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Jorge Escosteguy: Boa Noite. Democracia e crise econômica andaram juntas em 1990 no Brasil. Começamos o ano com um novo presidente, eleito pelo voto direto, depois de quase três décadas de jejum forçado. O presidente cujo primeiro ato em favor da igualdade de todos foi determinar que cada brasileiro valia, no máximo, cinqüenta mil cruzados. Foi engraçado, pelo menos por um dia, ter a mesma caderneta de poupança do empresário Antônio Ermírio de Moraes [engenheiro e empresário (1928-), presidente do Grupo Votorantin] ou do banqueiro Amador Aguiar [empresário e banqueiro (1904-1991), foi presidente do banco Bradesco]. Mas o ano termina com esperanças renovadas: saíram das urnas novos governadores, novos deputados estaduais e um novo Congresso Nacional. Caberá a todos administrar o binômio democracia e crise econômica; a expectativa é que uma delas seja varrida do mapa do Brasil para sempre. De preferência, torcemos todos [para] que seja varrida a crise econômica. Ao longo de cinqüenta e duas semanas o Roda Viva acompanhou questões como essa, que sensibilizaram e até mesmo assustaram os brasileiros. Pelo centro desta roda passaram personagens que, de uma forma ou de outra, ajudaram a aperfeiçoar as nossas instituições. Alguns fizeram isso através de ações concretas, como governantes, políticos, líderes de trabalhadores e líderes empresariais. Outros deram sua contribuição através da crítica de costumes, do debate cultural e mesmo através de muitos erros, como governantes, humoristas, ministros, comediantes e intelectuais. Você vai ver hoje uma seleção dos melhores momentos do Roda Viva em 1990. Como toda seleção, ela é arbitrária, mas tem sua razão de ser. O ministro chanceler Francisco Rezek, por exemplo, veio ao Roda Viva e, em lugar de esperanças, ele falou dos males: “Dos males, o menor.”, disse o chanceler. E a ministra da economia Zélia Cardoso de Mello, que também veio ao Roda Viva, falou do maior dos males que afligem os brasileiros: a inflação. Ela disse com todas as letras que o governo, quando fala em pacto, não está propondo uma troca, está querendo apenas um entendimento. Vamos ver o que disseram Francisco Rezek e Zélia Cardoso de Mello no Roda Viva.
[Fragmentos do programa com Francisco Rezek, exibido em 03/12/1990]
Rodolfo Konder: A ONU [Organização das Nações Unidas], o Conselho de Segurança da ONU aprovou, inclusive, o uso da força para a solução da crise no Golfo Pérsico, e, nesse caso, quer dizer, considerando inclusive o prazo que está sendo dado ao governo do Iraque, até 15 de janeiro, se houver um conflito - e a possibilidade de que haja um conflito é bastante grande -, quer dizer, como o Brasil se situa? Nós vamos mandar, por exemplo, tropas para o Golfo Pérsico?
Francisco Rezek: O governo brasileiro, desde o primeiro momento, desde o eclodir da crise da madrugada de dois de agosto, manifestou seu veemente repúdio àquele ato de desrespeito à soberania territorial do Kuwait. Lamentou o episódio, associou-se às decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas, todas elas, não importando saber o quanto sofríamos economicamente por conta dessa crise. Mas, por outro lado, não nos pareceu que pudéssemos encontrar uma explicação muito convincente para uma eventual presença brasileira, uma presença militar brasileira, ao lado de tropas americanas, ao lado de tropas egípcias e algumas outras mais.
Carlos Dias: Os Estados Unidos são, sem dúvida nenhuma, o maior parceiro comercial do Brasil. Só que, nos últimos anos, tem acontecido uma série de contenciosas como, por exemplo, da reserva de mercado na informática [Lei de Informática]. O senhor não acha que nesses últimos anos o Brasil tem tratado um pouco mal, levado muito no duro, justamente o seu maior parceiro? Muitas vezes, assim, com relações com os países árabes, por exemplo, que têm provocado críticas, de como a venda de material bélico, nessa situação... O senhor não acha que o Brasil leva muito no duro o maior parceiro comercial deles?
Francisco Rezek: Aí é importante lembrar que o governo norte-americano, muito bem informado - como sempre foi -, tem consciência de que o comércio de armas entre o Brasil e o Iraque cessou em [19]88. Cessou em [19]88 por razões de índole comercial, de modo que a crise agora em agosto não nos surpreendeu numa situação de embaraço, tendo que, às carreiras, por termos súbito a uma linha comercial que nos trouxesse problemas por razões de índole política, pelo envolvimento do Iraque numa iniciativa militar afrontosa a certas regras de direito internacional.
Roberto Jungmann: Ao que parece, o senhor já havia afirmado que não via solução pacífica aí para a crise do Golfo Pérsico. O senhor ainda pensa assim?
Francisco Rezek: É importante destacar o seguinte: a crise, tanto quanto inesperada, ela é grave. O que aconteceu foi uma grosseira afronta a regras de direito internacional, e existe uma insistência acentuada do governo iraquiano em manter a ocupação territorial do Kuwait mediante argumentos, alguns dos quais não são totalmente absurdos, alguns dos quais se associam a certas linhas de raciocínio que não soam inteiramente absurdas, mas que não justificam, em hipótese alguma, o empreendimento militar violador da soberania alheia. A crise é grave e, para ela, a essa altura, é certo que não há uma saída brilhante, é certo que não há uma saída plenamente satisfatória. O que temos [a fazer] é escolher o menor dentre os males, dentre vários caminhos desastrosos [escolher] o menos desastroso. E me parece que aí a solução negociada é, sem dúvida, o menor dos males.
Jayme Martins: Resolvida no fundamental a contradição leste-oeste, que aparecia no pós-guerra como a principal contradição global, na opinião do chanceler, qual emerge agora como a contradição global mais importante?
Francisco Rezek: Agora existem outras maneiras possíveis de tentar encontrar substitutivo para a Guerra Fria. Há receios relacionados, por exemplo, com uma cisão... com uma cisão um tanto associada à questão confessional, à questão religiosa, à questão ideológica. Por isso eu me preocupo tanto com os resultados de uma solução militar para a crise do Golfo. Esse receio de que o islã, unificado por um profundo ressentimento, constitua esse pólo de antagonismo ao restante da sociedade internacional. De qualquer maneira, nós podemos enfrentar os dois problemas, nós podemos nos situar a curto prazo frente a um confronto norte-sul, a um confronto países [entre] abastados [e] países em sérias dificuldades, e há um outro confronto de matizes ideológicos e confessionais que poderia resultar de um desfecho infeliz da crise do Golfo.
[Fim da exibição de trechos do programa Francisco Rezek]
[Fragmentos do programa com Zélia Cardoso de Mello, exibido em 16/09/1990] [Plano Collor]
Mino Carta: Ministra, numa entrevista que a senhora deu à [revista] IstoÉ em dezembro do ano passado, a senhora dizia que o objetivo inicial do governo seria o de combater a inflação sem detrimento do crescimento econômico. A senhora acha que isso realmente está acontecendo? E a senhora acha que o combate à inflação tem sido realmente eficaz?
Zélia Cardoso de Mello: Bom, em primeiro [lugar], eu acho que o combate está sendo eficaz, quer dizer, veja o seguinte... eu sempre disse o seguinte: que o combate à inflação era fundamental para que se pudesse recuperar o crescimento econômico. E, de fato, o ideal que nós todos desejaríamos - nós, governo e sociedade - era que esse combate à inflação pudesse ser feito com o menor custo possível, e sem... e que não fosse em detrimento do crescimento econômico, de forma que eu diria, para resumir as duas coisas: de um lado eu acho que está sendo eficaz, quer dizer, nós não conseguimos... é evidente que nós desejaríamos que a inflação já hoje estivesse ao nível de 2% ao mês, alguma coisa parecida com isso, e não conseguimos, do meu ponto de vista, porque existe uma indexação informal na economia que está impedindo... que quase que colocou uma rigidez para que os preços caíssem mais. De outro lado, nós tivemos... nós ainda não conseguimos atingir, e não conseguiremos este ano, atingir uma taxa de crescimento positiva, mas [n]o ano que vem eu tenho certeza que nós poderemos conseguir.
Pedro Cafardo: Me parece que não existe só uma indexação informal: existe também uma indexação formal, que o governo faz - o governo mantém o BTN Fiscal [bônus do tesouro nacional, criado em 1989 para funcionar como referencial de indexação no pagamento de tributos federais], ou seja, continua cobrando seus impostos com correção monetária diária. Então, acho que é muito cômodo quando a ministra diz que a sociedade reage, continua fazendo indexação, mas o governo não abre mão também da sua indexação. Quer dizer, o BTN Fiscal não teria que desaparecer para que também a sociedade passasse a não fazer mais essa indexação [...]?
Zélia Cardoso de Mello: Isso é um circulo vicioso, quer dizer, se a taxa de inflação estivesse menor, nós já desejaríamos ter acabado com o BTN Fiscal. Era nosso desejo desde o princípio, já estava programado e nós acabaremos com o BTN Fiscal, não tenha nenhuma dúvida disso. Só que estamos tendo que prolongar essa decisão exatamente por causa desse nível de preços que ainda permanece na economia.
