecendo, quer dizer, com os improvisos, com os músicos todos absolutamente prestigiados nas suas características próprias, nas suas autonomias, quer dizer, é um disco sem essa formatação, sem esse cuidado, de botar tudo no tubo de ensaio, e sair dali como precipitado, quer dizer, desejado pelo mercado, com capacidade definida de penetração no mercado e tal. Esse prêmio é um prêmio para isso, para a autonomia do artista, para o gosto dele, nem a minha crítica gostou muito desse disco no Brasil.

Luis Antônio Giron: As pessoas da Warner colaboraram, apostaram nesse disco, não é? Não é só uma vitória do artista.

Gilberto Gil: Isso também, mas o que ela está dizendo é uma outra coisa...

Lorena Calábria: O que eu digo é que eles demoraram, não é isso Gil? Você teve que insistir para sair o disco não?

Gilberto Gil: Eu paguei para gravar esse disco, por exemplo, a gravadora não quis. A gravadora vinha de um lançamento de um disco complexo, difícil, que era o Quanta duplo, com vinte e cinco músicas, o disco, enfim, embaraçado, do ponto de vista de mercado, quer dizer, um disco sem categorização fácil e tal, etc. E depois, eles já tinham compilado desse disco uma coletânea de quatorze músicas, para ver se facilitava áreas de acesso de mercado, e tal. E eu não tinha me recusado àquilo, mas também disse: “Eu quero gravar”. Porque Caetano foi ver o meu show no Canecão, e me disse assim... No domingo seguinte, eu dei um almoço em casa, para os músicos, e ele foi também, e discutindo ali ele estava muito entusiasmado com a qualidade, a performance do show e disse assim: “Gil, você devia gravar esse show”. Eu disse: “Está bom, eu vou pensar no assunto”. Isso era maio para junho, e daí eu viajei para a Europa, e fiz vinte e tantos shows. Com aquele show, na Europa voltei de lá afiado, e disse assim: “vamos gravar!” Pedi duas datas no Teatro João Caetano, juntei, pedi recurso a uma multinacional, não da área de disco, que me deu o recurso para eu gravar, pagar os músicos. Foi a IBM, que me deu o dinheiro para eu gravar, e eu gravei e guardei e deixei lá, a gravadora nem estava pensando no disco.Quando foi no fim do ano, em dezembro, eu resolvi fazer duas canções de Carnaval, também por iniciativa minha, sem programa com a gravadora, sem projeto com a gravadora, chamei Lulu para gravar uma música comigo, João Donato, com quem compus uma delas, para gravar a outra. E aí, disse assim: “Que tal se a gente aproveitasse, já que a gente pretende lançar um disco simples com essas duas músicas agora, em janeiro e tal, se a gente pegasse esse material que eu gravei em agosto no Teatro e fizesse disso um disco”. Chamei Paulo Junqueira que era o diretor artístico da gravadora na ocasião e disse: “Paulo, ouça esse material”, ele ouviu, foi para casa ouviu, no dia seguinte ele ligou entusiasmado e disse: “Gil, a gente tem um material riquíssimo nas mãos, vamos fazer esse disco, eu vou mixar, faz muitos anos que eu não trabalho nessa coisa de operar fitas, e tal, estúdio, tudo isso, mas eu quero voltar, vou fazer, vou mixar esse disco para você, vamos mixar esse disco juntos e vamos lançar!” E aí saímos e pedimos ao André Valeiras lá da Refazenda que fizesse o projeto gráfico e tal, vamos sair apressado, apressado, e saímos com o disco no final de janeiro. No começo de fevereiro, no Carnaval, uma época que ninguém lança nada, entendeu? Saímos! E, gozado, logo depois do Carnaval, em março, o disco teve uma excelente resposta porque vendeu logo 50 mil discos, assim até de uma forma meio surpreendente para gravadora. Uma coisa que, naquele mesmo período de tempo, o disco Quanta não tinha conseguido atingir. E aí vieram logo as manifestações incondicionais de apreço ao disco, e principalmente da parte dos músicos. Eram vários, eu me lembro que o Dadi, baixista, um dia me encontrou, no trânsito do Rio, e disse: “Seu disco está em primeiro lugar na parada lá em casa, eu e os meus filhos”. O Marcelo, baterista, o Marcelo Costa, também: “O meu filho, lá em casa, é o disco preferido dele”. O Jaquinho veio me falar, Jaquinho Morelembaum disse: “Gil, que disco maravilhoso!” Caetano, as pessoas todas. O disco, então, eu sei, tenho a impressão, que ele causou logo aqui o mesmo tipo de efeito, o mesmo tipo de impressão que eu acho que ele acabou causando lá no júri do Grammy. É um disco que impactou, porque ele tem muito isso, ele tem um vitalismo muito bem expressado, que é muito característico da minha personalidade musical, que ao mesmo tempo caracteriza muito um jeito nosso, latino, brasileiro, tropical de ser. Com aquela coisa toda, de ter os gêneros típicos nossos, mais básicos, baião, samba e aqueles aos quais a gente se afeiçoa como o reggae e etc. etc., que são gêneros populares. Mas todos eles tratados de uma forma aberta, jazzística eu diria, com os músicos tocando o que querem, o que gostam, escolhendo, fazendo as escolhas, eles próprios, auto interpretar, escolhas feitas na vivência do próprio ato de tocar um disco que é feito e ensaiado na estrada, é um show que foi tocado na estrada e de tocar, de tocar, de tocar toda a noite acabou arranjado. O arranjo é esse. Eu acho que foi isso, e é isso que caracteriza e, nesse sentido, é que o disco, como Lorena diz, não é um projeto da gravadora, é um projeto nosso, foi acatado, fiz questão de dizer isso também. Foi acatado pela gravadora sim, mas não era um disco que eles pensariam. Foi um disco pensado por nós artistas, eu, os músicos, os colegas todos, Caetano, é um disco da gente, de todas as pessoas. O Pedro, filho do Marcelo, disse para ele, anteontem em casa: “Pai, quer dizer que o nosso disco ganhou!” [risos]. Então é isso, o Jorginho Gomes quando me ligou e o Arturzinho Maia: “o nosso disco” o Paulo Junqueira me ligou de Lisboa hoje também: “o nosso disco, é o nosso disco”. Quer dizer, é um disco nosso, da nossa corporação, é um disco assim. E tomara que o prêmio viabilize que isso chegue para o público, que o público possa ouvir.

 Paulo Markun: Gil, televisão ao vivo é melhor do que televisão gravada também!

Gilberto Gil: Mas é claro!

Paulo Markun: A gente tem que fazer um intervalo, nós voltamos daqui a um minutinho!

 [Intervalo]

Paulo Markun: Bem, estamos de volta, com Roda Vida. O Gil, não parou de falar no intervalo inteiro, vocês perderam isso aqui, foi sensacional! Só para deixar todo mundo curioso! Agora é o seguinte, Gil, antes eu tenho que dar um recado, que eu sempre esqueço, que é: você pode fazer suas perguntas, pelo telefone (...). Vieram diversos elogios para você, cumprimentos pelo prêmio e uma lembrança que é a música que você não se recordou o nome, segundo o Paulo Guimarães, de Salvador, e Carla aqui de Cerqueira César, é Nova Era, de 1976, [Gil concorda] que foi do disco, Refavela. E há uma pergunta aqui, de Claudemir Beretta, de São Caetano do Sul, que eu coloco para começar esse segundo nosso round, que é assim: “Esse prêmio Grammy é um cala boca na música sertaneja que hoje se sente o rei da música brasileira?” E diz ainda que só falta um show na cidade dele, que é São Caetano do Sul. Pergunta: você acha que existe isso, quer dizer, essa coisa de premiar um determinado tipo de música, que a gente poderia chamar de “música de qualidade”, entre aspas, de alguma forma é a redenção de outros gêneros que estão dominando o mercado musical brasileiro?

