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Memória Roda Viva

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Villas-Bôas Corrêa

28/7/2003

A política brasileira das últimas décadas; o início do governo Lula e o futuro do jornalismo são alguns dos temas discutidos pelo jornalista político

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[programa gravado]

Paulo Markun: Boa noite. Ele é memória viva das transformações da vida brasileira nas últimas cinco décadas da vida política, em especial da vida da imprensa no país. Um dos mais expressivos cronistas políticos, viveu o cotidiano das redações dos jornais e do Congresso Nacional, registrando e analisando crises e peripécias que envolveram figuras-chave da política nacional nessas últimas décadas. O Roda Viva entrevista esta noite o jornalista político Villas-Bôas Corrêa, que, aos 79 anos de idade e 55 de profissão, resolveu raspar a cacimba da memória, como ele diz, e colocar tudo o que ele viu e ouviu num livro de histórias e lembranças.

[inserção de vídeo]

Narração de Valéria Grillo: [O título do livro é] Conversa com a memória: a história de meio século de jornalismo político, [de] Villas-Bôas Corrêa. Rio de Janeiro, capital da República, final dos anos 40: Eurico Gaspar Dutra era o presidente, eleito pelo voto direto após 15 anos sem eleições livres no Brasil. A Constituinte [de 1946] que estabeleceu as bases da democratização do país deu vida ao Palácio Tiradentes, onde funcionava a Câmara dos Deputados, e ao Palácio Monroe, sede do Senado Federal. Villas-Bôas escreve que foi um momento de fascínio pelo Congresso, com nova atuação partidária e o surgimento de um modelo de cobertura política criado por repórteres e cronistas entusiasmados com a restauração da democracia. Sem censura e com a liberdade de imprensa redescoberta, a política despertava grande interesse na população e ajudava a vender jornais. É nesse cenário que Villas-Bôas Corrêa entra, como jornalista principiante no jornal A Notícia; em mês menos de um ano era promovido a repórter político. Daí em diante, ele veria Getúlio Vargas retornar ao poder em 51; lançar seu plano nacionalista e enfrentar a oposição da imprensa, em geral anti-getulista. Carlos Lacerda foi um dos exemplo na época do jornalista político militante e exaltado. Getúlio se matou; veio Juscelino, com seus “50 anos de progresso em cinco anos de governo”; veio Jânio com a manobra de renúncia que acabou mesmo em renúncia; veio Jango [João Goulart, presidente da República entre 1961-1964] com o parlamentarismo; e vieram os militares [que governaram] por 25 anos, para o Brasil se redemocratizar de novo e seguir os caminhos que vivemos até os dias de hoje. Mas não é essa a história de Villas-Bôas Corrêa. A política brasileira dos últimos 50 anos é, na verdade, o pano de fundo para as histórias do cronista em seus inúmeros encontros com os personagens da nossa política em seus melhores e piores momentos. Um relato saboroso sobre as grandes reportagens, viagens, gafes e casos engraçados das redações nas décadas de 50 e 60, quando o Rio de Janeiro era o centro da cultura e do poder. De Vargas até [Fernando] Collor [de Mello, presidente da República entre 1990-1992], Villas-Bôas fala dos bastidores da imprensa e revela curiosidades e momentos de uma vida política que, ao longo desses anos, esquentou as manchetes dos jornais.

Paulo Markun: Para entrevistar o jornalista Villas-Bôas Corrêa, nós convidamos Milton Coelho da Graça; José Roberto Alencar; Helena Chagas, chefe de redação da sucursal de Brasília do [jornal] O Globo; Fritz Utzeri, colunista do Jornal do Brasil; o jornalista Walter Fontoura, da Sales Periscinoto Guerreiro e Associados; Ubiratan Brasil, repórter do Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo; e a jornalista Norma Couri, colaboradora do Jornal do Brasil. O Roda Viva, você sabe, é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Hoje ele não permite a participação do telespectador, porque o programa está sendo gravado. Boa noite, Villas.

Villas-Bôas Corrêa: Boa noite.

Paulo Markun: Eu queria começar por um... Primeiro, é um prazer ter você aqui como um do nosso time de jornalistas; é sempre uma alegria ter um mestre aqui, é bom demais. Feito esse salamaleque inicial...

Villas-Bôas Corrêa: Curiosidade de museu, não é?

Paulo Markun: Eu queria perguntar para você uma coisa que eu acho que a gente tem que abordar, muito embora o programa esteja sendo gravado e, portanto, essa realidade política seja sempre cambiante e difícil de falar sobre ela: como é que você está encarando esses primeiros momentos do governo Lula no que toca à relação entre o governo e a imprensa, entre o presidente e os jornalistas, entre o poder e a mídia?

Villas-Bôas Corrêa: Olha, surpreendentemente, para quem acompanha a trajetória do Lula, a sua biografia singular, de alguém que vem da liderança sindical, ele realmente tem uma história de vida belíssima. Nordestino que veio num pau-de-arara, mãe analfabeta, e depois chega à Presidência da República, funda o Partido dos Trabalhadores, e sempre teve com a impressa uma relação cordial. Eu estou me surpreendendo muito com o distanciamento com que o Lula tem mantido da imprensa. Para começo de conversa, ele chegou quebrando uma regra, uma norma, um hábito que, a meu ver, era extremamente louvável. [Em início de mandato, normalmente] o presidente chega e dá uma entrevista coletiva à imprensa, uma coletiva com toda a respeitabilidade do presidente da República que se senta numa mesa, cercado pelos seus assessores, [e os] jornalistas, sentadinhos em frente, assistem à exposição inicial, fazem perguntas, respostas. E essa entrevista coletiva à imprensa assinala o início da relação do governo com a imprensa de maneira institucional. Isto é, não privilegiando ninguém, permitindo que a informação fundamental sobre a formação do governo chegue a todos os leitores de todos os jornais e revistas, a todos os telespectadores e ouvintes de rádio. Porque se há uma norma ética que eu pessoalmente preservo, e que estranho sempre que ela é quebrada, acho que o presidente da República não tem o direito de dar entrevista exclusiva. Ele tem o direito, sim, evidente, de chamar ao Palácio seus amigos jornalistas, grupos, ou um de cada vez, conversar e até permitir o aproveitamento jornalístico do teor dessas conversas. Mas “entrevistas”, entre aspas, novidades dadas ao pé do ouvido do amigo do peito, isso é um tipo de presidência do companheiro, do partidário, da militância, que eu acho realmente um equívoco no governo Lula, tanto mais estranhável quando [se leva em conta o fato de que] seu assessor de imprensa é um jornalista de alto nível, que é o Ricardo Kotscho.

Paulo Markun: Muito mais ancorar o Jornal Nacional [da TV Globo], como ele fez logo que foi, digamos, ungido, não é?

Villas-Bôas Corrêa: É, mas aquilo foi uma maneira de ele pagar ao Jornal Nacional a cobertura que o Jornal Nacional deu, mas foi a primeira escorregadela. Mas, em todo caso, naquele clima ainda valia isso. Agora, depois de iniciado realmente o mandato, ele não tomar a providência de convocar uma entrevista coletiva, e até hoje não deu essa entrevista, e deu duas entrevistas por critérios singularíssimos, uma convidando os jornalistas que o acompanharam na viagem à Europa... Ora, se o sujeito vai acompanhar o presidente na viagem à Europa, vai ter toda a viagem para conversar; para que precisa conversar antes em terra? E a outra agora, antes de embarcar para os Estados Unidos, que também reuniu um grupo, não sei com que critério – desconfio que deve ser [por] víspora, bingo, alguma fórmula assim: bota os números num saco, sacode e tira lá um jornalista.

Helena Chagas: Mas, pegando daí um pouco o contrário: como você acha que a imprensa está tratando o Lula? Porque o Lula, você que acompanhou todos os ciclos da história desde a redemocratização pós-Vargas, é a primeira vez que se vê, pelo menos nesse período, a primeira vez que um trabalhador chega lá. Tem todo esse peso de que, pela primeira vez, as elites dominantes cedem espaço a um trabalhador, e o Lula se queixa muito da imprensa e atribuiu muito – não estou aqui defendendo, não, veja bem –, ele diz que a imprensa está implicando, está sendo excessivamente cricri com ele. Você vê esse lado, você acha que a imprensa está sendo muito dura com o presidente Lula ou você acha que isso aí é impressão dele?

Villas-Bôas Corrêa: Olha, Helena, a sua pergunta exigiria uma resposta muito longa, que eu não quero dar. Acontece o seguinte, a singularidade da chegada do Lula ao poder, em que pela primeira vez na história do Brasil o poder muda de lado... O poder no Brasil sempre foi disputado por partidos conservadores, um na oposição e outro no governo, aquele velho dualismo do PSD [Partido Social Democrático], UDN [União Democrática Nacional], com [o acréscimo de partidos] satélites. Mas é a primeira vez que chega alguém que significa a mudança de poder... Ora, a cobertura política, e essa é uma deformação de Brasília, tem que ser fundamentalmente explicada. Há um tipo de cobertura factual, de reuniões etc e tal, que hoje é pervertida por esse exagero de entrevistas, em que as mesmas pessoas são entrevistadas todos os dias e dizem as mesmas coisas para os mesmos jornais.

[...] : E os jornais publicam.

Villas-Bôas Corrêa: Os jornais publicam e, às vezes, em página inteira, porque eu nunca vi tanto espaço para política para não dizer nada, que é a anti-notícia, e o sujeito só diz o óbvio. Agora, por exemplo, [o então presidente do PT] José Genoino está repetindo a mesma entrevista há pelo menos dez dias, e abre manchete em página política de jornal. Então, a crônica política complementa isso, porque tem que tentar analisar, explicar isso. E hoje em Brasília há muito pouca gente fazendo isso. Eu acho que você, a Teresa Cruvinel, a Dora Kramer, dos jornais do Rio que eu sigo mais diretamente, são as que se empenham a fazer isso.

Helena Chagas: Mas a imprensa também está falhando então na abordagem? Ela deveria estar cobrindo o governo Lula melhor, na sua opinião?

