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Memória Roda Viva

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Niède Guidon

17/11/2003

Descobertas no Piauí feitas por Niède provocam polêmicas em torno da teoria sobre migração humana proposta pela arqueologia tradicional

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Paulo Markun: Boa noite! No nosso imaginário coletivo, o passado do Brasil só começa em 1500, quando Cabral aqui chegou e encontrou aquele grupo de índios na praia. A memória histórica mais geral criou a impressão de que nada ou quase nada existia antes, como se não houvesse um passado mais distante, uma antigüidade que pudesse revelar quem foram e como viveram os primeiros habitantes desta terra. Nós vamos tratar disso esta noite com uma arqueóloga que, há trinta anos, investiga nossas origens e que nesse trabalho fez importantes descobertas arqueológicas no Brasil e nas Américas. No centro do Roda Vida, esta noite, Niède Guidon, fundadora do Museu do Homem e que está ajudando a contar a pré-história brasileira através dos sítios arqueológicos descobertos no Piauí.

[Comentarista]: "Quem foram esses primeiro brasileiros? Como surgiram? Como viveram?" E quem imaginou que um dia teríamos de fazer essas perguntas em pleno sertão do Piauí e ali mesmo encontrar algumas respostas? É essa a paisagem deserta em São Raimundo Nonato, no sudeste piauense, que está ajudando a reescrever a pré-história brasileira. A área tem hoje a maior concentração de sítios arqueológicos das Américas, são mais de 700, além de um conjunto de mais de 25 mil desenhos rupestres, os mais importantes vestígios descobertos sobre nossa antigüidade. A região virou patrimônio cultural da humanidade e deu origem ao parque nacional da Serra da Capivara. As primeiras histórias novas da nossa história velha foram reunidas por uma equipe da TV Cultura que, em 1992, se embrenhou nesse sertão e produziu um documentário Pré-história da Pedra Furada. Num trajeto poeirento e penoso pela caatinga e pelas rochas, a equipe chegou à Toca do Boqueirão da Pedra Furada, em busca da personagem que começou a investigar a antigüidade no Piauí, Niède Guidon. Paulista, filha de francês com índio, formada em história natural na Universidade de São Paulo [USP] e graduada em arqueologia pela Universidade de Sorbonne, ela trocou Paris pelo sertão, em busca das pegadas do homem no Brasil pré-histórico. Ela chegou a São Raimundo Nonato em 1970, de jipe, atraída pelas pinturas rupestres que viu por fotografia. Com a ajuda dos moradores e mais duas viagens, foi ampliando as descobertas e, em 1975, montou a equipe de cientistas e auxiliares que fariam as escavações. Após dez anos de trabalho e muita terra revolvida juntou-se uma infinidade de ossos, pedras lascadas e restos de fogueira. O carvão estudado revelou que o homem passou por ali há cerca de 50 mil anos e contrariou a teoria de que a primeira chegada do homem ao Brasil foi há 12 mil anos. Esse homem teria origem nas tribos nômades da África que se deslocaram para a Ásia, enfrentaram as geleiras da Sibéria e, numa época que o estreito de Bering congelou, fizeram a travessia para o Alasca se espalhando depois pelas Américas. Niède Guidon sugeriu outra hipótese, o homem teria atravessado o estreito de Bering muito antes do que se calculou, ou ,então, ele chegou aqui pelo mar. As descobertas em São Raimundo Nonato foram parar nas principais revistas científicas do mundo, equipes de TV do Japão e da Alemanha vieram ao interior do Piauí ver as pinturas e o acervo da fundação Museu do Homem, criada por Niède Guidon, para mostrar o enorme quebra-cabeças de ossos, pedras e fósseis da vida exuberante do Piauí pré-histórico. Estes dentes grandes são do tigre de dentes-de-sabre que viveu aqui, a tíbia [osso da perna] é de uma preguiça gigante que pesava três toneladas e era maior que o elefante. Estas placas são dos cascos de um tatu que tinha o tamanho de um Fusca [modelo de carro popular da Wolkswagen]. Hoje, esse lugar seco onde o urubu-rei voa silencioso parece sobreviver apegado apenas à teimosia que sustenta a vida no sertão. A fundação Museu do Homem que, junto do Ibama [Insituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] cuida do parque nacional da Serra da Capivara, está sem verbas e não consegue fiscalizar caçadores, lenheiros. Durante décadas, milhares de árvores nobres foram cortadas e queimadas para transformar pedra em cal, tradicional fonte de renda da região. Restos desses fogos se intrometeram na paisagem, onde um outro fogo, há milhares de anos, deu luz e calor à vida que se busca desvendar nas rochas de São Raimundo Nonato. Nos desenhos mais antigos essa gente parecia alegre, dançava, registrava cenas de sexo. Mais tarde, outros desenhos, com mais cores, revelaram as primeiras cenas de luta, entre eles, que desfez grupos, e também de união para enfrentar animais perigosos. Esses povos podem ter desparecido há 6 mil anos. Depois deles, vieram outros na aventura humana de nascer, sobreviver e morrer. Deixaram pouquíssimos registros e há dúvidas sobre se desaparecerem ou se vieram a dar origem aos nossos índios. As crianças da região, que têm o privilégio de estudar ao vivo essa pré-história, se encantam e levam para seus cadernos as peças do quebra-cabeças da nossa história antiga. Quanto dessa história cormpõe nossas raízes e nosso espírito, não sabemos ao certo, apenas seguimos sem muita noção do futuro que nos espera e sem saber direito que passado tivemos.         

Paulo Markun: Para entrevistar a arqueóloga Niède Guidon, nós convidamos Ennio Candotti, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência; Ana Lúcia Azevedo, editora de "Ciência e Vida" do jornal O Globo; Pablo Nogueira, repórter da revista Galileu; Beto Ricardo, antropólogo do conselho diretor do Instituto Socioambiental; Mônica Teixeira, editora de Ciência e Tecnologia da TV Cultura e José Luis de Morais, arqueólogo, vice-diretor do MAE - Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade São Paulo [USP]. O Roda Viva é transmitido em rede nacional, ao vivo. Boa noite, doutora Niède!

Niède Guidon: Boa noite!

Paulo Markun: Eu queria começar com o seguinte: o que falta para que o parque da Serra da Capivara continue funcionando?

Niède Guidon: Bem, atualmente nós estamos tendo problemas de recursos para a manutenção, para o funcionamento do parque, para a proteção, porque nós, há 7 anos, começamos, junto com o Ibama, um programa de vigilância bastante cerrado de maneira a conseguir a recuperação da fauna. A fauna se recuperou muito bem, a flora também, o parque está absolutamente em estado fantástico, mas tudo isso exige uma permanência constante naquela região e nós estamos agora com dificuldades bem grandes, por causa de todos esses cortes que aconteceram no orçamento e já se repetiram há alguns anos, mas que atualmente têm se acelerado.

Paulo Markun: Quanto de dinheiro e quem tem que dar esse dinheiro?

Niède Guidon: É um parque nacional, portanto ele depende do Ibama, do ministério do Meio Ambiente e também, como nós somos um patrimônio da Unesco [organização das nações unidas para educação, ciência e cultura], um patrimônio do Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], um patrimônio nacional, nós dependemos do ministério da Cultura. E ambos os ministérios, infelizmente, são sempre os que têm mais problemas de recursos. Apesar da melhor boa vontade que têm os funcionários, os ministros, o que nós temos atualmente é uma situação onde não existem mesmo recursos. E nós estamos chegando ao fim da nossa própria disponibilidade. Inclusive, com a greve do Ibama, nós estamos tendo que abastecer os carros do próprio Ibama, porque a situação está muito difícil e não sei até quando... Mês passado, eu tive que dar pré-aviso a todos os nossos funcionários, eles se reuniram, disseram que não querem deixar o trabalho, porque eles disseram "tudo que nós fizemos, se nós deixarmos, vai ser destruído", então eles estão trabalhando como voluntários, sem saber se vão ganhar ou não. São todos pais de família, todos eles precisam desse dinheiro e nós estamos tentando resistir ao máximo para que o trabalho desses 30 anos não seja destruído.

Paulo Markun: Mas o presidente Lula não falou uma vez, pelo menos eu vi numa declaração da senhora, que ele queria transformar isso no maior parque arqueológico do mundo?