Gilberto Gil: No caso, do rapaz aí, ele não está dizendo uma redenção desse gênero, e sim uma condenação, diz que o prêmio... Eu não acho que seja isso, quer dizer, o sertanejo, a música sertaneja é uma música que durante anos, anos e anos, ficou... Ela é uma forma de expressão especial do povo do interior brasileiro, especialmente da área do Centro Sul, Centro Oeste brasileiro, não é? Música de Minas, São Paulo, interior de Minas, São Paulo, Mato Grosso, Goiás, Paraná, Rio Grande do Sul, quer dizer, esse eixo da sanfona, que não é o eixo nordestino, que é o eixo da sanfona do Luis Gonzaga, é o eixo da sanfona sulina, quer dizer, é a música de Teixeirinha. [fala inaudível]

Paulo Markun: Mas, é mais a guarânia, que virou música...

Gilberto Gil: Sim, ou seja, os vários gêneros consolidados, os vários gêneros que se manifestam na música interiorana do Centro Sul brasileiro, que se consolidaram nisso que se chama hoje o sertanejo. E os meninos que cantam com vozes muito agudas, com a alma saindo pela boca, todos eles, aqueles intérpretes, não é? Aquilo que é característico, eles cresceram com esse modo de interpretação, aquela música penada, com um sentimentalismo [alguém diz: “pungente”], não é? Eu não vejo por que essa música deva ser, numa premiação como essa, o significado dessa premiação deva ser um "cala boca", ou qualquer assim, ao contrário, eles devem com isso cantar mais alto, eles são parte disso. Mas, você estava falando, aqui, de uma canção chamada Um Sonho, não é? Que é uma moda de viola mesmo. [Gil canta] “Eu tive um sonho, que eu estava certo dia num congresso mundial discutindo economia”. É uma música para homenagear esse gênero, música que eu fiz para homenagear esse que é um gênero legítimo, nosso também.

Washington Novaes: Você fez o Jeca Total também?

Gilberto Gil: Jeca Total e etc, então, eu não vejo assim. Não, ao contrário, eu tenho o maior respeito pela música sertaneja. Graças a Deus. Não tivesse eu, coitado de mim.

Humberto Werneck: Gil, ainda sobre o prêmio, olhando toda a sua produção, as dezenas de discos, a qual deles você daria o Grammy?

Gilberto Gil: Olha, é difícil de dizer. Eu daria a alguns deles, esse daí, com certeza, eu acho que é mesmo! Quando a gente veio ver, é um disco maravilhoso, que eu mais gosto. Eu gosto dos discos ao vivo, o disco de Montreux ao vivo, eu gosto muito de Refavela, por algumas razões, eu gosto muito de Realce, fica difícil de dizer, mas eu escolheria um disco ao vivo mesmo, para dar [o prêmio], porque é onde eu me reconheço, mais exuberante, mais inteiro, até como eu falei antes, não é? Na minha sujeira também, naquilo que é mais claro, naquilo que me distingue com mais clareza.

Humberto Werneck: Você acha que você já fez alguma bobagem musical? Alguma coisa que você já tenha gravado e que te causa uma certa vergonha, hoje?

Gilberto Gil: Olha é difícil dizer. O que há um pouco... Eu estava me vendo ali cantando Domingo no Parque, por exemplo, naquela época, uma... sabe? Uma ansiedade, uma ingenuidade a serviço de um afobamento, e tal. Todas as minhas gravações daquela época... Eu só comecei a me reconhecer um pouco mais assim com excelência nos discos a partir de Refazenda. Até ali eu era muito assim... cantava mal...

Wagner Carelli: Gil, você se sente muito diferente daquele homem que você viu no vídeo. Nós vimos assim da sua vida um espectro tão impressionante, você tem uma tal interferência na cultura brasileira. Você se sente muito diferente daquele homem que principiou essa carreira?

Gilberto Gil: Um pouco mais polido como artista. Embora muito daquilo, dessa afoiteza, “simplicidade com trombetas” é uma coisa que o Ezequiel estava me falando uma vez [risos]. Ele me definia assim: “Gil, você é a simplicidade com trombetas” [risos]. Eu achei isso tão interessante!

 (?): Só podia ter vindo mesmo do Ezequiel isso...
 

 (?): É um João Gilberto ao contrário. 

Gilberto Gil: É, é um João Gilberto ao contrário.

Gilberto Gil: Eu sou um pouco isso, e isso permanece em mim, essas trombetas e ao mesmo tempo, essa coisa meio simples, não é? Que eu tinha desde o início e permanece comigo.

Paulo Markun: Eu queria até aproveitar o embalo, aqui, para mostrar isso aqui que é um trabalho super bonito, que acaba de ser lançado, esse grande pacote do Ensaio Geral, que são diversos discos, boa parte deles do início da sua carreira, outros que pouco circularam no Brasil, e há inclusive músicas inéditas que foram aí descobertas. [Álbum com os discos e muitas fotos vão sendo mostrados]

Gilberto Gil: Carimbadas em fitas, em sobras de estúdio de vários discos, até uma trilha underground de um filme do Rogério Sganzerla feita em Londres, o Copacabana Mon Amour, que eu gravei com Péricles Cavalcanti tocando violão comigo e o David, um flautista amador americano, que já deixou até de tocar flauta, mora hoje em São Francisco, que vivia como músico em Londres naquela ocasião.

Paulo Markun: Você se reconhece aqui, quer dizer, essa estranheza que, de algum modo, você manifestou ali, você acha que, hoje em dia, você já não tem relação com esse período do seu trabalho?

Gilberto Gil: Não, eu me reconheço em todos esses períodos, eu estou aí, evidentemente foi eu que fiz, é inegável. Eu estou aí em todos eles.

Norma Couri: Uma coisa que eu queria te perguntar, o Tom Zé citou Aquele Abraço e você estava falando da vitória do músico sobre as gravadoras. Eu queria perguntar Aquele Abraço foi uma música que até há muito pouco tempo os direitos pertenciam ao seu primeiro empresário que era o Guilherme Araújo. E foi, pelo o que eu sei, uma briga de foice.

Gilberto Gil: Relativamente, sim.

Norma Couri: Como é que é essa relação empresário artista?

Gilberto Gil: Bom, eu tive uma ao longo da minha carreira, tive esse trabalho, esse período de relacionamento, muito interessante com o Guilherme, na época toda do Tropicalismo, e tudo, e depois me tornei auto gerido, passei a ter uma espécie de auto gestão. Fiz o meu próprio escritório, juntei a minha pequena equipe e passei eu mesmo a administrar e empresariar meu próprio trabalho. E já faço isso há mais de 20 anos.

Norma Couri: Mas essa música ficou, até então?

Gilberto Gil: Até então, várias ficaram porque o Guilherme naquela ocasião também supria os serviços de editor, fez uma editora, que era a Gapa, que editava minhas músicas, as músicas do Caetano e eventualmente até de outros.

(?): Você chegou a editar com a Gapa também não é?