Villas-Bôas Corrêa: Não está falhando; eu tenho uma outra visão disso, eu cobro assim muito do Lula [por causa de] uma incoerência com sua biografia, com a tradição do PT etc. Eu acho que o erro que o Lula cometeu, realmente, é aquele erro que não se pode cometer. O mesmo erro que o Fernando Henrique cometeu quando precipitou a votação da reeleição, porque a reeleição ia cair no colo dele no final do mandato se ele tivesse um bom exercício, e aquilo arrebentou com o primeiro mandato dele e com o segundo. O mesmo erro o Lula cometeu nas relações com o PT. Veja bem, o PT, durante 20 e tantos anos, acompanhou o Lula, seguiu o Lula, que liderou, era o grande guru, a grande marca do partido, cujo grande emprego conhecido era ser candidato à Presidência da República durante 12 anos, dentro de uma linha de coerência, de princípios. Eu entendo que o Lula, chegando à Presidência da República pelo voto, não tinha como realizar aquele programa de saída; poderia jogar uma tacada de efeito, [por exemplo] no dia seguinte da posse, começava a encaminhar ao Congresso, a intervalos regulares, as emendas constitucionais e os projetos que resgatassem seus compromissos de campanha, para negociar isso no Parlamento, que é o local da negociação política. Mas se ele preferiu antes articular esse consenso – pelo visto é o consenso da divergência que tem sido articulado –, ele tinha que combinar antes com o partido; tinha que começar por negociar com o partido, porque se ele simplesmente ia manter ortodoxamente a linha do partido, não tinha que negociar nada, o partido já estava comprometido com isso. Mas se ele vai virar isso pelo avesso, por necessidade política, para ter que ter apoio parlamentar para realizar essa reforma, tinha que começar essa negociação pelo partido. Porque se ele leva essa negociação para o partido, ele diz: “Até onde eu posso chegar?”. Isso é aprovado pelos órgãos partidários, bancada, diretório nacional, ali ele acaba [a negociação], dá um murro na mesa e diz: “Aqui todo mundo tem que votar”.

Milton Coelho da Graça: Essa negociação não poderia ter sido feita nos dois meses que antecederam a posse, inclusive?

Villas-Bôas Corrêa: Poderia, claro, como também esses projetos deveriam ter sido montados, os textos deveriam ter sido redigidos nesses dois meses [anteriores à posse], para que quando o Lula assumisse o poder, se ele fosse jogar uma cartada do tudo ou nada, encaminhasse isso ao Congresso.

Walter Fontoura: Se ele apresentasse o projeto da Previdência antes da eleição, você acha que ele teria sido eleito com os votos dos petistas brasileiros?

[...] : Não, depois da eleição...

Walter Fontoura: Dois meses antes.

Villas-Bôas Corrêa: Antes da eleição, vale toda bravata, como o Lula se justifica. Evidente que, numa eleição, a opinião pública, a sociedade é um pouco tolerante.

Walter Fontoura: Eu acho que não vale, não. Eu acho um escárnio que se venha dizer agora que “antes eu era oposição e podia fazer oposição como quisesse”.

Villas-Bôas Corrêa: Não é bem o caso do Lula. O Lula, da maneira como foi eleito, nesse sistema político brasileiro, que é feito todo montado por aqueles que eram donos poder, na linha dos interesses de cada um, que formam o consenso de todos, isso levou a essa contradição do Lula, que foi eleito com 52 milhões de votos e elegeu uma bancadinha minoritária. O PT é maioria na Câmara, mas uma maioria com 92 votos em 513; têm 14 senadores em 81. Então, das duas uma: ou ele negocia com essa gente ou então vai para revolução, porque não há outra maneira.

Walter Fontoura: Você tem toda razão, mas ele está sendo um político mais hábil, a meu ver, do que Fernando Henrique; um político [que] não está deixando parar, ele está tomando todas as iniciativas permanentemente. Não sei se ele vai ter fôlego para isso, mas ele está sempre no ataque e, agora mesmo, vai viajar pelo mundo inteiro.

Villas-Bôas Corrêa: Você está puxando a conversa para outro lugar. A colocação da Helena Chagas era o que eu achava...

[...] : Da imprensa, do tratamento da mídia.

Helena Chagas: Mas envolve isso aí também.

Villas-Bôas Corrêa: Como é que a imprensa está vendo o Lula...

Milton Coelho da Graça: Agora, Villas, posso repor o negócio da imprensa?

Villas-Bôas Corrêa: Pois não.

Milton Coelho da Graça: Hoje em Brasília existem cerca de 3500 jornalistas trabalhando para o poder; isso em todos os poderes, legislativo, judiciário etc. [São] 3500; [por outro lado] nas redações inteiras deve ser mais ou menos 300, se é que chega a tanto. Isso é muito diferente do que você via nas décadas de 60 e 70, tanto no Rio como em Brasília, não é? O que se altera nas relações, também, da imprensa com o poder?

Villas-Bôas Corrêa: Não havia 3500 jornalistas no Brasil naquele tempo [risos]. E jornalista trabalhava em jornal.

Milton Coelho da Graça: Exatamente.

Villas-Bôas Corrêa: Tinha aquela coisa de assessor [de imprensa] do presidente da República; o assessor de alguns ministros.

[...]: Oficial de gabinete.

Milton Coelho da Graça: Foi o Jânio o primeiro a ter... o primeiro presidente a ter assessor.

Villas-Bôas Corrêa: [Havia] o sujeito que ficava de olho no cartório, acabava no cartório, era um tipo de cavação, mas não há como comparar épocas tão absolutamente diferentes e distintas.

Norma Couri: Villas...

Villas-Bôas Corrêa: Pronto.

Norma Couri: Deixe-me perguntar uma coisa nesta linha de cobrança de impressa. Hoje o [jornal francês] Le Monde deu três páginas cobrando do Lula um modelo alternativo, que não veio ainda. Você acha que a imagem dele no mundo, que até agora tem sido tão brilhante, primeiras páginas e tal, vai começar a mudar também, e a cobrança vai começar lá fora também?

Villas-Bôas Corrêa: Acho que o mundo dá muito pouca importância a essa atividade política no Brasil. O mundo vai analisar o Lula muito mais pelos resultados dos objetivos do governo dele e pelo seu comportamento no cenário internacional. Nisso, ele tem se saído muito bem. Nisso aí que não depende de escorregar em contradições, o Lula está saindo bem.

Fritz Utzeri: Nós vamos ficar na [discussão sobre] imprensa ou...

Paulo Markun: Não, isso aqui é um programa livre.

Fritz Utzeri: Muito bem, então, duas coisa. Mas eu vou ficar na imprensa por enquanto, e depois a gente vai... Ontem eu estava conversando com o [cartunista] Ziraldo; ele fez uma pesquisa – aliás, quem fez a pesquisa foi o Jornal de Brasil e foi dada a ele... Fizeram um levantamento com dois mil universitários para perguntar quantos deles liam jornal regularmente. [O resultado foi que] 17 dos dois mil disseram que liam o jornal regularmente.

Villas-Bôas Corrêa: Provavelmente estavam mentindo [risos].

Fritz Utzeri: De qualquer forma, na nossa geração, geração dos anos 60, na sua geração, que é até uma geração anterior a essa, certamente esta não era a realidade. O que levou a esse desinteresse geral... e pela política, inclusive, em particular hoje, por conta dos leitores de jornal? Como é que você vê essa situação hoje?

Villas-Bôas Corrêa: Olha, isso reclamaria uma longa análise, não é?

Fritz Utzeri: Sem dúvida.

Villas-Bôas Corrêa: Porque são 50 anos de mudanças. Em primeiro lugar, quando eu comecei na imprensa, em 48, meados do governo Dutra depois da Constituinte, eu trabalhei num jornal popular, A Notícia. Mas a manchete de A Notícia era um comentário político, em geral feito pelo José Barbosa Pacheco, um grande jornalista, ou pelo Silva Ramos, que era redator-chefe. Porque havia uma enorme avidez, um enorme interesse popular pela política depois de 15 anos de jejum. E isso também foi muito alimentado por quem... isso coincidiu com a mais brilhante geração de oradores que passou pelo parlamento brasileiro, pelo menos da República para cá [...], e porque o grande contraditório, o que era? Era o getulismo e o anti-getulismo, e UDN, PSD, partidos das rixas municipais. Então, era uma coisa que tinha vida de baixo para cima, de baixo para cima. Rolou muito tempo essa bola está aí, acho que até [na época da] mudança da capital esse modelo, com altos e baixos, com variantes, foi mantido. A coisa começa a mudar com a mudança a Brasília – não sou contra Brasília, isso é uma bobagem, você é contra uma cidade? Não tem sentido nenhum. Agora, que Brasília tem com a reportagem política uma grande dívida, tem. Primeiro, a mudança foi precipitada, nenhum jornal pôde levar suas equipes para lá. Segundo, o Juscelino, com seu temperamento afoito, leviano, bem-humorado, ele criou facilidades e vantagens para mudar para Brasília. Deu mansões aos ministros do Supremo... desde aquele tempo que a turma aprendeu a se regalar com mordomias, não é isso? Criou todas as facilidades para o Congresso, porque não havia condições, realmente, de morar lá no Congresso. E então começou o negócio da passagem para o sujeito passar o final de semana com a família...

[...]: Dobradinha.

Villas-Bôas Corrêa: A dobradinha. E daí começou a verba para telefone, até virar essa cascata.

Walter Fontoura: Villas, eu posso fazer uma observação?

Villas-Bôas Corrêa: Sabe quanto ganha um deputado hoje, senador, deputado?

Fritz Utzeri: Você, aliás, diz isso muito.

Villas-Bôas Corrêa: Em salário direto, em repasse de verbas e vantagens etc, vai para mais de 70 mil reais por mês. E agora em julho, com as duas, vai para mais de cem mil reais.

[...] : Sem contar as viagens internacionais.

Villas-Bôas Corrêa: Sem contar as viagens internacionais e as vantagens extras de presidente da Câmara, presidente do Senado, que têm casa própria, que têm palácio, que aliás é justificável, porque é um cargo que tem representação. Depois disso, vieram os 21 anos da Redentora [a ditadura militar, entre 1964-1985]. Esses 21 anos da Redentora desmoralizaram ao mesmo tempo o Congresso, isto é, nossa ferramenta de trabalho, porque o que valorizava muito o jornalismo político era enquanto o Congresso era a casa onde se jogava o poder. Nós raramente freqüentávamos a Presidência da República; primeiro, porque o presidente da República não recebia ninguém naquele tempo. Esse negócio de Presidência da República conversando com jornalistas no meio de Brasília, isso no Rio não tinha. O acesso era muito difícil, muito difícil. Depois, não havia necessidade, porque a gente sentia que... Você participava do espetáculo do jogo do poder no Congresso e era muito bem informado pelos dois lados.

