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[programa gravado]
Heródoto Barbeiro: Olá, boa noite. Ele é um dos mais conhecidos intelectuais brasileiros no exterior. Estudioso dos nossos problemas, vem propondo uma alternativa progressista ao Brasil, achando que o país pode caminhar para uma realidade diferente dessa que aí está, e que muitas vezes é encarada como a única realidade possível. O Roda Viva entrevista esta noite o professor de direito, filósofo e pensador Roberto Mangabeira Unger.
[inserção de vídeo]
Narração de Valéria Grillo: Professor titular de direito na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, durante 29 anos, Roberto Mangabeira Unger decidiu voltar de vez para o Brasil e se dedicar à política [posteriormente, voltou a lecionar em Harvard]. Nos últimos anos, atuou como consultor de Leonel Brizola, do PDT; foi um dos intelectuais que influenciaram Vicente Fox, eleito no ano passado presidente do México [Vicente Fox presidiu o México entre 2000-2006]; e é o formulador das propostas de governo de Ciro Gomes [ver as entrevistas de Ciro Gomes ao Roda Viva], pré-candidato do PPS às eleições presidenciais de 2002. Mangabeira Unger até tentou ser candidato a prefeito de São Paulo em 2000, mas seu partido, o PPS, decidiu indicar Emerson Kapaz como vice numa chapa coligada com a candidata Luiza Erundina [do PSB]. O professor Mangabeira teve de desistir e se dedicou a continuar divulgando suas propostas políticas, reunidas agora no livro A segunda via: presente e futuro do Brasil. O livro, que acaba de ser lançado, sintetiza sua idéia de refundar o Estado brasileiro. A segunda via de Mangabeira Unger é colocada como alternativa ao modelo econômico americano e à proposta de reforma social democrata do primeiro-ministro inglês [por dois mandatos consecutivos, entre 1997 e 2007, pelo Partido Trabalhista Inglês] Tony Blair. Segundo ele [Mangabeira Unger], [aparece no vídeo a citação] “A idéia de uma terceira via é apenas a própria doutrina do caminho único, acompanhada do anúncio de intenção de humanizá-lo. A terceira via é a primeira via açucarada.”
Heródoto Barbeiro: Para entrevistar o professor Roberto Mangabeira Unger, nós convidamos o jornalista Bob Fernandes, que é o redator-chefe da revista Carta Capital; o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Unicamp e colunista da Carta Capital; o Wagner Carelli, que é diretor editorial da editora Globo; a Cida Damasco, que é editora executiva do jornal Gazeta Mercantil; o cientista político Carlos Novaes; e Ramiro Alves, editor de política da revista IstoÉ. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros. Hoje não vai ser possível sua participação no programa como telespectador, como faz normalmente, porque o nosso programa está gravado.
Heródoto Barbeiro: Professor Mangabeira Unger, boa noite, professor.
Roberto Mangabeira Unger: Boa noite.
Heródoto Barbeiro: Obrigado pela participação do senhor e pela sua vinda aqui no Roda Viva.
Roberto Mangabeira Unger: Obrigado.
Heródoto Barbeiro: Professor, li recentemente uma entrevista do senhor Ciro Gomes, no jornal Valor, dizendo que ele não vai dizer que o programa dele, pré-candidato a presidente da República do Brasil, é um programa socialista. Disse que não vai falar a respeito do socialismo, e outros deverão empunhar essa bandeira, mas não ele. Eu gostaria de ouvir um comentário do senhor a respeito disso, porque o senhor faz parte do partido dele, que é o PPS, e acho que PPS tem alguma coisa em socialista na sigla [PPS são as iniciais de Partido Popular Socialista].
Roberto Mangabeira Unger: Eu creio que este termo – socialismo – está hoje esvaziado de sentido, como aliás todo debate ideológico no mundo. Aquele antigo conflito de estatismo e privatismo, mercado e estado, está morrendo ou está morto e começa a ser substituído no mundo por um novo conflito, um conflito sobre as formas alternativas da democracia no mercado e da sociedade civil livre. Nós do Brasil precisamos participar dessa nova controvérsia para construir o país, e nesse sentido a verdadeira divisória entre os conservadores e os transformadores não é a posição a favor ou contra o Estado; a verdadeira divisória é a disposição para reimaginar e reinventar, passo a passo, pouco a pouco, a estrutura institucional da sociedade.
Heródoto Barbeiro: Pergunta de Cida Damasco.
Cida Damasco: Nesse sentido, como é que o senhor coloca a diferença entre a alternativa proposta pelo candidato Ciro Gomes, as alternativas do PT e as alternativas mesmo de certa parte do PSDB? Onde é que estão os conservadores e onde é que estão os transformadores nessa divisão?
Roberto Mangabeira Unger: Eu temo que, na campanha presidencial que se aproxima, o país arrisca não perceber os contrastes decisivos. Haverá uma tendência de interpretar todos os discursos como um mesmo discurso. O discurso da preocupação com o social e da retomada do crescimento. Nós precisamos identificar onde estão as divisórias, e aí é que entra a proposta de Ciro Gomes, que é uma proposta de construir e instrumentalizar o Estado brasileiro, para que esse Estado possa ajudar a induzir um novo projeto de desenvolvimento no país, um projeto de desenvolvimento que não apenas coloque o açúcar das políticas sociais compensatórias, mas democratize de fato o mercado e encontre um novo lugar para o Brasil no mundo.
Heródoto Barbeiro: Ramiro.
Ramiro Alves: Professor, o senhor está lançando o livre sobre a segunda via, e eu queria que o senhor explicasse que proposta seria essa da segunda via e no que ela difere de uma coisa mais tradicional que roda no mundo, que é a terceira via proposta pelo Tony Blair e outros, e até com o apoio do Fernando Henrique Cardoso. Em que consistem essas propostas de segunda via? E se isso está discutido dentro do programa do candidato Ciro Gomes.
Roberto Mangabeira Unger: A terceira via é a primeira via com açúcar, é o caminho dominante com a ênfase nessas políticas sociais de assistência e compensação. A idéia retórica da terceira via pressupõe que há uma direita e uma esquerda, e os expoentes da terceira via se colocam, confortavelmente, no meio, como se apresentassem de fato uma alternativa, quando apresentam apenas a humanização do inevitável. A idéia da segunda via parte da premissa de reconhecer que a velha alternativa de esquerda perdeu o sentido no mundo contemporâneo e nós precisamos construir outra. As grandes vertentes dessa proposta de segunda via são: primeiro, a construção de um Estado enriquecido, capacitado para ser esse agente, esse orquestrador de uma mudança de estruturas. Segundo: uma política social que procure capacitar os brasileiros. A tarefa da política social, sobretudo do investimento em educação, não é trazer igualdade; o que traz igualdade é a mudança de estruturas. A tarefa é dar às pessoas as capacidades práticas. Terceira vertente: a democratização do mercado. Não basta regular o mercado, não basta compensar com políticas sociais os seus efeitos desigualizadores, é preciso promover uma grande descentralização de acesso aos recursos e às oportunidades da produção. E a quarta vertente é a construção de instituições políticas que assegurem as bases de uma política de alta energia, uma política vocacionada para as mudanças freqüentes, e essa construção passa num país como o nosso pela construção de um regime de partidos fortes.
Heródoto Barbeiro: Carlos Novaes.
Carlos Novaes: Professor, o senhor fez uma trajetória que foi PMDB, depois PDT, com Leonel Brizola, quando o senhor enfatizava muito o papel do Brizola como alguém subjetivamente interessado nos excluídos, e depois o senhor veio para o PPS, antes até com Ciro Gomes, não é? A vinda para o PPS é resultado, digamos assim, da sua relação com o Ciro Gomes. O que intriga um pouco é por que o senhor evita sistematicamente encarar o PT, que é uma malha burocrática espalhada em todo o Brasil e que, ainda que organizando os organizados, tem uma tangência muito grande com os excluídos. Por que o senhor investe as suas energias numa liderança isolada, numa liderança solta, desprovida de bases orgânicas, de relações orgânicas com aquilo que está em movimento efetivo, organizado, com ação coletiva no Brasil, e despreza sistematicamente... num esforço de organização no Brasil que, gostemos ou não [do PT], o fato é que ele é largamente orgânico. E, digamos, a menos que o se o interprete como algo que está barrando qualquer mudança e não propondo essa mudança. Então eu queria entender um pouco melhor por que, afinal, o senhor está sempre apostando as fichas numa liderança isolada, numa liderança mais solta e não numa malha, digamos, orgânica. E que, aliás, vem obtendo êxitos crescentes.