Gilberto Gil: Também. Tom Zé editou.

 (?): Você edita por onde hoje?

Gilberto Gil: Hoje eu edito pela GG, desde que eu... Eu fui aos poucos criando uma estrutura que cuida dos vários ramos do trabalho, especialmente após Flora ter assumido a direção, a gerência mesmo cotidiana do escritório e tal, e então ela incorporou, fez a editora, e foi aí que nasceu a idéia de recuperar os copyrights [direito exclusivo de imprimir, reproduzir ou vender obra literária, científica ou artística] das minhas músicas todas, que em geral estavam cedidas, por cessões ad aeternum, a várias editoras, à editora Gapa, à editora Warner, à editora Arlequim, a editora da RGE, RCA, várias por onde eu passei e tal, que tiveram algumas dezenas aqui, outras dezenas ali, e tal. Juntando tudo, chegou uma hora que eu quis juntar meu acervo todo sob minha própria administração e foi que entrou a questão polêmica com o Guilherme, porque eu quis recuperar e movi uma ação judicial para recuperar minhas músicas, ação que nós ganhamos o ano passado, e agora nós temos tudo, ou quase tudo, ainda algumas estão fora, mas quase 400 músicas do meu repertório estão consolidadas editorialmente sob a custódia da GG.

Luis Antônio Giron: Só para complementar, ficaram também retidas na gravadora composições suas, de um disco que você lançou pela Pau Brasil, com o Rodolfo com a Marlui Miranda. Esse disco ficou uns anos aí... [O Sol de Oslo, lançado em 1998, pelo selo Pau Brasil, com cocos, xotes, xaxados, emboladas, baiões, com a inconfundível marca de Gil, acompanhado por Rodolfo Stroeter (baixo e direção musical), Marlui Miranda (voz e violão), Toninho Ferragutti (acordeom), o norueguês Bugge Wesseltoft (piano e teclados) e o indiano Trilok Gurtu (percussão e voz)]

Gilberto Gil: Quatro anos, mas não foi retido na gravadora, esse disco foi produzido na ocasião, com a produção do Rodolfo.

 (?): Isso foi feito em Oslo?

Gilberto Gil: Foi feito em Oslo! Uma produção de Rodolfo, que me chamou para produzir o disco, eu disse: “Fale com a Warner e peça autorização, para que você possa, para que eu possa gravar e eventualmente você vir a utilizar meus serviços artísticos autorizados pela Warner, com quem eu tenho um vínculo contratual de exclusividade e etc”. Gravamos o disco em Oslo, daí evidente, por uma questão política natural, o Rodolfo ofereceu à Warner a opção de lançamento. Isso tudo acomodaria um pouco já as questões, essa opção não foi exercida pela Warner, que não quis lançar o disco por razões deles, não quis lançar o disco e isso foi se protelando. E enquanto isso o Rodolfo procurava viabilização do disco no exterior, encontrou quem quisesse lançar na Europa, nos Estados Unidos, no Japão e foi aí, então, diante da eminente saída do disco internacionalmente, que ele teve que dizer: “Bom,  e aqui no Brasil?” Aí fomos de novo na Warner, e ela disse: “não!” Então ele foi procurar e acabou lançando pela Eldorado, não é? O disco distribuído pela Eldorado, pelo selo dele, Pau Brasil, distribuído pela Eldorado.

Luis Antônio Giron: Foi lançado como Gilberto Gil, não é, o disco?

Gilberto Gil: Aquilo ali também, já acho, enfim, eu não concordo muito com aquilo. Não é um disco meu, a rigor. É um disco de conjunto, é um disco coletivo, é um disco de um grupo, a rigor deveria ser assim, o Gil como mais um convidado. Até admito que se desse destaque ao meu nome, por ser, enfim, no mercado, nessa avaliação mercadológica, talvez um nome, nesse sentido, mais conhecido, e tal. Mas, a rigor, não é um disco meu. Fica parecendo, pela capa do disco, que é um disco de Gilberto Gil, mas não é um disco de Gilberto Gil. Eu acho que, nesse sentido há um pouquinho de... isso não me contenta muito. É um deslize meu, porque na verdade deixei que saísse assim. O Rodolfo mandou para mim a prova da capa, quando eu estava na excursão na Europa, era um fax, e eu não percebi que meu nome estava em destaque ali, achei que era só para aprovar o trabalho artístico da capa que é um carrinho de supermercado com uns cocos dentro, não é? Achei que era isso e acabou passando, quando eu vi o disco eu disse: “Ih Flora, olha para isso, saiu o disco Gilberto Gil, como se fosse meu”. E outro dia uma menina, uma amiga minha na Bahia reclamou: “Eu fui ouvir esse disco e vi que não era um disco seu”. Eu disse: “Não é mesmo!” [risos]

Washington Novaes: Gil, me permita entrar por um outro ângulo aqui, que é o ângulo da política. Você, pelos noticiários, esteve muito perto de ser ministro do Meio Ambiente, agora nesse segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, e chegou a conversar com ele sobre isso, e tal. Ao mesmo tempo você é uma pessoa que vem de um movimento chamado Tropicalismo e você é uma pessoa que fez músicas como Jeca Total, como um Sonho, que fala dos índios do Xingu, que fala da pílula de alho, do vendedor de caranguejo e tal. Isso num momento em que se recomeça a discutir o Brasil, a visão do Gilberto Freire sobre o Brasil, país tropical, e com a necessidade de ser isso, de assumir isso e de ter um modelo assim. Eu acho curioso isso...

Gilberto Gil: Pode continuar não tendo modelo, pode continuar experimentando, mais aberta, mais francamente...

Washington Novaes: É isso exatamente o que eu queria saber, se você fosse ministro do Meio Ambiente, que visão de Brasil você levaria para lá e o que você tentaria fazer no ministério?

Gilberto Gil: Isso de um país novo, em configuração, em processo de configuração, portanto com uma necessidade muito grande de deixar os flancos mais ou menos abertos, de não encarar essa modelagem clássica do processo civilizatório, ou seja, da fase mais antiga européia ou uma fase mais moderna americana, como modelos imperativos que nós tivéssemos que seguir, ou que a gente tenha que ser um grande potência nuclear, ou que a gente tenha que ser uma grande potência econômica, no sentido clássico. O que eu acho que o Brasil tem que fazer é prestar mais atenção às suas propostas, ao seu espontaneísmo criativo, ao seu modo de ser, porque é novo, é um país que está aí, querendo inventar coisas, tem um povo muito criativo, muito inventivo. Nessa área ambiental, evidentemente, o país tem reservas extraordinárias, na área florestal, na área hídrica, no solo, nos minerais e etc, etc. O que o Brasil precisa ter é a capacidade de falar, de ter voz, ter coragem de dizer, e essa voz tem que ser um conjunto de freqüências obtido dos vários setores, das várias partes do Brasil, geograficamente, no sentido sociológico, no sentido antropológico, dos vários Brasis, que estão por aí, e que estão reclamando, que precisam de espaço, precisam dizer. E, mais ainda, eu acho até que não é só o Brasil, o próprio mundo inteiro, precisa dessas vozes novas, dessas novas insinuações de configurações nacionais que possam possibilitar essa tal renovação da globalização, com parâmetros. Evidentemente que a Europa vai continuar insistindo em poder hegemoneizar o que ela puder. Os Estados Unidos idem, a Ásia emergente, o Japão vai querer, todos eles estão brigando por fatias hegemônicas no bolo todo internacional, mas ao mesmo tempo, a configuração internacional precisa de propostas novas, de gente que venha com novos modos de fazer e tal. A idéia de ir lá, para o Ministério do Meio Ambiente era propor esse jogo. [inaudível]

Paulo Markun: Você propôs essa tese para o presidente? O que ele achou?