Walter Fontoura: Mas, Villas, esse espetáculo do jogo do poder continua lá hoje. Foi a imprensa que decidiu, com a mudança da capital, mudar a cobertura do Congresso, que era feita antigamente. Mudou, eu era repórter de plenário; você fazia política; havia os repórteres de comissões; cada jornal tinha três ou quatro repórteres.

Villas-Bôas Corrêa: Walter, espere aí; mudou a cobertura política de plenário simplesmente porque não há reuniões diárias no Congresso.

Walter Fontoura: Mas há plenário.

Villas-Bôas Corrêa: Como é possível manter uma...

Walter Fontoura: Mas é plenário. Tudo o que é relevante no Brasil passa pelo Congresso, e a imprensa não reflete.

Villas-Bôas Corrêa: Isso aí é um defeito porque os quadros diminuíram...

Walter Fontoura: A imprensa não reflete.

Villas-Bôas Corrêa: Mas a raiz disso é que não é possível manter uma sessão fixa de um Congresso que não se reúne todos os dias, [mas apenas] umas três vezes por semana.

Helena Chagas: Será que isso não pode ser atribuído – eu sou de Brasília aqui, sou advogada do diabo aqui contra vocês todos –, será que a gente não atribui, também, essa mediocrização do debate parlamentar, do debate no próprio Congresso, que realmente está muito medíocre? Será que a gente não pode atribuir isso também ao esvaziamento do poder legislativo, depois de muitos anos de ditadura, em que ele esteve praticamente imobilizado diante do executivo, e nessa fase pós-ditadura, mesmo na redemocratização, o executivo conservou todos os poderes, a pauta que importa hoje é pauta do governo, não é a pauta do Congresso, quer dizer, é todo um sistema político, não é?

Villas-Bôas Corrêa: A ditadura é, por definição, centralizadora. Ao mesmo tempo ocorreu a crise de imprensa, a crise de dinheiro, crise econômica, que levou os jornais a enxugarem seus quadros. Esse enxugamento foi comandado de cima para baixo, quer dizer, das editorias do Rio, São Paulo, Belo Horizonte etc, que cortaram não a carne, mas cortaram na carne dos outros. E como havia uma equipe em Brasília, que de repente ficou supérflua, ficou grande demais, cortaram muito lá. E isso nunca mais se restabeleceu.

Helena Chagas: Não é o sistema político? Até o sistema eleitoral, em que o sujeito é eleito, não precisa dar satisfação para partido.

Villas-Bôas Corrêa: Mas, ao invés de a gente mexer nesse cemitério...

José Roberto Alencar: Villas, o fato de o Rio de Janeiro não atrair... quer dizer, o Rio de Janeiro era atraente para elites que conseguiam se eleger, [mas] Brasília não é. Isso não teria ajudado muito na queda da qualidade parlamentar?

Villas-Bôas Corrêa: Olha, ajudar na queda... [risos].

José Roberto Alencar: É, a mudança...

Villas-Bôas Corrêa: Eu tenho uma avaliação disso que quero colocar aqui. Na primeira hora, houve muito oba-oba em torno dessa singularidade brasiliense, que de repente as elites foram fugir de Brasília, porque passou a não interessar mais ao advogado de sucesso, ao médico com grande clínica, ao engenheiro famoso ir morar em Brasília, não é? Na década de 40, 50, era o contrário: o Rio era a cidade maravilhosa; Copacabana era a princesinha do mar; deputado se elegia pelo Piauí, Fortaleza, em qualquer dos estados do Nordeste e mesmo do sul... A família toda botava a mudança no caminhão e desembarcava no Rio de Janeiro, nos apartamentos alugados em Copacabana; isso mudou em Brasília. Agora, neste momento, eu acho que está começando a existir um outro tipo de deformação, muito mais grave. É que está se criando em Brasília uma classe política que é uma profissão e que é uma elite – elite no sentido social, elite no sentido da posição social. De modo que essa ilusão de que o deputado que tem origem humilde – PT, principalmente –, de todos os partidos, ou que se elege pela sua base municipal, que ele vai para Brasília, levando a representação da sua base, é um equívoco. Deputado hoje que passa a ganhar 70 mil por mês, eles não querem voltar nunca mais à situação anterior. Então, ele faz tudo para permanecer no poder. Tudo para permanecer no poder. E se o poder força a negociação, ele cede, ele cultiva sua base com o quê? Com uma ceva de votos, ele trata bem a sua base com uma ceva de votos que vai garantir o seu status social...

José Roberto Alencar: Deixa de ser da classe trabalhadora para ser da classe política.

Villas-Bôas Corrêa: Que hoje é uma outra elite política. O político brasileiro hoje está desmoralizado; o Congresso brasileiro hoje é um Congresso vergonhoso pela coleção de vantagens, de mordomias, que foi empilhando até ter esse escândalo. Agora, o parlamentar hoje pertence à classe dos novos ricos. São todos os novos ricos. Não tem mais o deputadozinho de representante, do povinho humilde, não, isso acabou.

Paulo Markun: Villas, nós vamos fazer um rápido intervalo; voltamos daqui a instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o jornalista político Villas-Bôas Corrêa, que acaba de lançar um livro de memórias sobre cinco décadas de jornalismo político no Brasil. Infelizmente, o programa [de hoje] não permite a participação do telespectador porque está sendo gravado. Villas, eu sei que um dos ingredientes que, digamos assim, vitaminam ou estimulam a atuação do jornalista político é a intimidade com o poder. Muitas vezes a gente acha que, porque é conhecido do presidente, amigo do presidente da Câmara, se dá bem com o deputado fulano de tal, senador beltrano ou com o governador sicrano, a gente é parte do time, integrante do jogo. Eu sei que você participou de diversos episódios muito de perto. Lembro-me de um deles, sobre o qual eu fiz um documentário, que é o episódio em que houve a cassação ou a tentativa de cassação do [deputado federal] Márcio Moreira Alves, e que redundou no AI-5, em que você fez a nota, o registro, se não me falha a memória, do pequeno discurso que foi feito no Pinga-Fogo [chamado também de pequeno expediente, no qual os deputados faziam rápidas comunicações] que foi usado como pretexto, não foi isso? Me falha memória? Você não estava lá em Brasília naquela ocasião?

Villas-Bôas Corrêa: Não, não estava, não.

Paulo Markun: Estou vendo que estou ficando velho também. Mas certamente você participou de episódios dessa intimidade do poder.

Villas-Bôas Corrêa: Bom, essa coisa do Marcito [apelido de Márcio Moreira Alves] é uma farsa sabida, quer dizer, foi um pretexto utilizado para dar um golpe que estava mais do que armado, articulado; foi um pretexto. Aquilo foi um discurso de Pinga-Fogo; pode ser de um gosto duvidoso, mas não tinha nada de basicamente ofensivo. Convidava as senhoras, namoradas dos cadetes a não desfilarem no 7 de setembro em protesto contra a tortura, a violência dos militares.

Paulo Markun: Mas a pergunta que eu queria fazer...

Villas-Bôas Corrêa: Sabe por quê? Porque esse discurso do Marcito foi apenas registrado, se não me engano, num pequeno registro pela Folha de S.Paulo.

Paulo Markun: Pela Folha.

Villas-Bôas Corrêa: Ninguém mais cobriu, porque aquele foi um discurso de pinga-fogo, e raramente se registra, ainda mais em Brasília, onde não se tem mais cobertura de plenário há muito tempo; nunca teve cobertura regular de plenário. Mas aí, foi desencavado do Diário do Congresso, mimeografado e distribuído aos milhares nos quartéis etc, para levantar...

Paulo Markun: E criar confusão. Mas a pergunta que eu queria fazer é a seguinte: você acha que essa intimidade com o poder – você, por exemplo, é uma pessoa que não declara seu voto nem dentro de casa –, você acha que essa intimidade com o poder compromete realmente o desempenho jornalístico?

Villas-Bôas Corrêa: Olha, Markun, vamos deixar de hipocrisia, vamos deixar de hipocrisia. O jornalismo político do tipo que eu, que o Walter Fontoura, o pai da Helena Chagas, o Carlos Chagas, fizemos, e que hoje se faz cada vez menos, depende basicamente de fontes, que são cultivadas ao longo do tempo. Dificilmente se estabelece uma relação instantânea de confiança, não é isso?

Paulo Markun: Principalmente por...

Villas-Bôas Corrêa: Há coisas que vêm sendo provadas ao longo do tempo. Eu tenho na vida pública cinco ou seis amigos pessoais feitos nessa convivência política, que depois se estendeu até, às vezes, às famílias. Olha, dou aqui nomes: [os políticos] Antônio Carlos Magalhães; Aloísio Alves; José Sarney; deve ter mais alguns, e vários mortos. Na minha posição hoje de [trabalhar] simplesmente de cronista e analista – porque eu não preciso, não sou obrigado a acompanhar, registrar os fatos de cada dia em Brasília –, não cobrem de mim críticas em cima dessas figuras e de outros, [como] Delfim Netto, que foram fontes que me ajudaram a viver, que me ajudaram no exercício profissional. E há uma relação de amizade que eu respeito. Se eu fosse repórter em Brasília, incumbido da cobertura do dia-a-dia da política, diante de certas situações eu pediria ao jornal ou licença ou demissão. Mas eu não vou agredir a minha amizade a pretexto de que a relação do jornalista com a fonte tem que ser distante. Não, isso é gente, nós somos gente. São relações que passam pela amizade, pela estima, pela confiança, por favores recíprocos. Agora, nunca recebi nenhum tipo de emprego, nunca viajei pelo Congresso, nunca recebi nenhum tipo de favor de político nenhum. E conservo absoluta imparcialidade na minha avaliação. Imparcialidade que é possível na natureza humana. E realmente nunca disse meu voto a ninguém, nem em casa. E olha, há pouco tempo, não faz muito tempo não, eu li uma notícia no jornal [relatando] que um deputado estadual do Rio estava metido numa safadeza assim... Eu disse: “Ah, esse camarada, eu tinha tão boa impressão dele, [...] eu votei nesse safado. Tinha me esquecido” [risos].

