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[Programa ao vivo, permitindo a participação dos telespectadores]
Paulo Markun: Boa noite, ele está no centro da discussão sobre a biotecnologia no Brasil e é o responsável pelo controle das pesquisas farmacêuticas na Amazônia. O Roda Viva entrevista esta noite, Wanderley Messias da Costa, diretor geral da Bioamazônia. Geógrafo, especializado em geografia política, meio ambiente e Amazônia, Wanderley Messias já coordenou vários estudos na área ambiental. É o idealizador do Probem, iniciativa que reúne cientistas, empresas, governo federal e governos da região Norte, em um programa para desenvolver o uso sustentável da biodiversidade da Amazônia. A Bioamazônia, dirigido por Wanderley Messias, é a entidade criada pelo governo federal, para implantar o Probem e encaminhar de forma controlada, as pesquisas farmacêuticas na região.
[Comentarista]: Primeiro foi o látex: da floresta para o mundo, ele deu vida ao Ciclo da Borracha, uma época de ouro para a Amazônia. Mais tarde foi a vez da madeira, que alimentou um novo e rico mercado, uma época de preocupação para a Amazônia. Mas o mundo olha hoje para a região com uma cobiça que ultrapassa as fronteiras do látex ou do mogno, por baixo do imenso tapete verde do norte brasileiro, há um universo de folhas, frutos, raízes, sementes e uma infinidade de seres vivos, que excitam cada vez mais a curiosidade científica e também a busca de novos negócios na área da biotecnologia. 20% das espécies vegetais do planeta estariam na Amazônia, e se conhece o potencial de apenas 1% delas. Parte desse conhecimento foi passado por índios e caboclos; os remédios naturais, popularizados em feiras e mercados, já conquistaram 40% das prateleiras das farmácias. E a Amazônia se tornou alvo importante para a pesquisa de novos produtos. Mas a corrida biotecnológica nessa direção chama a atenção sobre quem ganha e quem perde nesse "cassino verde". Pelos cálculos do Ibama, o Brasil é um perdedor evidente: 99% dos produtos florestais brasileiros saem clandestinamente do país. É a falta de leis específicas, facilitando a biopirataria. Cientistas estrangeiros já foram premiados por pesquisas a partir de plantas pirateadas do Brasil. Laboratórios multinacionais vêm se beneficiando da coleta clandestina e criando a suspeita de que, ao dominarem princípios ativos, possam patentear as suas descobertas, sem ter que pagar royalties. No horizonte amazônico, fica um desafio: encontrar a parceria ideal para o desenvolvimento sustentável da região, onde estejam mesmo protegidos os interesses das florestas, das comunidades locais e do próprio país.
Paulo Markun: Para entrevistar o geógrafo Wanderley Messias da Costa, nós convidamos o jornalista Edson Luiz, coordenador da editoria de Geral, do jornal O Estado de S. Paulo em Brasília; o advogado José Bandeira de Mello, presidente executivo da Abfarma, Associação Brasileira das Indústrias Farmacêuticas; o biólogo Carlos Alfredo Joly, professor titular do Departamento de Botânica do Instituto de Biologia da Unicamp e coordenador do Programa Biota da Fapesp, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo; a jornalista Regina Scharf, repórter de meio ambiente do jornal Gazeta Mercantil; Thomas Traumann, repórter especial do jornal Folha de S.Paulo; o cientista Walter Colli, professor do Departamento de Bioquímica da USP e presidente da Academia de Ciências de São Paulo, e o jornalista Roberto Smeraldi, coordenador do Programa Amazônia, de Amigos da Terra. Boa noite, professor Wanderley.
Wanderley Messias da Costa: Boa noite.
Paulo Markun: Nós temos aí uma tarefa difícil que é discutir um assunto tão complicado quanto esse, em uma hora e meia de programa, tentando dimensionar o grau de conhecimento que as pessoas têm sobre essa questão, e a complexidade de um tema tão polêmico. E eu queria começar fazendo uma comparação grosseira, porque a televisão é feita disso, de comparações grosseiras, de aproximações, muitas vezes incorretas. De alguma forma, pode-se raciocinar que esse campo da biodiversidade vai estar para o século XXI como o petróleo esteve, talvez, para o século XX, em termos de importância, de peso desse recurso. E se eu entendi bem o que é a Bioamazônia – e queria que o senhor explicasse isso – é mais ou menos como se a gente tivesse criado uma coisa que não é nem uma empresa, nem uma parte do governo, porque é uma organização social, uma conjugação de interesses, de universidades, do governo, e de empresas, para tirar petróleo, sem ter uma lei que diga de quem é o petróleo. Na verdade, se eu também não estou enganado, não existe uma lei que defina a quem pertence, quem pode, digamos, estabelecer a propriedade sobre qualquer tipo de recurso que se extraia da biodiversidade, estou errado?