Roberto Mangabeira Unger: Em primeiro lugar, eu não desprezo o PT; considero o PT uma das melhores coisas que aconteceram ao Brasil nessas últimas décadas. No PT estão reunidos muitos dos nossos melhores quadros; qualquer governo progressista no Brasil terá que ter o PT como parceiro. Se Ciro Gomes for eleito, eu pessoalmente espero que o PT participe ativamente do governo dele, independentemente da aliança que possamos construir durante a campanha eleitoral. Agora, eu identifico também no PT graves limitações, que explicam a minha opção política pessoal. Em primeiro lugar, um vínculo não resolvido com esses setores corporativos ou corporativistas da sociedade brasileira. Além da divisão [entre] endinheirados, pobres, classe média no Brasil, temos outra divisão que fascina e desorienta o país, que é a divisão entre a minoria organizada, tanto da classe média quanto da classe trabalhadora, e a maioria desorganizada do país. Esta maioria sente que o país é ainda possuído, dominado por uma confederação de interesses corporativistas. O PT nunca rompeu claramente o vínculo privilegiado com esses interesses corporativos; tratou esses interesses corporativos como se fossem a vanguarda da maioria desorganizada do povo brasileiro. E esse vínculo não resolvido limitou gravemente a capacidade do PT de avançar na definição de um projeto nacional. Em segundo lugar, o PT não enfrentou com realismo o problema da construção e do financiamento do Estado brasileiro. Em terceiro lugar, o PT oscila nas suas formulações entre a nostalgia do estatismo – esse estatismo que está morrendo – e o fascínio pelas políticas compensatórias. Não chegou a formular uma alternativa concreta de reorganização das nossas instituições e de reorientação da nossa trajetória de desenvolvimento. Eu não prefiro lideranças isoladas, eu creio que qualquer transformação profunda no nosso país tem de nascer de uma combinação de alianças dessas minorias organizadas com a mobilização das maiorias desorganizadas, tanto da classe média quanto dos trabalhadores. Identifico sim no nosso regime presidencial, com todos os seus defeitos, uma alavanca de mobilização e desestabilização, uma maneira de romper esse condomínio de interesses corporativos que ainda possui e domina o país.
Heródoto Barbeiro: Professor Belluzzo.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Mangabeira, o seu livro A segunda via certamente é um dos livros mais instigantes produzidos sobre o Brasil, sobre as questões brasileiras e, a despeito das minhas discordâncias, eu devo dizer que li com muito prazer o livro, porque ele levanta questões pungentes da sociedade brasileira e muito importantes. Agora, essa sua perspectiva de que é preciso fazer com que os setores organizados e os setores desorganizados se articulem para promover mudanças é uma questão razoavelmente antiga no Brasil, e que nós não conseguimos superar politicamente. Eu acho – e não tem a menor importância o que eu acho, mas [sim] o que você acha – que a estrutura partidária brasileira não é adequada para responder a essa questão, nós não conseguimos encontrar o partido. Talvez os militares tenham nos dado, e não intencionalmente, a fórmula quando criaram o PMDB e a Arena, porque permitiam com que o PMDB metabolizasse esse conjunto de interesses de uma forma menos corporativa. Agora, as diferenças de inserção na sociedade, e até do imaginário social entre esses dois segmentos, são muito grandes, então é preciso trabalhar isso, e o trabalho, na verdade, que vem sendo feito na arena pública é um trabalho de homogeneização por baixo e não de qualificação dessa diferença, de percepção dessa diferença, de formação de uma consciência da sua situação particular e de extensão disso para o conjunto da sociedade. Então, eu queria que você respondesse essa questão sobre o partido que seria capaz... a natureza do partido que seria capaz de levar a cabo [a alternativa política que você defende], representando esse conjunto de forças.
Roberto Mangabeira Unger: Tem toda a razão. Nós sofremos essa frustração repetida porque todos os partidos construídos para serem veículos dessa proposta de centro-esquerda, que construíssem uma ponte entre as partes organizadas e desorganizadas do país, todos esses partidos foram destruídos ou desmoralizados, não fora do poder, mas no caminho ao poder. Perderam a sua identidade, a sua integridade programática. Então, é uma grande tarefa para o futuro. Nas condições reais da política brasileira, essa tarefa só pode ser executada no meio da luta pelo poder. Não é uma tarefa que possa ser executada no momento anterior, por assim dizer, só no meio dessa controvérsia. Nós temos agora uma grande oportunidade de vivermos o momento de afirmação nacional. Eu, que tenho viajado pelo mundo na tentativa de participar desse debate emergente sobre as alternativas, sinto que não há nenhum país no mundo que reúne condições melhores do que o Brasil para liderar o processo de construção de uma alternativa. Nem a China, nem a Índia, nem a Rússia, somos nós, é o Brasil. O Brasil ainda não se vê assim, não reconhece o seu próprio potencial de originalidade coletiva. Acrescento um tema a este de organizados e desorganizados: os grandes momentos de nossa história, da história brasileira, ocorreram quando a classe média se desgarrou de uma plutocracia de viés colonial, deixou de ser massa de manobra dessa plutocracia e formulou uma reinvenção do projeto de país, em nome de todo Brasil. Tudo de importante que aconteceu na história brasileira aconteceu nesses momentos. Nós agora temos a oportunidade de vivermos um desses momentos.
Heródoto Barbeiro: Bob Fernandes.
Bob Fernandes: Professor, diante de tudo que foi falado aqui, eu quero fazer uma pergunta dupla. Primeiro, do ponto de vista prático e objetivo, como é que, em torno da candidatura Ciro, se organiza isso a que o senhor estava se referindo nessa última pergunta? E a segunda, que é uma pergunta que talvez não interesse a muitos dos que o conhecem aqui, mas interessa a quem está em casa, ao empresário, ao político: qual é, na verdade, até onde vai, como se dá a sua relação com Ciro Gomes? Qual é o seu papel junto a Ciro Gomes?
Roberto Mangabeira Unger: Eu vou começar com essa última pergunta. Então, eu leio nos jornais: eu sou guru, eu sou isto, eu sou aquilo, eu sou... às vezes apareço como uma espécie de Rasputin [(1864-1916) Grigori Rasputin foi um mago que, embora sem ter nenhum cargo no governo imperial russo, exerceu grande influência na última fase da dinastia Romanov] atrás das cortinas, manobrando, [mas] não é nada disso.
Bob Fernandes: Futuro Richelieu [(1585-1642) principal ministro do rei francês Luís XIII, exerceu enorme influência em seu reinado], alguma coisa do gênero.
Roberto Mangabeira Unger: Eu admiro Ciro Gomes, [vejo-o] como um homem possuído por um sentimento de tarefa, que é raro no nosso país, pelo menos na classe política, e estou convencido de que ele está sinceramente disposto a ser o agente de uma proposta como essa que nós estamos discutindo. Não sou o orientador de Ciro Gomes, sou um aliado dele, sou no meu papel um parceiro dele. Eu não sou candidato a ser presidente, eu sou candidato a ser um reconstrutor das idéias dominantes no meu país, e [é] nesse papel de instigador, participante da construção de um ideário que eu me coloco. Como não sou político, não estou buscando cargos, também não sou um assessor de Ciro Gomes, nem guru nem assessor. Eu considero que a minha tarefa é uma tarefa nobre e insubstituível, pelo engajamento político-eleitoral. É outra tarefa que eu agora procuro vincular a essa luta pelo poder para mudar o país.
Bob Fernandes: De que forma, objetivamente?
Roberto Mangabeira Unger: E, portanto, no sentido íntimo, no sentido moral, não no sentido da hierarquia do poder, eu me considero um igual, e trato com ele como um igual, não no sentido de estar numa igualdade de hierarquia política, mas porque eu estou engajado em uma coisa ligada à tarefa dele, porém diferente.
Bob Fernandes: E do ponto de vista objetivo, a construção da candidatura, dessa nova força social a que o senhor se referiu na resposta ao Belluzzo, como é que se dá do ponto de vista objetivo a construção dessa alternativa, uma vez que Ciro Gomes, como disse o Novaes, ainda é quase que um cidadão isolado na paisagem? [O PPS é] um partido que tem poucos representantes, até para se comunicar com a população; tem pouco espaço de televisão. Do ponto de vista objetivo, como é que se ampliará isso?
Roberto Mangabeira Unger: Nós temos duas tarefas práticas agora nesse projeto político. Uma tarefa é construir uma aliança, uma aliança partidária para viabilizar a candidatura dele e, ao mesmo tempo, para ancorá-la em forças claramente comprometidas com uma proposta como essa. A segunda tarefa é conseguirmos consolidar e transmitir ao país a convicção de que existe esse outro caminho, e creio que ainda não conseguimos, não conseguimos fazer. Temos que não só formular o ideário, mas traduzi-lo em uma linguagem. O povo brasileiro enfrenta essa neblina, essa névoa de palavras, todo mundo a favor do social, todo mundo a favor da retomada do crescimento, e tem que de alguma forma exercer um julgamento intuitivo, perigoso para penetrar essa neblina e ver onde é que está o caminho verdadeiro. Nós precisamos assistir a intuição pela clareza, nós precisamos tornar menos difícil a tarefa da intuição.
Heródoto Barbeiro: Wagner Carelli, a sua pergunta, por favor.
Wagner Carelli: Professor, por favor, nós estamos falando em alternativas aqui e, ao mesmo tempo, toda vez que se fala em organização da sociedade, nós voltamos a falar em partidos. Por exemplo, o Novaes diz aqui que o PT tem essa malha organizada, essa malha burocrática estendida pelo país, e quando nós vamos ver essa organização, esse poder de organização, ele está ancorado nos próprios defeitos que o senhor coloca sobre o PT. Por exemplo, ele está ancorado no vício do corporativismo, digamos assim, se a gente pode chamar de vício, mas ele está ancorado nessas formas antigas de organização. Quando nós falamos em alternativa, uma via alternativa para o país, nós não deveríamos falar também numa via alternativa para os partidos como instrumento organizador da sociedade?
Roberto Mangabeira Unger: Construir um regime de partidos fortes é nossa primeira tarefa.
Wagner Carelli: Mas o partido em si, a idéia do partido já não é uma idéia que deveria ser... Nós não deveríamos discutir outros instrumentos de organização de sociedade?
Roberto Mangabeira Unger: Nenhum instrumento substitui partido político. A sociedade precisa se organizar, mas não há nenhuma forma de organização social que dispense o partido político. Nós precisamos desesperadamente de partido.
Wagner Carelli: E qual é a alternativa para a atuação de partidos, então?