Gilberto Gil: Cheguei a falar, foi uma longa conversa de quatro horas. Evidente que ele gostou. [inaudível] Ele não foi ministro por conta da política, da real politique, das condições, dos grupos que precisam dos espaços no poder e etc etc. Tanto assim que está aí ministro, o deputado não é? E mais do que deputado, pertencente a um grupo tradicional da política brasileira, enfim, um rapaz sem dúvida alguma capacitado também, para quem torcemos muito, para que o trabalho que venha a realizar lá.

Lorena Calábria: Você podia falar um pouquinho da Fundação Ondazul. Como é que é seu envolvimento. Isso que o Giron falou. Você já está engajado nisso, não é?

Gilberto Gil: Já venho engajado há 10 anos, na Eco 92 tivemos uma participação lá...

 [inaudível, muitos tentam perguntar]

Humberto Werneck: Eu gostaria de saber se você se sentiria bem nesse governo do Fernando Henrique Cardoso?

Gilberto Gil: Eu não sei quem é que pode se sentir completamente bem em nenhum governo. Já que governar é administrar, basicamente administrar, conflitos o tempo todo, conflitos de fora da comunidade, que estão ali para serem equacionados, e conflitos internos do próprio governo, especialmente em casos como esse, com alianças partidárias, de matizes ideológicos e programáticos diferenciados e etc. Sentir-se bem, não tem! Quem vai para o governo vai para o sacrifício, sempre. Ainda ontem à noite eu encontrava com os dois juntos o Marcílio e o Malan, os dois, um ex-ministro e o atual ministro, e a gente falava um pouco sobre outras coisas, falamos do prêmio e tudo, mas, an passan falamos da situação, dizíamos: “Pois é, como é, está melhorando, vai melhorar?” Quer dizer, é um sacrifício danado governar, em qualquer lugar, acho que sob qualquer bandeira, é um problema seriíssimo.

Paulo Markun: Quer dizer, você não se furtaria, dentro dessa idéia...

Gilberto Gil: Porque tem horas que você tem que ir para o serviço desinteressado, e um pouco sacrificado, um pouco na esperança, no sonho, talvez no delírio até de que você possa alavancar um pouco, com o seu trabalho e o recurso e o concurso de gente que venha se associar a você, a seu lado, seus pares e tal, você possa contribuir um pouco para alavancar, num certo sentido, fazer avançar, num certo sentido e não em outro, certas proposições etc. Foi com essa disposição que eu fui lá propor o ministério para os verdes a princípio, não é? Eu disse ao presidente: “É a hora dos verdes no Brasil terem o Ministério do Meio Ambiente”. Porque são especialistas nisso, vem produzindo reflexão, discurso, teoria e ação nesse campo há muito tempo, está na hora de entregar o ministério a eles, e tal, e aí meu nome apareceu no bojo dessa proposta. Mas a proposta que eu fui fazer era uma proposta para os verdes, não é, Novaes? Para nós, esse setor, esse campo de atuação. Está na hora de ter um ministério que lhe diz respeito, não é?

Paulo Markun: Gil, a gente vai falar da pergunta da Lorena e do Giron que é um pouco sobre a Onda Verde, um pouco sobre...

Gilberto Gil: Ondazul! Onda Verde é um movimento equivalente existente na Itália, aliás, foi nele que nós nos inspiramos para fazer o Ondazul.

Paulo Markun: Ondazul! Logo depois do intervalo. O Roda Viva volta, daqui a um instantinho!
 
[intervalo]

 Paulo Markun: Bem, estamos de volta com Roda Viva, hoje entrevistando o cantor e compositor, Gilberto Gil. Você pode fazer as perguntas pelo (...). Gil, vamos falar então do Ondazul, que era o assunto que a gente estava falando e tive que interromper bruscamente.

Gilberto Gil: Quando eu era vereador, em Salvador, eu fui eleito pelo PMDB, que era o partido do grupo político ao qual eu me associei, Mário Kertesz era o prefeito na ocasião, vários amigos meus trabalhavam em várias secretarias e tal. E eu fui para a presidência da Fundação Gregório de Mattos que equivale a uma Secretaria de Cultura Municipal, em Salvador, e naquela ocasião, vai ser candidato a prefeito, não vai, e acabei me filiando ao PMDB para viabilizar uma possível candidatura à prefeitura, que não saiu, e que foi, logo em seguida, substituída por uma candidatura a vereador, que mantive e me elegi e tal. Logo depois saí e fui para o PV, e aí, já quando eu chegava ao PV, me veio à idéia de fazer um movimento. Naquela época discutíamos a Constituição Municipal, a lei orgânica dos municípios, equivalente a uma Constituição, a nível municipal, e a questão verde assomava, pela primeira vez, com grande importância, como havia assomado na Constituinte Nacional. A questão verde assomava, mais ainda nas leis orgânicas municipais, que dizem respeito ao governo local, e, portanto, era muito mais viva ali. E, no bojo dessa coisa, eu assumi a Comissão de Meio Ambiente da Câmara, recém criada – pela primeira vez havia uma Comissão de Meio Ambiente na Câmara Municipal de Salvador. Nós negociamos para que eu assumisse – lá na repartição dessas comissões negociamos para que a Comissão de Meio Ambiente ficasse comigo. Nós reivindicamos, ganhamos a comissão, e logo em seguida eu criei o movimento Ondazul, que era um movimento para centrar um pouco mais o foco sobre a questão hídrica brasileira, as águas, porque naquela época se falava já muito nisso. De uma certa forma, o verde hegemonizava um pouco as atenções do movimento ecológico em geral. Falava-se em ecologia, imediatamente vinha o verde, a questão amazônica, a questão Mata Atlântica, enfim... Sem dúvida alguma, questões de um grande porte no Brasil, enfim. E a coisa dos meninos plantando as árvores, a educação ambiental começava a idéia da árvore, tudo aquilo, o verde tinha, portanto, uma preponderância muito grande. E eu achava que o azul precisava também ter o seu lugar, porque tem um papel importantíssimo. A questão hídrica é uma questão estratégica, profunda, grave, no mundo inteiro. Precisávamos começar a ter focos especializados, digamos assim, sobre essas questões no Brasil. E aí fiz o Ondazul, que teve uma atuação muito impetuosa de início, ali na Bahia, e fora da Bahia, incentivamos a formação de consórcios de bacias de rios em vários locais, no Paraná... Naquela ocasião, o Olívio era prefeito de Porto Alegre, já com o Guaíba Vive, um projeto para recuperação do rio Guaíba, que era muito ali ameaçado pelos dejetos industriais etc, etc. Nós fomos lá, nos associamos àquele projeto, nos associamos a outros projetos no Paraná, no rio Itajaí, no rio Poti, no Rio Grande do Norte, na região do cacau, com várias bacias ali, enfim. E eu ia para os lugares em Campina Grande, na questão do grande açude lá de Campina Grande, enfim, me desdobrava, ia para várias palestras, vim para Santos colaborar com Telma, com o prefeito anterior, e depois com ela, aqui para questão das bacias ali de Santos e da Bahia, de São Vicente, do estuário, enfim, pra aqui, pra lá, pra aqui, pra lá. Na Eco 92 foi um momento culminante onde tivemos uma atuação bastante forte na articulação não só com organismos brasileiros, mas também com os estrangeiros e tal, e a Carta da Terra e a Agenda 21, todo aquele trabalho que se esboçou, se forjou ali, e tal. E depois, quando eu parei em 92, coincide que eu termino o meu mandato em Salvador e volto para o Rio e aí, de uma certa forma, a Fundação, que era um pouco mantida com o meu entusiasmo e também com os meus recursos financeiros, basicamente – eu pegava o meu dinheiro todo de vereador e colocava lá na Fundação – aí a coisa parou um pouquinho, e foi parando, parando, eu tive que retomar com mais ênfase meus trabalhos artísticos e tudo mais, e acabou que Fundação entrou um pouco em remanso, ficou mais quietinha. Agora, nós estamos retomando, a partir da vinda do Alfredo Sirkis que veio pilotar, veio secretariar, o escritório do Rio, Juca Ferreira – ambos com qualificação em meio ambiente, foram ambos secretários do meio ambiente – Juca Ferreira em Salvador, e com um pequeno escritório em Brasília, com essas três pontes, nós estamos inaugurando agora um convênio com a prefeitura e com o governo do estado, inaugurando uma sede no centro histórico de Salvador, Sirkis está inaugurando uma sede no Rio de Janeiro, estamos com um banco de projetos, vários que foram se acumulando e que agora nós estamos procurando parcerias, então temos gente da área publicitária se associando a nós, o Sérgio Amado, o Washington Olivetto, o pessoal chegando para a gente agora tentar alavancar.