Niède Guidon: Sim, ele falou quando esteve lá. Nós estivemos com ele, nós estivemos naquela recepção que houve em Teresina e isso foi declarado. Mas, depois disso, eu acho que houve contingências econômicas e esse parque representa um investimento extremamente importante. Nós tivemos investimentos do Banco Interamericano [Banco Interamericano de Desenvolvimento, entidade ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA) e destinada à promoção do desenvolvimento econômico e social da América Latina e do Caribe], do próprio ministério do Meio Ambiente, do Fundo Nacional do Meio Ambiente e construímos uma infra-estrutura perfeita, uma infra-estrutura que faz dele, hoje, o melhor parque da América Latina. Preservamos os sítios arqueológicos, que são um dos maiores tesouros que o Brasil tem. Especialistas da Unesco consideram as pinturas da Serra da Capivara da mesma qualidade artística daquelas da França [está se referindo às pinturas rupestres encontradas por crianças na gruta de Lascaux, perto de Lyon, que datam de 11 mil anos]. Nós temos um potencial turístico imenso. Hoje, nós temos mais... nós já estamos com 518 sítios com pinturas. É a maior concentração de todo o mundo. Esses sítios foram preparados para a visitação pública, hoje nós já temos 126 sítios preparados, perfeitamente preparados... que o visitante, primeiro, ele não pode depredar a pintura, estragar as camadas arqueológicas, mas ele pode fotografar de perto, ele está protegido, não corre riscos para a sua integridade física. De maneira que foi tudo feito com muita atenção para que esse parque tivesse esse potencial turístico, que é a maneira que nós vimos, naquela região, de criar um processo de desenvolvimento econômico e social. Porque quando nós recebemos a incumbência do Ibama de preparar um plano de manejo, um plano de proteção do parque nacional, a primeira coisa que nós decidimos é que era impossível você preservar a cultura e a natureza num local de miséria, de fome, de ignorância. E que seria necessário criar escolas de alto nível, preparar aquela população e criar novas fontes de trabalho. Porque o que eles querem, o que eles dizem sempre, é que eles querem trabalhar, eles precisam trabalhar. Porque se eles não têm onde trabalhar, eles vêm para a cidade. Mas ninguém gosta deles. Eles deixam a família, deixam os filhos, vem para São Paulo, para Brasília, mas eles procuram ficar. E se tiverem emprego, eles ficam lá. E eles entenderam que o parque nacional é a única possibilidade. Porque eu trabalho lá há 30 anos e há 30 anos eu vi diversos programas governamentais de desenvolvimento, através do antigo Dnocs [Departamento Nacional de Obras contra a Seca], da Sudene, do Banco do Nordeste. Há 60 anos que existem projetos e dinheiro colocado lá. E a cada novo presidente que é eleito nós ouvimos a mesma coisa. Nordestino está morrendo de fome, de sede, nós temos que fazer a transposição do São Francisco, nós vamos fazer projeto, tal, e vamos melhorar o Nordeste. Passam-se quatro anos, oito anos, o novo presidente declara a mesma coisa. E o que me assusta muito é que, nesses 30 anos, quando lá cheguei, o rio Piauí corria. Da ponte, no meio da cidade, as pessoas pescavam, tiravam peixes grandes. A cidade de São Raimundo Nonato tinha umas dez lagoas, onde havia garças, patos... os patos selvagens até hoje tem. Só que as lagoas não existem mais. Tudo foi sendo aterrado pelo processo de erosão violenta, por causa do desmatamento. O solo é extremamente frágil, arenoso, os vales foram se enchendo de areia, é costume jogar todos os lixos dentro dos rios, das lagoas. Lagoas foram aterradas para construir casas em cima delas. Nós assistimos a essa degradação, nós temos, inclusive, dados que demonstram a diminuição da chuva. E, cada projeto novo, de plantação de caju, financiado... eles plantam e depois o que acontece? A terra, depois de um certo número de anos, no começo é aquela maravilha, aquela produção, depois de 5, 10 anos, a terra está desgastada, o deserto se instala e eles vão desmatar uma outra porção.

Beto Ricardo: Doutora Niède, o que a senhora disse agora confere justamente com a imagem que o brasileiro tem no seu imaginário sobre a região da caatinga, onde fica o parque. Ou seja, uma área seca, de cactos, de gente pobre, passando fome, passando sede. Agora, como a sua equipe fez uma pesquisa de uma profundidade temporal bastante grande... quer dizer, esta região foi sempre assim? Como é que evoluiu, por que chegou nessa situação?

Niède Guidon: Quando nós chegamos, por exemplo, todas as partes baixas, que lá eles chamam de baixões e boqueirões, eram cobertas por florestas de aroeiras, pau-d'arco, angelim, árvores enormes. Nós temos, até hoje, lá na região, espécies animais e vegetais da Amazônia e da Mata Atlântica. A vegetação mais seca, espinhosa estava nas zonas de chapada e zonas onde o solo era muito pouco profundo, onde a rocha já aflorava ou estava perto da superfície. O que nós assistimos foi o desmatamento. E o desmatamento sempre incentivado pelos financiamentos para fazer fazenda para gado. Depois, então, uma vez desmatado, você não tem condições de criar capim nem de desenvolver nenhuma criação, porque a região, realmente, é uma região de sol e de uma irregularidade de chuvas, que não é favorável a essas atividades agrícolas e pastoris. Sobretudo se desmata, se vende a madeira e, durante um certo tempo, se vive da venda do produto da madeira. Aí quando se falta o dinheiro, se vai atrás de um novo financiamento. De maneira que não existe nada que seja contínuo e, sobretudo, nesses 30 anos eu não vi nenhum projeto que deu certo. Agora, o que me assusta é, exatamente, essa incapacidade de analisar, de ver as razões de tudo isso, da miséria continuar depois de tanto investimento e procurar novas saídas. E foi isso que nós, com a nossa equipe, procuramos e, finalmente, de tudo aquilo, foi feito um estudo, com o apoio da Itália, do qual participaram alguns economistas do Banco Mundial e de agências de desenvolvimento brasileiras, em que chegaram à conclusão que naquela região com o desenvolvimento sustentável nós teríamos realmente o turismo e outros tipos de cultura, como por exemplo, as plantas ornamentais, cactos etc. Outro dia eu li uma reportagem... As floriculturas de Teresina importam de São Paulo os cactos que elas vendem lá. Porque quando você diz para aqueles agricultores "mas por que vocês não plantam cactos? Vocês precisam aprender uma fórmula, isso pode ser de alta rentabilidade", eles dizem "mas quem é que vai querer comprar essa coisa horrível, cheia de espinhos?". Então, o que precisaria era justamente essa diversificação, plantar as plantas que são mais adaptadas àquele tipo de clima. Se você começa a plantar mangas ou então outro tipo de coisas, você vai, o gado precisa de muita água. Essa discrepância entre a capacidade ecológica da região e aquilo que se pretende.

Mônica Teixeira: Agora, o que falta para que o turismo cresça no parque?

Niède Guidon: Falta um aeroporto. Nós estamos com essa tragédia do aeroporto desde 1998. Foi liberada a primeira parcela e depois nada aconteceu. O governo atual, o ministro Mares Guia [Walfrido Silvino da Mares Guia Neto, ministro do Turismo], inclusive, se comprometeu e, inclusive, já liberou o dinheiro, a primeira parcela já está em Teresina. A licitação que deveria ser terminada em setembro... parece que houve recursos e ela se arrasta até hoje. Quer dizer, nós não temos e a região é muito distante, as estradas são péssimas...

Mônica Teixeira: Quer dizer, hoje, para ir ao parque nacional da Serra da Capivara, a pessoa vai a Teresina ou não?

Niède Guidon: De Teresina para lá nós temos 540 km de estradas péssimas. O mais fácil é ir até Petrolina, que é o aeroporto mais próximo... que são 300 km. Mas, de toda maneira, é difícil você chegar lá, e nenhum empresário quer começar a fazer um investimento se ele não tiver um aeroporto. Aliás, o estudo que foi feito pelo ministério da Aeronáutica, pela Infraero [empresa pública responsável pela fiscalização aérea no Brasil], o próprio aeroporto... ele só terá uma rentabilidade se houver um hotel que tenha uma capacidade mais importante. A cidade já tem, hoje, uns 4 ou 5 hotéis, uns 150 leitos, empresários locais já começaram a investir nisso.

Mônica Teixeira: Mas, o parque hoje é visitado? Quer dizer, já existem turistas abnegados?

Niède Guidon: Sim, o parque já é bem visitado. Este ano de 2003 nós realizamos lá um festival internacional, no palco da Pedra Furada. Em 5 dias, nós tivemos 7 mil pessoas, apesar de não ter ainda um acesso razoável e ter poucos hotéis.

Ana Lúcia Azevedo: A caça, hoje, é uma ameaça? O parque tem uma fauna muito rica?

Niède Guidon: É, a fauna hoje está voltando muito bem. A caça é um perigo, porque se vende muito, se vende também para a Bahia, principalmente. E, infelizmente, a caça é proibida, mas é muito difícil, porque um caçador, por exemplo, o Ibama... nós não temos o direito de prendê-lo. O Ibama é que realiza, os nossos guardas... quando encontram alguém, têm que chamar a polícia militar nas prisões, leva-se o caçador para a cidade e daí a meia hora ele está livre.