Pedro Cafardo: Esse discurso também contra a indexação informal leva muitas pessoas a ficarem preocupadas com a possibilidade de um... digamos, um congelamento.
Zélia Cardoso de Mello: É, essa possibilidade não existe. Essa possibilidade eu já disse, muitas vezes, não existe. Não é verdade que a política ortodoxa não está funcionando, o que é verdade é que...
Pedro Cafardo: [Interrompendo] Não, eu disse que esse é o raciocínio. Eu não acho que não esteja.
Zélia Cardoso de Mello: É, pode ser. Os efeitos da política, de fato, eles demoram um pouco a aparecer, vamos dizer assim. Então, eles... eu acredito que é uma questão de tempo. Quanto tempo, eu efetivamente não sei dizer.
Mino Carta: A senhora descarta a possibilidade de uma recessão brava logo mais?
Zélia Cardoso de Mello: Veja, é o seguinte: o objetivo nosso não é a recessão ou o crescimento nesse momento; o objetivo nosso é combater a inflação. E nós efetivamente não temos... neste momento não nos preocupa o que está acontecendo com a atividade, nos preocupa o que está acontecendo com o preço. Então, o que vai acontecer com o nível de atividade é residual, vai ser resultado do combate à inflação. É nesse sentido que... eu não descarto possibilidades, simplesmente eu não estou preocupada com isso, eu estou preocupada objetivamente em trazer a inflação a um patamar que seja um patamar que permita que nós, efetivamente, possamos realizar tudo isso que estamos querendo para fazer a economia uma economia como nós achamos que deve ser, e para recuperar o crescimento econômico.
Jan Rocha: Ministra, no ano passado a senhora também participou de um Roda Viva aqui na TV Cultura e eu lembro que, falando sobre dívida externa, a senhora disse que no governo Collor a negociação seria diferente, dizendo que cada estatal teria que negociar sua dívida, que não ia negociar com comitês, seria negociação individual, que os bancos tinham que vir ao Brasil etc. Agora foi anunciado que as negociações vão começar em outubro, que vai ser com comitê, que vai ser em Nova Iorque, que até o Brasil vai continuar a pagar a hospedagem dos banqueiros, dos negociadores, lá em Nova Iorque - esse é um detalhe a menos - mas parece que voltou a fazer o mesmo tipo de negociação dos governos anteriores. Por que houve essa mudança, então?
Zélia Cardoso de Mello: Não houve mudança nenhuma. Houve talvez um mal entendido da parte de quem me escutou àquela época, e continua me escutando. Nós tínhamos e continuamos a ter um princípio absolutamente fundamental em relação à dívida externa, e que é completamente diferente do que tudo que aconteceu nos últimos dez anos: é o princípio da capacidade de pagamento, quer dizer, o Brasil não pagará um dólar, um centavo de dólar - está certo? - que gere inflação, ou que gere recessão.
José Antônio Rodrigues: Ministra, nessa questão do pacto social, os trabalhadores, agora que a CUT [Central única dos Trabalhadores] se dispõe a negociar também, já entram com um aparte, que é essas perdas pós-plano que não foram totalmente repostas. Agora, como garantir a quem negociar, como que o governo pretende garantir a quem participar do pacto, a quem negociar ali, o que for aceito? Eu quero dizer quanto à legitimidade dos interlocutores. A senhora acha que todo o empresariado está ali representado, e que vai cumprir o que for ali assentado, ou o governo pretende impor uma legislação a respeito do que ficar acordado ali?
Zélia Cardoso de Mello: É, eu gostaria, mais uma vez, de enfatizar - né? - para poder responder à sua pergunta, porque ela não se coloca dentro do que pretende ser esse entendimento nacional, está certo? Porque, que dizer, nós não pretendemos ali tomar decisões de política econômica, nem decisões de governo, que precisem ser implementadas, está certo? O que é política de governo será feito através dos instrumentos que o governo tem para fazer política de governo. O governo não vai... não depende do entendimento para continuar a governar: o governo tem um programa, esse programa vem sendo executado e vai continuar sendo executado. Apenas algumas questões de médio prazo - a nossa pauta é toda de médio prazo - nós estamos colocando como uma sugestão para discutir, mas esse... essa negociação, ela não pretende ser uma negociação para resolver problema de curto prazo. Então, esse problema que o senhor está falando simplesmente não se coloca, não é ali que ele se coloca. Em termos de curto prazo - não é? - este pode ser um lugar para, como eu estava dizendo ao jornalista Luis Nassif, para que nós possamos colocar de uma forma mais clara as políticas que estão sendo seguidas, e que os agentes econômicos - sejam os trabalhadores, sejam os empresários - ajudem-nos a pautar... ajudem os agentes econômicos a pautar as suas decisões, não é? Agora, nós não mudaremos... por enquanto, nós não mudaremos a política econômica, porque é o que eu estava dizendo agora há pouco, quer dizer, a questão do combate à inflação e de trazer a inflação a níveis baixos, a níveis que nós julgamos compatíveis com a economia que nós queremos é uma absoluta prioridade, e nós não mudaremos a nossa política. Nós só mudaremos a política em função da própria resposta dos agentes econômicos.
Fernando Mitre: Aquilo que o Jair Meneguelli [sindicalista e político do ABC paulista e da CUT (1947-)] disse, que o pacto seria a troca de algo por algo, então, o governo não tem algo a dar para os trabalhadores no sentindo, assim, bem objetivo.
Zélia Cardoso de Mello: Não, porque também nós não estamos pedindo nada a eles, nós não temos algo para trocar porque não tem algo por algo. Eu não vi essa declaração, mas não é esse o objetivo. Não é uma mesa de trocas, não é isso: é uma mesa de entendimento, de conversas, de apresentação de políticas, de discussão de problemas que nós julgamos importantes - não é? -, por exemplo, a questão da participação dos trabalhadores na gestão, a participação dos trabalhadores no lucro, a questão da especialização da indústria, da abertura das importações, enfim, uma série de problemas, quer dizer, do combate à miséria, do ataque à pobreza, da educação, quer dizer, uma série de questões que nós achamos importantes, que sugerimos como pauta e que estamos abertos para que venham. Por exemplo, quando nós estávamos lá discutindo e sugerimos essas seis subcomissões, um representante dos trabalhadores sugeriu que houvesse também uma comissão de problemas emergentes onde essas discussões de curto prazo poderão surgir. Mas não é uma mesa de troca, é uma mesa de entendimento.
[Fim da exibição de trechos do programa com Zélia Cardoso de Mello]
Jorge Escosteguy: Pois é, o governo quer o entendimento, mas como todos pudemos ouvir e a ministra Zélia Cardoso de Mello disse, e deixou bem claro, o governo não depende do entendimento para governar, ou seja: é uma espécie de "vai ou racha". Ninguém deve se espantar se daqui a pouco a ministra Zélia também aderir à moda do cooper com camiseta, só que ao invés do latim [Fernando Collor de Mello, durante sua campanha e governo, costumava realizar corridas ou caminhadas fazendo uso de camisetas nas quais estampava frases de efeito. Por duas vezes se utilizou de frases latinas. Em 09/12/1990 a escolhida foi: Ad augusta per angusta - Ao êxito pelo sacrifíco. Já em 26/05/1991 optou por Suaviter in modo, fortiter in re - Firme na ação, suave na forma] ela poderá preferir estampar na camiseta a frase, em francês, do rei Luís XIV da França “O Estado sou eu.”. Alguns empresários cansaram um pouco desse discurso e foram cuidar da própria vida. Dois deles estiveram aqui no Roda Viva. Antônio Ermírio de Moraes se queixou dos impostos, e disse que não sabe onde o governo põe todo o dinheiro que arrecada de cada brasileiro. Ricardo Semler [empresário brasileiro (1959-), conhecido por suas inovadoras políticas de gestão industrial] não quis saber nem disso: ele foi lá, pegou as suas empresas, criou uma espécie de administração coletiva e virou a mesa. Aliás, escreveu um livro com o título Virando a própria mesa, e se tornou o conferencista de maior sucesso e mais requisitado em todo o país. São duas gerações e duas maneiras de ver a vida, os negócios e a economia. Vamos ver então, Antônio Ermírio de Moraes e Ricardo Semler.
[Fragmentos do programa com Antônio Ermírio de Moraes, exibido em 16/07/1990]
Rodolfo Konder: O senhor tem sido um crítico, às vezes até duro, da política econômica do governo. Mas o senhor acha que a política industrial tem mais aspectos mordenizadores ou é uma política equivocada?