Washington Novaes: Pois é, vocês que trataram tanto da água. São Paulo hoje ficou de novo sob a água [risos].

Gilberto Gil: Toda vez que chove muito é uma tragédia São Paulo!

Washington Novaes: Eu levei 3 horas e 40 minutos, dentro de um táxi, do aeroporto de Congonhas até aqui na televisão, que são mais ou menos 20Km. Você fez com Caetano um samba, não é? Hoje, como ambientalista e como músico que você é, que música você faria para São Paulo, que vive esse tormento?

Gilberto Gil: Não sei, para traduzir poeticamente esse nosso vexame, essa agonia que a gente vive, eu não sei. Caetano fez uma música belíssima [Gil canta] “Purificar o Subaé, mandar os malditos embora..”, aquela sobre o rio Subaé, que é um pequeno riozinho que corta Santo Amaro, enfim. E que também...

Washington Novaes: A esquina da Ipiranga com São João ficou debaixo d'água!

Gilberto Gil: Ficou, e fica porque impermeabilizaram São Paulo com asfalto, as grandes metrópoles são impermeabilizadas, especialmente quando o desenvolvimento urbano é feito, enfim, açodadamente, em duas, três, quatro, cinco décadas, sem planejamento... Eu me lembro muito bem da época do Faria Lima, "a pá e a rosa", aquela "vamos e tal”. E aquela pressa danada, injustificada, porque precisava, o sistema viário de São Paulo já estava em colapso, já não dava mais. Tinha que abrir os viadutos, tinha que fazer isso, tinha que fazer aquilo, e aí também o crescimento da indústria paulista, “São Paulo, alavanca do Brasil”, o crescimento imobiliário, tudo aquilo, e  tome asfalto, e tome prédio, e  tome isso, e tome aquilo, e tombam-se as árvores todas, e não sei o que, pá, pá, pá! Quando chove, as galerias fluviais, minimamente, o esgoto e tal, enfim, os projetos não tiveram a magnitude que teve o crescimento. O crescimento foi de uma magnitude, e a previsão, e a provisão, para isso tudo não foi feita na mesma magnitude. Esqueceram da água, então aí, quando bate, enche tudo, porque está tudo impermeabilizado, não tem para onde correr, não é? O solo não absorve mais, antes eram quilômetros e quilômetros e quilômetros quadrados de terra roxa que pegava aquilo tudo, levava pra baixo. E aí aquilo ali ia para os lençóis freáticos e tudo mais, escoava como normalmente escoa, agora não, tem que escoar conforme um padrão estabelecido recentemente pelo homem. Não é nem num gabinete não, é no afã do crescimento mesmo, da gente, da coisa, dos lotes que vão sendo construídos nos terrenos, nas fábricas, nas estradas, e tudo que vai tomando o lugar da terra. Então a água não corre mais para lugar nenhum. Vai correr e aí [barulho com a boca] sobe! É um problema.

Norma Couri: Gil, eu queria ir por um outro caminho que não é água, mas é Bahia. De repente se formou um grupo dos baianos – Gal, Bethânia, Caetano, você – que marcou a história musical brasileira e continua marcando, não é? Bethânia está com um disco aí, você está com outro, Caetano também, enfim.... Eu queria que você falasse um pouco daquele período brasileiro da Tropicália e se você acha que só aquele Brasil poderia ter produzido aquele tipo de música, e por que não acontece um movimento tão forte, hoje, outra vez no Brasil?

Gilberto Gil: Bom, eu acho que sim, quer dizer, na medida em que a gente interpreta o seu tempo, sua história, que a gente está inserido na vida que a nossa comunidade vive, eu acho que só a gente poderia fazer aquele tipo de movimento. Aquela visão era uma visão que só aquela época propiciava, era um momento em que o mundo oferecia aquelas novas ferramentas de análise, de interpretação, de revolução do terreno artístico cultural, para que as coisas fossem feitas... Está aqui ele [referindo-se à Tom Zé] que não me deixa mentir. São São Paulo, estamos falando agora da cidade não é? A gente vindo de lá, dos interiores, da Bahia, para o mundo, com aquilo, com O Capital debaixo do braço, a leitura de Marx, as interpretações, os filósofos todos, Focault, e não sei quem, e não sei o que mais, as várias leituras, os cenários possíveis para o mundo, a revolução, a revolução cubana, as guerras de independência da África, tudo aquilo era um mundo, o sonho do socialismo, e tudo aquilo, um pouco mais em um, um pouco menos em outro, um mais comunista, o outro menos e tal, um acreditando, o outro não. A gente já questionava muito a questão do império soviético, a falta de liberdade de expressão lá na União Soviética. A gente já era uma dissidência, vamos dizer assim, da chamada esquerda clássica que acabou se configurando em uma dissidência profunda com as esquerdas aqui nos festivais e etc. Enfim, aquilo era um pano de fundo de tudo aquilo que a gente fazia na época, não vejo que poderia ter sido de outra forma, aquilo era o mundo, aquilo era o Brasil, aquele era o dado da realidade com o qual nós trabalhávamos, éramos elementos da cultura que vinham dos hippies, da recém instalada cultura das drogas, o cinema francês, a Nouvelle Vague, tudo aquilo, Jean-Luc Godard, e Fellini por outro lado, e Buñuel, tudo aquilo, aquele mundo todo, e Glauber Rocha aqui, o Cinema Novo. Eu acho que aquilo era insubstituível, não é? Aquilo que surgiu daquilo, só podia ser aquilo! [risos]

Paulo Markun: Voltando a pergunta da Norma, é o seguinte, você acha que é possível hoje surgir um movimento, digamos assim, semelhante em termos de influência na música popular e no comportamento cultural?