Wanderley Messias da Costa: Em primeiro lugar, eu acho que a comparação é boa. De fato, aproximadamente cem anos atrás, a descoberta dos primeiros mananciais de petróleo significou, para alguns países que estavam em processo de industrialização, uma descoberta importante, porque estavam diante de um combustível que constituiria a base da matriz energética, do que é hoje o mundo industrial; toda a civilização urbana especialmente, industrial, está sentada sobre petróleo. Mas foram cem anos de trabalho em cima de aplicações, de investimentos, de ciência e de tecnologia. E hoje praticamente se conhece tudo de petróleo, toda a sua potencialidade. Cem anos depois, estamos diante de uma boa promessa; de fato, a biodiversidade, especialmente aquela encontrada nos países mega diversos, isto é, países que possuem formações florestais complexas, é uma grande promessa. Existe uma ciência aplicada a esse conhecimento que avança rapidamente, existe uma tecnologia que se expressa em métodos e equipamentos também, cuja sofisticação cresce a cada dia. Existem pesquisadores no mundo inteiro dedicados a isso. E eu acho que nós estamos de fato, diante de um alvorecer de um ramo de ciências, a ciência da vida aplicada ao desenvolvimento de produtos para a geração de riquezas, em diferentes povos, países e lugares, envolvendo empresas, pesquisadores e governos. Estamos diante de um novo horizonte. Agora, de fato, esse é um assunto novo. Para se ter uma idéia, a grande regulamentação dessa questão do uso dos recursos genéticos para finalidades comerciais se deu por ocasião da Rio 92 [como foi chamada a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento realizada em 1992 na cidade do Rio de Janeiro], portanto oito anos atrás, quando a maioria dos países do mundo ali presentes naquela conferência assinaram a chamada Convenção sobre Diversidade Biológica. Essa é a grande regra, universal, que para se tornar válida teve que ser internalizada nos vários países e se tornou, foi aprovada, no caso do Brasil, pelo Senado e se tornou alguma coisa com força de lei. Mas não é de fato uma lei que regulamente o uso e todos os procedimentos para o aproveitamento da nossa biodiversidade, especialmente da Amazônia de que mais se fala, e que é a mais fantástica de fato dentre todos os nossos ecossistemas, pelo menos em termos de grandiosidade. Durante esse tempo todo, vários grupos realmente reivindicaram, do governo e do Congresso, que houvesse uma lei regulamentando essa matéria. Há projeto de lei tramitando no Congresso, mas agora recentemente, no dia 30 de junho, o governo editou uma Medida Provisória 5052 que, de fato, tem força de lei e é a primeira regulamentação dessa questão, que é muito importante para o país.
Walter Colli: Wanderley, em 1997, só para recuperar um pouco a história disso tudo, um grupo reuniu-se em Boston em uma reunião que foi articulada, do lado dos cientistas, pelo professor Tetsuo Yamane, do Instituto Butantã, e do lado do governo, pela Secretaria da Amazônia, onde você trabalhava. Nessa reunião havia cientistas brasileiros e cientistas de outros países, especialistas em seleção de substâncias ativas de micro-organismos de plantas. E de lá saiu a idéia do Probem, que depois na resposta você explica o que é. E eu saí de lá, porque eu estive nessa reunião, com a nítida impressão de que se havia decidido construir um laboratório na região amazônica, provavelmente em Manaus, que teria grande interação com os cientistas brasileiros em geral, tendo como base no Sudeste, o Instituto Butantã. Havia até projetos no Instituto Butantã, que estariam sendo enviados para o que agora se conhece por Bioamazônia. Há um que foi enviado em 20 de novembro de 1998. Esse laboratório na Amazônia teria grande interação com a população local, serviria como local de treinamento de jovens, daria cursos etc. E certamente ganharia know how à medida que se fizesse pesquisa associada com os centros mais avançados do Brasil. Só para dar um exemplo, um extrato de uma planta, ou de um microorganismo seria enviado para o [João Batista] Calixto [professor e pesquisador do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina], em Santa Catarina, para o [Guilherme Suarez] Kurtz [livre-docente de Farmacologia, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio], no Rio de Janeiro, enfim, farmacólogos que determinariam se tem ou não uma substância ativa e químicos orgânicos. Poderiam perfeitamente estabelecer as moléculas, aquela coisa toda, as estruturas. O que foi que mudou? Eu estava com essa impressão, depois eu perdi um pouco o passo, porque se o contrato com a Novartis, que é suíça, excluiria, por exemplo, grupos brasileiros, que eventualmente também quisessem explorar a biodiversidade para benefício do Brasil. Se o Instituto Butantã, por exemplo, poderia fazer um projeto. Eu vi na minha mesa, quando eu fui diretor do Instituto, vários desses projetos para serem enviados para vocês, para encaminharem à Bioamazônia. Se algum cientista brasileiro quiser coletar micro-organismos na Amazônia, ele pode, ele vai poder? Eu estou muito preocupado em que se aproveite essa oportunidade para firmar a ciência no Brasil e principalmente na região Norte.