Antônio Ermírio de Moraes: Eu tenho uma grande preocupação no momento, Rodolfo, que é a seguinte: nesses quarenta e um anos que eu trabalho eu assisti ao governo, quer dizer, de um lado, abrindo as portas, seus departamentos, já que a empresa privada nacional não existia, ela era muito fraca, era uma indústria incipiente, e a multinacional sempre olhava para o Brasil com um aspecto assim mais... quase que colonizador. A verdade é que então o governo, percebendo que, naturalmente, nós poderíamos entrar numa grande crise social, resolveu abrir seus departamentos, criar estatais, empregar gente que, no começo, naturalmente tinha salários muito pequenos. Um salário, antigamente, de cinqüenta cruzeiros era um salário quase de fome, mas era um salário. Quer dizer, hoje esses salários se transformaram em grandes salários e a verdade é que o governo não tem mais a possibilidade de empregar gente. Então o governo não emprega mais. A indústria privada nacional tem que partir com muito denodo no sentido de perseguir produtividade, o que significa menos homens/hora por turno/hora e por turno acabado. E a mesma coisa acontece com a multinacional. Então eu pergunto a você o seguinte: nós temos três milhões de brasileiros que nascem todos os anos; admita que 40% precisam de emprego - então, são um milhão e duzentos empregos por ano -; quem é que vai dar esses empregos? Então, o Brasil, para não entrar numa recessão maior... eu acho que nós devíamos lançar um programa realmente de maior produtividade, de maior produção, principalmente no setor agrícola. Por que o setor agrícola? Porque é o que responde mais rapidamente. O setor industrial demora cinco, seis, sete anos para responder, enquanto o setor agrícola em dois anos está respondendo. E é talvez uma maneira de nós evitarmos uma recessão maior. Daí eu dizer a você: é perigoso você trocar a mão de obra nacional pela mão de obra estrangeira, e com uma coisa pior, que no momento, com esta abertura de gama, quer dizer – não é? -, de produtos importados, nós vamos favorecer exclusivamente a classe mais abastada. Quem é que vai poder comprar videocassete, ou televisões sofisticadas, ou mesmo automóveis sofisticados? Só a classe abastada. Pergunto: isso traz alguma melhoria para classe menos favorecida? No meu entender, nenhuma. Não há melhoria nenhuma, pelo contrário, vai haver até mais choques, naturalmente, de classes entre aqueles que são abastados e daqueles que são menos favorecidos. Então, sobre esse aspecto eu tenho a impressão que nós temos que ir com muita prudência e muita cautela, no sentido de não entornarmos o caldo que, naturalmente, já é no momento difícil. Nós temos um caldo de cultura aí muito difícil no momento, e se nestes próximos dez anos nós não tivermos a capacidade de dar empregos, aí então nós veremos realmente um conflito social dos piores que nós já vimos até agora.
Roberto Muller Filho: O senhor imagina que esse período recessivo que o próprio governo, através das autoridades econômicas, diz que é preciso fazer, é preciso bancar para poder debelar... [corrigindo-se] abaixar os preços, debelar a inflação: o senhor acredita que isso é uma coisa duradoura? E quantos meses o senhor imagina que o país vá viver em recessão?
Antônio Ermírio de Moraes: Eu espero que a recessão... nós possamos evitá-la, mas está ficando... está parecendo muito difícil. Eu estive ainda este fim de semana em Minas Gerais, e, analisando o setor de laranja e de café, como curioso, e eu fiquei muito triste constatando que praticamente nós estamos já com um déficit na produção de grãos este ano que vai acima de 10%. O que significa que na hora que nós estamos perdendo a produção de milho, estamos perdendo a produção de soja, estamos perdendo a produção de feijão, e estamos perdendo a produção de arroz. Então, o alimento básico da mesa do pobre no Brasil está sumindo. Isso é um ponto extremamente grave para nós. Acho que o governo devia pensar seriamente sobre isso, e, mesmo tendo uma certa inflação, mas eu acho que produtos alimentícios não podem faltar à mesa, naturalmente, dos menos afortunados. O que impressiona muito no momento é que nós estamos vivendo, quer dizer, um momento extremamente aflitivo no que diz respeito à relação de capital e trabalho, o que a mim não me agrada, porque eu acho que capital e trabalho, meu caro Rodolfo, têm que ser linhas convergentes. Se as linhas forem convergentes entre capital e trabalho a resultante será positiva, quer dizer, o Brasil cresce, e cresce de uma maneira saudável. Se elas forem divergentes, aí então nós vamos ter uma resultante negativa.
Rodolfo Konder: João Luís, de Perdizes; José Vicente Rodrigues, de Araraquara, que, aliás, se diz muito satisfeito com a instalação das suas empresas lá naquela região; e Roberto Amoroso, Jardim das Bandeiras, que perguntam, os três, sobre os seus planos políticos, se o senhor tem algum plano de voltar à política partidária.
Antônio Ermírio de Moraes: Não, Rodolfo, eu, sinceramente, isso eu disse no dia 16 de novembro de 1986: que a minha carreira política estava encerrada. E eu tomei uma resolução muito clara na minha vida, e a razão pela qual eu tomei essa resolução é muito simples: é que eu, nesses oito meses de pessoa política, muito embora eu tenha aprendido muito e tenha sido... eu tenho até saudades, naturalmente, da convivência com gente boa, principalmente o povo, eu achei que o povo no Brasil é excelente. Agora, os políticos... entre a bondade do povo e a maldade dos políticos existe uma diversificação de 180 graus. Há um despreparo, quer dizer, sabe o que acontece? O político nacional é um homem que está muito... ele se julga dono do Congresso Nacional, e o Congresso é a ferramenta para ele tomar conta do Brasil. Isso está errado! O princípio está errado! O político é um homem que tem que trabalhar para o Brasil e não para ele, quer dizer, - né? -, e a grande maioria se elege a custa de um cartório que eles mesmos criam: eu sou dono da Fepasa [Ferrovias Paulistas S/A], eu sou dono da rede ferroviária federal, eu sou dono da Cetesb [Companhia Ambiental do estado de São Paulo], eu sou dono da Sabesp [Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo] e assim por diante; eu quero a Secretaria para eu me aposentar para o resto da vida. Isso é argumentação? Pelo amor de Deus! O sujeito não é dono de coisa nenhuma!
Rodolfo Konder: Temos aqui mais algumas perguntas dos telespectadores. O Hamilton Rolin, de Piracicaba, pergunta o que é que o senhor acha da política tributária do governo.
Antônio Ermírio de Moraes: Bom, ela é extremamente pesada; foi muito boa essa pergunta, Rodolfo. Para você ter uma idéia, para quem paga imposto neste país, eu vou dar um número da Votorantim [Grupo Votorantim: um dos maiores conglomerados empresariais brasileiros, atua nos setores de mineração, celulose, metalurgia, produção de cimento e concreto, entre outros] para vocês: sob faturamento, meu caro Konder, nós pagamos 25% de imposto. De cada cem cruzados, vinte cinco cruzados são impostos, o que é violento. Há um discurso de governo que eu não aceito em hipótese alguma, porque hoje, quer dizer, o governo taxa o meio empresarial como sendo grande responsável pela má distribuição de renda. Discordo frontalmente. A má distribuição de renda, o maior culpado é o governo, que realmente não sabe para onde é que vão os recursos que ele arrecada. Você veja o seguinte: nunca se falou, o Sarney passou cinco anos falando só pelo social, "tudo pelo social" [referência ao slogan utilizado por José Sarney durante o seu período na presidência da República]. Então, a verdade é a seguinte: nós passamos o Iapas [Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social. Extinto ao ser fundido, em 1993, ao INPS na criação do atual INSS – Instituto Nacional de Seguro Social] de 10 para 20%, o PIS [Programa de Integração Social] hoje é 0,65% sobre o faturamento; o Finsocial [contribuição destinada ao orçamento da seguridade social] está em 1,20[%] sobre o faturamento; criaram agora 10% de contribuição sobre o social, e nunca o social foi tão mal servido como agora, nunca se fez tão pouco pelo social e nunca se falou tanto no social. O que é isso? É exatamente desvio de verba depois de ela [ter sido] arrecadada. Agora, aonde é que essa verba vai? Honestamente, não cabe a mim. Isso é função do governo. O governo tem que, realmente, se esmerar para saber para aonde é que vai esse dinheiro recolhido.
[Fim da exibição de trechos do programa com Antônio Ermírio de Moraes]
[Fragmentos do programa com Ricardo Semler, exibido em 15/01/1990]
Jorge Escosteguy: Você... você diz que o empresariado, em geral, no Brasil é um dos setores mais atrasados da nossa sociedade. Por que isso?
Ricardo Semler: Primeiro, eu estava relacionando com essa questão de agente de mudança. Eu acho que é atrasado porque não usa a sua capacidade de mudar o país. Segundo, porque subsiste, ainda, baseado em proteções de tarifas, subsídios, proteção aduaneira, reservas de mercado, relações – e o pessoal sempre fica muito bravo quando eu falo isso -, mas relações incestuosas com o governo: é nomear ministro, é nomear secretário que era amigo, que “não sei o quê”. E aí você pega o telefone e diz: “Ministro, meu filho, eu estou com uma empresa lá no nordeste, dá para vocês liberarem os incentivos?”.
Milton Horita: Eu queria que você explicasse para a gente como é a sua política salarial, efetivamente, dentro da sua empresa: você paga salário semanal como os sindicatos estão reivindicando? E eu queria saber se... a partir dessas mudanças, qual foi o ganho de produtividade que você teve na tua empresa: efetivamente quanto? Quer dizer: o nível de rentabilidade sobre ações em relação ao patrimônio...?