Ana Lúcia Azevedo: E o parque tem fauna de grande porte?

Niède Guidon: Tem, tem bastante veado, caititu [mamífero também conhecido como cateto ou porco-do-mato]. Agora, nós temos também uma grande quantidade de onças, que voltaram. Porque também o estilo de habitat em torno do parque é um habitat muito disperso. Você tem pessoas... são 240km de perímetro, com gente morando... tudo ao longo. Geralmente, aqueles que estão perto do parque são os mais pobres e uma das maneiras deles conseguirem dinheiro é caçar e ir vender na cidade.

Ana Lúcia Azevedo: E essa fauna seria uma remanescente da fauna que conviveu com o pré-histórico, um pouco mais à frente?

Niède Guidon: Sim, aquela região foi muito rica, do ponto de vista da natureza. Tinha muita água. Inclusive, nós estamos agora com um projeto de pesquisa em que nós estamos fazendo a reconstituição da evolução do clima e da paisagem. Temos encontrado, inclusive, vestígios de terraços fluviais, lá no alto da chapada, que agora nós estamos tratando. Mas foi, então, uma região muito rica e teve uma fauna extremamente abundante. A dominante eram as lhamas. Nós tínhamos cavalos, preguiça-gigante, mastodonte e essa fauna perdurou até 5 mil anos atrás.

Ana Lúcia Azevedo: Mas, havia onça, veado, todos esses animais?

Niède Guidon: Sim, havia também. A fauna de pequeno porte, a megafauna e os que desapareceram foram realmente aqueles de grande tamanho, porque a capacidade do meio-ambiente, hoje, não é mais a mesma, eles não teriam condições de sobreviver.

Mônica Teixeira: Professora, só para terminar, quanto custa o aeroporto?

Niède Guidon: O aeroporto, eu acho que, em 1997, ele havia sido licitado em R$ 25 milhões. Agora, eu ouvi dizer que seria da ordem de R$11 milhões.

Mônica Teixeira: E aí esse dinheiro teria que ser a Infraero... teria que disponibilizar isso?

Niède Guidon: Exatamente, o ministério do Turismo. Em princípio, é o ministério do Turismo, que já liberou uma primeira parcela. Agora, o aeroporto... foi escolhido pela aeronáutica o local. É plano, o solo é muito pouco profundo. A rocha está ali perto, quer dizer, não vai ser um aeroporto que vai exigir uma despesa muito grande para a pista. Inclusive, nós tínhamos... O presidente do Banco Interamericano, Iglesias [Henrique V. Iglesias], ele veio visitar o parque. Ele ficou absolutamente apaixonado pelas pinturas, foi aí que ele fez com a fundação um convênio, nos repassou recursos para fazer a estrutura básica do parque e disse que quer voltar ao parque, mas ele quer voltar no aeroporto local. Inclusive, ele disse, em 2001, ele disse: se vocês conseguirem recursos e começarem o aeroporto este ano, o BID financia o término. Comecem, que a gente termina.

Mônica Teixeira: É que falta, sei lá, decisão do governo brasileiro?

Niède Guidon: Falta decisão e vontade política de fazer isso.

José Luis de Morais: Niède, mudando de assunto um pouquinho, nós sabemos que a arqueologia, hoje, transita entre pesquisa acadêmica e a prestação de serviços em arqueologia. Você dirige, com muita competência, uma ONG, atividade do terceiro setor. Como é que estão os contratos de prestação de serviço? Você aceitaria esse desafio? Nós temos pedidos do Piauí aqui para São Paulo, no ano passado, solicitando equipes para fazer salvamento arqueológico no Piauí.

Niède Guidon: Pediram a vocês, não pediram a mim. Não posso explicar por quê. Agora, por exemplo, lá na região, no começo deste ano, nós fizemos um levantamento e um salvamento arqueológico numa linha de alta tensão, que tinha de ser aberta. Agora, eu fiquei sabendo hoje, por exemplo... nós temos um sítio lá, numa região que é fora do parque nacional, é no corredor entre o Parque Nacional da Serra das Confusões e Parque Nacional da Serra da Capivara, é um sítio que tem pinturas que não têm em nenhum outro lugar do mundo. Nem lá tem iguais. Uma coisa extraordinária. Fizeram um assentamento de sem-terra. A região, inclusive, tem nascentes, florestas com pau d' alhos, com babaçu, frutos, tudo isso, tudo derrubado. Botaram fogo, o fogo queimou durante 12 dias e só parou porque choveu. E o fogo veio lamber as paredes com pinturas. A região tem muitos sítios. Eu não fui chamada, eu não sei se o Iphan autorizou esse assentamento. Então, o que está havendo é o seguinte: por exemplo, está para se construir lá uma barragem, a Petrônio-Portela. Ninguém fez o estudo arqueológico daquilo. Ninguém fez. Mas foi construído pelo governo.

José Luis de Morais: E uma ação civil pública da sua ONG?

Niède Guidon: Sim, mas aí eu vou passar o meu tempo fazendo ações civis. Porque, infelizmente, o governo acha que não tem que obedecer a lei. E outro dia me disseram que a famosa Lei Jânio Quadros [lei 3924, aprovada em julho de 1961. Regula, discrima e define questões relacionadas aos monumentos pré-históricos ou arqueológicos], que protege os sítios, é só para os sambaquis. [risos] Então, se nós vamos colocar isto em dúvida... Porque o que está acontecendo mesmo é que esses assentamentos - inclusive está havendo agora um projeto de um assentamento, me parece que para 11 mil famílias, entre os dois parques - eles vão desmatar, vão plantar mamona para fazer biodiesel. Daqui a 10 anos não vai dar mais nada, inclusive, numa região, onde, primeiro, a água que está sendo usada é a água subterrânea - Piauí tem a maior reserva de água - mas essa água foi datada. Na região de Picos ela tem 22 mil anos. Na nossa região, nós datamos, os poços que servem à região têm água de 9500 anos, quer dizer, está se usando água fóssil, que não tem reposição nas condições atuais de pluviosidade. Então, você incentivar, levar e assentar pessoas lá numa região onde todo mundo vai usar água fóssil, você já imaginou o que isso vai ser? E você não consegue convencê-los que aquilo que nós fizemos no parque nacional, por exemplo, a região chove... nós temos 540 mm de chuva, o que é a mesma coisa que certas regiões da França, extremamente ricas. Só que a chuva é irregular, mas chove muito. Então, dentro do parque nacional, nós aumentamos de 10 milhões de litros de água de depósito para os animais simplesmente fazendo depósitos para armazenar água da chuva.

Paulo Markun: Nós vamos fazer um rápido intervalo e voltamos já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva. Eu vou colocar uma pergunta provocadora, doutora Niède. É o seguinte: tem muita gente que acha que esse negócio de estudar o passado não serve para nada. Acha que a gente tem que matar a fome do povo, que a gente tem que dar emprego para as pessoas, que a gente tem que pensar na alta tecnologia, mas ficar sabendo se chegamos aqui há 12 mil anos, 60 mil anos, se veio do estreito de Bering ou veio por mar, pouco importa. E, na verdade, a senhora mesmo havia comentado, antes mesmo do programa começar, que o brasileiro tem pouco interesse, tem pouca motivação para examinar o passado e fica louco para ir lá ver as pirâmides do Egito, ver as grandes maravilhas, a muralha da China. Tem como resolver esse problema?

Niède Guidon: Bem, eu acho que primeiro o país tem que ter orgulho do seu passado. Você vê isso, inclusive, nas historinhas do Asterix [refere-se às histórias em quadrinhos do Asterix e Obelix criadas em 1959 por Alberto Uderzo, o ilustrador, e René Goscinny, criador os textos, em torno da luta para manter uma "irredutível aldeia gaulesa" no seio do Império Romano em 50 a.C.], na França. E outra coisa, arqueologia... vende-se muito bem. Você pode ver os filmes onde existe um herói como arqueólogo, como são filmes que se vendem bem! Para você ter uma idéia, a França, a Itália, a Espanha, a maior entrada de divisas... E é um dos problemas brasileiros que eu vejo nos jornais, que querem exportar, a maior entrada da França é o turismo. E a França é o turismo cultural. Faz uns 15 dias, eu recebi da embaixada da França uma notícia sobre um sítio - um com pinturas, que foi descoberto há 5 ou 6 anos atrás - a entrada dessa gruta estava protegida por um desmoronamento, foram mergulhadores que vieram pelo mar... descobriram pinturas belíssimas, muito bem conservadas. O ministério da Cultura, imediatamente, tomou posse disso, os pesquisadores... os arqueólogos foram, fizeram os estudos e chegaram à conclusão de que se abrisse para o público e abrisse uma entrada, a entrada do ar poderia causar danos às pinturas. Então, essa gruta nunca vai ser visitada pelo público, somente pelos especialistas. Mas, ao mesmo tempo, o ministério da Cultura está investindo 30 milhões de euros para fazer uma réplica dessa gruta, para ser visitada pelos turistas. Por quê? Porque eles sabem que esses 30 milhões de euros vão voltar e vão compensar esse investimento. A menor cruz da Idade Média que indique uma estrada... se faz uma cerca em volta, um jardinzinho e é mais um atrativo.