Wanderley Messias da Costa: Bem, professor Colli, eu quero deixar claro ao senhor e aos telespectadores e a todos os que participaram dessa idéia, que sem dúvida é inovadora, do Probem. O Probem é Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para uso sustentável da biodiversidade da Amazônia. É um programa que surgiu justamente e especialmente em três workshops que foram realizados, um em janeiro de 1997, em Brasília, na Academia de Tênis que congregou, aproximadamente, cinquenta pesquisadores do Brasil e dez convidados estrangeiros dessa área de química de produtos naturais, e depois outro workshop do qual o senhor participou nos Estados Unidos, já retribuindo a visita desses pesquisadores aqui, em que a idéia foi amadurecida. De fato, o Instituto Butantã tem uma participação importante no nascimento desse programa. Eu nunca me esqueço de que, por volta de outubro de 1996, fui procurado no Departamento de Geografia, em um dos dias que eu vinha a São Paulo para dar aula, e por um grupo de pesquisadores, entre eles, pesquisadores do Butantã, que me propuseram a idéia de um projeto com essas características. Isto é, que pudéssemos oferecer ao governo, através da Secretaria da Amazônia e do Ministério do Meio Ambiente, um projeto que tivesse no centro dele, um centro de pesquisas multidisciplinar, envolvendo químicos, bioquímicos, biólogos, farmacologistas etc, voltado para a bioprospecção, isto é, para a coleta de materiais da biodiversidade da Amazônia. E com a aplicação de pesquisa pesada em cima, desenvolvimento de tecnologias, transferências de tecnologia e criação de um parque de bioindústrias, especialmente na cidade de Manaus, que se ofereceu para abrigar esse centro. E que em torno desse centro gravitassem grupos de pesquisas e laboratórios, mas com um papel relevante para o Instituto Butantã que tem evidentemente uma experiência enorme, especialmente nessa área de biotecnologia voltada para a produção de vacinas. Eu quero lhe dizer, e a todos aqueles que participaram dessa idéia, que é interessante e continua sendo interessante, que aquele ideal permanece. O centro de biotecnologia está em construção, deverá estar concluído no ano que vem, temos identificado 55 grupos de pesquisas no país em condições de receber extratos vegetais, de micro-organismos, de toxinas animais, para desenvolver os seus projetos. Só que tem um problema aí no meio: fazer girar essa roda do centro ao meio, mais 55 grupos de pesquisas, sem ter um fluxo permanente de recursos que sustente a pesquisa básica, o desenvolvimento de tecnologias e de produtos é muito difícil. Por isso foi criado a Bioamazônia, para fazer parcerias com o setor privado, captar dinheiro no setor privado também, além dos recursos do Tesouro, e poder mover essa enorme roda. A minha resposta a sua questão sobre o Butantã: a Bioamazônia está aberta a receber, sim, projetos do Instituto Butantã, inclusive estudar possibilidades de acoplar esse projeto do Butantã a esse projeto maior, ora objeto do convênio com a Novartis.
Paulo Markun: Professor Wanderley, talvez fosse conveniente, antes de passar para os outros colegas aqui, explicar para o público, o que é esse acordo com a Novartis, porque nós estamos falando como se todo mundo soubesse dele, e na verdade, as pessoas não sabem. O que é exatamente? E em que pé está isso?