Ricardo Semler: “Tá”. Deixa eu começar com a segunda pergunta. Nós, quando nós começamos, tínhamos um índice de produtividade [de] 10.800 dólares por funcionário. Isso era uma medida, é uma medida do nosso ramo, válido. E o setor andava em 17 e pouco. Hoje o setor anda em 22.500 [dólares por funcionário], setor mecânico, metalúrgico etc, e nós andamos este ano a 60 mil dólares por funcionário. Então, hoje nós não nos comparamos com empresas nacionais, nós não temos nenhuma razão de comparar nossa produtividade com empresas nacionais porque a gente está se comparando com empresas japonesas, coreanas, suecas etc, que hoje são a nossa meta.
Milton Horita: Você tem rotatividade na sua empresa?
Ricardo Semler: A nossa rotatividade é baixa e, para você ter uma idéia, demissões espontâneas - de pessoas que querem sair da empresa - nós chegamos a passar um período de 14 meses até, recentemente, em que o índice foi praticamente zero. Ou seja, ninguém, em 14 meses, pediu demissão. O índice de rotatividade é baixo, exceto pelo fato de que a gente vem aumentando muito a produtividade e estamos precisando de menos gente. Então esse é um processo complicado, porque hoje nós temos menos gente do que tínhamos no passado, com muito mais faturamento.
Milton Horita: Seu funcionário tem participação acionária, né?
Ricardo Semler: Tem participação nos lucros. O esquema é o seguinte: nós, quando implantamos participação nos lucros, nós decidimos que nós não íamos fazer uma coisa paternalista, tanto que hoje eu sou absolutamente contra a Constituição estabelecer a participação nos lucros como uma coisa dada. Isso vira um 14º, 15º [salário] - é o “fim da picada”. O que nós queríamos é que as pessoas participassem do lucro ativamente, então nós entramos em negociação e até foi engraçado na época, porque nós chamamos o sindicato e dissemos: “nós queremos negociar.”; e eles diziam - “Mas isso é uma coisa que você está dando, como é que você vai negociar?”, e nós falávamos -“não, nós queremos saber o que é que vocês imaginam.”. E aí foi negociado durante um ano e pouco, [e] depois foi assinado finalmente. Desde essa época nós fizemos várias distribuições de lucro, e nós adotamos um outro esquema: há alguns casos, tem três ou quatro casos de participação nos lucros no país, e que são basicamente discricionários. A diretoria chega no final do ano e diz: “Eu acho que deve dar ‘tanto’.”, e é distribuído mais ou menos assim. E nós decidimos que nós queríamos um critério absolutamente técnico, e começamos um programa com o Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - desenvolve pesquisas que fundamentam reivindicações dos trabalhadores], onde o Dieese dava aula de leitura de balanço para os nossos funcionários. Então todas as nossas pessoas estão passando por esse curso de leitura de balanço: faxineiro, boy [office boy]... Então eles falam: “Isso aqui é lucro, isso aqui é folha [de pagamento], isso aqui é matéria-prima etc etc.”; e uma vez por mês esses relatórios estão à disposição para que as pessoas entendam o que está acontecendo. E o critério que foi adotado é o seguinte: cada unidade elege três membros da comunidade de funcionários que então administram esse dinheiro – põe no open [diz respeito a aplicações ou transações realizadas com títulos de renda fixa, de emissão ública ou privada], faz [...], e depois, duas vezes por ano - e ele é distribuído semestralmente – duas vezes por ano faz-se uma assembléia, e aquela assembléia é soberana. Eles distribuem do jeito que quiserem: por cabeça, levando em conta salário, assiduidade, tempo de casa etc. E têm escolhido o critério de distribuição por cabeça.
[Corte para outro momento da entrevista]
Ricardo Semler: [Quanto] à política salarial, nós temos absoluta transparência. Os nossos balanços são conhecidos - os funcionários auditam os nossos livros – quer dizer, não tem “caixa dois”, não tem pagamento por fora, não tem nada, quer dizer, nós temos um balanço conhecido.
Carlos Nascimento: Em que tipo de empresa o seu estilo de administração funciona?
Ricardo Semler: Desde multinacionais, que é uns 20, 30% do grupo, até empresas de comércio, indústria... Quer dizer, uma coisa mais variada, os tamanhos são variados. Então, eu não acho que existe restrição, e acho que uma prova boa disso é que hoje - e essa experiência começou a ter notoriedade no exterior - e hoje tem uma notoriedade acho quem muito grande, nós não estamos conseguindo dar conta dos pedidos das televisões estrangeiras para fazer programas na empresa, e convites de palestras na Suécia, na Finlândia, na África do Sul, em tudo o que é lugar. E temos empresas do porte da General Motors pedindo que a gente vá falar ao conselho de administração e aos trinta presidentes da General Motors, da Oldsmobile, Chevrolet, Pontiac [marcas de veículos que pertencem a General Motors] etc, em Detroit. Então eu digo: se a General Motors, com 1 milhão de funcionários, está interessada, o problema não é tamanho grande. Se, por outro lado, a nossa filosofia de que precisa quebrar a empresa em pedaços menores para que todo mundo saiba o que está acontecendo e possa participar, e que você não precise revistar e que você não precise controlar horário... Hoje, nas nossas fábricas, o operário de linha de montagem não tem horário: ele pode entrar entre 7 e 9 [horas] - um negócio desses - a critério dele. E sai na hora que ele quer. As pessoas dizem: “Mas você vai dar isso para um operário irresponsável, que não tem maturidade, não tem cultura?”. É um papo furado. É possível com todo mundo porque é uma questão de mentalidade, não é uma questão de porte e nem de ramo: é jeito de tratar as pessoas. Isso vale para hospital, vale para...
[Sobreposição de vozes]
Jorge Escosteguy: O Milton, o Tão e o Sérgio, por favor.
Milton Horita: Essa técnica administrativa que você usa é apenas nessa área de RH? Não, né? Deve ter outros...
Ricardo Semler: Ah, claro!
Milton Horita: ... mecanismos gerenciais...
Ricardo Semler: Vou te dar um exemplo, pequeno.
Milton Horita: ... que aumentam a produtividade.
Ricardo Semler: Claro. [Vou] te dar um exemplo: manufatura flexível. Um programa onde a gente... Na fábrica, se você entra numa fábrica nossa, parece que alguém despejou todas as máquinas e foi embora e esqueceu de botar no lugar. Por quê? Porque ao invés de você ter uma fileira de tornos, uma fileira de [...], uma fileira de solda, o que a gente tem? Um torno, uma fresa, um soldador, um... num grupo. Mas o que [é] que nós queremos? Nós queremos que um grupo de oito pessoas faça um produto inteiro. Então o almoxarifado é lá, não tem almoxarifado fechado, eles mesmos decidem como pintar, onde pintar, [a] que horas chegar, [a] que horas ir embora, porque eles sabem quanto lucro dá, eles sabem o faturamento, eles têm uma plaquinha atrás que diz qual é o faturamento, a meta do mês, quanto falta para chegar lá, eles sabem tudo. Então, por que [é] que nós precisamos ir lá e ensinar para um operário que tem vinte, trinta anos de carreira, e a gente pegar um recém-formado que vai lá controlando e te diz: “Não, isso aqui precisa fazer em 35 segundos a menos.”. Essa que é a grande tragédia do ciclo industrial que está obsoletado: esse gigantismo todo em que as pessoas vão e precisam de instrumentos de status. e Hoje na empresa não tem sala fechada. Eu, a última vez que eu viajei, quando eu voltei tinham mudado a minha sala do lugar. Eu falei: “cadê a minha sala?”, [e me responderam]: “Ah, agora é em outro andar, é lá na ponta do andar.”. Está bom, não me interessa, quer dizer: nós não temos secretária, não temos estacionamento privativo, não temos cartão privativo, não tem sala fechada, não precisa de nada disso, não é? Se você é competente, você vai ser reconhecido como tal. Nós temos um programa onde a cada seis meses todo mundo é avaliado, todo mundo que tem um cargo de liderança é avaliado pelos seus subordinados. É um questionário de múltipla escolha com 55 perguntas, e é preenchido anonimamente por todo mundo que trabalha para aquela pessoa. [Se] a nota começa a cair nós temos um problema, e eu fui o primeiro a me dispor. Eu disse: “quando a minha nota começar a cair eu saio da empresa, eu me afasto.”. Então, nós estamos sujeitos a sermos ratificados a cada seis meses. Então não é porque eu tenho uma secretária “gostosa”, porque eu tenho um tapete persa que as pessoas vão me dar uma boa nota.
Milton Horita: E as lideranças sindicais que trabalham dentro da sua empresa? Você tem Cipa [Comissão Interna de Prevenção de Acidentes]? Você tem comissão de fábrica...?
Ricardo Semler: Tem tudo. Temos Cipa, temos CUT [Central Única dos Trabalhadores], temos CGT [Confederação Geral dos Trabalhadores], temos Sindicato Metalúrgico de São Paulo... cada fábrica tem um desses. E nós temos comissão de fábrica que tem estabilidade e pode ser o que se chama de braço de sindicato, não tem problema: nunca foi dispensado alguém por...