Roberto Mangabeira Unger: A alternativa é construirmos um regime de partido verdadeiro que possibilite, numa segunda etapa, superar o presidencialismo tradicional, parlamentarizar o regime, não na forma que sempre se tramou no Brasil, que é evitar a intromissão do povão, a intromissão desagradável, surpreendente, incontrolável, concentrando o poder na classe política, como colocar a tampa sobre o caldeirão fervendo. Para que o parlamentarismo não signifique isso, temos que iniciar a construção de um regime de partidos fortes antes da mudança de forma de governo, e a mudança de forma de governo, então, completaria essa tarefa de formação dos partidos. Agora, um elemento também indispensável para isso é a idéia, é este o elemento desprezado no Brasil, e sinto que aí está a minha tarefa mais importante. A minha tarefa é mostrar que há um outro caminho. Os brasileiros, de forma geral, não estão convencidos ainda de que exista esse outro caminho, e eu digo: eles estão enganados. O outro caminho existe, e a construção do país passa pela abertura desse caminho.
Heródoto Barbeiro: Professor, nós vamos fazer um pequeno intervalo. Nós estamos hoje no Roda Viva com o professor Roberto Mangabeira Unger. Vamos fazer um rápido intervalo e a gente volta daqui a pouco. Até já.
[intervalo]
Heródoto Barbeiro: Bem, nós estamos de volta com o nosso convidado de hoje no Roda Viva, que é o filósofo, pensador e professor de direito Roberto Mangabeira Unger. Infelizmente, hoje você não pode participar mandando suas perguntas, porque o nosso programa está gravado. Professor, agora há pouco o senhor falou que não é político, no entanto o senhor está filiado ao PPS e o senhor foi pré-candidato da prefeitura de São Paulo. Primeiro, eu quero saber o seguinte: o senhor lutou muito para ser pré-candidato e não conseguiu. O seu partido acabou se juntando com o PSB.
Roberto Mangabeira Unger: S im.
Heródoto Barbeiro: Por esse motivo, eu gostaria de saber do senhor se o senhor vai ser candidato nas próximas eleições, uma vez que o senhor tentou ser candidato e não conseguiu na eleição passada.
Roberto Mangabeira Unger: Não, eu não tenho e nunca tive planos de virar um político eleitoral, mas também não me considero banido da política eleitoral. Como cidadão, eu entrarei e sairei quando julgar conveniente ao país.
Heródoto Barbeiro: O senhor foi banido por quem, professor? Quem é que baniu o senhor?
Roberto Mangabeira Unger: Não, eu disse: não me considero banido. As lideranças do meu partido entenderam de forma diferente; eu julguei naquele momento que a nossa proposta para viver na imaginação popular tinha que ser traduzida no trocado de soluções concretas para os problemas do cotidiano. Identifiquei no debate sobre as grandes cidades uma grande oportunidade para isso. Além do mais, eu queria dar a essa juventude cética a respeito da política o exemplo do ardor, o exemplo de atravessar as fronteiras e agir de uma forma inesperada, incôngrua, de me meter numa situação para a qual eu, evidentemente, não estava aparelhado. E sinto que essa experiência moral intangível foi o aspecto mais importante de tudo.
Heródoto Barbeiro: O partido não entendeu o que você quis dizer? Seu partido não comprou sua idéia?
Roberto Mangabeira Unger: O partido tinha um outro entendimento das conveniências de aliança, da qual eu dessenti, mas acabei tendo que respeitar.
Bob Fernandes: Professor, na verdade, o que o senhor fez ali foi construir, dentro do que era o jogo do momento, a sua candidatura [que] chegou a ter número para vencer e se tornar o candidato do partido, e na última hora puxaram o tapete, infiltrando gente no seu trabalho. Quer dizer, do ponto de vista prático, como é que se faz daqui por diante, uma vez que o senhor permanece no mesmo partido, as pessoas que estavam no partido e jogaram esse jogo continuam no mesmo partido?
Roberto Mangabeira Unger: Eu vejo a minha experiência; o que é mais importante na minha experiência... eu comecei a atuar, não tinha nada, não tinha nem automóvel.
Bob Fernandes: Eu sei.
Roberto Mangabeira Unger: De repente, começam a aparecer pessoas de classe média, jovens, profissionais, estudantes para andar comigo na rua. Depois começamos a recrutar gente para o partido, quadros. Acabou com nove mil militantes. Foi uma experiência em que eu ia a todos os bairros de São Paulo, falava com todo mundo, desde os banqueiros até o pessoal da periferia e, em todo o ambiente em que eu ia, apesar do meu jeito reservado, do sotaque estrangeiro e da completa falta de charme, eu era recebido com entusiasmo. Então, essa experiência é uma experiência que demonstra o potencial de transformação. É só preciso haver paciência, devoção, a essa tarefa, aí está pronto.
Bob Fernandes: O senhor tem a consciência que lhe atribuem e, eventualmente, [também] à candidatura Ciro Gomes um quê de messianismo. Queria saber se o senhor considera isso necessariamente ruim, e o que o senhor pensa disso?
Roberto Mangabeira Unger: Eu acho que há dois tipos de grandeza na política. Há um sentimento de estar possuído por uma tarefa, por uma visão de um outro futuro, de um outro caminho. E há um outro tipo de grandeza, que é intuitivamente por empatia, identificar-se com o homem e a mulher comuns, ter um grande coração, o gênio da afetividade. Toda minha tendência é na primeira direção, e essa experiência minha em São Paulo, sobretudo agora, me convenceu da necessidade de combinar isso com o segundo elemento. Eu não acredito em uma forma de engajamento em que a pessoa se torna simplesmente instrumento de uma idéia. Qualquer engajamento na transformação coletiva precisa ser ligado à tentativa que faz a pessoa de transformar-se a si mesmo. Eu não sei se comecei a mudar o partido ou alguma coisa no ambiente de meu país, mas eu sei que eu comecei a me mudar a mim mesmo.
Cida Damasco: Professor, o senhor falou agora há pouco na tarefa prioritária de construção de alianças. O que se viu nas eleições anteriores é que toda vez que começa a se discutir a questão de alianças, de partidos mais à esquerda, de partidos mais progressistas, sempre a discussão acaba “em quem será”, “qual será o partido”, “qual é a facção que vai ser hegemônica nessa aliança”? E toda discussão acaba se centrando em torno do PT. Como é que vocês pretendem encaminhar essa questão nesse momento? Como é que estão as conversas? Vocês pensam em aliança para o primeiro turno? Como é que é essa questão?
Roberto Mangabeira Unger: Acho que seria desejável haver uma grande aliança dessas forças de transformação já no primeiro turno, mas, com toda sinceridade, acho improvável que aconteça. Estou conformado com a necessidade de termos uma candidatura própria, e se possível nos encontrarmos com o PT ou no segundo turno ou no governo.
Heródoto Barbeiro: Professor, só um detalhe. Como é que pode ter uma candidatura própria se o senhor Ciro Gomes diz que, se o Tasso Jereissati for candidato, ele não sai?
Roberto Mangabeira Unger: Essa é uma característica moral do Ciro.
Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Como é que um partido pode pensar dessa forma em função de outro partido político? É o que a gente lê todo dia no noticiário.
Roberto Mangabeira Unger: Não, essa é uma característica pessoal do Ciro. Ele tem o direito dele; ele tem uma relação pessoal com o Tasso. Ele se sente constrangido por um dever de honra a não ser candidato se o Tasso for.
Heródoto Barbeiro: Então, prevalece o partido ou prevalece a pessoa?
Roberto Mangabeira Unger: Se o Tasso Jereissati vier a ser candidato, eu pessoalmente advogarei essa minha posição – não é a posição do próprio Ciro – que ele deveria assim mesmo ser candidato. Mas esse é um assunto que será evidentemente [...].
[sobreposição de vozes]
Heródoto Barbeiro: Mas isso não se contrapõe ao que o senhor acabou de falar a respeito dos partidos?
Roberto Mangabeira Unger: Como assim, por quê?
Heródoto Barbeiro: Essa posição não se contrapõe à que o senhor acabou de dizer?
Roberto Mangabeira Unger: A posição de quem? A posição do Ciro?
Heródoto Barbeiro: É, se contrapõe ao que o senhor disse agora há pouco.
Roberto Mangabeira Unger: Ele sente que ele tem deveres para com os partidos e tem deveres pessoais. É a visão moral dele. Não adianta o Brasil ter um presidente que não tem caráter.
Carlos Novaes: Mas aí, professor, é uma definição de caráter um pouco curiosa, porque se nós levarmos em conta aquilo que o senhor acabou de dizer sobre o sentimento de missão e de tarefa, e que o senhor reconhece isso no Ciro Gomes numa força brutal, onde é que está esse sentimento de missão quando ele é imediatamente relativizado, do meu ponto de vista, por uma visão caipira de relações pessoais coronelistas em que [se] o amigo é candidato, então eu não sou?
Roberto Mangabeira Unger: Não, eu não vejo assim. Eu vejo que há um dever de lealdade. Nós, quando participamos de guerras, nem assim nos despimos dos nossos deveres morais com os indivíduos. Eu concordo com a sua conclusão, embora não concorde com a sua retórica, de que a tarefa deve no final ter primazia sobre a lealdade, e essa será a posição que eu advogarei.
Bob Fernandes: Na verdade, o que o senhor não pode fazer é antecipar o que acontecerá, que com Tasso ou sem Tasso o Ciro será o candidato, é isso?
Roberto Mangabeira Unger: Sim, [isso] não é o nosso assunto. O nosso assunto agora é como mudar o país e as pessoas.
Cida Damasco: O senhor considera uma candidatura Tasso Jereissati, pelo PSDB, dentro dessas forças transformadoras ou não?