Milton Coelho da Graça: Villas, já que você tocou no assunto, você fez um manifesto contra o nível atual do Congresso Nacional, mas eu vou pedir que você retroceda ao passado e olhe outra vez para o Palácio Tiradentes, onde funciona a Assembléia Legislativa, onde – você descobriu agora – soube que tem um rapaz lá que está fazendo o que não deve. O panorama das assembléias legislativas estaduais não é muito pior do que do Congresso Nacional pela sua avaliação hoje?

Villas-Bôas Corrêa: É, porque são alunos, não é?, que recebem orientação dos mestres.

[...]: Os outros são professores.

Milton Coelho da Graça: Já temos uma escola funcionando.

Villas-Bôas Corrêa: Geralmente os alunos são um pouco mais inexperientes, mais açodados, menos vigilância, não é isso? Quer dizer, a bagunça brasiliense, essa farra de favores, vantagens, tudo isso bate nos estados e tende a [...], e enche muito mais as câmaras municipais. Então, estabeleceu-se realmente uma corrente de corrupção institucionalizada.

Milton Coelho da Graça: Isso tem correção possível? Qual é a correção possível?

Villas-Bôas Corrêa: Olha, nós tivemos 21 anos de ditadura aí em que se tinha a faca e queijo na mão, [mas] em vez de pelo menos cortar pela raiz alguns desses exageros, criaram senador biônico, que é a coisa mais...

Milton Coelho da Graça: Pacote de Abril, que facilitou isso...

Villas-Bôas Corrêa: É, o Pacote de Abril. Remexeram na composição da Câmara para inchar as representações daqueles territórios que viraram estados, para garantir a maioria, para poder cassar quem quisesse e eleger quem quisesse, governador... Quer dizer, o regime militar, que se declarava moralista, só utilizou o Congresso para abastardá-lo. Tratou o Congresso...

[...] : E a reforma política?

Helena Chagas: Não era para ter isso mesmo, uma grande reforma política agora para aproveitar a força do governo do PT e promover isso, com financiamento público de campanha? Embora seja uma coisa polêmica, mas para tentar acabar com essa corrupção...

Fritz Utzeri: Mas não é o PT que está cooptando todo mundo?

Helena Chagas: Exatamente. Isso que nos espanta.

Villas-Bôas Corrêa: Em primeiro lugar, é o seguinte: quando se fala em reforma política, eu leio e me dá um engulho, porque é uma mistificação. O sujeito está dando uma caiação no banheiro. Uma caiação na parede do banheiro porque sujaram ele demais. Sabe aquela parede de botequim que às vezes suja a parede, [daí se] faz uma a caiação no banheiro. Porque, realmente, para fazer uma reforma na casa, ninguém cuida. Alguém está disposto a analisar se não é um exagero ter 81 senadores, se dois por estado dá e sobra?

[...]: E mandato de oito anos.

Villas-Bôas Corrêa: Será que alguém, alguma vez, sentiu falta de senador? Eu nunca senti. [E] 513 deputados nessa distribuição que está aí é um assalto aos cofres da Viúva, assalto legalizado...

Helena Chagas: O voto proporcional do jeito que...

Villas-Bôas Corrêa: Poderia reduzir pela metade, funcionaria muito melhor. Uma casa média, menor, funciona muito melhor.

Fritz Utzeri: Mas em Brasília não tem limite de espaço, pode aumentar à vontade.

Villas-Bôas Corrêa: Eu não sei se essas assembléias legislativas são assim tão indispensáveis, se o Senado não pode substituir as assembléias legislativas com vantagens. E câmaras de vereadores, a medida moralizadora é muito simples...

[...] : Corta o salário.

Villas-Bôas Corrêa: O mandato do vereador é gratuito, é um serviço público que o cidadão presta ao município em que ele vive, em que ele representa. E isso eleva imediatamente o nível, porque expulsa todos esses espertalhões que estão aí para ganhar dinheiro.

Ubiratan Brasil: Villas, queria voltar um pouco no tema da relação com as fontes, que é uma coisa que eu tenho curiosidade. Como era sustentar um comentário político na época da repressão? Quer dizer, especificamente naquele regime militar sobre o qual você mesmo estava comentando comigo antes, de ter um censor dentro da redação fiscalizando as notícias. Como era sustentar um comentário político com aquela repressão toda?

Villas-Bôas Corrêa: Ubiratan, eu tenho um grande orgulho de ter sido diretor da sucursal do [jornal] O Estado de São Paulo durante esse período, porque foi um dos momentos gloriosos da vida centenária do Estadão [jornal Estado de S. Paulo]. Como diretor da sucursal, a recomendação que nós recebemos foi singela: “Ignorem a censura, a censura é conosco”. Ou por outra: “É com censor. Será feita em São Paulo, e não na sucursal”. Mas a gente acaba não seguindo um conselho desse ao pé da letra pelo seguinte: porque, de repente, você esbarra com uma informação importante, o que você quer passar. E sabe-se que aquilo, nu e cru, na base do lide e sublide, é tesouro na certo. Então, você se autocensura para poder tentar enganar a imprensa. E essa é uma prostituição que o sistema de censura impõe ao jornalista. O que você vai dar murro em faca de ponta... eu tive várias oportunidades assim, e vou lhe dar um exemplo mais flagrante. O Estado de S. Paulo, a sucursal, que tinha a importância e o tamanho de uma grande redação e chegou a ser uma redação excepcional, ela deu uma contribuição importante na defesa dos presos torturados. Cansamos de receber na redação do Estado famílias, parentes de pessoas presas, que pediam à gente: pelo amor de Deus, para encontrar uma maneira de registrar que fulano de tal tinha sido preso a tantas horas, em tal lugar, assim, assim. Só isso.

Milton Coelho da Graça: O Estado foi o único jornal que registrou a minha prisão, nenhum outro.

Villas-Bôas Corrêa: Por quê? Porque esse registro dificultava o desaparecimento, dificultava o sumiço, e isso nós fizemos com pleno apoio da direção. De modo que eu tenho o enorme orgulho de ter sido diretor da sucursal nesse período, foi um dos períodos gloriosos do Estado de S. Paulo. Eu me lembro quando uma vez o doutor Júlio Mesquita Neto foi ao Rio para assistir a uma solenidade na [...] comemorativa do centenário do Estado de S. Paulo, e fomos andando a pé pela rua; de repente ele me disse: “Villas, estou aqui com enorme emoção, quase em lágrimas, lembrando que meu pai não está vivo para assistir essa fase do Estado de S. Paulo; tenho certeza que o velho Júlio gostaria de estar comandando essa briga”. Foi uma fase gloriosa do Estado. E nessa época, é o tal negócio, quem não tinha fonte de confiança ficava na trivialidade. Sou gratíssimo ao Delfim, porque o Delfim, uma vez por semana, às terças-feiras, sete da manhã, sete e meia, ele me recebia, quase toda terça-feira, no gabinete dele no Ministério da Fazenda no Rio. E eu encontrava o gordo barbeado, cheiroso, como quem tivesse passado uma noite dormindo doze horas – e ele tinha saído de madrugada do restaurante, onde tinha tomado dois copos, duas garrafas de vinho. E o Delfim me dava informações dos bastidores do poder que me habilitavam a tentar tecer textos que refletissem isso. E assim o ACM [Antônio Carlos Magalhães], que foi uma fonte excepcional durante esse período, e outros, não é?

Fritz Utzeri: Villas, na leitura, a gente vê que os jornais de hoje estão muito colunizados. Você é um colunista há muito tempo; quando você começa a falar da sua profissão, você usa sempre o [termo] repórter político. E hoje, na verdade, a gente vê muitos colunistas. Você é o nosso decano, o mais brilhante de todos nós, mas a Helena, por exemplo, tem coluna, outras pessoas aqui dentre nós têm coluna hoje no jornal. O peso do colunismo cresceu muito em relação a uma coisa que, na minha impressão, está fazendo falta. O que foi feito do repórter na imprensa hoje?

Villas-Bôas Corrêa: O repórter foi engolido.

Fritz Utzeri: Demitido [risos].

Villas-Bôas Corrêa: Foi engolido pelas agências, pela gigolotagem na televisão, que pega matérias pela televisão, pela internet. E eu acho inacreditável, realmente não consigo entender – a não ser que essa fase de crise contém os orçamentos nas redações, não permite um vôo mais audacioso – que, com tanto jornalista hoje neste Brasil, fornadas e fornadas de jornalistas formados todos os anos pelas faculdades, que não têm o que fazer na profissão, não tem o que fazer... Então, cai nessa coisa de assessoria, de não sei o que etc. Que não precisariam mais do quê? Um computadorzinho, uma linha de telefone para você montar uma rede nacional de correspondência. Esse repórter poderia ganhar um [salário] fixo, para se manter, e o mais ele faria os trabalhos dele na medida em que ele demonstrasse competência com que ia conquistando espaço no jornal, pelas linhas publicadas no jornal. Com isso você evitaria que, de repente, a imprensa... manda-se lá um repórter especial fazer uma reportagem especial, que dava uma edição especial em que se descobre que destruíram uma [área equivalente ao território da] França na Amazônia em dez anos. Por quê? Porque não tem um repórter indo lá.

Norma Couri: Villas, mas há um fator aí que o próprio profissional, quando ele quer subir de status, ele se livra rapidinho do título repórter. Quer dizer, você foi um profissional que usou com orgulho o título de repórter político até agora.

Villas-Bôas Corrêa: Não acho, não.

Norma Couri: Eu acho que há isso nas redações, que o profissional quer ser editor, quer ser qualquer coisa.

Villas-Bôas Corrêa: O Marcito é praticamente um repórter...

Norma Couri: Você citou [só] um.

Fritz Utzeri: Eu vou fazer uma justiça ao Walter...

Walter Fontoura: Eu não fui injustiçado, mas aceito.

Fritz Utzeri: Mas eu fui repórter especial no JB na época em que ele era o editor do jornal, e meu salário no Jornal do Brasil era muito parecido com o do editor, porque às vezes o que o jornais fazem? Pegam um bom repórter e transformam num péssimo editor, e você perde isso daí, não há um estímulo.