Milton Horita: [Interrompendo] Com alguma das correntes [sindicais] você se relaciona melhor, com essas suas idéias?
Ricardo Semler: A gente procura não criar um relacionamento, porque nós temos alguns interesses que são naturalmente conflitantes, e a gente não quer dar uma de demagogia de dizer: “vamos nos entender, capital e trabalho harmonioso...”; entende? Eu não acredito nisso: eu acho que quem ganha... eu acho que o nosso pessoal obviamente ganha na faixa mais elevada do país, e eu acho que é uma miséria.
[Fim da exibição de trechos da entrevista com Ricardo Semler]
Jorge Escosteguy: Eleger-se governador do estado já foi uma façanha para o político Orestes Quércia [político e empresário (1938-), um dos fundadores do PMDB, foi governador do estado de São Paulo entre os anos de 1987 e 1991]. Eleger seu sucessor, Luiz Antônio Fleury [político, professor e promotor público (1949-), foi governador do estado de São de Paulo de 1990 a 1994], foi quase um milagre. Quércia esteve aqui no Roda Viva antes mesmo da escolha de Fleury como candidato, desconversou sobre a sua candidatura à Presidência da República e disse que torcia para que o governo Collor desse certo. Meses depois, antes de ser eleito, Fleury também esteve aqui, e fez mais ou menos o mesmo discurso: torcia para que o governo federal desse certo. Até então, criatura e criador com o mesmo discurso. Vamos ver então, Orestes Quércia e Luiz Antônio Fleury.
[Fragmentos do programa com Orestes Quércia, exibido em 12/02/1990]
Márcio Chaer: Por que o senhor não saiu candidato à Presidência da República?
Orestes Quércia: Eu nunca fui candidato a presidente. Houve uma tendência muito grande da base partidária no sentido de que eu fosse candidato; uma má vontade da cúpula, mas uma tendência muito grande da base partidária. O fato é que num... chegou um momento em que até eu achei que ia acabar sendo candidato, porque havia uma pressão tão grande, não é? Nunca fui candidato. Evidentemente que eu aspiro ser candidato a presidente. Quem sabe? Mas eu queria terminar meu mandato de governador.
Hermano Henning: Foi isso que o senhor deixou claro?
Orestes Quércia: Foi. É. Eu tinha um programa de governo que estava sendo realizado e ia indo muito bem, e vai indo muito bem. Então, eu tinha o meu... eu lutei muito para ser governador do estado. Então, de repente, eu teria que parar o processo da administração quase pela metade, na metade - porque eu teria que sair dois anos antes – numa... eu iria sair do governo seis meses antes das eleições... Então, havia muitos fatores. Analisei a questão, fui procurado, houve insistência de muita gente, e decidi não ser candidato. Se eu quisesse ser candidato, eu teria sido candidato. Eu vou ficar até o final do governo e depois, evidente, porque eu termino o mandato em março, se Deus quiser, em março do ano que vem [1991], 15 de março. Então, eu vou ter pelo menos dois anos sem eleição – não é? -, porque as primeiras eleições serão municipais. Então eu vou ficar dois anos sem um mandato eletivo.
Hermano Henning: O senhor não acha ruim isso?
Orestes Quércia: É. Normalmente as pessoas, ainda mais os políticos mais antigos, sempre quando ouço políticos mais antigos eles [dizem]: "Ah, não pode ficar sem mandato!". Mas, sabe: eu não acho bem isso, não.
Hermano Henning: O senhor acha que isso, por exemplo, não teria prejudicado aqui, o senhor...
Orestes Quércia: Você veja o exemplo do Brizola [Leonel Brizola (1922-2004), um dos políticos mais influentes da história brasileira, foi governador dos estados do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro]: o Brizola não tem mandato, e tudo bem.
Fernando Mitre: O senhor dizia há pouco que acredita nos partidos, que não há política sem partido. Realmente a política saudável como entendemos precisa de partido, e o Brasil, infelizmente, nunca conseguiu isso. A história partidária brasileira é uma tragédia. Mas agora, embora essa eleição tenda a se encaminhar para nomes, e não para partidos, não se pode negar que o partido vai ter alguma força, e o PMDB pode ter até uma força negativa. Certamente é em cima disso que o senhor tem falado em perestroika. O que é que significa essa perestroika no PMDB? O senhor quer fazer uma perestroika lá? O que é que significa isso? Modernizar o partido? Atualizar o partido? O senhor tem usado muito essas palavras por aí. O que [é] que significa isso?
Orestes Quércia: Eu usei muito, quando, depois das eleições, eu entendia que o ideal para o PMDB era que houvesse uma renúncia de todo o diretório nacional e houvesse uma... que se abrisse a janela, refrescasse tudo, ventilasse tudo e mudasse tudo, não é? Porque o MDB, na verdade, como um todo, ele falhou. Entende? Falhou. Porque ele não teve competência de levar... quer dizer, não foi só isso. Não foi só isso, porque houve a fatalidade do falecimento do Tancredo [Tancredo de Almeida Neves (1910-1985), presidente eleito pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985. Não tomou posse porque morreu vítima de infecção generalizada em 21 de abril do mesmo ano] e a fatalidade da ascensão do [seu vice] Sarney . Então, esse foi um problema sério que o MDB enfrentou. Além disso, as circunstâncias todas que nós conhecemos, o governo Sarney, o processo da interferência do PMDB - através do Ulysses Guimarães - na escolha de ministros... Quando eu propus que houvesse a renúncia coletiva do MDB, evidentemente que também se substituiria o Ulysses, né? Mas isso não era possível, porque precisava haver renúncia de todo mundo, não é? Então a...
[...]: E quem não quis renunciar?
Orestes Quércia: Aí que nós falamos de perestroika. Usamos isso numa... se eu não me engano, numa entrevista com o Márcio - que saiu esse termo - no Jornal do Brasil. Em seguida à eleição de governadores nós vamos ter que fazer uma modificação no diretório e [que], inclusive, vai coincidir com o mandato do...
[Sobreposição de vozes]
Hugo Studart: [Interrompendo] Aí então esse é o momento em que pode o deputado Ulysses Guimarães refrescar o partido, rejuvenescer o partido?
Orestes Quércia: Como é que é? Desculpa, eu não...
Hugo Studart: O senhor acha que após a eleição para governador, em novembro próximo [1991], é o momento de renovar o partido? De o deputado Ulysses Guimarães, por exemplo, sair?
Orestes Quércia: Acho, acho.
[Sobreposição de vozes]
Hugo Studart: O senhor é candidato a substituí-lo... ser, digamos, o Gorbatchov [Mikhail Gorbatchov. Foi o último secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, de 1985 a 1991. Contribiu para o fim da Guerra Fria] do PMDB?
Orestes Quércia: Não, de forma nenhuma. Quem sou eu para me comparar com o Gorbatchov com toda a sensibilidade que ele demonstrou na abertura [processo de democratização que levou o Partido Comunista a perder poder e acabou dando início ao colapso da União Soviética]...
Carlos Tramontina: Mas o senhor precisaria de um cargo importante como esse para, entre outros motivos, para se manter no noticiário, para comandar o partido no momento em que o senhor deixar o governo do estado, e preparar a campanha do senhor para a Presidência da República.
Orestes Quércia: Vou assinalar essa sua opinião aí [risos].
Jorge Escosteguy: Luis Weis, por favor.
Carlos Tramontina: Mas o senhor não disse se concorda ou não.
Orestes Quércia: Bom, eu acho que sim...
Carlos Tramontina: Para o senhor não seria importante?
Orestes Quércia: Eu não sou candidato, não é? Agora, tudo bem: admito com você que se eu por acaso for o presidente do meu partido é bom; não significa dizer que eu vou ser candidato.
Hermano Henning: O senhor é um político experiente: apesar de jovem, é um político experiente. O que é que o senhor acha desse estilo "Indiana Collor" [referindo-se ao personagem do cinema, Indiana Jones, um aventureiro destemido, e também ao estilo de Fernando Collor de aparecer publicamente pilotanto aviões em demonstrações de ousadia excessiva] de fazer política?
Orestes Quércia: Eu acho o seguinte: eu acho o Collor... ele é bem intencionado, tem vontade de fazer as coisas, eu acho que ele não tem experiência o suficiente para ser presidente da República. E acho a postura política dele... Eu não concordo com a postura política dele, com o estilo político dele, entende? Eu tenho outra formação. Não significa dizer que eu torça contra ele. Eu quero que ele acerte. O que me interessa mais é o bem-estar do Brasil, acabar com a inflação... Eu torço muito para que as coisas melhorem no país, para que haja uma diminuição da inflação - né? -, haja uma perspectiva melhor. Eu tenho dúvidas com relação a esse estilo, entende? Eu acho que a experiência é fundamental para quem conduz um país, a economia de um país, por exemplo, não é? Eu sei... Veja, por exemplo, a ministra [referindo-se à Zélia Cardoso de Mello]: ela não tem experiência nenhuma. Ela nunca participou de ministério, teve lá um cargo de terceiro escalão. Eu tenho preocupações, eu torço para que ela se saia bem.