Roberto Mangabeira Unger: Eu acho muito bem intencionado o Tasso Jereissati, mas nem de longe o vejo comprometido com esse tipo de proposta. Eu o vejo como uma tentativa de moralizar e purificar a proposta existente, essa do atual governo. Que, afinal, qual é essa proposta do atual governo? Foi reduzida à fórmula mais simples: entregar a política aos bandidos, para poder entregar a economia aos americanos.
Heródoto Barbeiro: Professor Belluzzo, o senhor fez um sinal. Professor Belluzzo, qual é a pergunta?
Luiz Gonzaga Belluzzo: Eu fiz um sinal para lhe dizer que eu concordo com essa idéia do paradoxo moral. É uma situação que a gente vive cotidianamente e que é muito difícil resolver, e é muito fácil suprimir um dos pólos do paradoxo. Mas eu acho que ele vive um paradoxo moral que ele vai ter que decidir ou pela sua visão de político ou pela sua relação pessoal, não é? Queria que o senhor comentasse isso.
Roberto Mangabeira Unger: É isso... não vamos desumanizar a política. A convicção programática não se fortalece pela supressão das ligações pessoais.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Mas você reconhece que, na verdade, uma hora ele vai ter que decidir?
Roberto Mangabeira Unger: Sim, claro.
Luiz Gonzaga Belluzzo: E que a decisão dele vai ter implicações políticas e sociais, porque...
Carlos Novaes: [interrompendo] Olha, se isso aqui é um pouco um debate, quer dizer, eu diria que a questão moral aí, para valer, não está posta, por uma razão: porque a candidatura do Tasso significa um outro projeto, e portanto ela não se choca só no plano de uma moral orientada por valores de relação afetiva, mas pelo fato de que ele vai afirmar um projeto alternativo ao de Ciro, e portanto a questão afetiva aí está inteiramente degradada...
Roberto Mangabeira Unger: [interrompendo] Não é uma questão afetiva, é uma questão de lealdade.
Carlos Novaes: A questão estaria posta se o Tasso não tivesse um projeto.
Roberto Mangabeira Unger: Sim, não precisa me convencer disso. Eu já estou convencido, já manifestei... [risos].
Luiz Gonzaga Belluzzo: Alasdair MacIntyre [(1929-) filósofo escocês que escreveu várias obras sobre ética, moral e filosofia política]. MacIntyre tratou dessa questão, não é verdade? Com grande riqueza. E essa questão está posta, é uma questão concreta, real, não é [uma questão] da qual você possa escapar, assim, sem mais...
Roberto Mangabeira Unger: É mais importante voltar ao nosso problema central aqui, que o Brasil precisa mudar o rumo e os brasileiros, na sua maioria, estão esperando... esperando uma discussão...
Luiz Gonzaga Belluzzo: [interrompendo] Porque a prática aqui é a deslealdade, a prática... Desculpe interrompê-lo. A prática aqui é a pratica da deslealdade, o cotidiano aqui é o cotidiano da deslealdade. Depois eu vou ler um trecho do seu livro para reproduzir isso.
Ramiro Alves: Nessa linha, a campanha política no Brasil infelizmente é feita de dinheiro e cada vez mais tempo na televisão. Dinheiro vem proporcionalmente aos índices de aceitação, índices de pesquisa, não é? O quadro político hoje está sendo montado da seguinte maneira: o PSDB está fazendo uma aliança com os partidos governistas; lá na esquerda, o Lula cada vez mais se consolida, e tem um meio aí, o PMDB, talvez partindo com Itamar Franco, que é um candidato que correria numa linha – para o eleitor –, acho que numa linha muito próxima de Ciro Gomes. Todo o seu projeto [de Mangabeira Unger] é muito bom, eu acho o Ciro muito bem intencionado, mas ele não corre o risco de ficar fora do jogo, quando a bola rolar para valer, sendo substituído até pelo próprio Itamar, que corre por fora para ser essa via?
Roberto Mangabeira Unger: Eu não acho que não corre riscos. A nossa tarefa aqui não é prever vitórias. A nossa tarefa é entrar numa luta reconhecidamente difícil e fazer tudo que possamos fazer, dar tudo de nós para poder ganhar.
Ramiro Alves: Mas, na política real, ele não precisaria ter o apoio de um partido... o chamado grande partido?
Roberto Mangabeira Unger: Evidente. Não sei se grande partido; nós vamos lutar para construir uma coligação partidária e ao mesmo tempo para consolidar esse ideário na imaginação do país.
Bob Fernandes: Professor, dentro desse panorama, me parece que sobram poucos parceiros. Qual é, digamos, o parceiro preferencial hoje?
[...]: César Maia.
Bob Fernandes: Não, eu digo [parceiro] partidário.
Roberto Mangabeira Unger: Bom, eu pessoalmente vou lutar para construir uma relação com o PDT, porque acho que, entre os partidos agora pequenos, este...
Bob Fernandes: [interrompendo] E o PTB?
Roberto Mangabeira Unger: Seria muito importante para nós. Sob todos os pontos de vista, não só sob o ponto de vista de tempo de televisão e aparato partidário, mas de sinalizar ao país as nossas intenções.
Bob Fernandes: E o PTB se exclui disso? Está fora...?
Roberto Mangabeira Unger: O PTB também. Há uma discussão com o PTB. [Mas] como eu tenho relações históricas com o PDT, creio que posso contribuir mais lá.
Carlos Novaes: Professor, o senhor fala dessa neblina que estaria obstruindo, digamos, os indivíduos, cidadãos brasileiros, a visão deles sobre o caminho a seguir.
Roberto Mangabeira Unger: Sim.
Carlos Novaes: E o senhor faz, é o que parece, uma aposta muito forte na relação que possa se estabelecer entre esse individuo obnubilado por essa neblina e uma liderança que pudesse apresentar um projeto que sensibilizasse esses indivíduos, como que fazendo um arco sobre as mediações que a sociedade brasileira, a duras penas, vem construindo.
Roberto Mangabeira Unger: Mas nós não escolhemos o regime político.
Carlos Novaes: Sim.
Roberto Mangabeira Unger: Vivemos num regime presidencial. E agora temos que jogar segundo as regras desse jogo...
Carlos Novaes: Pois é.
Roberto Mangabeira Unger: ...que nós não formulamos.
Carlos Novaes: Não, mas eu não estava supondo que o senhor estivesse pretendendo ter formulado as regras do jogo.
Roberto Mangabeira Unger: Não, mas o que eu estou dizendo é que a necessidade de contestar a ação, através de um indivíduo, essa necessidade nos é imposta pelas regras do jogo.
Carlos Novaes: Sim, mas o que eu quero perguntar vai na direção do seguinte: o senhor, perfeito, o senhor acabou de arredondar bem a questão. No entanto, o senhor, ao mesmo tempo, faz profissão de fé em partidos fortes e chega a nos propor a adoção da lista partidária fechada, não é?
Roberto Mangabeira Unger: Como horizonte, como objetivo.
Carlos Novaes: Sim, mas digamos que amanhã as pessoas se convencessem de fazer a lista partidária fechada com esses partidos que estão aí.
Roberto Mangabeira Unger: Sim.
Carlos Novaes: Essa que é a questão. Então, para mim, parece um pouco paradoxal, quer dizer...
Roberto Mangabeira Unger: [interrompendo] Não é paradoxal, é...
Carlos Novaes: ...que se façam as duas formulações no mesmo processo de luta política.
Roberto Mangabeira Unger: Não, não.
Carlos Novaes: E mais, a figura do Lula não tem essa tangência com essa cultura populista brasileira e, ao mesmo tempo, não tem um pé no que há de organizado? Por que o Lula deve ser preterido em prol, por exemplo, de alguém como Ciro Gomes?
Roberto Mangabeira Unger: Eu não acho que deva ser preterido, eu acho que ele não tem esse projeto. Não tem esse projeto, por todas as razões que nós discutimos. Falta a idéia, falta o caminho, falta a disposição para enfrentar, que a construção desse caminho requer. Então eu faço a minha avaliação de que não há dúvida de que, entre esses candidatos, o que reúne melhores qualidades para liderar a construção desse caminho é o Ciro Gomes, claramente.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Mangabeira, essa sua aposta em uma pessoa, é claro que corre o risco de se transformar, na verdade, no contrário do projeto que você pretende...
Roberto Mangabeira Unger: [interrompendo] Não estou apostando em uma pessoa. Isso é o que eu dizia há pouco. Eu estou apostando...
Luiz Gonzaga Belluzzo: Independentemente de qual seja a pessoa.
Roberto Mangabeira Unger: Estou apostando num ideário. Eu tenho a consciência de que, para viabilizar esse ideário, nós teríamos que construir uma grande base tanto social quanto política, sem isso a experiência do poder se frustraria.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Mangabeira, eu quero lhe dizer uma coisa: há uma suspeita, a meu juízo não justificada – eu não diria injustificada, mas não justificada –, de que o Ciro Gomes possa reproduzir o fenômeno Collor, não é? É uma suspeita, eu estou aqui exprimindo o que corre por aí. Isso, na verdade, pega; esse vício no Brasil pega, não é? Nós não podemos, na verdade, qualificar a atual presidência do professor Fernando Henrique Cardoso como o regime em que tenham prevalecido as regras da democracia da República, não é? Não vou aqui dar exemplos. Então, a coisa acaba se concentrando na pessoa, a pessoa acaba tendo uma importância desmesurada. Eu concordo com você: o caminho que você está fazendo é um caminho arriscado, e você tem que tomar o risco de fazê-lo; no entanto, as tendências centrais deste país são no sentido de você acabar transformando isso num regime pessoal.