Norma Couri: Mas ele sobe de vida, não é?

Fritz Utzeri: É, mas não há um estímulo; hoje praticamente não há repórter velho no jornal.

Norma Couri: Hoje é um pecado você...

Fritz Utzeri: Cabelo branco dentro do jornal é...

Norma Couri: É pecado você ter mais de 30 anos numa redação hoje no Brasil, por que isso?

Walter Fontoura: Porque a única maneira de você ganhar mais era virar chefe; virava chefe, deixava de ser repórter. Eu tentei realmente criar um nível de salário para os repórteres parecido com o dos editores, mas não fui bem-sucedido sempre, não.

Villas-Bôas Corrêa: Acho que eu tinha também um fator muito importante para amesquinhar a posição do repórter: foi a pauta. Essa escravização da pauta mata o grande repórter, não é isso?

Norma Couri: É.

Villas-Bôas Corrêa: Um repórter daquele tipo do Joel Silveira, que a meu ver foi o maior repórter do Brasil de todos os tempos, está aí velhinho etc, mas [ele escrevia um] texto admirável, reportagens sensacionais.

Norma Couri: É verdade.

Villas-Bôas Corrêa: E quantos aí, o [cronista] Rubem Braga foi repórter; o Castellinho [Carlos Castello Branco], em política etc e tal.

[...]: Você.

Walter Fontoura: Ninguém estava muito preso assim também à objetividade, havia um certo espaço para...

Villas-Bôas Corrêa: Depende, as reportagens do Joel eram reportagens de denúncia de...

Walter Fontoura: Sim, mas ele tinha muita liberdade.

Villas-Bôas Corrêa: O texto valorizava muito o negócio...

Milton Coelho da Graça: Temos o exemplo aqui da Helena, por exemplo, que assumiu interinamente uma coluna – queria só botar o dedo aí –, a Helena, por exemplo, durante alguns meses foi colunista do jornal, mas não deixou de ser repórter. A coluna dela é factual.

Helena Chagas: A função básica... A Teresa é uma repórter, acho que todos nós somos.

Villas-Bôas Corrêa: A Teresa Cruvinel faz reportagem.

Helena Chagas: Eu acho que o que define repórter não é se chamar repórter, é o gosto por correr atrás, não é?

[...] : Claro.

Helena Chagas: Gastar sola de sapato.

Villas-Bôas Corrêa: Eu não faço mais [reportagem] pela dificuldade de acesso...

Paulo Markun: Villas, você, durante muitos anos – e a gente conviveu lá, em duas oportunidades, períodos em que eu passei lá –, você foi o colunista político da TV Manchete. Você fazia um comentário político diário que demorava, se não me falha a memória, coisa entre dois minutos e três minutos no ar.

Villas-Bôas Corrêa: Um minuto e meio. Um minuto e meio, dois minutos.

Paulo Markun: Dois minutos? [E fazia] absolutamente de improviso, não é? Quer dizer, você sentava na frente da televisão, não tinha um pedaço de papel, não tinha uma anotação, não tinha ensaiado coisa nenhuma e falava uma coluna do Villas-Bôas, com começo, meio e fim, absolutamente correto, sem nenhuma imperfeição gramatical, muito menos de raciocínio ou de análise. Queria saber, em primeiro lugar, como é que você fazia isso? Como você produzia isso e onde você aprendeu a falar de improviso dessa maneira?

Villas-Bôas Corrêa: Bom, na televisão, eu tinha que fazer isso por uma razão muito simples: porque eu não sei ler. Nunca li um texto na televisão porque eu não sei ler em televisão; se botar um TelePromp Ter [dispositivo que expõe um texto para ser lido com facilidade por profissionais da televisão], eu vou me engasgar. Em segundo lugar, porque, como eu dependia muito da pauta do jornal para não entrar num assunto que não tivesse o suporte de alguma informação no jornal, isso era o ideal, [mas] às vezes não, às vezes eu tinha que levar alguma notícia nova, e aí o Eliakim Araújo, a Leila [Cordeiro], que foram os últimos âncoras do jornal, combinavam comigo como é que eles chamavam a matéria. E eu simplesmente dava o recado, contava uma historinha, e o [...] desenvolvia um pequeno raciocínio. E depois de um certo tempo, quase que o seu relógio começa a lhe dar uma noção muito exata de tempo. Eu realmente batia em um minuto, um minuto e meio, eu fechava o comentário, e raramente era preciso fazer um aviso porque eu estava demorando demais.

Norma Couri: Villas, eu tenho...

Helena Chagas: Você acompanhou várias campanhas presidenciais; então, mate uma curiosidade: no seu livro, você conta que todo mundo achava que o [candidato à Presidência, em 1945 e em 1950, pela UDN] Brigadeiro Eduardo Gomes ia ganhar, e a derrota dele foi uma surpresa para todos os jornais, para todo mundo [Eduardo Gomes foi derrotado por Gaspar Dutra, em 1945, e por Getúlio Vargas, em 1950]. Como era cobrir campanhas sem pesquisas nesse tempo, que não tinha pesquisa, e como você vê hoje o império das pesquisas, que praticamente condicionam o trabalho, a cobertura das campanhas? Você não acha também que há uma certa perda de qualidade dessa cobertura porque somos um pouco escravos das pesquisas?

Villas-Bôas Corrêa: Helena, como não podia deixar de ser, prestei durante muito tempo muita atenção nas pesquisas. Estou procurando prestar menos atenção nelas, e mais em interpretar. Naquele tempo você não tinha pesquisa realmente; a pesquisa começa a aparecer na eleição com Juscelino, não é isso? Então, um indicador mais enganoso eram os comícios. Por exemplo, na campanha do Eduardo Gomes, em 45, o comício do Brigadeiro aqui no Rio foi uma coisa fantástica. [No comício] do Dutra tinha 300 pessoas, uns gatos pingados ali. Era aquele general com defeito de dicção, sibilante, foi um vexame. Mas não foi o Dutra que ganhou a eleição; quem ganhou a eleição foi o Getúlio; foi ele quem ganhou eleição. Ele disse: “Vote em Dutra”. Porque o...

Walter Fontoura: PSD?

Villas-Bôas Corrêa: Não, aquele que arrancou a declaração do...

Walter Fontoura: Não me lembro.

Villas-Bôas Corrêa: Saiu no [jornal] Última Hora.

[...]: Samuel Wainer.

Villas-Bôas Corrêa: Não, não foi o Samuel Wainer. Foi aquele... foi deputado...

[...] : Doutel?

Villas-Bôas Corrêa: Não.

Milton Coelho da Graça: Foi o Antônio Jobim?

Villas-Bôas Corrêa: Não, eu já me lembro. E arrancou essa declaração. As pesquisas começam a vir... Agora, havia algumas pessoas que tinham uma enorme sensibilidade, políticos que, apesar da posição política, tinham uma enorme sensibilidade de avaliação das tendências. No Congresso, o Rui Santos era o deputado baiano da UDN, era um craque: ele olhava o plenário assim, cantava o resultado e raramente se enganava, raramente se enganava. E eu tive, também, alguma sensibilidade para esse tipo de campanha. Por exemplo: me lembro quando eu fui fazer, mais recentemente, uma matéria sobre a eleição do Tancredo a governador de Minas, eu fiz três dias de cobertura do candidato do PSD e três dias do Tancredo. E fiz a matéria do Tancredo dizendo que [ele] estava eleito. E ele me telefonou: “Villas, isso é uma leviandade sua, a eleição está dificílima aqui”. “Não, não, você ganhou, a gente sente que você ganhou, alguma coisa mostra que você ganhou”. Porque o outro era muito ruim, não é? Como era mesmo o nome dele?

Helena Chagas: Era do PDS, não é?

Villas-Bôas Corrêa: Do PSD ou do PDS.

Helena Chagas: Acho que era do PDS.

Villas-Bôas Corrêa: E depois chegavam as pesquisas. E como é que você vai discutir com uma pesquisa que se apresenta como ouvindo [as intenções de voto] tecnicamente?

Helena Chagas: Pior é que elas acertam, mas aí elas realimentam... o cara está na frente, e continua [na frente] porque a pesquisa diz que ele está.

Milton Coelho da Graça: Agora tem a tal da [...], que é feita minuto a minuto.

Villas-Bôas Corrêa: Fica muito difícil discutir com essas pesquisas.

[...]: Não precisa nem mais de eleição.

Helena Chagas: Sobra pouco espaço para o faro do repórter, não é?

Milton Coelho da Graça: O mais grave, Villas, é que a pesquisa agora afeta também o que o jornal vai dizer, porque antes de fazer a primeira página, você consulta a pesquisa para ver o que é que fez sucesso hoje, para saber qual é a manchete de amanhã. Quer dizer, até nisso o marketing funciona também, influencia a feitura do jornal.

Fritz Utzeri: Isso não é um caminho perigosíssimo para a impressa?

Villas-Bôas Corrêa: Não, eu...

Fritz Utzeri: Não, está aí a discussão: eu só dou o que o leitor quer saber.

Villas-Bôas Corrêa: Olha, na novela, a mocinha só dá para aquele para quem a maioria do povo quer que ela dê.

Fritz Utzeri: Na novela [risos]. Na novela, mas na imprensa tem que ser assim?

Helena Chagas: Na imprensa a gente tem que relativizar um pouco isso, não é?

Paulo Markun: Agora, como é que...

Villas-Bôas Corrêa: Olha, uma das transformações da imprensa é que a imprensa antiga era dirigida por jornalistas. Eram jornalistas que reuniam condições, formavam seu jornalzinho, o jornal crescia, muitos [jornais] morriam, e aí se formavam jornalistas. Quando eu comecei no Estado de S. Paulo, no meio da redação do Estado de S. Paulo, na rua Major Quedinho, prédio antigo do Jaraguá, havia quatro mesas daquelas grandes de frente uma para outra. Uma com o Júlio Mesquita, outra com o Carlão Mesquita, outra com o Ruy Mesquita e outra com o Cláudio Abramo, que era quem mais gritava e quem mais mandava. Quer dizer, essa turma aprendeu a fazer jornal fazendo jornal. E a se imbuir da tradição do jornal, a ter noção da responsabilidade, da direção, a ter orgulho da empresa. Eu uma vez fui cobrir uma reunião de presidentes em Punta del Este [no Uruguai]; fomos eu e Carlos Alberto Tenório, querido amigo e jornalista falecido há pouquíssimo tempo, excelente profissional. Eu, Carlos Alberto Tenório e o Ruy Mesquita. E nós trabalhamos de igual para igual; a gente dividia os assuntos de manhã cedo, cada um ia à vida e, no fim de tarde se reunia e acertava o texto, criticava: “Essa sua matéria não está correta, minha informação é exata”. Ali não tinha diretor e repórter.