Ennio Candotti: Eu não creio que se fizessem uma cópia das pinturas da Serra da Capivara teriam o mesmo interesse para o público. Eu acho que há alguma coisa no original, na presença, estar em contato com o sítio arqueológico original, que cópia nenhuma pode trazer. Eu acho que esse é o ponto. E também não concordo com a idéia que... a nossa sociedade não se interesse pelo seu passado. Se assim não fosse, as igrejas estariam vazias. A pré-história, as perguntas sobre onde viemos são as mais fascinantes. Eu acho até mais que as perguntas sobre a história recente. Se não, os fascínios pelas peças pré-históricas não ocorreria.. Então, essa é a minha pergunta. Por que... como se justifica, como arqueóloga, como antropóloga, como, por que essa paixão pela pré-história? À diferença da paixão pela... talvez reduzida, pela história? Qual é o diferencial? Estando em contato com a sociedade de Raimundo Nonato, o que fascinou? Qual é a diferença que há na sociedade em defender o seu patrimônio pré-histórico? Qual o orgulho da cidade que você muito bem transformou, canalizou para a defesa do patrimônio histórico? Como é que se deu isso? Exatamente para responder isso, há um diferencial nisso, eu lembro de ter visitado São Raimundo e de ter visto que o orgulho pelo seu patrimônio histórico é um diferencial. Como é que isso evoluiu?

Niède Guidon: Primeira coisa, a réplica da gruta de Lascaux, que é réplica também, recebe 2 milhões de visitantes ano. E é uma réplica. O Brasil inteiro, no ano de 2002, recebeu 3 milhões e 800 mil turistas. A França passou dos 75 milhões, dos quais 2 milhões por uma réplica. Nós não temos esse problema de réplicas, porque as nossas pinturas estão a céu aberto. Então, o turista vai ver o original. A questão que eu acho que existe isso, pessoas disseram, muitas pessoas disseram, e ouço dizer: "Ah, porque o índio é que nem bicho." Primeiro, os bichos têm sociedades muito bem estruturadas, tem leis. E o índio, o nosso índio, em geral, ele é considerado... de acordo com lendas, que ele é preguiçoso, que ele é isso... o que não é. Simplesmente, o índio não trabalha como escravo. E tem toda razão. Já ouvi comentários do tipo: "Não entendo bem os brancos. Eles fazem uma casa toda fechada. Depois gastam energia para botar ar condicionado e luz." Então, é uma outra maneira de encarar a vida. Agora, em São Raimundo Nonato, no começo eles não entendiam, eles diziam que aquilo eram pinturas dos caboclos, que é a maneira como eles chamam os índios. E eles, em contato com a gente, com as escolas, com tudo aquilo que eles foram vendo e que eles vêem no museu... Por isso que nós achamos importante que nada daquilo fosse para São Paulo... no começo, inclusive, nós trabalhamos com o Museu paulista [ou do Ipiranga, situado em São Paulo]... ou para Brasília.  Por quê? Porque nós precisamos povoar o interior do Brasil. O Brasil precisa fazer parte do nosso sistema econômico. E era uma maneira, então, de atrair as pessoas para a região e eles vão e eles vêem que aqueles índios sabiam fazer coisas absolutamente fantásticas. Eles vêem aqueles desenhos. Agora, existe uma certa ignorância também com respeito a esses desenhos, que são belíssimos, são obras de arte. Mas, ainda este ano acho que houve um veículo, um jornal, que publicou "onde existem desenhos que parecem feitos por crianças". Quer dizer, o fato de eles terem uma técnica de perspectiva, de eles terem uma criatividade diferente da nossa, faz com que se pense... as pessoas que não têm uma cultura suficiente... que é uma pintura de criança. Mas não é. E as pessoas aprendem a ver. Você sabe muito bem que a gente aprende. Se não te ensinam, você não é capaz de enxergar.

Ennio Candotti: Inclusive os jornalistas.

Niède Guidon: Inclusive o jornalista. Agora, por exemplo, quando nós começamos a montar o festival deste ano, houve críticas na cidade. Pessoas que disseram: a fundação está fazendo um festival de ricos, está fazendo show com a cultura erudita, o povo daqui gosta é de forró. O festival teve 7 mil assistentes em 5 dias, foi transmitido pela televisão direto para todo o Piauí. Toda manhã, quando vou ao mercado buscar a comida que a gente dá aos macacos durante a época de secas, no momento que eles se reproduzem falta comida lá dentro, pessoal do mercado de São Raimundo Nonato, pessoas humildes, diziam: "Doutora, eu não sabia que era tão lindo assim, mas que coisa linda!" Comentavam os dançarinos da Alemanha, o mímico que veio da Escócia. Adoraram. E perguntaram se não podia, na cidade, fazer o mesmo espetáculo que eles tinham visto. Quer dizer, do momento que você oferece uma boa qualidade para o povo, gostam.

Pablo Nogueira: Professora, eu queria mudar um pouco a pauta e fazer umas perguntas sobre o seu trabalho arqueológico-científico. A senhora, desde os anos 1980, já defende uma data mais antiga para a entrada do homem na América. O que a gente viu nos anos 1990 foi realmente uma caminhada da academia americana nessa direção também. Descobertas feitas por arqueólogos americanos também estão indicando que essa entrada do homem aqui se deu há mais de 12 mil anos. Agora, o que eles estão achando lá não chega perto das datas que a senhora que a senhora propõe... quer dizer, talvez com exceção de um único... sítio Crawford [EUA]... que chega, mais ou menos, em 40 mil, o que eles estão chegando lá é em torno de 18 [mil anos], 20 [mil anos], bem abaixo das datas de 50 mil que a senhora está propondo. Considerando que os Estados Unidos têm uma arqueologia de alta qualidade, sendo feita há mais de 100 anos, como é que a senhora vê esses dois movimentos? Por um lado, eles também estão recuando, mas, por outro lado, eles nunca encontraram, em mais de 100 anos de pesquisa, algo tão antigo quanto a senhora tem. Nesse sentido, parece um pouco fora de contexto...

Niède Guidon: Acontece o seguinte: primeiro, a técnica americana é diferente da nossa. Nós escavamos as grandes superfícies. Os americanos, muitas vezes, se limitam ao que eles chamam de test pits [poços-teste, escavados com auxílio de uma pá em lugares previamente determinados; trata-se de uma estratégia de amostragem em arqueologia] e, na realidade, também durante muito tempo eles procuraram lá onde a teoria dizia que eles iriam encontrar. E nós somos uma equipe, nós escavamos o ano todo e há muitos anos. E outra coisa. Hoje, nós já conhecemos a evolução do clima, nós sabemos, por exemplo, que em certos lugares na parte baixa dos vales nós não vamos encontrar nada muito antigo, porque os rios eram maiores e lavaram tudo. Nós temos lugares, inclusive, se via, até 9 mil anos, o rio vinha ali e lavava tudo. Depois de 9 mil anos é que começaram a subsistir as fogueiras. Então, você tem que, primeiro, conhecer muito bem a evolução climática para saber onde vai procurar. Na Pedra Furada, primeiro você está a 18 metros acima do vale. Segundo, não está em cima do vale principal, ela está numa espécie de uma entrada protegida. E, depois, houve uma enorme caída de blocos da cuesta, que protegeu a fronte dela...

Paulo Markun: E por que nunca se encontraram ossos? 

Niède Guidon: Nós temos encontrado ossos humanos, já temos ossos humanos...

Paulo Markun: Sim, mas datados de 50 mil anos?

Niède Guidon: De 12 mil anos. De 50 mil, não, de 12.

Paulo Markun: Mas encontraram um pedaço de carvão... pelo que eu li, que há quem alegue que é fogo natural.

Niède Guidon: O que nós encontramos... carvões dentro de uma formação, uma trempe de pedras, com pedras lascadas ao lado. Pedras que não podem ter sido feitas naturalmente.

Paulo Markun: Dentro de um fogão, digamos assim, no popular?