Carlos Novaes: Deixe-me só pegar uma carona nisso. É o seguinte: acho que o professor Belluzzo, quando traz o debate sobre o Collor, quer dizer, falando de um zum zum que há aí, eu iria um pouquinho mais longe e diria o seguinte: se nós olharmos, o Collor se elegeu como? Se elegeu solteiro, sozinho, em pequeno partido, na aposta de que os 35 milhões de votos iriam legitimar o processo de mudança, e que ele iria contornar precisamente as mediações que o Brasil construiu. Gostemos delas ou não, não é? Ora, a aposta de novo nesse mesmo esquema não é precisamente jogar de novo num sujeito solitário para se contrapor às mediações? Apostando num povo que não vai se levantar para defender coisa nenhuma.
Roberto Mangabeira Unger: Olha, eu volto ao meu ponto: o regime presidencial, copiado dos Estados Unidos, como copiaram tudo aqui dentro, não foi minha invenção. Isto foi instalado aqui e nós temos que entrar por esse esquema para mudar o esquema. O que importa é o conteúdo. Quais são as duas grandes vertentes de mudança que poderiam transformar essa situação e evitar um desfecho tipo Collor? Primeiro, a construção de um outro regime, de um regime que combine alta mobilização, alta energia, com organização institucional. Daí a importância de partidos fortes, de transformação do estado. Segunda vertente – tão importante ou mais importante ainda do que esta –, qual vai ser o conteúdo do projeto econômico social. O conteúdo do projeto econômico social tem de ser: dar acesso a essa multidão no país que quer ascender a uma condição pequeno-burguesa, que quer acesso à iniciativa, a instrumentos de trabalho, de desenvolvimento. E essa gente que vive à míngua de acessos, que vive à margem, é que precisa começar a ter uma vida econômica real. Aí, sim, quando o país não for dividido entre uma minoria voltada para fora e uma maioria que está na escuridão, nas sombras, na informalidade, não vai mais precisar de aventureiros, não vai haver esse risco. Então, o poder tem que ser usado [gesticula, dando pequenos socos na mão] para quebrar a base social concreta que reproduz constantemente essa oscilação entre acertos organizados, porém conservadores, e aventuras frustradas para quebrar os acertos.
Bob Fernandes: Professor, nós estamos aqui numa TV pública discutindo isso como de forma alguma se discute em TV aberta no país. E parece que o senhor tinha, nesse último retorno e militância mais permanente no Brasil, não sei se tinha a mesma visão que tem hoje dos chamados meios de comunicação. Como é que o senhor vê a posição e o papel dos meios de comunicação e como é que você quebra esse modelo?
Roberto Mangabeira Unger: É intolerável que o país viva uma espécie de máfia de proteção mútua do aparato político-burocrático e dos magnatas de mídia. Nós precisamos construir um espaço de discussão coletiva no país. Agora, a própria evolução da tecnologia facilita a multiplicação de formas de propriedade e iniciativa nos meios de comunicação.
Bob Fernandes: Mas o que se tem por enquanto é a acumulação desses novos meios.
Roberto Mangabeira Unger: Sim, exatamente. Mas o Estado brasileiro precisa colocar o viés do lado do pluralismo, da multiplicação das formas de acesso e de propriedade nos meios de comunicação e afastar-se dos acertos debaixo da mesa, que ainda caracterizam a vida pública no país. Faz parte daquela primeira vertente de mudança do regime político, do regime público no Brasil.
Bob Fernandes: É, porque é a maneira pela qual você se comunica com a população.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Mangabeira, sem essa mudança no controle, na propriedade dos meios de comunicação, a democracia no Brasil fica muito difícil. Ela tem sido difícil, inclusive porque a exclusão, a censura, a autocensura tem sido sistemática, não é? A interdição do debate, como é intitulado no livro do ministro... a interdição do debate, por exemplo, durante esses cinco anos foi responsável por muitos desacertos e descaminhos que a sociedade e a economia brasileira encontraram. Eu considero esta uma questão central, que tem que ser enfrentada imediatamente, e dentre os políticos a gente tem que reconhecer: o único que bradou contra isso foi o Leonel Brizola, sempre, mostrando o papel... Hoje em dia essa discussão no mundo inteiro é uma discussão generalizada, inclusive nos Estados Unidos, por conta das fusões, aquisições e a concentração da propriedade nos meios de comunicação. E não há formas de se construir espaço público numa sociedade complexa como esta a não ser através do controle e da regulamentação dos meios de comunicação, não é? Quer dizer, não é possível que isso continue desse jeito, porque isso barra a possibilidade do debate político.
Roberto Mangabeira Unger: Veja o problema que nós temos no Brasil; no Brasil menos de 10% da população adulta têm qualquer contato com a imprensa escrita. Estamos tentando construir um ideário, [mas] como é que vamos encontrar as pessoas? Como vai se chegar lá no meio dessa confusão em que as pessoas nem sabem os nomes dos candidatos, confundem as identidades, não têm acesso às propostas? Essa é a dificuldade. Meu sentimento, a partir dessa experiência em São Paulo, é que se conseguíssemos falar grupo a grupo com os brasileiros, se eu conseguisse multiplicar as minhas visitas à periferia de São Paulo, milagrosamente, numa espécie de multiplicação dos pães [referência ao episódio bíblico em que Jesus promove a multiplicação dos pães para alimentar a multidão que ouvia sua pregação], multiplicação das visitas por todo o país, mudava tudo, mas agora a televisão é o caminho, é o único caminho que nós temos para isso. Como é que vamos chegar lá? Então, temos que, de alguma forma, cortar esse nó górdio [lendário nó que prendia ao timão o jugo da carreta do rei Górdios, depositada no templo de Zeus, sobre o qual existia a profecia de que quem o desatasse tomaria para si a Ásia], conseguir por exemplos, por símbolos, por metáforas, por encarnações, por demonstrações, sinalizar qual é a intenção.
Heródoto Barbeiro: Professor, essa marcha que o senhor disse, como é que ela chega até os partidos políticos? A impressão que se tem, aqui de fora, inclusive do seu partido, é que ele também é um partido formado de cima para baixo, e eu acho que o melhor exemplo de que é um partido formado de cima para baixo foi o senhor não ter conseguido ser candidato a prefeito de São Paulo, não é? Porque a decisão foi feita lá em cima, não veio da base do partido. O senhor não acha que os partidos, por exemplo, para representar determinados segmentos sociais, teriam que vir debaixo para cima, representando essa base social que eles imaginam que representam?
Roberto Mangabeira Unger: Isso é o que todo mundo diz, não é? Soa bonito e tudo, mas como é que vão chegar lá? Temos que chegar lá mudando o projeto em cima, o projeto do poder...
Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Então o senhor acha que, com essa estrutura, não é possível?
Roberto Mangabeira Unger: Não, não é possível.
Heródoto Barbeiro: Acha que todos os partidos vão ser dessa forma, partido de cacique?
Roberto Mangabeira Unger: Enquanto tivermos um presidente da República que acha que o mundo está na posse de uma nova Roma [refere-se ao poder exercido no mundo pelos Estados Unidos], que não adianta resistir, que a única coisa que tem a fazer é obedecer e esperar que a obediência produza confiança e a confiança traga dinheiro...
Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Desculpe, professor, ele não faz isso porque tem anuência do Congresso? Ele não tem poderes discricionários [ilimitados], não é isso? Faz isso com a anuência do Congresso. No Congresso não estão representados os partidos políticos?
Roberto Mangabeira Unger: Mas a realidade do nosso regime é que, consolidado aquele poder em cima, [ele] exerce uma força gravitacional quase irresistível sobre os partidos frágeis, desorganizados que temos, por isso mesmo que temos que mudar não só o regime, mas a base econômica e social do país, para que o país se possa levantar, para que o país tenha acesso à informação, que para tenha acesso à independência econômica, para que o país possa ver e resistir. Isso não é possível fazer sem mudar a natureza do projeto econômico, e eu insisto: agora temos um projeto...
Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Professor, o que impede de mudar esse projeto econômico agora? O país é democrático; a imprensa é relativamente livre; o Congresso Nacional está aberto; os partidos...
Bob Fernandes: [interrompendo] Não, relativamente livre se considerar que se pode ali, eventualmente... mas o acesso não é livre, o acesso é limitado. Quantos programas da televisão brasileira têm esse tipo de debate em horário nobre?
Heródoto Barbeiro: O que impede os partidos, professor, de levar esse debate ao Congresso?
Roberto Mangabeira Unger: Os partidos são fragílimos e não conseguem sair dessa esfera de dependência do poder. E os brasileiros, a grande maioria dos brasileiros não conseguem penetrar a neblina, não conseguem ver. Vejamos qual é a essência do nosso problema: essa economia mundial está sendo organizada como uma confederação de setores avançados, comandados agora no plano político pelos Estados Unidos. Nós temos basicamente dois tipos de países no mundo, fora dessa pequena ilha de prosperidade. Temos os países como o nosso, que, por enquanto, renunciaram a ter um projeto próprio e julgaram poder ascender através da obediência. E temos os países que, de alguma maneira, ainda que imperfeita, resistem. O Brasil tem tudo, não só para entrar no rol dos resistentes, mas para liderá-los, e os brasileiros ainda não compreenderam isso. A nossa primeira tarefa é acordar o país para a possibilidade de ter um projeto que é, ao mesmo tempo, produtivista e democratizante.