Milton Coelho da Graça: Nem dono.

Villas-Bôas Corrêa: Não, o dono aparecia de noite na hora de pagar o jantar.

Paulo Markun: Felizmente pagando [risos].

[...]: Porque, se bobear, ele cobra, não é?

Villas-Bôas Corrêa: Hoje são empresários, gente que não tem nenhum vínculo com o jornal, que não tem nada a ver com a profissão. Alguns, acho que nem lêem jornal.

Paulo Markun: Nem gostam de jornal.

Villas-Bôas Corrêa: Eu desconfio que nem lêem coisa nenhuma, nem lêem coisa nenhuma. Como você quer que num jornal desse os critérios éticos sejam seguidos de maneira religiosa? É um oba-oba, é um oba-oba.

Paulo Markun: Nós vamos fazer mais um intervalo e voltamos daqui a instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o jornalista político Villas-Bôas Corrêa. Infelizmente, este programa não permite a participação do telespectador, porque está sendo gravado. Villas, você disse que queria completar o raciocínio.

Villas-Bôas Corrêa: Queria só terminar isso aí, um arrematezinho: quando nós começamos o jornal, eu, o Milton, Walter Fontoura, você ainda não pegou, mas seu pai com certeza.

[...]: O [...] Guanabara.

Villas-Bôas Corrêa: Tinha o Fritz etc.

[...]: Evaristo da Veiga [risos].

Villas-Bôas Corrêa: Olha, sou capaz de apostar que, para todos nós, o gabinete do diretor do jornal era dentro da redação, com porta aberta ou fechada para redação.

[...]: Tinha no máximo, um aquário, ali.

Milton Coelho da Graça: Eu fui editor-chefe durante sete anos; o doutor Roberto ligava para mim todo dia para saber o que ia sair no jornal.

Villas-Bôas Corrêa: A coisa mais fácil era encontrar um diretor do jornal dentro da redação. No Estado de S. Paulo, o velho Júlio ficava no gabinete dele de porta aberta; quando fechava, é porque estava conspirando [risos]. Mas fora disso... E ele circulava pela redação, interessado nas informações. E assim no Globo, com Roberto Marinho, e assim no Correio da Manhã, com o Paulo Bittencourt, e assim em todos os jornais. Hoje, quem quiser se esconder de um diretor de jornal, fica na redação, porque lá ele não vai, nem de visita.

Norma Couri: Eu queria perguntar uma coisa sobre o Rio de Janeiro. O Rio chegou a ter 17 jornais, não é? Chegou a ter...

Villas-Bôas Corrêa: Quando eu comecei no Rio, eram 17 jornais, mas era matutino e vespertino. Havia uma divisão fundamental que eu acho que grande parte do público não imagina mais, que era o vespertino e o matutino. Matutino era o jornal que se lia em casa – saía cedíssimo – e se lia no bonde indo para o trabalho, porque a grande parte da população do Rio de Janeiro se deslocava de bonde, que era um veículo adorável para essa cidade, aberto, fresco, barato, tranqüilo, andava nos trilhos. Então, você lia com tranqüilidade, era o matutino. Quando voltava do trabalho para casa, você comprava o vespertino. Em algumas famílias, como na família em que eu fui criado, a família do meu avô materno – que eu fiquei órfão com oito anos de idade, vim morar no Rio de Janeiro e tal, de onde eu não saí nunca mais –, havia uma combinação tácita, quer dizer, cada um trazia um jornal diferente para depois estar com todos os jornais em casa.

Paulo Markun: Mas se trouxer todos o jornais hoje, o sujeito vai ler a mesma coisa.

Villas-Bôas Corrêa: É, também tem isso. Em primeiro lugar, não tem como variar, é como assistir jornal hoje, noticiário de televisão.

Paulo Markun: Exatamente.

Villas-Bôas Corrêa: Pode assistir um, não precisa assistir outro. Eu digo isso porque como eu não moro em Brasília, para não ser surpreendido, de repente, com a notícia inesperada, e nem sempre você pode saber das coisas instantaneamente, eu assisto religiosamente os dois jornais. Mas assistir à Record e depois à Globo é um repeteco.

Norma Couri: É a mesma coisa. Bom, essa coisa de pegar o bonde, [o Rio de Janeiro] é uma cidade maravilhosa, deliciosa, que a gente lembra e tal. O Rio hoje é o Rio do desastre do [governo] Garotinho [1999-2002], é uma cidade sitiada, carro blindado, enfim, aquele drama, favela com narcotráfico. Eu também subi em favela várias vezes, nunca aconteceu nada, enfim. O medo. Você acha que o governo federal deveria tomar conta do Rio, tomar conta da segurança do Rio de Janeiro? Você é favorável a isso?

Villas-Bôas Corrêa: Eu acho um precedente muito perigoso. Começa que, a meu ver, não tem solução a curto prazo. Ninguém faz milagre hoje no Rio de Janeiro. Porque não é um problema só do Rio. Isso é um problema [que] tem várias causas, uma delas foi essa migração fantástica, a maior do século, da população rural para as cidades, para áreas urbanas, que mais do que inverteu a pirâmide: eram 75 a 25, agora está 83, 84 para a população urbana. Digo pela [minha] segunda cidade: sou cidadão honorário de Nova Friburgo. Quando cheguei a Friburgo, há 28 anos, a população da cidade eram 48 mil habitantes, quarenta e poucos mil habitantes. Hoje está com 220 mil, não cabe na cidade. Então, essa gente está pendurada nos morros, de vez em quando despenca um, está sujando o rio, está destruindo as reservas florestais, é isso. E isso acontece...

Norma Couri: E a violência?

Villas-Bôas Corrêa: Isso acontece em todo estado do Rio. Só há no estado do Rio hoje preservadas aquelas cidades muito pobres do norte fluminense, que são cidades mortas, onde ninguém vai lá porque não tem o que fazer lá.

Fritz Utzeri: Mas no Rio tem a geografia também que é democrática, ou seja, mistura o morro... é como se aqui em São Paulo, vamos dizer, no meio de Cerqueira César ou dos Jardins você tivesse um favelão colocado.

Norma Couri: E uma praia ao longo para todo público.

Fritz Utzeri: Uma praia amenizaria a situação. Eu acho que é o que ameniza a situação no Rio, o visual e a praia. Aqui [em São Paulo] seria um terror.

Villas-Bôas Corrêa: Agora, a mudança básica no morro foram os traficantes. Porque no tempo em que eu subia muito o morro, fazendo [...] comandos parlamentares, dando notícias com deputados e jornalistas, a gente chegava, ia na birosca para ser reconhecido, e daqui a pouco chegava lá gingando o bicheiro, que era o pajé do bairro, e a gente ia subindo o morro com a caravana...

Fritz Utzeri: Quando tinha um ponto de jogo do bicho na sua rua, você dava graças a Deus, porque era um sossego.

Villas-Bôas Corrêa: Hoje não, hoje é o narcotráfico que marca hora: tem uma moça que vai lá em casa, que trabalha lá em casa de vez em quando, que mora nessa Cidade de Deus, ela tem um passe para entrar em casa.

[...]: Um salvo-conduto.

Villas-Bôas Corrêa: Um salvo-conduto. E com hora marcada, se passar da hora ela paga pedágio.

[...]: E tem toque de recolher.

Paulo Markun: Mudando de assunto, Villas...

Villas-Bôas Corrêa: E você acha que isso se conserta passando para área federal?

Norma Couri: Você não vê solução para isso?

Villas-Bôas Corrêa: A curto prazo, não, pelo que se tem mostrado, realmente não.

Paulo Markun: Mudando de assunto, Villas, você acha que... recentemente, aconteceu um episódio, no jornal The New York Times, envolvendo um repórter que inventou uma história, enganou os editores, foi demitido e já virou celebridade, porque já estava prometendo escrever sua biografia e ganhar muito dinheiro com isso. Mas, enfim, abalou a credibilidade do jornal para quem a credibilidade era supostamente o maior bem possível. Você acha que nossa profissão de jornalista merece, tem credibilidade, merece credibilidade, preserva a credibilidade?

Villas-Bôas Corrêa: Se a gente acreditar em pesquisa, nós não estamos mal situados nas pesquisas no índice credibilidade, não é? Até porque os jornais estão investindo muito pouco hoje em denúncias desse tipo, dão grande espaço para as denúncias que arrebentam por aí, cobrem etc e tal, mas o jornalismo investigativo mesmo, hoje já não tem mais o espaço que tinha há pouquíssimo tempo atrás. Essa é uma das...

Helena Chagas: Pois é, de certa forma perdermos um pouco essa... talvez tenha sido um excesso de denuncismo; me parece que o público se cansou de ler sobre denúncias de corrupção, você não acha isso?

Villas-Bôas Corrêa: Acho.

[...]: Ficou vulgar, não é?

Fritz Utzeri: Até porque não tem uma apuração atrás...

Helena Chagas: Qual é o caminho para nós agora...

Fritz Utzeri: Em geral, a sensação que dá é um bandido denunciando o outro, usando o jornal como...

Helena Chagas: É uma descrença geral.

Fritz Utzeri: Esse que é o problema.

Helena Chagas: Descrença no papel da imprensa como...

Walter Fontoura: Mas no mundo inteiro a leitura de jornais está caindo. Há pesquisas que vêm mostrando isso, e aqui no Brasil também. E a que você atribui isso? Acha que é só a internet, esses novos meios? Um garoto de oito anos hoje não vai ler jornal nunca.

Helena Chagas: A culpa é nossa também, de não termos encontrado um caminho ainda.

Villas-Bôas Corrêa: O cinema não matou o teatro, mas atingiu muito o teatro, que lentamente foi se recuperando, foi conquistando um público diferenciado etc e tal, não é isso? A televisão não matou os jornais, mas evidentemente está criando uma geração, que já está aí, que se informa pela televisão e agora muito pela internet.