[Fim do programa com Orestes Quércia]
[Fragmentos do programa com Luís Antonio Fleury Filho, exibido em 19/11/1990]
[...]: Doutor Fleury, se o senhor for eleito, o senhor fará o governo de São Paulo ser de oposição ao governo Collor?
Luís Antonio Fleury Filho: Na verdade, o governo em si não é governo de situação nem [de] oposição - o governo do estado. Agora, a posição do governador deve ser uma posição política, e evidentemente eu pertenço a um partido que não é o partido do presidente. Mas, ao mesmo tempo em que eu critico alguns aspectos de atitudes do governo federal que eu entendo que não são as mais corretas - como a questão do combate à inflação, da forma como está sendo feita; como a questão da recessão, que o governo pretende impor e já está impondo a todos nós; como a questão salarial, que está sendo colocada de uma forma que não me parece a mais correta; como a questão da agricultura, como o governo federal está tratando - eu entendo que nada impede que eu tenha um relacionamento de até divergência de linha política com o presidente da República, mas isso não significa que eu vou colocar o peso político do estado de São Paulo para impedir que tenha sucesso o governo federal.
José Carlos Bardawil: O governo Collor a essa altura já vai completando quase um ano de atividade. Eu gostaria que o senhor desse ao telespectador uma avaliação política do governo Collor até agora.
Luís Antonio Fleury Filho: Eu entendo que o governo Collor, como eu disse, tem aspectos positivos, como a questão da negociação da dívida externa - da forma como está sendo negociada -, tem aspectos... outro aspecto positivo foi a questão da moralização do dinheiro, no sentido de acabar com o cheque ao portador, das letras ao portador e assim por diante, é um aspecto altamente positivo. Agora, eu entendo que o governo, na verdade, não está cumprindo a sua parcela no combate à inflação. Não houve diminuição no gasto do governo, não houve a privatização que se anunciava, não houve uma série de medidas que são fundamentais para se combater a inflação.
José Carlos Bardawil: Doutor Fleury, se houvesse o debate... vamos supor que houvesse o debate e o senhor Paulo Maluf apresentasse contra o senhor a principal argumentação que ele usou hoje, a de que o senhor não passaria de um instrumento político do governador Orestes Quércia. Qual seria a sua resposta?
Luís Antonio Fleury Filho: A minha resposta seria o seguinte: quem tem três milhões e oitocentos mil votos não é instrumento político de ninguém. Eu respeito e... respeito e sou amigo pessoal do governador Orestes Quércia, é um grande líder político, me honro de receber o seu apoio, mas não há dúvida de que a minha personalidade é uma personalidade própria, eu tenho a minha personalidade política...
José Eduardo Faria: O senhor menciona o fato de que se orgulha muito da amizade com o governador Quércia, e disse que o governador Quércia vive um momento de grande popularidade. Na democracia, é comum que exista uma transição de grande popularidade para uma baixa popularidade. No caso do governo de São Paulo, imaginando uma vitória sua: se o interesse de São Paulo for diferente do interesse do governador, o senhor ficará com quem?
Luís Antonio Fleury Filho: Veja, eu acho que... em primeiro lugar, eu gostaria de deixar bem claro uma coisa: se há uma palavra para mim muito importante... na minha vida, se chama amizade. Eu realmente sou um homem que prezo os meus amigos e faço disso uma filosofia de vida; mas entre o interesse de São Paulo e o interesse de qualquer amigo meu, eu fico com o interesse de São Paulo.
[...]: Se eventualmente o senhor for eleito o governador de São Paulo, e vier a se defrontar com um escândalo financeiro numa instituição estatal, digamos, um banco do estado, em que diretores do banco estejam sob suspeição de favorecimento ou de se beneficiarem de operações fraudulentas, qual seria a sua primeira atitude?
Luís Antonio Fleury Filho: A primeira atitude seria afastá-los de imediato, instaurar um procedimento para apurar e, inclusive, solicitar a instauração de um inquérito policial acompanhado por um promotor de justiça. E se esse inquérito concluísse pela participação, por mínima que fosse, de qualquer dos diretores, eles seriam demitidos imediatamente.
Ricardo Kotscho: Qual vai ser a sua primeira medida concreta no Palácio dos Bandeirantes [sede do governo paulista]?
Luiz Antonio Fleury Filho: A primeira medida, em matéria de administração, será formar o grupo de trabalho encarregado de dar os rumos da escola pública em São Paulo. Eu acho que é fundamental que nós tenhamos a escola pública em São Paulo com um novo modelo educacional, e, para isso, vai ser o primeiro ato do meu governo a constituição desse grupo de trabalho, com noventa dias de prazo para me apresentar uma solução, para que nós possamos implantar um novo modelo de imediato.
José Carlos Bardawil: Quem vai fazer parte desse grupo de trabalho?
Luís Antonio Fleury Filho: Esse grupo de trabalho será composto de educadores, de representantes dos pais de alunos – inclusive - e também de técnicos que nós pretendemos convidar da própria universidade; além, evidentemente, de representantes das entidades de classe dos professores. É que realmente eu acredito, e é uma convicção pessoal, que a democracia real, de igualdade de oportunidades nós só vamos ter com uma escola pública cada vez melhor. Eu acho que enquanto nós não tivermos uma escola que dê uma formação básica adequada para o aluno, para o aluno mais pobre, mais humilde, nós não vamos ter uma democracia real neste país. Eu acho que é por aí que nós vamos construir a democracia: através da escola pública. Eu vejo isso com muita clareza.
[...]: O senhor eleito, o senhor pretende servir a que senhor: à modernidade ou à política do acerto ali no interior, aquela coisa da conversa no pé do ouvido?
Luís Antonio Fleury Filho: Eu pretendo governar com modernidade, e governar com modernidade significa governar sem nenhum tipo de preconceito. A modernidade não está no fato de você procurar modernizar a máquina, [o] que é importante, a modernidade tem que estar na cabeça das pessoas, tem que estar dentro das pessoas. O que é a modernidade? É exatamente isso: governar sem preconceitos, governar colocando o interesse da população acima de qualquer interesse - de qualquer interesse, eu vou repetir -, o interesse da população tem que ficar colocado em primeiro lugar. Governar com modernidade significa não ter qualquer tipo de receio, inclusive de, ao abordar um ponto qualquer de interesse da população, se aliar a pessoas de outros partidos que tenham o mesmo interesse, que queiram a mesma coisa a favor da população. É assim que eu vou governar São Paulo: de uma forma absolutamente transparente, procurando respeitar as liberdades públicas, procurando assegurar o espaço democrático e fazendo, inclusive, de São Paulo, um instrumento da democracia deste país. É assim que eu quero governar.
[Fim da entrevista com Luís Antonio Fleury Filho]
Jorge Escosteguy: Bom, vamos ver agora qual vai ser o discurso e a prática de Fleury no governo, até porque nem sempre a criatura se revolta ou se afasta do criador. Armando Nogueira esteve no Roda Viva depois de ter se desligado da TV Globo, onde dirigiu durante vinte anos, ou cerca de vinte anos, o telejornalismo. Fez algumas confidências, mas não transformou o centro desta roda num palanque de suas vinganças pessoais. Vamos ver um pouco da entrevista de Armando Nogueira, e encerrar o programa com humor e lição de vida: Jô Soares, seguramente, foi um dos melhores centros do Roda Viva em 1990. Vamos ver então, Armando Nogueira e Jô Soares.
[Fragmentos do programa com Armando Nogueira, exibido em 03/09/1990]
Woile Guimarães: Armando, falando em liberdade, eu gostaria que você esclarecesse a opinião pública sobre um episódio que marcou muito o telejornalismo da [Rede] Globo: sobre as Diretas Já. Todo mundo se recorda que a Globo entrou tardiamente na cobertura das Diretas Já. Quem é que censurou a cobertura?
Armando Nogueira: Objetivamente, aquele episódio - e é sabido historicamente que a Rede Globo entrou na cobertura das Diretas com atraso de pelo menos duas semanas -, evidentemente que a Rede Globo estava debaixo de uma pressão política do Palácio do Planalto. E aí eu gostaria de convidar vocês a fazerem uma reflexão comigo: é que a televisão não é um veículo revolucionário, a televisão não é um veículo de vanguarda, ela é de vanguarda tecnologicamente falando, mas politicamente, por ser uma entidade de direito público, por estar presa ao Estado, a televisão não tem a desenvoltura - do ponto de vista da liberdade - que tem o jornal, que é uma entidade de direito privado, sobretudo em países como o nosso, em que a democracia continua a ser aquela planta tenra do doutor Otávio Mangabeira [engenheiro, professor e político (1886-1960), foi membro da Academia Brasileira de Letras]. Então havia uma pressão do Palácio do Planalto para que a Rede Globo ignorasse o comício da [praça da] Sé. E olha, no caso do doutor Roberto Marinho, eu imagino que ele tenha sofrido uma pressão muito maior do que aquela que nós sofremos, porque os telefonemas eram diretos para ele. Não sei nem se era do doutor Leitão de Abreu [jurista (1913-1992), foi ministro-chefe da Casa Civil entre 1969 e 1974, e presidente do Supremo Tribunal Federal], não sei nem de quem era, sinceramente, mas era do Palácio do Planalto. Acontece o seguinte: a reflexão que eu quero que vocês façam comigo é que no momento em que o Estado - e era um Estado arbitrário -, no momento em que o Estado exercia uma pressão sobre a televisão, a sociedade começou a se mobilizar; ela, a sociedade, a tomar consciência cívica do seu momento. E a sociedade, através de todos os meios que estavam ao seu alcance, ela encostou o governo na parede, encostou a Rede Globo na parede, e nós pudemos transmitir o comício da [igreja da] Candelária [Rio de Janeiro/RJ] na sua integridade.