Heródoto Barbeiro: O.k., professor, nós vamos fazer só mais um intervalo e nós voltamos daqui a pouco. O nosso convidado, hoje, aqui no Roda Viva é o professor Roberto Mangabeira Unger. A gente volta em instantes.
[intervalo]
Heródoto Barbeiro: Nosso convidado hoje aqui no Roda Viva é o professor de direito, filósofo, pensador, Roberto Mangabeira Unger. Nosso programa hoje está gravado, por esse motivo então, como você faz normalmente, mandando perguntas, e-mails etc, infelizmente eles não podem ser feitos hoje. Professor, gostaria de voltar aqui ao debate, pensando aqui com a cabeça do telespectador sobre tudo o que o senhor falou. Essa proposta de transformação que o senhor diz ter, que está no seu projeto, que é o seu projeto da sociedade brasileira, ela é uma proposta de transformação com ou sem a propriedade privada? Em outras palavras, eu quero saber o seguinte: o projeto do senhor é um projeto de aprofundamento do capitalismo no país?
Roberto Mangabeira Unger: Eu não acredito nessas categorias: capitalismo e socialismo.
Heródoto Barbeiro: Não existe mais capitalismo?
Roberto Mangabeira Unger: Eu acho que nunca existiu. Quer dizer, vamos esquecer essas abstrações que ajudaram a destruir o debate no Brasil, porque, veja, isso é o que pensam as pessoas que controlam o país. [Segundo elas] qual seria a mudança? Seria essa coisa teórica chamada socialismo. [Como isso] é inacessível, então tratemos de humanizar o inexistente. É o açúcar...
Heródoto Barbeiro: [interrompendo] O existente é o capitalismo?
Roberto Mangabeira Unger: O existente é a estrutura que chamam de capitalista, mas vamos esquecer essas categorias. O importante...
Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Desculpe, professor, mas como é que vamos chamar essa categoria existente?
Roberto Mangabeira Unger: O importante é que a economia de mercado, assim como a democracia, podem ser organizadas de formas diferentes. Dou um exemplo: os Estados Unidos, no século XIX, tiveram o problema imenso da escravatura, como nós tivemos, mas ao mesmo tempo construíram uma agricultura descentralizada à base de parceria entre os governos e os fazendeiros de escala familiar e descentralizaram radicalmente o crédito, colocando a poupança à disposição dos pequenos produtores.
Heródoto Barbeiro: Mas era uma economia capitalista.
Roberto Mangabeira Unger: Quando estavam fazendo isso, o que estavam fazendo? Estavam democratizando o mercado, é isso que nós queríamos...
Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Mas a economia de mercado não é característica do capitalismo, salvo engano, não é?
Roberto Mangabeira Unger: Não, eu não vou aceitar essas categorias abstratas.
Heródoto Barbeiro: Então, a economia de mercado não é característica do capitalismo?
Roberto Mangabeira Unger: Não, não, a economia de mercado pode ser menos democrática, mais democrática; menos experimentalista, mais experimentalista. Hoje, o problema é o seguinte: o mundo está cada vez mais dividido em ilhas de experimentalismo de excelência na produção e no ensino. E o resto da humanidade fica fora, fica fora...
Heródoto Barbeiro [interrompe]: E como é que se organiza essa produção que o senhor diz?
Roberto Mangabeira Unger: Para que essa produção mais avançada, mais experimental, capaz de progredir, se expanda, para que ela não esteja sob quarentena, nesses pequenos quistos, precisa de uma aliança com o Estado. O Estado precisa desenvolver formas de parceria com a iniciativa privada...
Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Com propriedade privada ou sem propriedade privada?
Roberto Mangabeira Unger: Com a propriedade privada, mas a propriedade privada tornada acessível, reinventada, multiplicada nas suas formas, inclusive com formas mistas de combinação do público e do privado. O que eu quero demonstrar é o seguinte: vamos acabar com essa lengalenga de alternativas teóricas e com a idéia de que a única coisa que temos concretamente a fazer é humanizar o sistema existente pelas políticas sociais de compensação. Ao invés disso, vamos tratar de construir um projeto resistente, rebelde, afirmativo, de desenvolvimento nacional, à base de uma parceria do Estado com os produtores, que democratize nosso mercado.
Heródoto Barbeiro: Eu não entendo, o senhor quer substituir o sistema capitalista por qual [outro] sistema? Desculpe, eu não consigo compreender. Qual é a alternativa para o sistema capitalista?
Roberto Mangabeira Unger: [com veemência] Isso é a democratização do mercado. Eu me recuso a utilizar essa terminologia de capitalismo, que creio ser uma mistificação, uma mistificação que esconde as verdadeiras opções hoje. A questão é se vamos ter uma democracia de baixa energia ou uma democracia de alta energia; se vamos ter um mercado hierárquico ou se vamos ter um mercado democratizado; se vamos ter uma sociedade civil dividida entre a minoria organizada e a maioria desorganizada ou se vamos ter uma sociedade civil que se mobiliza em todos os seus setores. Essas são as opções cruciais, e nós só vamos mudar isso, primeiro, construindo um ideário e, segundo, ganhando poder.
Heródoto Barbeiro: Professor Belluzzo.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Mangabeira, gostei da sua resposta, mas você não seria, digamos, como o personagem de Molière [1622-1673, dramaturgo francês] Monsieur Jourdain [da peça Le bourgeois gentilhomme], que está fazendo socialismo sem sabê-lo? Monsieur Jourdain fazia prosa sem saber, não é? O socialismo, na verdade, como ideal abstrato, concordo com você, é uma coisa que está totalmente... aliás, se você leu a Crítica ao programa de Gotha, do [Karl] Marx [1818-1883) economista, teórico do socialismo e revolucionário alemão, autor, entre outras obras, de O capital, sua obra prima e referência até a atualidade], você vai ver que ele está mais próximo de você do que dos seus companheiros socialistas, não é? Ele via aquilo como um processo, como um desdobramento, uma radicalização da democracia, não é verdade? Agora, o capitalismo tem suas instituições, suas leis, suas normas, suas formas de ser, não é? Obviamente, isso se choca, e isso é da natureza do projeto iluminista [referência ao iluminismo], isso se choca. Quer dizer: as forças materiais da economia acabam, muitas vezes, entrando em choque com, digamos, as utopias da política, que são próprias do projeto iluminista. E, às vezes, eu vejo em você uma certa tendência de passar um pouco por cima desse caráter, dessas relações de poder que são construídas dentro do mercado. Porque o mercado não é uma coisa de vender abobrinha e comprar mexerica, não é? Isso sempre existiu com os poros da sociedade feudal. Eu concordo com você que o mercado não é uma criação do capitalismo; aliás, o capitalismo na verdade vem engendrando o monopólio, não é? Ele concentra propriedade, como você diz, e só desconcentra através da luta política dos de baixo, dos de baixo. Só desconcentrou assim. Houve duas guerras mundiais neste século para poder chegar ao estado do bem-estar [estado de bem-estar social].
Roberto Mangabeira Unger: Mas não adianta me convencer a entrar nisso.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Não quero convencê-lo. Mas você vai responder para mim [risos].
Roberto Mangabeira Unger: Porque eu insistirei, eu insistirei...
Luiz Gonzaga Belluzzo: Não quero convencê-lo; eu sou incapaz de convencê-lo.
Roberto Mangabeira Unger: Eu insistirei em trocar os rótulos pelas tarefas. E reconheço que a sociedade brasileira tem estruturas concretas de poder. Não quero tratá-las como instância de uma categoria abstrata, de um sistema capitalista que tem as suas leis próprias, porque não acredito na idéia teórica subjacente a esse conceito. Mas reconheço que essas estruturas existem e, ao mesmo tempo, são contraditórias. Por exemplo, nós temos no Brasil uma contradição entre os interesses dos rentistas, as pessoas que querem viver sem trabalhar, como credores do Estado, e as pessoas que querem produzir. E ests uma divisão que existe entre a própria elite brasileira.
Luiz Gonzaga Belluzzo: [interrompendo] E as malhas do poder?
Roberto Mangabeira Unger: Sim, mas vamos nos aliar, vamos nos aliar aos que querem produzir, aos que querem trabalhar.
Carlos Novaes: Professor, eu vou pegar as duas coisas, tanto a pergunta do professor Belluzzo quanto a sua resposta, numa outra, de um outro aspecto, para tentar então esclarecer, para mim próprio, e talvez para o telespectador, um pouco melhor essa história. O senhor, ao longo do seu livro, em entrevistas e tal, o senhor aponta uma série de contradições; acabou de apontar uma agora. Ora, um homem de pensamento e ação, antes de mais nada, tem que hierarquizar um pouco essas contradições, porque se nós ficarmos com todas é inoperável, não é? Bom, o senhor isola uma contradição, entre muitas que o senhor aponta, entre os tais que estão incluídos e os que estão excluídos, que é...
Roberto Mangabeira Unger: [interrompendo] Não, é muito mais específico no livro. Eu vou lhe dizer já o que eu creio que é prioritário entre essas contradições para a construção de uma aliança. São duas coisas que já foram mencionadas: primeiro, entre os endinheirados, as pessoas que estão em cima na sociedade brasileira, há uns que querem viver sem trabalhar e há outros que querem trabalhar. É o tal contraste entre os produtores e os rentistas. Vamos nos aliar com os produtores contra os rentistas. Depois, embaixo, no resto da sociedade brasileira – não é só o povão, é a classe média também –, há uma multidão de gente que está lá na margem. Se não está na economia informal, como está a maioria, está praticamente nos limites da economia formal, também sendo expelida para fora, sem esses instrumentos de trabalho. Vamos democratizar o mercado; isso significa, concretamente: vamos dar o acesso aos instrumentos concretos do ensino e da produção a essa gente. Essas são as alianças cruciais, em cima e embaixo, que vão sustentar um projeto de poder que transforme o país.