Walter Fontoura: Vou dizer uma coisa horrível, é precário, na televisão é freqüente você ouvir assim: “Assalto com morte num shopping da cidade”. Ora, que shopping, se você tem um parente que foi àquele shopping ou se você mora perto de um shopping, você quer saber qual é o shopping. A imprensa não está mais dando, porque [acha que] isso é fazer merchandising. Se disser que é [por exemplo] no shopping Eldorado [é merchandising]. Também nos jornais diz-se assim: “Fulano matou mulher em Niterói” [risos]. Como em Niterói? Niterói é uma cidade imensa, já viu isso?

Milton Coelho da Graça: Mas está havendo uma crise da cultura letrada, não é?

[sobreposição de vozes]

Milton Coelho da Graça: A cultura visual está predominando sobre a cultura letrada, aí eu pergunto a você, você do alto dos seus 55 [anos de carreira], qual é o fim disso, para onde vamos com esse declínio da leitura, de um instrumento da formação cultural?

Villas-Bôas Corrêa: Eu não sei qual é a sua história, mas a minha geração, meu testemunho pessoal, eu comecei a ler, sempre tive uma grande paixão pela leitura muito cedo, desde aquelas histórias em quadrinhos, [a revista] Tico Tico etc. Depois, o grupo juvenil, até que passei aos livros, livros de aventura, [como o romance do escritor inglês Daniel Defoe] Robson Crusoé e tal; A ilha do tesouro, do [escritor Robert Louis] Stevenson, até que... Só quero registrar o marco: chamou-se Monteiro Lobato. Eu acho que quem não viveu essa época não tem idéia da ansiedade, da agitação que a gente ficava com a notícia de que ia sair um novo livro do Monteiro Lobato.

Paulo Markun: Era muito mais que o Harry Potter [personagem principal de uma série de romances fantásticos de enorme sucesso escritos pela britânica Joanne K. Rowling, traduzidos para 64 línguas, dando origem a filmes de sucesso].

Villas-Bôas Corrêa: Como?

Fritz Utzeri: Mas o Harry Potter é um fenômeno moderno nisso, não será uma falta de atenção dos escritores a esse segmento? Porque o Harry Potter está aí.

Villas-Bôas Corrêa: Mas quando esse [novo livro de Monteiro Lobato] saía, eu pegava o livro e sumia, e lia duas vezes de pancada. Era preciso me arrancar de lá na hora do almoço. E eu criei o hábito da leitura que me acompanha até hoje, assim, porque era o meio habitual da minha geração. Hoje o sujeito liga a televisão... Eu tenho parentes, conhecidos, que chegam em casa e ligam a televisão. Você sabe que eles estão em casa porque a televisão está ligada. E eu não consigo me escravizar à televisão, não gosto de novela, raramente vejo um pedaço de novela.

Milton Coelho da Graça: Mas qual a sua visão do nosso futuro cultural? Numa sociedade em que cada vez mais um maior número de pessoas se prende à televisão e deixa o jornal, vai deixando o livro também, enfim, vai lendo cada vez menos e sua cultura vai sendo formada apenas por meios visuais.

Villas-Bôas Corrêa: Eu acho que a grande interrogação hoje é aonde vai a internet como elemento de informação. Porque a internet chegou na imprensa, basicamente nos Estados Unidos, como uma máquina de escrever que dispensava o gráfico, dispensava aquela ditadura dos gráficos sobre a imprensa, porque o gráfico parava o jornal. Hoje com o computador não pára mais, porque não tem mais gráfico. Depois, muito lentamente, os recursos infinitos da internet começaram a ser utilizados como pesquisa. E eu acho que é por aí que a coisa vai.

Paulo Markun: Sim, hoje tem o exemplo do que se chama blog, que é uma espécie de diário pessoal, literário, aos milhares. O Brasil tem em torno de 10% do mercado mundial disso aí, quer dizer, pessoas que escrevem as suas histórias e suas memórias...

Walter Fontoura: É surpreendente como estão escrevendo bem; tem muita gente escrevendo muito bem.

Fritz Utzeri: Mas acho que vai alterar até a democracia. Você vai poder votar diretamente na internet um dia.

Walter Fontoura: É mais barato.

Villas-Bôas Corrêa: Eu acho que a internet ajuda a vender o livro, porque enquanto a internet não resolver qual o tipo de tela que seja realmente confortável para a leitura a longo prazo... Você consegue ler Guerra e paz [longo romance do escritor russo Leon Tolstói (1828-1910)] na internet?

Walter Fontoura: Não.

[...]: Mas vem aí o papel digital.

Villas-Bôas Corrêa: [Se for ler um romance desses na internet] você vai acabar cego, inclusive, não é? Antes de começar a página você já está cego [risos]. Mas isso aí acho que é um problema, não tem ainda solução comercial, mas vai se chegar lá.

Helena Chagas: Mas qual a solução para nós que fazemos o jornal de papel ali, que temos que manter esse leitor, que temos que conquistar [leitores]? O que nós vamos fazer? Como vamos fazer?

Villas-Bôas Corrêa: Ah, eu já estou dando adeus, mas você que não está, você vai ter que se adaptar aos novos tempos e certamente, com suas qualificações, você se adapta com a mesma facilidade com que se adaptou ao computador; você vai se adaptar a outra fórmula que vai vir aí.

Helena Chagas: Análise, talvez, você acha que o caminho é fazer análise?

Villas-Bôas Corrêa: A imprensa propriamente não vai acabar, não sei como ela vai sobreviver exatamente, mas não vai acabar.

Norma Couri: Villas, os comandos parlamentares não são uma coisa cara de se fazer; você pega o repórter, pega...

Villas-Bôas Corrêa: Hoje é impossível, minha filha.

Norma Couri: Mas por quê? Porque está em Brasília?

Villas-Bôas Corrêa: Você acha que uma carteira de parlamentar hoje faz o que eu fiz? Entrar lá na Ilha Grande, na penitenciária [...], às três da madrugada com três parlamentares? Quando o diretor chegou, nós já estávamos na metade da visita. No dia seguinte, de manhã cedo, ele já estava demitido. Se [hoje] você puxar a carteira de parlamentar para entrar na penitenciária, [você] vai preso, vai preso [risos].

[...]: Com certa razão em alguns casos [risos].

José Roberto Alencar: Villas, por que se diz que a eleição do [jornalista e político] Chagas Freitas inviabilizou os comandos parlamentares?

Villas-Bôas Corrêa: Mas aí não há nenhuma restrição a isso, simplesmente pelo seguinte: eu fazia o comando parlamentar com absoluta independência. O Chagas me garantiu absoluta independência. Era mais do [jornal] O Dia do que de A Notícia, não é isso? Foi na fundação de O Dia. Eu escolhi o assunto, os convidados não sabiam para onde a gente ia, era a condição sine qua non, marcava toda quarta-feira com o fotógrafo, o Aquiles Camacho, que era um grande fotógrafo, e a gente ia, fazia nossa reportagem.

Paulo Markun: Seria conveniente explicar, Villas, porque eu acho que o telespectador ainda não captou o que era o comando parlamentar.

Villas-Bôas Corrêa: Comando parlamentar era o seguinte: quando se fundou O Dia, um jornal popular, o diretor de O Dia, que era um secretário... o Santa Cruz Lima, que era um gênio do jornal popular, disse: “Olha, Villas, esse negócio da fofoca de política e tal, isso não interessa ao meu jornal, vê se você bola aí uma coisa”. Eu bolei, reaproveitei uma idéia que o Heráclito Salles já tinha desenvolvido no Correio da Manhã, mas aí com outro estilo, era coisa mais da área cultural, destaca a Academia de Letras, Biblioteca Nacional, essas coisas. Uma coisa que fosse isso, mas fosse popular também. Então, eu bolei isso de pegar dois ou três deputados, um senador, a média era mais ou menos essa, que toda quarta-feira de manhã se encontravam na porta do jornal. Lá tinha uma caminhonete do jornal, um fotógrafo especial para isso, era contratado para isso; eu cavava o assunto e a gente saía e ia às favelas... Depois a gente começou, a partir de um certo tempo, a gente ia atrás das denúncias, porque as denúncias choviam. Eu fiz um flagrante de uma rebelião em Bangu. Eu estava chegando à redação mais cedo quando recebi o telefonema de um sujeito, com uma voz abafada, dizendo: “Olha aqui, senhor Villas-Bôas, eu queria lhe dizer que nós vamos fazer aqui uma rebelião, aqui em Bangu, por causa [...] de comida na hora do jantar”. “Que horas é o jantar?”. “Tantas horas”. “Então você segura aí, porque eu já vou para aí”. Corri na Câmara, peguei lá o Breno da Silveira, que estava disponível, não me lembro mais quem foi.

[...]: O Lobo Coelho.

Villas-Bôas Corrêa: Acho que foi o Lobo... e tocamos para lá. Fomos muito bem recebidos. Quando entramos no refeitório, que eles nos viram, começou aquela bagunça, os caras começaram a jogar pratos, subir na mesa, pá, pá, pá, e nós sozinhos lá dentro. A rebelião tinha sido feita para nós [risos]. No dia seguinte a gente saiu em manchete. Isso hoje é impossível, não é?

Fritz Utzeri: Villas, eu queria lhe fazer uma pergunta política. Uma das críticas que se faz, de quem está criticando o Lula, é pressa, não pode ter pressa e tal, vocês são apressados. Você acredita numa segunda fase do governo Lula? Ou seja, de fato, que o Lula vá mudar a política econômica? Você acha que isso ainda pode acontecer?

Villas-Bôas Corrêa: Isso é inevitável que aconteça. É absolutamente inevitável que aconteça, não é? Não posso garantir que isso vá começar ainda este ano, acho que vai. Até porque a cobrança hoje é do outro lado, que está ressentido, que está frustrado, é muito forte. E porque o Lula precisa fazer as pazes com a biografia dele. Ele precisa se reencontrar.

Wagner Fontoura: Acho que ele está gostando de ser neoliberal.

Villas-Bôas Corrêa: Não está, não. Se ele não estivesse nessa jogada, ele estaria numa crise terrível.