Woile Guimarães: Você sofreu pressões? Você falou em pressões políticas aqui. Você sofreu pressões do [departamento] comercial durante esses anos? E como é que você poderia ilustrar isso?
Armando Nogueira: É quase inacreditável: quando eu conto, quando eu dou este depoimento em faculdades onde eu faço palestras, eu vejo um certo ar de incredulidade da platéia quando eu digo que o poder econômico nunca me constrangeu na Rede Globo, graças a um estágio de profissionalismo do pessoal do departamento comercial da Rede Globo. Pelo contrário, eu tive duas ou três situações, de forma que essas experiências que eu tive, de Coca-Cola, de Varig, e tive uma também com a Vasp, que... essa foi engraçadíssima, porque o pessoal da Vasp queria patrocinar um dos jornais da TV Globo, que eu dirigia, mas com uma condição: que eu não noticiasse desastres de avião.
[Risos]
Armando Nogueira: E eu disse: “então está bem: vamos assinar um papel, vocês se comprometem a não derrubar avião e eu me comprometo a não noticiar.”.
[Risos]
Armando Nogueira: Mas aí eles não quiseram e o departamento comercial me prestigiou. De forma que, do ponto de vista do poder econômico, eu não consigo escrever nada condenando o poder econômico. O departamento comercial da Rede Globo foi impecável comigo, o Palácio do Planalto nem tanto.
Moacir Japiassu: Eu queria saber, Armando: e as pressões religiosas? Por exemplo: segundo consta, o cardeal Dom Eugênio Sales [cardeal brasileiro (1920-), arcebispo emérito da cidade do Rio de Janeiro] tem lá um aparelho de TV que não pega outro canal, só pega a Globo. Diz que o Cardeal deixou até de rezar a missa para ficar de olho na [Rede] Globo. E isso não constitui uma pressão, às vezes, intolerável?
Armando Nogueira: Não, eu não sei se é uma pressão intolerável, mas que evidentemente a igreja, ela exerce uma fiscalização muito grande, sobretudo no campo do entretenimento, no campo das novelas, [isso é] evidente. E como Dom Eugênio, no caso particular de Dom Eugênio, ele é muito ligado ao doutor Roberto [Roberto Marinho], evidentemente que ele exerce uma pressão sobre o doutor Roberto, e que deve ser bem-vinda, porque os dois rezam na mesma missa. Do ponto de vista da crença em Deus, do ponto de vista da vocação celestial, todos dois são... pertencem à mesma religião.
Tonico Duarte: Você disse uma vez: “Troquei uma cadeira elétrica por uma poltrona confortável.”. Como é que é isso?
Armando Nogueira: Isso é metáfora, pura metáfora. [risos] Não, [n]a realidade você imagina ficar sentado durante tantos anos numa cadeira espinhosa, como a de diretor de telejornalismo de uma rede poderosa como a Globo? Realmente cansa. E depois, passando por períodos dolorosos, não é? A minha experiência no período autoritário foi uma experiência muito dolorosa, muito dolorosa. Você ter que conviver com uns coronéis que nem ideologias tinham - porque quando eles têm ideologia você mais ou menos sabe como é que você vai discutir com eles, mas não tinham ideologia. Então era uma coisa penosa [enfatiza] o diálogo com os militares. Depois nós ingressamos - não é? - de uma maneira muito tímida nas liberdades democráticas, e no governo Sarney se exercia muita pressão política sobre o trabalho da gente. Uma coisa eu quis sempre preservar na minha carreira profissional: eu nunca tive um amigo no poder, nunca tive um amigo no poder - eu sempre tive fontes no poder. Como jornalista, quando eu comecei a minha carreira, graças a Deus, eu criei para mim uma máxima segundo a qual jornalista só tem prestígio enquanto não usa, e isso me preservou a vida inteira do contato com o poder, porque é promíscuo para nós profissionais, é promíscuo.
Vera Golik: Se você tivesse, assim, uma lista de coisas para você colocar daqui para frente na sua vida como sonhos para você realizar, quais seriam os que você mais teria vontade de numerar, de um a três, assim, os teus principais sonhos, mesmo que sejam os mais malucos possíveis?
Armando Nogueira: Antes de mais nada, eu estou decidido a me entregar ao ócio.
Vera Golik: Ah, que delícia!
Armando Nogueira: Realmente, depois de ter trabalhado quarenta anos eu não quero mais ter patrão, só isso: vou ficar escrevendo os meus textos em casa, eu vou me reencontrar com a palavra - entendeu? - que sempre foi um dos meus encantamentos, foi a palavra, e a imagem se sobrepôs de tal maneira que eu quase [enfatiza] traí a palavra nesses anos todos. Até tenho... Acabei de escrever para o nosso querido Dante [Dante Matiussi, jornalista, então diretor da citada revista], para a revista Imprensa, um artigo em que eu digo que existe um provérbio conhecido por todos os companheiros segundo o qual - um provérbio chinês - segundo o qual “uma boa imagem vale mais que mil palavras”. Se o chinês do provérbio entrasse numa redação de televisão, ele ia ver o estrago que essa frase dele causou na cabeça dos telejornalistas.
[Risos]
Armando Nogueira: Porque todo mundo abandonou a palavra, apaixonado pela imagem como se a imagem não precisasse viver casada com a palavra, na televisão. E eu até me permito retocar esse provérbio, esse adágio do nosso chinês, para dizer que o conselho que eu daria aos jovens telejornalistas é que não acreditem nesse provérbio, fiquem com o meu provérbio: “uma boa imagem vale mais com uma boa palavra, se ela vem com uma boa palavra”.
[Fim da entrevista com Armando Nogueira]
[Fragmentos do programa com Jô Soares, exibido em 26/03/1990]
Jorge Escosteguy: O Jair da Costa, de Campinas, ele pergunta se você faria o mesmo sucesso se fosse magro?
Jô Soares: Eu não sei. Como humorista? Eu acho que sim.
Maurício Kubrusly: Mas você foi magro.
Jô Soares: Eu já fui quase magro. Eu acho que se gordura fosse engraçado não havia necessidade de humorista. Você comprava um quilo de toucinho e ria o ano inteiro.
[Risos]
Jô Soares: Pendurava na janela e aaah [fingindo rir]. O que eu acho é o seguinte, o que eu senti quando eu emagreci é que as pessoas estranhavam muito a diferença de formato.
Mário Prata: Tem alguma piada que alguém já veio lhe contar que é sua, que você bolou você criou...
Maurício Kubrusly: Fez a volta inteira...
JôSoares: Uma, uma.
Mário Prata: Uma? Qual é?
Jô Soares: Uma piada que é a do Cristo português.
Mário Prata: Como é que é?
Jô Soares: Mas aí eu tenho que levantar, dá para levantar? Fez a volta e eu ouvi como piada que eu achei engraçado até, que eu fazia num espetáculo, que é o Cristo português que estava na cruz lá há 2000 anos [levantando-se] e que estava assim [abre os braços] dizendo [com sotaque português] “Ai meu Deus, cá estou eu aqui na cruz há dois mil anos, não adiantou nada, ninguém seguiu os meus ensinamentos, ninguém levou a sério e eu aqui há dois mil anos amarrado, pregado a essa cruz, eu vou é sair daqui sabe!” – [faz que está se soltando e assopra uma das mãos, faz o mesmo com a outra mão e em seguida finge que está caindo para frente, preso aos pés, gritando].
[Risos gerais]
[...]: É sua essa piada?
Jô Soares: Essa piada, que virou piada mesmo, foi uma piada que eu fiz. Então...
José Simão: E televisão, você gosta de ver televisão?
Jô Soares: Gosto. Gosto.
José Simão: O que você mais gosta de ver em televisão?
Jô Soares: Graças a Deus eu faço, eu tenho a possibilidade de fazer exclusivamente aquilo [de] que eu gosto. Isso e que é o grande privilégio...
José Simão: Você chega em casa, liga a TV, como é que é?
Mário Prata: Você gosta de ver carnaval na televisão?