Gilberto Gil: Claro que sim, agora para trabalhar, para tratar uma outra realidade, para tratar o mundo de hoje! Tratar do mundo de hoje com uma fragmentação [interferências] já no nível da globalização, a fragmentação e ao mesmo tempo a unidade, os problemas, o governo mundial aí às portas, quer dizer, é uma outra agenda, completamente diferenciada.
 
Lorena Calábria: Falando no mundo de hoje...

Norma Couri: Você gosta da música que os novíssimos baianos fazem hoje em dia

Luis Antônio Giron: Axé music!

Norma Couri: Axé music, a Bethânia execra, eu queria saber o que você acha.

Gilberto Gil: Eu não execro não, eu gosto, porque eu vi, eu acompanho de perto há muito tempo, eu vejo como aquilo tudo surgiu. Eu vejo o trio elétrico, o frevo chegando de Pernambuco, chegando ao trio elétrico, depois Moraes Moreira, através dos instrumentistas e aquela “popização” do carnaval, com aquela coisa feérica, aquela nave, aquela pequena nave mãe, do trio elétrico...

Luis Antônio Giron: Hoje é uma indústria não é? O carnaval baiano!

Gilberto Gil: Sim, sim, hoje é uma grande indústria, como o pagode é, como o axé é, como a MPB é, como o rock é, como qualquer coisa que tenha que viver do mercado.

Paulo Markun: Isso é bom ou ruim?

Gilberto Gil: É bom e ruim como qualquer coisa. O quê que é só bom, o quê que é só ruim? Não conheço nada! Nem pai, nem mãe, nem filho, nem amor, nem casamento, nem céu. Nem o céu é só bom, tem alguma coisa ruim lá!

Paulo Markun: A falta de rede de esgoto é ruim, desrespeito ao meio ambiente é ruim, não eleger o presidente da República é ruim, o que eu digo é o seguinte, quando você fala em indústria...

Gilberto Gil: Eu sei, os déspotas esclarecidos há exemplos vários na história!

Lorena Calábria: Então, vou dar um exemplo, isso que o Markun estava falando...

Gilberto Gil: Muita gente querendo a monarquia. [risos]

Lorena Calábria: Quem defende, por exemplo, a axé music, defende com o seguinte argumento, pelo menos no Brasil, nesse momento atual, a gente está ouvindo mais música brasileira na rádio do que em décadas passadas onde predominava a música americana. Você acha que isso é válido, esse argumento?

Gilberto Gil: Isso é um argumento reducionista como um outro qualquer, pode ser até um bom argumento em certo aspecto. Eu tenho um outro argumento, por exemplo, que também é parcial, também é reduzido, que é a emergência de setores populares, não só no axé, mas no pagode, no sertanejo, gente que não tinha espaço, gente humilde, gente pobre, gente da periferia social brasileira, o rap, gente que enfim... A música brasileira era, basicamente, a chamada uma norma quase culta, digamos assim, uma certa, uma haute culture que havia, que era dominada pelos universitários, todos nós, eu, Caetano, Chico Buarque, Edu Lobos, os meninos do Rio, de Salvador, de Belo Horizonte, de São Paulo etc, das famílias de classe média, da pequena burguesia que tinham tido acesso à universidade, aquilo que eu estava falando, que vinham com O Capital debaixo do braço, que sabiam os filósofos, isso e aquilo, a informação de fora e tal, que operavam aqui os signos da modernidade, a quase pós-modernidade, enfim, e fizeram aquilo que era chamada boa música brasileira, e os poetas, e Antônio Carlos Jobim, e Vinícius de Moraes, e todo mundo, e etc etc,. Isso ficou como símbolo da boa música etc, etc, etc. Agora, eu pergunto, enquanto isso tem um povaréu brasileiro, uma massa enorme de brasileiros na periferia das cidades, dessas cidades mesmas, de Salvador de todo lugar e etc, que estavam chegando, mal educados, pouco educados, maltratados, sem hospital, sem isso, sem aquilo, mas cresceram, fizeram um milagre brasileiro de crescer, de sobreviver, não fazem parte das estatísticas da mortalidade infantil, venceram a mortalidade infantil do Brasil. O quê que se faz com eles? Axé music, música sertaneja, pagode e etc, eles estão fazendo a música deles. Qual é o problema? Eu não vejo problema nenhum nisso. Ah, mas o quê? São meninos com a escolaridade média, baixa em muitos casos, então quer que eles escrevam sobre o quê? Vão escrever sobre mecânica quântica, como eu? Não vão! [todos falam ao mesmo tempo] Eu defendo isso. Um dos argumentos para mim é esse, é parcial, é reduzido também, não é abrangente como tudo, mas é esse, essa música oportuniza o acesso, oportuniza a possibilidade de expressão, dá espaço para expressão, dá dinheiro, dá renda para esse pessoal. Eles dominam a TV Globo, o SBT, entendeu? Preenchem o espaço, estão lá, aos sábados, nos programas da Xuxa, do...

Luis Antônio Giron: Mas são poucos, esses são artistas que conseguem chegar lá, mas são poucos.

Gilberto Gil: Ah, mas é sempre assim.

Luis Antônio Giron: Mas não é popular no sentido... é popular porque, claro, todo mundo gosta, agora você acha que o axé music...

Gilberto Gil: Mas eles representam setores populares, os músicos que tocam com eles, os criadores, as pessoas que trabalham, que operam trio elétrico, os sistemas empresariais que estão por detrás deles, são todos, é uma emergência.

Paulo Markun: Você aposta numa evolução. Daqui a duas ou três gerações essa música vai ser melhor, é essa a visão que você tem ou não?

Luis Antônio Giron: Você acha essa música boa? Você ouve essa música?

Norma Couri: Quando você vai comprar um disco você não pensa nessa coisa...

Gilberto Gil: Eu não estou entrando no mérito das coisas...

Paulo Markun: Mas eu queria que você entrasse...

[todos falam ao mesmo tempo]

Gilberto Gil: No mérito artístico, musical, etc, tem coisas interessantes. Mas, eu vou lhe contar um episódio que aconteceu comigo: eu estava nos filhos de Gandhi, no carro dos filhos de Gandhi, parado ali perto do Farol da Barra, 5 horas da tarde, nos aprontando para iniciar o desfile. De repente, nós estávamos atrasados, com problemas e tal, não podia, não ligou o microfone e tal, tem que dar o lugar para um outro trio que vem de trás, o grupo que vem de trás, o bloco que vem atrás, nós só vamos sair depois. Emparelha com o nosso caminhão, o caminhão do trio que vem depois, eu não estou vendo, está na mesma altura, estou ali cuidando, de ligar o microfone, e chama o diretor de não sei o quê, e de repente começa a tocar um samba, maravilhoso [faz um som com a boca], aquele samba forte, industrial, com contrabaixo e bateria, bem postos, no lugar, aquele ritmo bem, sabe? Tudo bem feito e tal. Eu parei e pensei assim: “mas que música boa, que coisa bem feita, que capacidade, que som bem tirado, que amplificação bem feita, que competência”. Aí daqui a pouco o menino acabou de cantar o número, e aí eles começaram a desfilar e eu vi na frente do caminhão as duas meninas do Tchan e o rapaz. Aí foi que me dei por fé que era o Tchan que tinha tocado ali do meu lado, aquele samba que eu tinha gostado tanto. Então eu vou dizer o quê? Que eu não gostei! Depois que eu descobri que é o Tchan, eu vou dizer que não gostei, porque é o Tchan! Eu não vou mentir, mentir para mim, para a minha própria sensibilidade, para a criança que eu trago, que eu prezo, que eu zelo por ela...