Fritz Utzeri: Mas dá para fazer isso com o Meirelles [Henrique Meirelles], por exemplo? Dá para fazer isso com Meirelles ou gente assim? Quer dizer, nenhum demérito, mas é o pessoal que está nitidamente no contexto contrário ao da biografia do Lula ou do ideário do PT.

Villas-Bôas Corrêa: Quando se cobrava do Lula absoluta inexperiência administrativa, tinha sempre essa desculpa: “Ah, que bobagem, mas veja...”. O Lula achava que conhecia o Brasil mais do que ninguém, porque vivia correndo o Brasil. Se isso fosse um argumento definitivo, o presidente da República teria que ser chofer de caminhão, porque ninguém conhece mais o Brasil do que um motorista de caminhão. É evidente que ele está pagando um preço altíssimo pela inexperiência. Essa falta no relacionamento com a imprensa, que nós já colocamos aqui, na bobagem inacreditável dele transformar o ministério dele num asilo de petistas desafortunados nas urnas.

Norma Couri: Excesso de ministérios, não é?

Villas-Bôas Corrêa: E tem lá quatro cômodos só para gaúchos, porque gaúcho adora sair confortável na desgraça: “chê, vai lá, chê, toma chimarrão de noite”. Ora, o Collor reduziu esses ministérios, se não me engano, para 12 pastas; ninguém sentiu falta das outras. Entre as qualidades e defeitos do Collor, nunca ninguém cobrou o fato dele ter enxugado ministérios demais; chegou a ter ministério vazio em Brasília. O Lula está com 35, 36 [ministérios], ninguém sabe quantos são, todo dia cria um. E agora vai ter ministro para coordenar ministro. Isso, ele simplesmente não administra este país com esse ministério. É inadministrável, como aquela primeira reunião demonstrou: para fazer uma reunião ministerial, ele teve que armar um circo na Granja do Torto [uma das residências oficiais do presidente da República], que era uma coisa imensa, cada ministro falou cinco minutos, cinco minutos, e durou treze horas, treze horas!

Milton Coelho da Graça: Mas, Villas, você não acha que o Lula pode estar caindo na armadilha do Fernando Henrique Cardoso de, no primeiro ano, começar a pensar no segundo mandato?

Villas-Bôas Corrêa: Eu acho que burro o Lula não é.

Milton Coelho da Graça: Pois é, mas o Fernando Henrique também não é.

Villas-Bôas Corrêa: Mas não tinha essa experiência. O Fernando Henrique não tinha reeleição garantida. E, a meu ver, o grande erro dele – eu escrevi isso dezenas de vezes, muito provocado pelo Sérgio Motta [ministro das Comunicações no governo Fernando Henrique Cardoso], que defendia que o Lula, [corrigindo-se] que o Fernando Henrique, com a possibilidade do segundo mandato, teria outro prestígio para tocar a reforma, e aí parou. Vocês se lembram que as reformas vinham de seis meses, vinham no rolo compressor... fez tudo.

Milton Coelho da Graça: Mas o José Dirceu [ministro-chefe da Casa Civil no primeiro mandato do governo Lula] não é muito parecido com o Sérgio Motta? Pensando mais ou menos nesse mesmo...

Villas-Bôas Corrêa: Não, eu não acho, não.

Milton Coelho da Graça: Não? Queria ouvir a sua opinião.

Villas-Bôas Corrêa: Não. Agora, se o Lula quiser acabar com este governo dele e inviabilizar a reeleição, é começar a falar em reeleição agora.

Milton Coelho da Graça: Já está falando.

Villas-Bôas Corrêa: Se o Lula permitir entrar nesse jogo, começar a vazar do Palácio do Planalto articulações sucessórias, conversa com deputado e não sei o quê, montagem de esquema, ele está perdido.

Paulo Markun: Qual é sua avaliação...

Villas-Bôas Corrêa: Porque, evidentemente, todo mundo que podia ir com ele vai ficar contra, vai armar uma frente contra ele.

Paulo Markun: Qual sua avaliação sobre o ministro José Dirceu?

Villas-Bôas Corrêa: Como os quadros do Lula são muito amplos, mas muito inexperientes, esse José Dirceu, que parece que tem uma grande gana de poder, é um que está ocupando o seu espaço, porque desses 35 ministérios tem vários vazios, tem ministros de quem você nunca ouviu falar. Esse ministro da Pesca [refere-se a José Fritsch], por exemplo, nunca pescou u m bagre. Não se tem notícia de que ele tenha pescado uma piaba, tem? Agora, o José Dirceu é um que onde está vazio ele entra, onde está cheio ele também entra, abre espaço com os cotovelos. É um sujeito que tem gana de poder...

Norma Couri: E o vice-presidente?, que fala, esse fala.

Villas-Bôas Corrêa: Quem?

Norma Couri: O vice-presidente, o que você acha?

Villas-Bôas Corrêa: O vice-presidente... Quando eu comecei, em 46, não tinha vice. O vice-presidente [era quem] presidia o Senado, presidia o Congresso, presidia o Senado e o Congresso. Era o presidente do Congresso basicamente. Então, ele tinha uma função, era muito mais um parlamentar do que um homem do executivo. Essa fórmula é a melhor? Não sei. Sei que a pior é ter vice, porque o que um vice vai fazer? Ou entra num mutismo de uma pessoa extremamente disciplinada, como o Marco Maciel [que foi vice-presidente no governo Fernando Henrique Cardoso], e que ao mesmo tempo consegue ter uma atuação visível de bastidores, ou ele é...

Norma Couri: Ou é o [José] Alencar [vice-presidente no governo Lula].

Villas-Bôas Corrêa: Ou ele começa a quebrar a louça porque fica impaciente. Até porque deve ser insuportável o sujeito ficar trancado naquele Jaburu [residência oficial do vice-presidente do Brasil], que é o mais soturno palácio de Brasília.

Milton Coelho da Graça: Até para dizer: “Eu existo, eu existo, eu existo” [risos].

Villas-Bôas Corrêa: [O Jaburu] é feio como o diabo [...]. Depois [o vice-presidente diz que] ganhou, considera que também se elegeu com votos pra burro, que ajudou o presidente de República, [mas depois] se tranca do Jaburu, naquela coisa triste... Até o nome [do palácio] não é de se animar. Esse sujeito não agüenta muito tempo, ele vai conspirar, porque só o que o vice-presidente pode fazer é isso. Não há nenhuma necessidade de vice-presidente da República.

Milton Coelho da Graça: Você falou em conspirar? Você usou o verbo correto?

Villas-Bôas Corrêa: Acho que o vice-presidente da República é muito instigado para conspirar; se houver, na hora em que pintar uma conspiração, o vice-presidente da República sai na frente.

Milton Coelho da Graça: Ah bom, mas ainda não pintou.

Villas-Bôas Corrêa: É, porque é realmente um cargo, a meu ver, não só inútil como contraproducente. Contraproducente, para quê?

José Roberto Alencar: Mas esse vice, ao versar sobre os juros, ele foi catártico com a maioria dos petistas, não é?

Norma Couri: Ele contrariou...

Villas-Bôas Corrêa: Mas ele podia ser senador e fazer essa declaração como senador, [como] presidente do Senado, líder do PT, agora vice-presidente? Não dá. Porque ou o vice-presidente é um eco do presidente da República ou é o contraditório do presidente da República, não tem outra...

Paulo Markun: Esse é um eco que está ecoando antes, não é? [risos]. Villas...

Villas-Bôas Corrêa: Diga.

Paulo Markun: Nosso tempo está acabando, queria fazer uma última pergunta. O que é que você diria sobre a profissão de jornalista para um sujeito que está começando, ou está pretendendo segui-la? Eu sei que você não a abandonou nesses 55 anos, nunca fez outra coisa, mas o que você diria, o que é a essência da profissão?

Villas-Bôas Corrêa: Primeiro lugar, eu tinha que tentar saber se esse inquiridor está querendo meu palpite para ajudá-lo na sua indecisão. Se ele está indeciso, é melhor desistir. Porque esse negócio de jornalismo, é evidente, eu não nasci jornalista, nem nasci com essa profissão. Mas eu entrei em jornal por causa de uma cesariana...

Paulo Markun: [A história dos] 13 contos... [Villas-Bôas formou-se em direito e era funcionário público do Serviço de Alimentação da Previdência Social. Seu segundo filho, imprevistamente, nasceu de cesariana, que custou 13 contos de réis. Sem dinheiro para pagar o hospital, ele teve a idéia de arranjar um emprego na imprensa, com o apoio do sogro, que era jornalista e lhe ajudou a conseguir uma ocupação no jornal A Notícia].

Villas-Bôas Corrêa: Os 13 contos... para ganhar dinheiro. Mas quando eu entrei num jornal, já tinha uma experiência universitária muito primária, de jornal da faculdade, jornal que a gente tinha feito em Araguari, quando estava de férias etc. Era uma experiência amadorística e eventual. Quando eu entrei no jornal pela primeira vez, eu disse: “Daqui eu não saio mais”. E não saí. Quer dizer, hoje com as dificuldades que o jornalismo está oferecendo, cada vez se estreita mais a boca de entrada da profissão, não é isso? [...] Eu acho que só realmente essa vocação irresistível [para o jornalismo] justifica o sujeito de ir para lá, e se ele tiver essa vocação ele vai encontrar seu espaço. Pode não chegar ao...

Paulo Markun: Ao topo da carreira.

Villas-Bôas Corrêa: topo da carreira, mas ele vai encontrar seu espaço. Agora, que hoje é uma profissão precária, é. Quantos jornalistas qualificados têm sido postos aí no olho da rua? Está encontrando dificuldade de achar colocação, tem que arranjar outros bicos em outros lugares, está fazendo freelancer...

[...]: Até patrão já está sendo demitido [risos].

Villas-Bôas Corrêa: Está catando as sobras aí, com dificuldades. Mas...

Paulo Markun: Você não se arrepende?

Villas-Bôas Corrêa: para quem tem um veneno na veia, não tem outra jeito, não é? Ou bota esse veneno para funcionar ou vai morrer envenenado.

Paulo Markun: Villas-Bôas, muito obrigado pela sua entrevista. Obrigado a nossos entrevistadores e a você que está em casa. Voltaremos na próxima segunda-feira com mais uma Roda Viva. Uma ótima semana e até segunda-feira.

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