Jô Soares: Carnaval na televisão, eu acho maravilhoso. [risos gerais]
Jô Soares: Realmente eu acho... [risos]. Aliás, tem uma história, negócio de carnaval na televisão que eu vou contar aqui, que eu acho fantástica, que foi aquele carnaval brabérrimo em que ameaçaram tirar as emissoras do ar e tal e que tinha a Bandeirantes transmitindo um baile que estava uma loucura. E o diretor já estava enlouquecido, e quem apresentava o programa era a Cristina Prochaska [atriz e jornalista (1950-)], lembra da Cristina Prochaska? Coitadinha, a Cristina Prochaska ia apresentando aquilo, enlouquecida, e o diretor de TV, chegou uma hora que ele não tinha imagem para pôr no ar, porque ele cortava para um lado, era o cara com a língua de fora perto do bico do seio da moça, era uma coisa horrorosa! Aí o diretor de TV ficou enlouquecido e falou assim: “Fecha na Prochaska!” Aí o diretor tchum [gesticula apontado as mãos para baixo]!
[Muitos risos gerais]
Jô Soares: O cameraman foi direto, tchum [repete o gesto com as mãos]! [risos]
Jô Soares: Ele já estava enlouquecido...
Mário Prata: Você foi estudar na Suíça, então os seus pais deviam ter uma grana e tal. Como é que é a tua origem?
Jô Soares: Papai ganhava muito bem, ganhava muito bem e perdeu tudo. Eu voltei da Europa, eu ia fazer exame, cheguei a prestar exame para a[s universidades inglesas] Oxford e Cambridge para entrar...
Mário Prata: Seu pai era comerciante?
Jô Soares: Não. Papai era corretor da Bolsa. Corretor de fundos públicos. E aí quando eu voltei... eu tive que voltar para o Brasil exatamente porque papai perdeu rigorosamente [enfatiza] tudo.
Angeli: E nem existia a [ministra da economia] Zélia [Cardoso de Melo] nesse tempo.
Jô Soares: Nem tinha a Zélia. Chegou a não ter onde morar.
Mário Prata: Zeliou, não é?
Jô Soares: Zeliou. Foi morar com mamãe num apartamento emprestado, e eu fui morar num quarto alugado, na rua Prado Júnior, em Copacabana [RJ], num quarto alugado num apartamento de um casal de poloneses... que era uma coisa estranhíssima, no terceiro andar, que alugava para estudantes e tal. Tinha um estudante também do... tinha um estudante da Costa Rica e um do Panamá. E o do Panamá estava perdendo a bolsa de estudos, eles eram estudantes do colégio militar. O do Panamá estava perdendo a bolsa de estudos porque disseram que ele falava mal do país dele, então perdeu a bolsa. E ele dizia assim [imitando sotaque espanhol]: “Dicen que yo hablo mal de mi país. ¡Una mentira! ¡Una calumnia! ¡Porque yo iría a hablar mal de una porcaria de un país como aquél?! [risos] Una mierda de país que nada se encontra. ¡Como voy a hablar mal?! [risos] [“Dizem que eu falo mal do meu país. Uma mentira! Uma calúnia! Por que eu iria falar mal de uma porcaria de país como aquele? Uma merda de país em que nada se encontra. Como vou falar mal?!] E o outro da Costa Rica era engraçado, porque eu dizia assim: “Você está estudando aqui?”, “Sí, yo estoy estudiando acá. [imitando o sotaque] [Sim, estou estudando aqui.] “Fez serviço militar?” “No, no hice servicio militar no, mi papa pagó y yo no…” [Não, não fiz serviço militar não, meu pai pagou e eu não...] Eu falei: “Pagou quanto? 1000 dólares?”, ele falou: “No, 100 dólares. ¡Si pago 1000 dólares, me hacen general!”. [risos] [Não, 100 dólares. Se pago 1000 dólares, me fazem general!]
Mário Prata: O Chico Anysio [ver entrevista no Roda Viva] falou uma vez que em shows dele de público, no teatro, a melhor piada é a que o cara já sabe. Que na hora que ele começa a contar, o cara se sente co-autor: “Ninguém sabe, mas eu já sei”. É verdade isso?
Jô Soares: Muitas vezes é.
Mário Prata: Que ele aguarda...
Jô Soares: O cara que já viu... Tem sujeito que leva, por exemplo, do meu show, tem muita gente que leva o amigo para ouvir aquela, e ele ri mais do que o amigo, “Olha agora, olha agora, hahahahaha...” [simula uma gargalhada e ergue os braços]. [risos]
Jô Soares: Ele ri mais do que o amigo que não conhece. Às vezes, ele até atrapalha o amigo que diz: “Espera aí, deixa eu ouvir.”
Jorge Escosteguy: O Marcelo Morgado, de São José dos Campos, você falava há pouco da Suíça, ele disse que tem um episódio seu de se fingir de morto na Suíça.
Jô Soares: Têm vários! [risos]
Jorge Escosteguy: De se fingir de morto? Então conte um.
Jô Soares: A gente fazia muito esse negócio, a gente enlouquecia a polícia suíça. A gente fingia que tinha tiroteio, pegava bala de festim, ia para o centro, Place Saint François ali, e aí um saía do cinema, passava o carro e atirava “pam”, com tiro de festim, aí caia no chão morto, “Ahhh!” [fingindo estar baleado], ficava na rua e aí passava outro carro e recolhia. Aí ficava uma loucura! Ninguém sabia se era acerto de contas...
Maurício Kubrusly: Jô, vocês faziam isso na Suíça porque não acontecia nada? Para dar um agito?
Jô Soares: A gente enlouquecia um pouco Lausanne, [por]que Lausanne era uma cidade muito pacata e tinha dois ou três...
Maurício Kubrusly: [Interrompendo] Acho que continua sendo.
Jô Soares: ... brasileiros... É, continua sendo. Tinha dois ou três brasileiros e mais uns vinte sul-americanos. E a gente fazia uma zorra! E aí todo mundo queria ser sul-americano, os iranianos, italianos, “Sul América!”, fazia essas loucuras. Tinha dois gêmeos argentinos que eram inteiramente loucos, Félix e Martin Gomes Salzia, e que eram idênticos, mas idênticos como duas gotas d'água. Não dava para diferenciar mesmo. Então os dois deixavam a barba crescer, três dias de barba, aí ele entrava no barbeiro e dizia assim, “O senhor tem que fazer a minha barba, mas tem que botar a cadeira na direção da Meca. Eu sou muçulmano, se o senhor não deixar a cadeira na direção da Meca a minha barba cresce em 2 minutos”... [risos]
Jô Soares: ... “Ah, está bom, deixa de brincadeira!” – “Eu estou avisando o senhor, vai crescer a barba em 2 minutos”. Aí o cara dizia, “Deixa de bobagem!”, e fazia a barba dele em qualquer posição da cadeira. Ele saia, esperava 2 minutos e entrava o irmão, “Eu avisei o senhor da minha barba!”... [risos]
Jô Soares: O barbeiro ficava alarmadíssimo! [Risos]
Angeli: Então eu queria saber de você, se você acha que o que é produzido hoje, em termos de arte, teatro, artes plásticas, tal, tem o mesmo grau de transgressão que tinha nos anos [19]60 e, enfim, nesses tempos tão brocha, o que você acha viril na arte brasileira? O que você vê que o excita?
Maurício Kubrusly: Está legal essa pergunta!
Jô Soares: Eu acho o seguinte: em nível de transgressão é difícil ser igual aos anos [19]60, inclusive em relação a anos [19]60 no Brasil, porque nos anos [19]60 tinha que haver realmente uma transgressão, quer dizer, era fundamental haver uma transgressão. Eu acho que os anos [19]70, até então, e os anos [19]80 foram menos criativos do que os anos [19]60.
Angeli: E por que você acha isso?
Jô Soares: Eu acho que exatamente porque nos anos [19]60 ainda havia a possibilidade de você, realmente, bater de frente com outras coisas. Nos anos [19]70, quando houve o AI5... o AI5 foi realmente uma Idade Média, não é?
Angeli: Jô, eu lembro de uma frase do [cartunista, chargista, pintor, dramaturgo, escritor, desenhista e jornalista] Ziraldo [ver entrevista com Ziraldo no Roda Viva] que ele dizia: “Num mundo melhor não vai precisar de humoristas, num mundo melhor não haverá humoristas”.
Jô Soares: Mas se não precisar de humoristas, o mundo já não será melhor. [Risos]
Angeli: Mas o Ziraldo é mineiro, e a gente sabe que ele pode se dar ao luxo de ter essa postura de missionário, essas coisas. Eu queria saber se você acredita num mundo melhor e, se acredita, nesse mundo melhor, do que os humoristas vão se alimentar?
Jô Soares: Eu acredito sim num mundo melhor, mas não acredito num mundo perfeito.
Angeli: Certo.
Jô Soares: Então, eu acho que, num mundo melhor, a função do humorista vai ser a de melhorar o mundo. Eu acho que o humorista só não existe na utopia. E por outro lado, também, a utopia é um pé no saco.
Angeli: É chata pra caramba! [risos]
Jô Soares: É muito chato. Você tem uma medida de felicidade também em relação às coisas que você sofreu, aquilo que você passou, enfim. E que o ser humano... a grande beleza do ser humano, para mim, é exatamente que ele é fraco, ele é frágil. E é nessa pequenez que está a sua grandeza, quer dizer, por ser pequenino que ele é grande. Então essa função do humor de catucar cada vez que o ser humano é pequeno é que engrandece ele.
[Fim do programa]