Heródoto Barbeiro: Professor, essa camada de elite econômica que o senhor acabou de citar vai abrir mão, espontaneamente, para essa parte da sociedade que não está incluída – naquilo que o senhor se recusa a chamar de capitalismo – vir a participar? É espontâneo isso?
Roberto Mangabeira Unger: Espontaneamente, espontaneamente.
Heródoto Barbeiro: Como é que é? Espontaneamente?
Roberto Mangabeira Unger: Vou lutar...
Heródoto Barbeiro: O senhor mesmo agora deu um exemplo da história do Brasil, dos grandes proprietários de terra. Foi espontaneamente que os grandes proprietários de terra liquidaram com os escravos?
Roberto Mangabeira Unger: Vamos lutar, vamos lutar e vamos derrotá-los, vamos entrar numa luta.
Heródoto Barbeiro: Sem nunca ter passado por uma revolução?
Roberto Mangabeira Unger: Há duas coisas que são erradas. Uma é a idéia de que nós possamos transformar o país sem contar com a simpatia, a aliança, o engajamento de parte das pessoas de cima.
[...]: Do establishment [a elite social, econômica e política de um país]?
Roberto Mangabeira Unger: Dessa parte da elite, parte dos endinheirados. Se estiverem unidos contra nós, não, não podemos triunfar. Agora, a outra coisa que é igualmente errada é imaginar que vamos fazer a transformação sem lutas, sem divisões, sem contrastes, simplesmente aumentando cada vez mais a dose de açúcar. Não vamos também.
Heródoto Barbeiro: A mudança, o que é, professor? É a distribuição da renda no país, é isso?
Roberto Mangabeira Unger: Não, a mudança é a transformação das nossas instituições políticas, econômicas e sociais, precedida por uma fase em que damos ao Estado dinheiro e recursos para poder fazer ressurgir o surto de desenvolvimento no país. Abrimos, começamos a abrir o caminho do acesso ao crédito, à tecnologia, ao ensino de alta qualidade para essa massa que quer ascender. Com isso começamos a redistribuir a renda e aprofundar o mercado interno; partimos para a construção de um regime de partidos fortes, que precede uma mudança de forma de governo e vamos lá fora construir um espaço para o Brasil. O Brasil não vai ser satélite dos Estados Unidos, o Brasil vai se aproximar de outros grandes países e vai, na base de um novo projeto interno, construir uma relação não subordinada com os Estados Unidos.
Cida Damasco: Professor, concretamente, a candidatura... vamos supor o seguinte cenário: terminadas as eleições, a candidatura Ciro Gomes é vitoriosa, o novo presidente é Ciro Gomes. Quais, na sua visão, seriam os projetos prioritários para serem encaminhados, por exemplo, ao Congresso? Quais são? Vamos ter que atacar duas ou três frentes; que frentes o senhor atacaria, logo no início?
Roberto Mangabeira Unger: Tem que ser várias frentes, muitas frentes. E temos que começar, entre outras coisas, por essa reconstrução e refinanciamento do Estado brasileiro. Precisamos ter um sistema tributário que dê muito dinheiro para o Estado e, ao mesmo tempo...
Cida Damasco: [interrompendo] Um projeto de reforma tributária ao Congresso?
Roberto Mangabeira Unger: ...desonere a produção. Temos que organizar a poupança previdenciária para que o seu potencial produtivo não se dissipe num cassino financeiro, para que vá para a produção. E temos que construir o Estado, um Estado com quadros burocráticos de elite altamente qualificados e compensados, que possam implementar esses projetos. Essa é a construção do Estado. Agora, simultaneamente com isso...
Cida Damasco: [interrompendo] E dinheiro para essa construção do Estado?
Roberto Mangabeira Unger: ...vai um outro sinal claro, que tem que vir logo no início, deve vir logo no início. Não vamos aceitar a escolha entre o laissez-faire [expressão francesa que significa deixar fazer, não interferir, e designa a filosofia econômica do mercado livre nas trocas comerciais, com pouca interferência do Estado] e as clientelas, na política econômica. Não vai ser o negócio, como é agora, em que temos a ortodoxia atenuada pelo favor, temos a política de Wall Street e de Washington, a política dos americanos, e depois tem lá o balcão de favores do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] ou no Ministério da Produção. Vamos organizar, de forma impessoal, um sistema de formulação, de formulação de estratégias produtivas internas e internacionais em que, a cada medida de apoio, corresponda como condição do apoio uma ampliação do hall dos beneficiados, para que o incentivo venha de mãos dadas com a democratização do mercado. E, em terceiro lugar, falando nas medidas prioritárias, vamos começar a reconstruir o regime político, passando por iniciativas prioritárias, como o financiamento público das campanhas eleitorais. Essas medidas iniciais, nas primeiras semanas, nos primeiros meses de um governo criariam no país um clima de um grande momento de afirmação nacional. E aí, de repente, todo esse ambiente de ceticismo que vivemos no Brasil se transforma num ambiente de vitalidade. Há uma vitalidade subjacente, subterrânea no Brasil, que não consegue se traduzir em vida pública.
Heródoto Barbeiro: Professor, só um comentário...
Carlos Novaes: Professor, trocando em miúdos, isso significaria a abertura de um processo revolucionário no Brasil.
Roberto Mangabeira Unger: Não, não tem nada de processo revolucionário.
Carlos Novaes: Porque, convenhamos, um presidente que proponha isso, com esse Congresso que está aí, que vai se reeleger de maneira considerável, não é? A taxa no Brasil de reeleição no Congresso é de 56%. Quem vai estar lá vai ser o PFL, vai ser o PPB, vai ser o PMDB, vai ser o PT. São esses mesmos partidos aí.
Roberto Mangabeira Unger: Não creio que seja esse o problema.
Carlos Novaes: Tudo isso vai ter que passar pelo Congresso.
Roberto Mangabeira Unger: Não creio que seja esse o problema.
Carlos Novaes: Ou bem se mobiliza a população contra o Congresso ou bem não vai ser assim.
Roberto Mangabeira Unger: Nos primeiros meses de um governo, o presidente eleito, sobretudo eleito com grande entusiasmo, exerce um poder quase irresistível sobre essas elites políticas. Não é esse o problema, o problema é que esse poder pode até induzir a um engano, de que o caminho é fácil, quando na realidade sabemos que aquilo é uma massa amorfa e que aquelas vitórias iniciais podem facilmente ser dissipadas.
Carlos Novaes: Quem é a massa amorfa? Eu não entendi.
Roberto Mangabeira Unger: A massa amorfa dessa elite política que se congrega em torno dos palácios, em torno do poder, em torno dos cargos, em torno dos favores.
Carlos Novaes: O que o senhor quer dizer com “amorfa” realmente? Porque eu acho que eles são, pelo contrário, altamente organizados, orgânicos, fazem obra o tempo inteiro, têm interesses muito claros e põem em pé os seus negócios. Então, o que é amorfo aí?
Roberto Mangabeira Unger: Amorfo só diante do rei. Não amorfos entre si. Eles têm lá as suas organizações, mas quando estão lá no palácio esperando ser atendidos, estão na mesma fila, e é difícil distingui-los [risos dos entrevistadores]. Esse é o perigo, e só por uma mudança de regime, combinada com uma mudança da base econômica e social, é que nós vamos conseguir transformar, porque não adianta também imaginar a transformação do regime político se a grande maioria do povo brasileiro continua sem acesso à informação, sem acesso ao ensino, sem acesso à produção. Não podemos ter um país de dependentes e mendigos e esperar que possam, ao mesmo tempo, ser cidadãos.
Heródoto Barbeiro: Professor, só um esclarecimento. Como é que o senhor diz que o país não vai ser dependente? Quando o senhor fala que não vai ser dependente, eu já imagino... o senhor não quer usar a categoria capitalismo, [com base na qual] eu imaginava que era o sistema mundial, e para ser independente tem que haver alguma ruptura aí com esse sistema. Quando nós temos uma presença maciça de capital estrangeiro no Brasil, uma quantidade cada vez maior de atividades econômicas nas mãos desse capital internacional, uma dívida externa que vai para lá de 200 bilhões – não interessa se ela é pública ou privada, o país deve isso. Quer dizer, como é que nós não vamos ser dependentes se esse sistema é um só?
Roberto Mangabeira Unger: O sistema não é um só.
Heródoto Barbeiro: O sistema não é um só?
Roberto Mangabeira Unger: Não é verdade... passaram essa idéia aqui no Brasil [de que] é um só sistema, é a nova Roma, é irresistível.
Heródoto Barbeiro: [em tom de brincadeira] Agora eu acho que o culpado é o professor Belluzzo. Professor Belluzzo, o senhor é o culpado de ter passado essa idéia...
Roberto Mangabeira Unger: Não, não, não é culpado.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Eu não passei essa idéia, me desculpe, eu acho que o sistema é hierarquizado, não obstante seja capitalista. O senhor não quer falar a palavra [capitalismo], mas eu falo.
Roberto Mangabeira Unger: Os grandes países do mundo respondem de formas diferentes a esses sistemas de constrangimentos. Os constrangimentos existem, mas o que se discute aqui no Brasil é sempre a idéia dos constrangimentos, das limitações. [Eles] existem, existem de um lado da balança. A minha pergunta é a seguinte: o que está pesando do outro lado da balança? O que pesa do outro lado da balança é o nosso projeto, é o que nós queremos ser, e o nosso problema não é que há esse outro lado da balança com os constrangimentos, com as limitações. O problema é que não está nada do nosso lado da balança. Qual é a nossa proposta, o nosso projeto, a nossa resistência? A nossa idéia dominante no Brasil é aceitar o inevitável e humanizá-lo.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Posso fazer uma observação? Na verdade – não sei se você concorda – não era necessária a opção que nós fizemos no início dos anos 90. Ela não era obrigatória.