Luiz Antônio Giron: Mas o Tchan é uma exceção, tem outros muito piores...
Gilberto Gil: Não é uma exceção não, daquele nível tem muitos na Bahia, e no pagode é a mesma coisa. Você pega o Só pra Contrariar e vários outros grupos com aquele mesmo nível, e na música sertaneja a mesma coisa, você pega três, quatro, cinco duplas que são boas, que fazem, que sabem cantar, que vão para os estúdios, que sabem produzir, que sabem dirigir, que sabem indicar o que querem fazer, o que querem interpretar, que interpretam muito bem o sentimento popular, traduzem aquilo na sonoridade, na letra, no tema, no assunto descrito pelas canções, enfim, é a música do... Agora eu vou ficar contra meu povo! Por que razão? Contra uma coisa que são setores populares importantes, interessantes, que foram excluídos historicamente até então porque havia... “só na fase popular da história” como diz o professor Milton Santos, “é que esses setores podem emergir mais fortemente para participar da vida cultural”. Eu não posso ser contra isso, eu posso não gostar, gostar menos de uma coisa ou gostar de outra, mas ser contra o fenômeno, quer dizer, eu acho um atraso de vida ficar lutando contra o povo brasileiro.

Humberto Werneck: Se eu chegar na sua casa hoje quais são os discos que eu vou encontrar fora da caixinha? O que você está ouvindo?

Luiz Antônio Giron: Além do Tchan, é claro!

Gilberto Gil: Eu ouço muita pouca coisa, eu vou muito pouco ao cinema, das coisas do mundo da arte, da cultura assim, a coisa que eu mais faço é ler, eu leio muito, sempre estou lendo, vários livros e tudo. Ouço poucos discos, quando eu quero ouvir alguma coisa, estou sentindo falta do disco para botar ali, para ficar de tarde ali, quieto em qualquer canto, tem duas coisas que eu escolho automaticamente, é cego, é meio vôo cego, é João Gilberto e Bob Marley. É isso que eu ouço.

Lorena Calábria: Gil, eu queria falar de um ambiente que não é o meio ambiente, mas que é um ambiente que você simpatiza, que não sei se você anda freqüentando ultimamente, que é o ambiente da rede, a internet, e eu queira aproveitar e voltar à história dos direitos autorais. As gravadoras estão se mobilizando para acabar com essa história de, por exemplo: “eu posso entrar na rede, ouvir sua música, gravar a sua música e você não recebe, nem você nem ninguém, recebe direitos autorais”. Qual a sua posição em relação a isso?

Gilberto Gil: Eles estão lutando há anos, quer dizer, os jurídicos das grandes corporações internacionais da área de comunicações, estão, há anos, reunidos em fóruns internacionais exaustivos, tentando imaginar como é que configura...

Luiz Antônio Giron: Você sabia que tem músicas suas no MP3, nesse arquivo? É só pegar lá.

Gilberto Gil: Eu sei. Mas eles estão se virando para saber como é que se estabelecem os controles e como é que se estabelece legislação, quer dizer, como é que se configura esse direito, quer dizer... É uma coisa nova demais, não se sabe ainda.

Lorena Calábria: Eu queria saber a sua posição como artista.

Gilberto Gil: A minha posição é que tem que deixar rolar tudo...

Lorena Calábria: Tem que liberar geral?

Gilberto Gil: Não sei se tem que liberar! Não tem que liberar tudo, mas tem que deixar rolar, tem que deixar que os jurídicos se reúnam, que eles tentem configurar uma nova proteção de direitos a tudo isso, mas enquanto isso, enquanto eles estão fazendo isso, a turma está se divertindo, a pirataria está correndo solta por aí, e vai fazer o quê?

Lorena Calábria: Tem artista que é favor porque acha que se você é fã da música você vai acabar comprando o disco, você vai querer ter em casa o CD, o encarte, ou seja que não vai acabar o CD.

Gilberto Gil: Eu sei, mas daqui a 20, 30 anos ainda teremos discos? Ainda compraremos, venderemos? Quer dizer, a salvaguarda do direito autoral, que é essa instituição criada no mundo dos negócios, no mundo das trocas do capital, das trocas do valor material, quer dizer, esse valor espiritual se tornou um valor material, e agora tem que ser protegido porque, enfim, tem autor, vai de Picasso a Antônio Carlos Jobim, quer dizer, tem que ser protegidos aí pelo mundo inteiro, as famílias, os herdeiros, os interesses todos. Como é que faz isso? Eles têm que achar um jeito e estão estudando há anos, há 10 anos que estão trabalhando nisso, e ao mesmo tempo a renovação tecnológica é acelerada e tal. Não sei qual vai ser o suporte, daqui a alguns anos vamos ter discos ainda, discos vão ser vendidos nas lojas, ou a gente vai baixar arquivos?

Luis Antônio Giron: O que se discutiu, a MP3, é esse arquivo que se baixa hoje, com qualidade digital.

Lorena Calábria: Você vai ouvir onde quiser!

Luis Antônio Giron: Você chegou a experimentar esse tipo de recurso? Porque hoje está dominando...

Gilberto Gil: Ainda não, ainda não. Há três anos atrás tinha um menino inglês que estava aqui tentando convencer, ele já tinha uma tecnologia, já tinha desenvolvido uma tecnologia, um software, para isso, para baixar arquivos de música, para fazer junkebox na internet, em resumo, e ele estava aqui oferecendo às gravadoras todas aqui do Brasil essa tecnologia e ela era visto, assim, com muito receio por todo mundo. Ele acabou até, não sei o que foi feito dele, não sei se essa tecnologia, se ele conseguiu vender ou não. Mas, similares a essa já há várias hoje no mundo inteiro. Como é que controla isso? É complicado, eu não sei.

Paulo Markun: Gil, nosso tempo está acabando e tem uma série de perguntas que, não só eu, mas que os telespectadores gostariam que fossem abordadas e eu vou tentar fazer isso. A primeira aqui é de Luis Carlos Laranjeiras, aqui do Butantã, e outras pessoas, que é a seguinte: “Não consigo entender como você, artista combativo, poeta da resistência cultural, ícone de toda uma geração de luta está sempre, assim como Caetano, enaltecendo, na opinião dele erroneamente, a figura de Antônio Carlos Magalhães”.