Niède Guidon: Ao lado do fogão. Além do mais, uma de minhas alunas fez uma pesquisa ali na Pedra Furada. Ela desceu toda a encosta, atravessou o vale, subiu do outro lado, fazendo sondagens. Se fosse um fogo natural, o fogo teria pegado todo o vale. E quando você tem um fogo de floresta, você tem carvões para todo lado. Ela não encontrou carvões. Só dentro do sítio, depois lá perto do rio fóssil, ela encontrou uma fogueira parecida e encontrou carvões datados de 11 mil anos. Nós já temos dentes humanos datados de 12 mil anos. E eu li, outro dia, que aqui em Mato Grosso já estão com datações de 25 mil anos.

Ana Lúcia Azevedo: Uma das coisas que talvez mais impressione no Parque da Serra da Capivara seja a quantidade enorme de sítios. Por que o sertão do Piauí tem essa fertilidade toda em resquícios da pré-história?

Niède Guidon: Eu acho que foram as condições de meio-ambiente extremamente favoráveis e, depois, outra coisa...

Ana Lúcia Azevedo: Meio ambiente na época lá ou de conservação?

Niède Guidon: Na época. E até quando eu cheguei lá era muito rico. Agora, o que acontece? A civilização ocidental, a nossa sociedade, chegou lá por volta de 1750, 1790, e muito pontual. Eram exploradores da maniçoba, alguns criadores, exploradores. No começo mesmo, era gente fugindo da polícia... que foram se esconder lá. Depois, os exploradores de maniçoba, que é uma borracha de uma planta que é da família da mandioca. Então, eram pessoas isoladas, que iam de planta em planta, fazendo incisão e colhendo. Quer dizer, no início, o impacto foi muito pequeno e os sítios foram protegidos. Alguns deles foram destruídos, porque essas primeiras pessoas se instalaram lá dentro e a fumaça dos fogões deles cobriram as pinturas.

Ana Lúcia Azevedo: Quer dizer, na verdade foi um lugar que combinou o fato de ter tido ocupação razoável e ter sido preservado?

 Niède Guidon: Exatamente, você não teve uma agricultura motorizada, você não teve grandes estradas, você não teve obras públicas. Então, em outras regiões do Brasil isso tudo pode ter sido destruído.

Mônica Teixeira: Agora, professora, quem eram esses homens? O que a senhora sabe?

Niède Guidon: Nós estamos atualmente... nós temos já uma boa coleção de esqueletos, inclusive indo desde 12 mil. Agora, nós temos um sítio que nós estamos datando neste momento... não sabemos ainda a idade e estamos tentando fazer o estudo genético. Atualmente, se pode estudar o DNA fóssil. Nós temos algumas amostras em Belém, algumas nos Estados Unidos para tentar reconstruir o padrão genético deles.

Mônica Teixeira: O que eu queria saber é: como é que eles viviam, o que eles faziam, o que eles pintavam na rocha?

Niède Guidon: O que eles pintavam na rocha, justamente esse livro que eu trouxe para vocês, que acaba de sair, explica, era o meio de comunicação deles. Era o sistema de comunicação extremamente avançado, onde, então, eles não escreviam, não tinham alfabeto. Através disso, você vê a repetição de certas cenas, que deviam ser cenas ligadas a mitos, a ritos deles, que são repetidas.

Ana Lúcia Azevedo: Mas esse índio não é o índio que existe hoje? Esses povos foram completamente extintos ou eles deixaram descendentes?

Niède Guidon: A nossa hipótese de trabalho é que esses povos lá são ancestrais das famílias , de língua . Eles têm muitas... a cenografia da pintura lembra muito rituais dos índios . Eles estavam aqui na costa no momento da chegada dos portugueses. Eles foram sendo empurrados.

Mônica Teixeira: E quantos a senhora acha que podiam morar ali?

Niède Guidon: Olha, o caçador-coletor nunca faz grandes... A população nunca é muito grande, porque ele sabe muito bem que, se ele começar a se reproduzir demais, o impacto na natureza vai ser grande. Normalmente...

Mônica Teixeira: Quer dizer que quem vivia lá caçava e coletava?

Niède Guidon: Caçava e coletava, mas o caçador ,em geral... um casal de caçador faz dois filhos, não mais do que isso. E outra coisa, o caçador tem as suas leis. O que eu digo hoje é que quem preda os animais não é o caçador, no parque, atualmente. Outro dia, nós prendemos um caçador que tinha 23 tatus com ele, dos quais 19 eram fêmeas prenhes. O veterinário tentou salvar, fazer uma cesariana, morreram todos os filhotes. Você multiplique 19 por 4 e você vai ver. O caçador-coletor mesmo, de sociedades tribais, ele tem... ele vive na natureza, ele é um dos elementos da natureza. Ele não se acha superior à natureza. Então, ele caça dentro daqueles limites. Ele mantém, inclusive, uma população que está dividida em pequenos grupos. Tem um território de caça grande e, com isso, então, eles vivem perfeitamente e nós não temos em nenhum dos esqueletos pré-históricos um sinal de desnutrição.

Ana Lúcia Azevedo: Agora, doutora Niède, por que o homem no Piauí pintava? Existem lá centenas de sítios com vestígios de pinturas. Por que parou de pintar? Por que as pinturas pararam de ser feitas? Por que o índio, esse de tradição , não deixou...

Niède Guidon: Acontece o seguinte, nós datamos as pinturas de que maneira? Um pedaço de parede com pintura cai perto de uma fogueira, a gente data a fogueira, então aquele pedaço tem no mínimo aquela idade. Mas, nós não sabemos quando parou. E o problema da colonização do Piauí é que foi extremamente brutal. Eles chegaram lá e mataram todos os índios. As únicas informações que ainda a gente consegue obter é que dormiam em redes e tinham arcos e flechas. Só isso. Quer dizer, não se sabe nem o nome dos índios.

Ana Lúcia Azevedo: A pintura na religião... A pintura tinha uma função de caça, de comunicação?

Niède Guidon: Era um meio de comunicação.

Mônica Teixeira: Mas meio de comunicação? Eu não entendi. A senhora falou isso agora há pouco, mas... assim, meio de comunicação para deixar um recado?

Niède Guidon: Não, dentro da sociedade deles, para passar de uma geração à outra, aquilo que era importante. Agora, o que acontece? É um código que eles tinham para eles. Vocês tem que imaginar o seguinte: se a nossa sociedade desaparecer, se não tiver nenhum documento escrito sobre o significado dos sinais de trânsito nas ruas das cidades... vai poder interpretar aquilo? Não. Então, nós não temos o código do que isso significava para eles. Nós podemos ver, por exemplo, uma série de indivíduos dançando em torno de uma árvore. Mas, o que significava isso?

Mônica Teixeira: Quer dizer, por que aquilo era pintado?

Niède Guidon: Exatamente. Você tem índios até hoje em Pernambuco que dançam em torno da água, você pergunta para eles e eles dizem: "Nós fazemos isso porque os antigos faziam, mas nós não sabemos mais por quê".

Ana Lúcia Azevedo: Seria preciso aprender a ver com os olhos deles?

Niède Guidon: Exatamente. O código se perdeu. Então, se eu disser... eu já vi, por exemplo, interpretação para um círculo com raios dizendo "isso é o sol". E uma vez, conversando com o índio, ele disse "isso aqui é a aldeia e o caminho que vai para as roças". Porque a aldeia é redonda. Eles têm certas técnicas de perspectiva totalmente diferentes. Então, dizer que uma pintura é isso ou aquilo é absolutamente... você pode dizer, mas você não pode provar, portanto não é um caminho científico.

Mônica Teixeira: Então, a senhora imagina que eram famílias que viviam de caça e coleta, que tinham esses ritos, provavelmente, digamos, que pintavam na rocha e usavam que instrumentos? Do que eles dispunham? Qual era a cultura material?

Niède Guidon: A cultura material deles, então.. No início, são pedras lascadas, depois você tem...

Mônica Teixeira: A pedra lascada servia para quê, professora?

Niède Guidon: A pedra lascada tem vários... você tem facas de pedras lascadas, tem raspadores, que eles deviam usar para preparar instrumentos, preparar couro e madeira. Você tem uns instrumentos maiores e mais pesados, que podiam servir para cavar...

Ennio Candotti: Pegando o gancho, qual a data mais antiga para a pedra lascada, Niède?

Niède Guidon: Lá? Em carbono-14 nós temos 56 mil anos.

Ennio Candotti: E pintura?

Niède Guidon: A pintura tem... o professor Shigueo Watanabe [professor do Instituto de física], da USP... nós temos um sítio que é no calcário, onde as pinturas estavam cobertas por calcita... ele datou a calcita de 35 mil anos.

Ana Lúcia Azevedo: De onde vinham as cores?