Roberto Mangabeira Unger: [interrompendo] Nunca, nunca.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Só fizemos por causa da correlação de forças internas.
Roberto Mangabeira Unger: Fizemos porque quisemos fazer, porque ganhou uma força no Brasil que abandonou, renunciou a um projeto alternativo de desenvolvimento nacional. Agora, temos uma oportunidade. Temos uma oportunidade não só pela sucessão presidencial, mas pela confusão econômica que se vai armando no mundo. Não esqueçamos que o sistema chamado de substituição de importações, que deu no nosso atual parque industrial, foi uma resposta à crise econômica internacional dos anos 30. Agora nós poderemos ter uma outra oportunidade de reinventar uma forma criadora de resistência, uma forma criadora de resistência que não é baseada no isolamento, que pressupõe uma integração na economia mundial, mas uma integração que convém a nós, uma integração guiada, inspirada, animada pelo nosso projeto interno.
Carlos Novaes: Nessa relação que o senhor vê do Brasil com o mundo, há de um lado um desejo seu de afirmação do Brasil, e essa afirmação vai ao ponto, inclusive – o senhor disse há minutos atrás –, de que o Brasil teria condições inclusive de liderar um certo grupo de países, não é? Liderança essa que não poderia ser feita nem proposta pela China, nem pela Índia, nem pela Rússia, mas pelo Brasil.
Roberto Mangabeira Unger: Não, pode. Mas eu julgo que temos melhores condições do que todos eles.
Carlos Novaes: Certo. E aí eu queria perguntar: por que o senhor julga isso? Por exemplo, no caso da Rússia, eles têm uma população infinitamente mais educada do que a nossa, educada no sentido de que eles têm os rudimentos da língua, da matemática, das ciências, espalhadas no Brasil inteiro... [corrigindo-se] na Rússia inteira. Eles têm uma população que é bem maior do que a nossa, não é? São quase 100 milhões de pessoas a mais do que nós. Eles têm uma considerável reserva de riquezas minerais, não é? E eles têm uma burocracia política unificada. Então, em contraste com o Brasil, digamos que nós temos algumas vantagens e algumas desvantagens. Então, por que é que o senhor julga, de maneira tão peremptória, que o Brasil tem mais condições, por exemplo, do que a Rússia?
Roberto Mangabeira Unger: Por uma coisa inefável, intangível: nós temos mais vida. Agora, há uma coisa... eles estão, esses países todos, por razões diferentes, presos ainda nas engrenagens de máquinas destroçadas. A seqüela do regime soviético, no caso; o aparato de controle do partido comunista chinês; a tentativa da Índia de simplesmente preservar os resquícios de seu projeto autárquico e combiná-lo com concessões a nós. Nós não temos isso. A única coisa que nós temos aqui nos impedindo é uma coisa imensamente poderosa, mas ao mesmo tempo incrivelmente superficial ou frágil, que é esse aparato em cima, de rendição. É o Vichy [referência à França de Vichy] brasileiro. E o Vichy parece muito forte num dia e, no outro dia, vai embora. Vamos descartar o Vichy.
Carlos Novaes: Mas para o Vichy ir embora, tem que vir uma força externa.
Roberto Mangabeira Unger: Não, não. Voltando o marechal Pétain [o marechal Philippe Pétain (1856-1951) governou a França de Vichy] para casa, o Brasil aparecerá de outro jeito [risos dos entrevistadores].
Bob Fernandes: Professor, tem uma questão que é uma provocação, evidentemente, mas a campanha não se dará com pessoas como aqui discutindo, e tal, e haverá um outro tipo de questão sendo colocada. Uma das maneiras para se combater o pensamento novo do Brasil é você desqualificar quem está propondo alguma coisa. O senhor, vira e mexe, é desqualificado, inclusive em revista, em televisão, como um lunático, um maluco, e tal. Eu queria saber como é que o senhor vê isso e percebe isso pessoalmente. E o que leva uma pessoa respeitada mundo afora, como um pensador presente num debate no mundo afora, o que leva uma pessoa como o senhor a se jogar numa luta como essa?
Roberto Mangabeira Unger: Eu acho que é uma combinação de características do país... [Você quer saber] por que sou qualificado assim?
Bob Fernandes: Primeiro, como que é e o que o senhor acha disso? E o que o leva a largar uma posição confortável para entrar nessa [luta]?
Roberto Mangabeira Unger: É uma combinação de características do país – onde freqüentemente as pessoas que resistem, que saem dos eixos, são vistas como comunistas ou malucas, são as categorias principais – com defeitos meus. Porque eu, evidentemente, tenho muito a aprender, como conseguir me ligar às pessoas. Porque toda a minha tendência de me sentir dominado por uma idéia, por uma missão... eu compreendo que num país como o nosso as pessoas têm todas as razões para serem céticas, e precisam ver aqueles gestos, aquelas propostas credenciadas, credenciadas por algum sacrifício, por algum engajamento concreto. Esse é o meu problema. Então, eu preciso me tornar mais vulnerável, eu preciso aceitar o caminho do risco, da renúncia, da ligação. Eu preciso me expor ao vexame e ao desapontamento mais do que tenho feito. Agora, aí também está a resposta a sua segunda pergunta. Voltamos ao tema do programático e do político. Ninguém pode funcionar bem como apenas um instrumento soldado de uma causa coletiva. Nós todos vivemos num espaço biográfico, não num espaço histórico. E a trajetória de uma vida humana é a trajetória em que a pessoa, na meia-idade, tem formada em volta dela uma espécie de múmia, feita de acomodações, de concessões, as limitações das coisas. E aí nós começamos a morrer, pouco a pouco. Um dos nossos principais objetivos é morrer só uma vez, e não morrer essas pequenas mortes. E para morrer só uma vez, nós precisamos rasgar, de dentro para fora, essa múmia, como pudermos fazê-lo, saindo de nossos cômodos, expondo-nos ao risco, ao vexame, ao ridículo; saindo, no meu caso especifico, quer dizer, eu vou falar com franqueza: eu me sinto, em Harvard, como se estivesse vestindo uma couraça involuntariamente, nada me penetra, as flechas das críticas que me incomodavam no início agora me deixam indiferente. Então, aquilo é o exemplo dessa múmia: eu preciso tirar essa múmia. Eu tenho então um objetivo existencial; esse objetivo existencial pode servir ao país, porque eu não venho participar nessa luta [gesticula; dá socos na mão] só por razões ideológicas. Eu não venho só para reconstruir o país, eu venho também para me reconstruir a mim mesmo, e é desse encontro dos compromissos programáticos e das aspirações pessoais que nascem as verdadeiras mudanças.
Wagner Carelli: Muito interessante isso. É extraordinário, mas é muito revelador do seu momento. E eu gostaria de perguntar ao senhor se o senhor está avaliando corretamente o momento do país, se o senhor não se engana a respeito da vontade de mudança do povo brasileiro, das lideranças, do intelectual brasileiro, porque eu ouço aqui o senhor falar [refere-se ao livro de Mangabeira Unger], se é uma alternativa, se há uma alternativa de intelectual, nós estamos diante de um intelectual que chega aqui, um pensador político social que usa termos como afetividade, como devoção, espírito, grandeza, missão, e que tem esse entusiasmo, essa vitalidade que não se vê normalmente. Um pensador político e social que não usa categorias, que se recusa a usar categorias. E que, obviamente, quando fala, nisso sequer consegue receber um retorno positivo; as pessoas simplesmente não entendem, não é? Ou seja, eu não sei quem é, eu tenho minhas dúvidas a respeito de quem é o lunático, no caso. Então, eu acho que pode haver mais de 150 milhões de lunáticos e alguém são. O que eu imagino... o senhor não está um pouco enganado a respeito da vontade de mudança do brasileiro? Nós não estamos, as pessoas não estão muito acomodadas? Tanto os de baixo quanto os de cima nas suas posições?
Roberto Mangabeira Unger: Também estão, mas nós todos temos uma consciência dupla. Nós todos, com uma face, aceitamos o mundo existente, vestimos as correntes, acorrentados, e cantamos acorrentados; e de outro lado, com outra face, imaginamos, conspiramos algum escape, alguma fuga. Esse é o outro lado da consciência humana, que eu também tenho. E o que eu vejo é que essa segunda face, que está agora na sombra, pode se virar para luz, de acordo com o momento. Pode haver uma reversão; a reversão pode ser repentina. Nós precisamos compreender que ela tem agora um momento prático e que ela não é um salto no escuro de uma utopia passadista, que ela pode vir ao encontro de objetivos muito concretos das pessoas, de terem uma vida decente e terem os instrumentos de trabalho, de serem cidadãos e não servos. Isso que eu vejo, que os brasileiros, sim, estão acomodados, mas ao mesmo tempo há no país uma indignação, uma vitalidade, uma impaciência, uma inconformidade que não aparecem e que estão lá. Estão sedentas de aparecer, e agora é o momento.
Heródoto Barbeiro: Professor, nós estamos chegando ao fim do nosso programa. Eu quero agradecer a gentileza do senhor, a clareza das suas respostas, [agradecer] pelo debate que o senhor promoveu aqui conosco. Muito obrigado, professor Mangabeira Unger.
Roberto Mangabeira Unger: Muito obrigado.