Gilberto Gil: Eu não estou sempre enaltecendo o Antônio Carlos Magalhães, eu não tenho necessidade disso, eu não vivo produzindo discos laudatórios, enaltecedores a ele. Aliás, um dia, em um programa de televisão, o Juca Kfouri, eu até fiz esse reparo, o Juca foi gravar comigo um programa em Paris, na ocasião da Copa e eu me encontrei com ele e disse: “Juca eu vi um programa seu outro dia onde você dizia que na Bahia, entrevistando alguém, você dizia que, na Bahia todos os artistas pedem a benção, enfim, se curvam diante de Antônio Carlos Magalhães, de Carlinhos Brown a Gilberto Gil”. E eu disse a ele: “De onde você tirou isso, de que a gente vive pedindo a benção, fazendo laudas públicas assim a Antônio Carlos Magalhães?” Não tem nada disso, essa subalternidade, essa idéia de relação subalterna, não existe. Não é bom para ele, nem ele quer isso, não precisa disso não. Ele quer relações normais de respeito, enfim, de consideração, é tudo que tem. Onde que alguém já viu, me diga! Cite esse rapaz aí, aonde foi que eu fui para público dizer: “Viva Antônio Carlos Magalhães” ou qualquer coisa desse tipo. Eu nuca fui, ele não precisa disso! Na hora que nós precisamos discutir qualquer coisa, discutir as questões da Bahia, enfim, pelas quais ele é sempre muito interessado, enfim, um Estado pelo qual ele trabalha, está lá o povo que pode dizer, ele gosta de trabalhar pela Bahia. Toda vez que a gente tem que discutir qualquer problema relativo à Bahia, ou da política nacional, ou qualquer coisa, a gente se senta. Ele é um homem educado, sempre me tratou muito bem, quando eu fui preso pela ditadura, eu e Caetano, quando nós chegamos em Salvador, ele nos recepcionou, fez questão de nos recepcionar e, enfim, de nos franquear a cidade dele, ele era prefeito da cidade, na ocasião, e tudo mais. E, de lá para cá, temos tido boas relações, às vezes até abaladas. Uma vez quando ele, na ocasião da eleição para a presidência em que o presidente Fernando Henrique foi eleito, meses antes, muitos meses antes, especulava-se na Bahia, numa coletiva de imprensa na Bahia, me perguntaram: “O que você acha da candidatura de Antônio Carlos Magalhães?” Eu disse, naquela ocasião: “Olha, é uma candidatura que pode ser legítima como qualquer outra, ele é um político que tem uma vida política clara no país, viva, todo mundo sabe, agora, vai ter dificuldades pelo fato de ele ter sido associado, e a associação ainda recente da imagem dele, com a ditadura, pode dificultar em áreas que não a Bahia”. Ele viu isso no jornal e fez uma carta zangada para mim e eu fiz uma carta, respondi a ele, com uma carta também zangada! Não zangada, mas a altura da zanga dele. Ficamos um tempo assim, depois nos encontramos, um ano, um ano e meio depois, na casa do Jorge Amado, quando Jacques Lang, ministro da Cultura francês, era recepcionado com um almoço na casa do Jorge Amado e, enfim, nos falamos e tal, e sempre... E, de lá para cá, temos tido um relacionamento normal, assim, mas nunca precisei bater palmas e vivas e declarações enfim, laudatórias, e etc, a Antônio Carlos Magalhães, nem nada disso. Eu não acho justa essa colocação do rapaz aí que perguntou.

Paulo Markun: A Patrícia Villar, de Pinheiros aqui de São Paulo, pergunta: Que tipo de problema você tem na voz e se você está fazendo algum tipo de tratamento?

Gilberto Gil: Eu tenho um pólipo que é popularmente conhecido como calo na voz, eu tenho um calo na corda direita, enfim, que causa rouquidões freqüentes assim e tal. Estou tratando normal, já tive indicação cirúrgica, não fiz a cirurgia, porque várias pessoas me desestimularam, inclusive uma fã americana que me fez um e-mail lá de Washington dizendo: “Não, não opere não, não faça operação não! A Julie Andrews perdeu a voz por que fez essa operação, ficou sem voz”, parece que só agora, quase dois anos depois que ela está recuperando a voz, enfim eu estou tentando. Fiz sessões de fonoterapia e tal, estou controlando, vendo, quero voltar a cantar. Caetano disse assim: “Dê um descanso a sua voz”. Eu ouço muito Caetano, em muitas coisas, todo mundo sabe disso não é hoje, e ele disse: “Dê um descanso a sua voz”. Quando eu voltei da Europa, depois da Copa, daquela excursão longa e com jogos de futebol no meio, tudo aquilo, eu voltei com a voz muito cansada e ele disse: “Dê um descanso”. Eu passei meses sem cantar, agora eu cantando, e ele me disse ontem de noite: “Eu lhe vi Faustão hoje, fiquei contente com sua voz, você está cantando, está conseguindo cantar, sua voz está clara, e tal”. Então estou vendo, quero voltar, não vou voltar mais a usar como usava, tão abusivamente, tão intensivamente como eu usava antes. Já estou com 56, vou fazer 57 anos, não posso mais fazer isso, tenho que tomar cuidado, tenho que cuidar, agora quero voltar a cantar um pouco intensivamente, para ver se eu agüento uma semana de temporada, duas semanas de temporada, se eu não fico rouco, se eu não, enfim, se eu não depredo a voz de vez assim, se precisar fazer uma operação lá na frente eu vou fazer.

Gilberto Gil: Uma última pergunta: Você foi preso duas vezes, a segunda vez em Florianópolis, uma cidade onde eu vivo hoje e, até hoje, essa prisão é lembrada com um misto de vergonha e de orgulho. Vergonha por ter sido uma prisão envolvendo a posse de uma pequena quantidade de maconha, que levou você a julgamento inclusive, e orgulho porque as pessoas acham que Florianópolis te tratou bem. O que é que você lembra dessa prisão, e o que sobrou dessa história?

Gilberto Gil: As leis melhoraram de lá para cá, quer dizer, o porte de pequena quantidade é hoje contemplado, vamos usar esse eufemismo, não é? Com uma tolerância maior por parte da lei, quer dizer, aquilo poderia já existir naquela época, eu teria me beneficiado disso porque era um usuário, fazia uso de pouquíssimo...

Humberto Werneck: Não mais!

Gilberto Gil: Não, eu não fumo mais! Não agüento mais! É a mesma coisa da voz, esses abusos são abusos que você... Eventualmente ainda posso um dia até pensar, vou querer, vou dar um tapa, entrar num pequeno barato, uma coisa desse tipo, mas eu não faço mais uso, não tenho mais, não uso mais não! Eu não posso! Deixei de fumar até cigarro que eu fumava pouco, cigarro de tabaco, também deixei de fumar, porque o Stevie Wonder me pediu: “Deixe de fumar, não fume mais nada não”! Eu disse: “Não, não vou fumar mais nada”. [risos]

Lorena Calábria: Então você ouve o Caetano e o Stevie Wonder, né?

Gilberto Gil: E o Stevie de vez em quando, porque só de vez em quando, nós nos encontramos. [risos]

Paulo Markun: O quê que falta fazer Gil?

Gilberto Gil: Continuar vivendo...

Paulo Markun: Você disse que envelhecer está indo bem...

Gilberto Gil: Está indo bem até agora graças a Deus, a saúde está indo, está dando para viver bem. E uma coisa que eu tenho sempre, quer dizer, eu acho que todo o homem tem um sonho e alguns têm, no meu caso, eu tenho o meu, alguns têm seus sonhos esquisitos. O meu é o sonho da boa morte, meu grande desejo na vida hoje, minha grande ambição é a boa morte, e você me pergunta: “Mas o que é a boa morte?” Eu quero morrer velho, o mais velho que eu puder e mais sossegadamente, bem na foto, com saúde. Eu queria, assim, morrer como passarinho, apagar assim, isso é, não sei se a vida, se eu vou ser merecedor disso, se a vida vai me dar esse presente, mas é a minha ambição. Respondendo basicamente a sua pergunta, o que me resta mesmo de ambição, verdadeira, é isso, é a boa morte!

Paulo Markun: Gil, muito obrigado pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores.

Gilberto Gil: Obrigado a todos!

Paulo Markun: O Roda Viva volta na próxima segunda-feira sempre às dez e meia da noite. Uma boa noite! Uma boa semana! E até lá!

 

 

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