Niède Guidon:  As cores têm o vermelho, que é óxido de ferro... inclusive, o vermelho era preparado por técnicas de esquentar a diferentes temperaturas, a seco ou úmido, produzindo tonalidades diferentes. Você tem o amarelo,  o branco, o preto, o marrom e um cinza prateado.

Ana Lúcia Azevedo: Todos das rochas da região?

Niède Guidon: Argilas e minerais da região.

Beto Ricardo: Agora, doutora, todas essas descobertas demoram tempo e custam caro. Precisam de vocações. Qual é a política científica da sua fundação? Porque todo esse trabalho começou com a missão franco-brasileira [Expedição de reconhecimento e pesquisa de uma área com potencial arqueológico promovida por cientistas brasileiros e franceses. A primeira misão na região de São Raimundo Nonato ocorreu em 1973, organizada por Niède Guidon]. Ao longo desses anos, como é que a senhora evoluiu, quais são as perspectivas, há novas pessoas no Brasil interessadas como arqueólogos, como é que é?

Niède Guidon: Nós criamos um museu, nós criamos um centro cultural no qual nós temos laboratórios e temos as reservas técnicas e nós, atualmente, fazemos parte... criamos, juntamente com a Federal de Pernambuco [Universidade Federal de Pernambuco], uma pós-graduação em arqueologia e ciências da conservação. Nós mantemos convênios com universidades americanas, européias, nós recebemos alunos de doutorado, por exemplo, de Michigan, de Cambridge, de diferentes áreas, não só arqueologia. Já tivemos pessoas trabalhando com felinos, trabalhando com macacos, laboratórios de climatologia de Cambridge... também trabalha junto com a gente. Nós temos um convênio de colaboração com a Texas A&M, dos Estados Unidos. Recebemos alunos da França e da Itália também.

Paulo Markun: O professor Fabiano Gontijo, de Teresina, diz que existem vários alunos da Federal do Piauí que gostariam muito de trabalhar com a senhora gratuitamente e parabeniza a senhora pelo festival. E também pergunta Paulo de Santana, de Florianópolis/SC, que é estudante de direito: "Esse trabalho que a senhora realiza, que é muito importante, por que as universidades estaduais e federais do Piauí não a apóiam?" Se é que não apóiam.

Niède Guidon: A Federal do Piauí participa conosco desde o começo. A professora Conceição Laje fez química em São Paulo, arqueologia conosco e depois fez 4 anos e meio em Paris, trabalhando nos laboratórios de conservação de pinturas rupestres, fez o doutorado lá. E é ela que formou e dirige a equipe de técnicos da região do São Raimundo, que mantêm, então, as pinturas, que trabalham cotidianamente no parque para a manutenção. Nós temos um intercâmbio muito grande com a Federal do Piauí. De Pernambuco também.

Paulo Markun: Para finalizar, Paulo Santinho, do Piauí, que também é professor, diz que falam lá que a senhora enviou para outros países alguns fósseis. Gostaria que a senhora falasse sobre o assunto. É fato?

Niède Guidon: Todo o material que nós tiramos está em São Raimundo Nonato. Só vai sair de lá se eu não tiver dinheiro e tiver que desligar a eletricidade do museu, porque nós temos, inclusive, múmias que são mantidas com ar condicionado e desumificador e que não podemos parar, porque senão elas apodrecem. O que vai para o exterior, às vezes, é um pedaço de osso para datação, resto de carvão, sedimentos para serem analisados, e tudo isso, todo o material. Atualmente nós temos um aluno brasileiro, de Pernambuco, que está fazendo seu doutorado na França. Então, pediu para levar uma série de pedras lascadas para análises com laboratórios que, infelizmente, nós não temos no Brasil. Laboratórios que têm todo um sistema para fazer fotos em três dimensões, tudo isso que nós não temos. Se pede autorização do Iphan, vai o material e o material volta.

Paulo Markun: Nós vamos fazer mais um rápido intervalo, mas eu queria deixar registrado que eu tenho certeza que isso não vai acontecer, porque certamente os nossos telespectadores do Planalto Central e de Brasília, que estão assistindo esse programa, e assistem toda semana, não vão deixar que isso aconteça. A gente volta já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva. Doutora Niède, eu moro num lugarejo chamado Santo Antônio de Lisboa, em Santa Catarina, Florianópolis, a poucas quadras de um lugar chamado Sambaqui. E foi quando eu mudei para lá, há cinco anos, que eu descobri os tais sambaquis, que até então eu ouvia falar, como mera menção nos livros brasileiros, muito rapidamente. Descobri que eles são maiores e mais antigos do que as pirâmides do Egito e fiquei absolutamente abismado, na minha santa ignorância. Eu queria perguntar para a senhora de onde vieram, na opinião da senhora, eu sei que isso é uma especulação e os arqueólogos não gostam muito de afirmar, eles falam entre eles longamente sobre o assunto. De onde vieram esses povos que de alguma forma estavam aqui há 5, 6 mil, 13 mil ou 50 mil anos atrás?

Niède Guidon: Na América, até hoje, nós só encontramos o Homo sapiens, que somos nós. Hoje, já se sabe que o Homo sapiens, nós temos Homo sapiens datados na África de 180 mil anos. E, teoricamente, admitimos que há 200 mil anos atrás, o Homo sapiens apareceu na África. Ele teve então tempo suficiente para migrar da África e ele foi para todos os continentes. Eu, na realidade, não sou muito especialista em migrações. Eu trabalho lá no Piauí, a minha especialidade é esta, agora eu acho que nada impede que a gente pense que o Homo pode ter vindo para a América por Bering, ele pode ter vindo pelas correntes aleutas [provocadas pela ação dos ventos alísios], porque houve momentos em que o mar esteve até 150 metros abaixo do nível atual. Então, havia muito mais ilhas. Existem passagens pelo pacífico, da Austrália para cá, que são de mar não muito profundo, e que com o mar mais baixo, teriam mais ilhas. Os arqueólogos australianos descobriram nas Ilhas das Flores, que nunca foi ligada a nenhum continente, portanto só pode se chegar lá por mar, eles descobriram vestígios do Homo erectus datados de 850 mil anos. Quer dizer, aquela história que o homo só começou a navegar depois de 7 mil e tantos anos, não é verdade. Hoje, nós sabemos que o Homo navegou muito antes. Portanto, nada impede que tenha chegado por esses caminhos pelo Pacífico, nada impede que tenha vindo também da África do Sul, da região dos Açores, onde existem correntes que vêm bater aqui no Brasil. Eu conheci lá no parque nacional uma visitante, uma senhora francesa de 70 anos, que ela vem da França para cá quando os alísios batem de lá para cá, ela vem num barco sozinha, com uma vela pequenina, para ela poder manejar e ela chega aqui no Nordeste. E quando os alísios sopram de cá para lá, ela volta. Todo ano ela faz isso. Quer dizer, nada impede que o homem tenha vindo por todos esses caminhos. O importante é preservar os sítios e, mais ainda, escavá-los, saber por onde ele passou, por que ele chegou no Piauí vindo de algum lugar. Basta você começar a fazer prospecções em todo o entorno daquela região. No sul do Piauí, na fronteira com o Maranhão, existem sítios maravilhosos, inclusive maiores que os que nós temos lá em São Raimundo Nonato. Simplesmente nunca ninguém pesquisou. Esses sítios estão sendo destruídos, vão ser destruídos e nós não vamos saber. Como o litoral foi ocupado inicialmente, pode ser que a chave de tudo isso tenha sido destruída. Quantos sambaquis já foram transformados em cal? Quantos projetos imobiliários destruíram os sítios arqueológicos? Então, enquanto nós não tivermos a consciência de cidadão de saber "bom, eu descobri isso, eu paro, vou chamar o Iphan, faz o salvamento e eu volto a fazer a minha obra". Enquanto isso não acontecer, nós vamos ter... são folhas de um livro que estão perdidas por aí, que nós temos que encontrar todas.

Mônica Teixeira: Professora, para sua hipótese, enfim,  nesses sítios que a senhora tem trabalhado possam ter 50 mil anos ou coisa parecida, é importante que essa idéia de que o homem tenha chegado à América do Sul pelo mar, uma coisa tem a ver com a outra? Se sustentam mutuamente? Quer dizer, na hipótese do homem ter vindo, essa hipótese mais tradicional, que veio pelo estreito de Bering, descendo e tal, é essa hipótese que sustenta a idéia de que o homem na América está aqui há 2 mil anos?

Niède Guidon: Não, ele pode ter vindo por Bering muito antes e chegado aqui. Por exemplo, há uns dois anos, a reunião da Associação Americana para o Progresso da Ciência, eles tinham acabado de descobrir um sítio antigo, em Monteverde, no Chile, já houve propostas, então, de uma hipótese completamente diferente, que o homem teria vindo pelo sul, pelo Pólo Sul, e teria subido da América do Sul para a América do Norte. Eu acho que nós temos que pensar que um continente que vai do Pólo Norte ao Pólo Sul, pensar que ele foi povoado só por um caminho é um absurdo. Eu acho que houve muitos caminhos...

Paulo Markun: Mas, por que que isso parece São Paulo x Corinthians? Fica uma confusão. Cada vez que se vê um arqueólogo, e a gente vê isso pela cobertura dos jornais, não precisa nem ser arqueólogo para saber, só falta sair tiro.

Niède Guidon: Sim, mas isso é só aqui na América. Por exemplo, quando eu estudei arqueologia em Paris, o que me ensinaram sobre arqueologia da França é completamente diferente de hoje. Na Europa,  nós tivemos descobertas que entende... na Espanha,  existe um sítio fantástico, com erectus [Homo erectus], com Neanderthal, com Homo sapiens e tudo. E tudo isso mudou. Simplesmente nós temos que pensar que uma teoria,  o que é uma teoria? É uma tentativa de explicar dados. Se os dados mudam, a teoria tem que mudar. E isso, é que não sei porque, houve um saudosismo e ficaram todos grudados nessa teoria. Realmente,  é o que eu digo, eu fui para o Piauí certa de que eu ia trabalhar com coisas extremamente recentes. Quando o laboratório francês me passou a primeira datação, que foi de 25 mil anos, eu peguei o telefone e disse para eles, "olha, vocês misturaram as amostras, porque na América não tem nada dessa idade", eles viraram e disseram "é melhor você voltar, escavar um pouquinho mais, porque a amostra era a sua". Foi daí que nós passamos a escavar 750 metros quadrados e a Pedra Furada tem 58 datações. Não existe outro sítio na América com tanta datação. Não foi uma ou duas, é toda uma seqüência de alto a baixo. O que nos interessa é a pesquisa. Se fosse uma pintura de 2 mil anos, eu estaria lá do mesmo jeito. Porque é a mesma importância. Não é a questão da idade. A questão da idade, eu também não posso, porque a teoria diz, eu não posso, aquilo que nós descobrimos, eu tenho que dar, publicar. Então, isso existe. Essas pedras lascadas mais antigas, eu estive no Texas agora em abril, levei algumas peças, elas foram fotografadas, um sistema fantástico de fotografias, que eu, infelizmente, não tenho dinheiro para ter, foram estudadas por eles, no departamento de física, na parte de dinâmica, e eles disseram: isso só pode ter sido feito pelo homem...

Paulo Markun: Para demonstrar que a pedra foi lascada propositalmente.

Niède Guidon: ... só pode ser feita pelo homem, porque quando uma pedra cai e bate, lascamento é assim [sinaliza de baixo para cima], o gesto humano tem essa curva. Então, um professor de física, de dinâmica, ele é capaz de te dizer se isso foi feito dessa maneira ou naturalmente. Quer dizer, nós somos os primeiros a ter um rigor científico. Eu tive uma excelente formação. Aqui na USP eu tive excelentes professores, em seguida em Paris e eu sei muito bem aquilo que eu afirmo. Quando eu afirmo uma coisa,  é porque eu tenho certeza.

Mônica Teixeira: Mas há um ceticismo, pelo menos houve um ceticismo, mesmo na comunidade científica brasileira, nos seus pares arqueólogos, em relação a essa datação, quer dizer,  não é só aquilo que o Pablo trouxe de uma controvérsia, vamos dizer, internacional. Como é que a senhora recebe isso e, vamos dizer, é sinal de quê? É porque a teoria dizia...

Niède Guidon: Eu não sei por quê. Existem, por exemplo, pessoas que criticam, mas nunca foram lá ver. Nunca examinaram as peças em suas mãos. Agora, nunca houve o menor problema em toda a Europa e mesmo dentro dos Estados Unidos existem universidades que, inclusive a do Texas, eles querem vir escavar conosco e nós estamos programando uma escavação, porque a Pedra Furada foi escavada, mais ou menos, metade do sítio. Ainda temos outra metade, que foi conservada. Estamos pensando em fazer uma grande escavação internacional, para que, então, outros colegas possam vir e ver aquilo que foi encontrado. Agora, porque eu realmente não sei, mas tem uma coisa, sempre que se descobre uma coisa primeiro, a gente leva muita pedrada [risos].

[  ]: Lascada...

Ana Lúcia Azevedo: Voltando um pouco à questão da informação e do desapego do brasileiro pela pré-história, por que a nossa pré-história está tão ausente dos nossos livros didáticos? Na sua opinião, por que não se ensina para o brasileiro na escola sobre pré-história, é tão superficial?

Niède Guidon: Porque, justamente, não existe uma obrigatoriedade, eu acho. Atualmente, já existem livros, eu sei porque eu recebo muitos pedidos de alunos de cursos secundários, "eu tenho que fazer um trabalho para a minha escola, pode me mandar informações", agora... é isso que eu digo, não existe esse apego. Eu acho que o brasileiro, por exemplo, não tem orgulho de ter os índios como seus antepassados. Eu não vejo isso. Se você ver a cultura brasileira, você chama muito mais a atenção para a parte que vem da África, a música, o carnaval, isso e aquilo. Eu já vi gente dizer "mas índio é muito chato, a música deles é chata, é repetitiva, é tudo isso", quer dizer, eles não ficaram na moda.

Mônica Teixeira: E, na verdade, análises genéticas mostram que “a gente é muito índio”.

Niède Guidon: Exatamente, é muito índio, todos nós. Agora,  o que acontece é que não se deu o valor,  porque sempre foi essa coisa, porque eles não tinham uma vida material imponente. Agora, ao mesmo tempo, você vê, pegue um arco de um índio e tente atirar com um arco. Existem relatos que precisavam dois portugueses para conseguir atirar com um arco. Eles tem coisas fantásticas. Eles tem histórias, tem uma tradição muito grande e isso é que não é colocado em valor. Eu já tive uma briga muito feia numa universidade, numa reunião do Conselho Universitário, porque se discutiu os fatos de que os professores todos tinham que colaborar, porque o Brasil teria que pagar as suas dívidas com os escravos e que tinha que se lutar para que se pagasse aos descendentes dos escravos pelos anos que os escravos trabalharam, um décimo terceiro, férias e tudo isso. Eu disse tudo bem, eu estou de acordo de lutar por tudo isso, mas com uma condição: primeiro a gente paga a terra aos índios, ao preço de hoje. Aí saiu uma briga muito grande. Mas, eu acho que se nós temos uma dívida com a África, nós temos também uma dívida com todas as nações indígenas.

Ana Lúcia Azevedo: E a senhora acha que esse estudo da pré-história, evidentemente, ajuda a resgatar isso?

Niède Guidon: Ajuda, porque justamente, toda essa questão que se diz da tecnologia, que não era uma boa tecnologia, não é verdade. Eu tenho lá pedra lascada da mesma qualidade que na França.

Paulo Markun: Existem livros que já tenham uma versão, digamos assim, atualizada?

Niède Guidon: Sim, eu não sei até que profundidade eles vão, mas já existem livros que já discutem isso. Agora, eu acho que é importante, meu professor Leroi-Gourhan [André Leroi-Gourhan, 1911-1986, arqueólogo, paleontólogo e antropólogo] na França,  uma vez ele disse "todos admiram as altas culturas, porque tem as pirâmides, tem os templos, tem os castelos, mas vocês tem que pensar que atrás de tudo isso tem uma sociedade na qual havia escravos, porque para construir tudo isso você tinha o rei, você tinha o sacerdote, você tinha o escravo". Os nossos índios eram de uma sociedade igualitária, era uma sociedade de caçadores coletores, por isso que eles não deixaram essas imensas construções, que, aliás, não teriam nem sentido, num clima como o nosso.

Paulo Markun: O que a senhora foi fazer em São Raimundo Nonato? O que levou a senhora para lá?

Niède Guidon: Eu trabalhava no Museu Paulista da USP, em 1963 eu era arqueóloga lá e vieram uns prefeitos da região, por algum congresso, alguma coisa, foram visitar o museu, viram uma exposição sobre as pinturas de Minas Gerais, pediram para falar com o responsável, que era eu, e me mostraram umas fotografias,  dizendo "olha, na nossa terra também tem esse desenho feito pelos caboclos". Eu olhei,  vi que era algo completamente inédito, diferente de tudo que se conhecia. Tomei nota do nome deles, de tudo, depois, por muitas razões, fui embora para a França e só em 1970 é que eu consegui chegar até lá e verificar que era realmente completamente diferente.

Mônica Teixeira: E os outros sítios brasileiros, professora?

Niède Guidon: Olha, tem muitos sítios. No norte do Piauí, tem muitos sítios.

Mônica Teixeira: Mas esses tradicionais, Lagoa Santa [Minas Gerais], como é que se relacionam?

Niède Guidon: Lagoa Santa tem um estilo de pintura diferente do nosso. Deve estar relacionado com outras culturas. E você tem pinturas e gravuras por todo o território brasileiro.

José Luis de Morais: Você faz uma arqueologia, digamos, sui generis. Você faz uma arqueologia numa unidade de conservação. Um trato muito próximo com as duas entidades que cuidam da arqueologia e do parque. Como é que andam as relações com o Ibama e com o Iphan?

Niède Guidon: As relações são excelentes. Nós somos igualmente pobres, todos [risos]. A gente se dá muito bem. O Ibama teve a gentileza, sempre o chefe do parque foi indicado por nós, sempre um técnico. Nós temos técnicos trabalhando, nós não temos políticos trabalhando com a gente. E com o Iphan também. Nós já chegamos a oferecer ao Iphan, inclusive, construir uma sala, que se chama sala Iphan, equipamos com computador, com tudo, pedindo que ponham um funcionário lá. Porque o nosso problema principal é que quando existe algo contrário a lei, nós não temos autoridade, nós não somos uma autoridade. Então, é difícil. Tem que chamar a polícia federal, o juiz federal,  tem que vir em Teresina, representante do Iphan, tudo isso. Então, nós gostaríamos que pelo menos houvesse um representante do Iphan e os procuradores do Ibama lá. Nós já nos oferecemos, inclusive, para pagar as despesas de estadia, porque isso nos facilitaria. Porque também tem o fato de que, no momento que nós temos que brigar quando tem um caçador, o caçador tem sempre alguém que o protege colocado lá em cima, a gente acaba ficando meio mal com a população. Isso daí é uma coisa que realmente nós precisaríamos ter uma autoridade presente.

Beto Ricardo: Agora, doutora Niède, se eu estou entendendo bem, a situação atual do parque, ela está ameaçada de se deteriorar. Então, eu queria saber se a senhora acha que estamos na iminência de ter que lançar uma campanha, um "SOS Serra da Capivara"?

Niède Guidon: Olha, eu estou chegando aqui, vindo de Brasília. Eu estive no Ministério da Cultura, com o secretário-executivo, a proposta que eu fui levar a eles foi a seguinte, compor um grupo de trabalho com um representante do Ministério do Meio Ambiente, um do Ministério da Cultura, um do Turismo e outro da Educação. E esse grupo de trabalho, juntamente com a chefia do parque e conosco, definir quais são as necessidades para manter o parque nesse estado que ele está hoje. E esse grupo é que faria, então, a gestão dos recursos.

Mônica Teixeira: E a senhora imagina que é quanto dinheiro? De quanto dinheiro nós estamos falando, sem contar aeroporto e sem fazer hotel?

Niède Guidon: Olha, para manter o parque como ele está hoje, sem nenhum novo investimento, mas manter com a mesma qualidade, com a preservação, nós precisaríamos, no mínimo, de 220 mil reais por mês.

Mônica Teixeira: É pouco.

Niède Guidon: É pouco, mas nós não temos. Atualmente, isso mesmo não nos é repassado. Agora, o que o secretário executivo nos propôs, ele acha que é muito complicado fazer um grupo de trabalho, que vai lá para São Raimundo, tudo isso, o que ele nos propôs e que nós estamos trabalhando nisso, neste momento, é que ele e o ministro da Cultura, juntamente com a  ministra do Meio Ambiente iriam contactar seis ou sete grandes empresas estatais, para que cada uma fizesse uma doação mensal para que não faltasse essa soma mínima mensal. É isso que a gente está tentando fazer agora.

Paulo Markun: A senhora mencionou, voltando atrás um pouco, a lei assinada pelo presidente Jânio Quadros [Jânio da Silva Quadros, 1917- 1992, foi presidente do Brasil em 1916 e prefeito de São Paulo em 1985], em 1961, que é a lei que transformou, tombou os sítios arqueológicos, mas que eu acho que tem muita gente que não sabe que lei é essa e o que isso significa. Seria conveniente a senhora explicar, porque, às vezes, o sujeito tem um sítio arqueológico encostado no quintal de casa, nem sabendo que é um sítio arqueológico e que aquilo não pertence a ele.

Niède Guidon: Nós chamamos sítio arqueológico qualquer local onde exista um vestígio da passagem do homem pré-histórico. E pela lei do Jânio Quadros é uma lei que tombou, ou seja, todos os sítios pré-históricos, aqueles então que conservam a memória do nosso passado, pertencem à nação brasileira. O proprietário do terreno, ele é proprietário do terreno e fiel depositário do sítio. Em princípio, ele tem que zelar pelo sítio e não permitir a sua destruição.

Mônica Teixeira: Professora, pré-histórico para nós, brasileiros, é tudo o que é de 1500 para trás?

Niède Guidon: Em algumas regiões lá no Piauí, é 1740 para cá.

Paulo Markun: Santiago Novaes, de Sumaré, São Paulo, diz o seguinte: "Minha família tem terra em Minas Gerais e encontramos alguns utensílios de barro - cerâmicas, vasos, esqueletos etc. Gostaria que a senhora nos orientasse como proceder, porque temos medo de notificar e acabar perdendo essas terras. O que a senhora sugere?"

Niède Guidon: Eles não vão perder as terras. O que eles tem que fazer é entrar em contato com o Iphan local...

Paulo Markun: Que é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional?

Niède Guidon: Exatamente. E o Iphan tem que mandar então um arqueólogo para fazer o mapeamento e o salvamento. Quer dizer, retirar esse material, que se ficar lá, na superfície, pode ser destruído. Isso se faz rapidamente.

Pablo Nogueira: Professora, só retomando um pouco a questão da valorização que o país dá para a história, volta e meia eu recebo cartas de jovens que querem trabalhar com arqueologia, que querem ser arqueólogos. Eu vejo que a sua história é a história de uma força de vontade muito grande, de determinação, de  capacidade de superar obstáculos muito grandes. Que conselho a senhora dá para esse jovem que está sonhando em trabalhar com arqueologia no Brasil?

Niède Guidon: Tem que fazer os seus estudos. A federal do Piauí está pensando, inclusive, em criar um curso de graduação em arqueologia, que viria a complementar então a pós-graduação que já existe com Pernambuco e que nós temos seis meses de aula no Parque Nacional e seis meses de aula em Recife. Com a Federal do Piauí seria a mesma coisa. E procurar, por exemplo, em suas férias, ir trabalhar com arqueólogos. Nós aceitamos estagiários, quer dizer, quando o dinheiro encurta muito, a gente tem que cortar um pouquinho, senão nós temos uma residência universitária lá, nós aceitamos então estagiários voluntários, que vêm, que trabalham conosco. Como nós, existem outros lugares, não sei no Brasil, mas nos Estados Unidos, na Europa, onde eles podem praticar, durante um certo tempo trabalhando com os arqueólogos.

Paulo Markun: Nosso tempo está acabando, eu queria fazer uma última pergunta, que também não é uma pergunta literal, porque senão vai ser muito fácil a resposta. Eu queria saber o que a senhora encontrou em São Raimundo Nonato? Quer dizer, a senhora encontrou uma porção de sítios arqueológicos, certamente encontrou projetos de carreira, de vida, etc., mas, quer dizer, encontrou mais alguma coisa lá? Aquilo é o motor da senhora?

Niède Guidon: Bem, eu encontrei uma beleza fantástica. Aquele parque tem, nos piores dias, quando eu estou para estourar,  eu vou para o parque e as coisas se acalmam. A beleza da natureza é uma coisa fantástica. E a beleza de todas essas sociedades que nos precederam, e sobretudo que viveram lá, e que você vê nas pinturas, que era uma sociedade feliz e rica. Quando eu a comparo com a miséria de hoje, principalmente das crianças, nós trabalhamos muito com as crianças, temos um programa com o Ayrton Senna, Pró-Arte [programa da Fundação Airton Senna], onde as crianças trabalham, eu acho que a gente tem que resgatar e é isso que me segura lá. Eu queria que o Piauí voltasse a ser o que ele já foi, uma região de riqueza e de felicidade.

Paulo Markun: Professora Niède Guidon, muito obrigado pela sua entrevista, boa sorte. Eu tenho certeza que esse alerta vai funcionar e eu pelo menos espero que isso aconteça.

Niède Guidon: Muito obrigada, muito obrigada a todos.

Paulo Markun: Obrigado aos nossos entrevistados, a você que está em casa e na segunda-feira, dez e meia da noite, estaremos de volta, com mais um Roda Viva. Uma ótima semana e até segunda!

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