Wanderley Messias da Costa: Bem a...
[...]: E que explicasse também, Paulo, por que a Novartis...
Paulo Markun: Isso exatamente, lógico, que é um laboratório suíço, não é?
Wanderley Messias da Costa: Isso. Então a Bioamazônia é uma organização social, como já foi dito, é uma entidade de direito privado, qualificada pelo governo federal, para colaborar na implementação desse programa federal. Então é uma forma de terceirização de um programa federal em mãos de uma organização criada para esse fim. Ela tem um contrato de gestão com o governo, com várias metas para cumprir dentro desse programa, e recebe um repasse de recursos do governo para desempenhar esse trabalho. De outro lado, a Novartis é uma das dez maiores empresas farmacêuticas, é uma empresa líder nesse setor, é resultado da fusão de uma grande empresa – a Sandoz – e outra grande empresa – a Ciba-Geigy – que resultou, então, na Novartis. Ela deve ser a sexta ou a sétima empresa, fatura algo próximo a 32 bilhões de dólares por ano, aplica 2,8 bilhões de dólares em pesquisas de desenvolvimento em todo o mundo, no seu trabalho de desenvolvimento de drogas. Bem, nós, ao longo de 1998, ainda estruturando o Probem, visitamos várias capitais do mundo, entre elas, Zurique na Suíça. E nessas capitais todas, apresentávamos o Probem a empresários, representantes de ONGs e de setores de governo, e ali conhecemos representantes da Novartis na Suíça. Fomos procurados em janeiro de 1999 pelo presidente mundial da empresa, que se mostrou disposto a iniciar negociações para um acordo desse tipo. O que é o acordo? É um projeto de pesquisas, que prevê uma doação de dois milhões de francos suíços para a Bioamazônia, para que ela use livremente nas suas atividades, [para a] formação de recursos humanos etc. Mais de um milhão de francos suíços para aquisição de equipamentos, e mais um milhão de francos suíços, por ano, durante três anos, que totaliza aproximadamente quatro milhões de dólares pelo câmbio médio, dólar franco suíço, e que se destina a reunir um grupo de pesquisadores brasileiros, que vai fazer atividades de coleta na Amazônia, de micro-organismos, isto é, fungos e bactérias; fazer o isolamento, a caracterização desses micro-organismos, produzir extratos deles, fazer análises químicas e bioquímicas deles. E a partir daí, partir para o desenvolvimento de produtos com base.
Paulo Markun: Em troca, a Novartis recebe o quê? Alguma coisa ela leva?
Wanderley Messias da Costa: Em troca, a Novartis recebe os perfis da análise química, na verdade, cromatográfica, de cada uma dessas espécies, estão previstas, coletas de até dez mil espécies por ano, em um total máximo de trinta mil, em trinta anos, quer dizer, um teto. Ela recebe os perfis, isto é, as análises químicas de cada uma dessas espécies; depois, se ela tiver interesse em alguma delas, ela recebe os extratos dessas espécies, e se de fato, uma dessas espécies mostrar potencial para desenvolver uma droga, então nós remeteremos para os laboratórios da empresa a cepa, isto é, a família do microorganismo, para análises posteriores. Então, basicamente, depois nós podemos completar, é esse o projeto.
Paulo Markun: Mas vamos entender melhor, porque eu acho que esse é um dos pontos centrais do programa, quer dizer, é o seguinte, vamos tentar achar uma comparação.
Edson Luiz: Grosseira.
Paulo Markun: Grosseira, de preferência
Edson Luiz: Mais simples também, não é?
Paulo Markun: É como se... Vamos dizer, vamos traduzir para pedra, certo? Que tenha uma coisa mais fácil das pessoas entenderem. É como se os brasileiros fossem lá e procurassem uma porção de pedras, dez mil, trinta mil pedras, e olhassem essa pedra, vissem o que é que ela significa, porque não são pedras, são fungos e bactérias, é muito mais complicado do que pedra, e mandasse tudo para a Novartis. Se ela tiver interesse, ela pode pegar e tirar daquela pedra, o brilhante que tiver lá? Só que ela vai pagar por isso, não é verdade?
Wanderley Messias da Costa: Mais ou menos isso.
Paulo Markun: E nenhuma outra pessoa, nenhuma outra empresa pode usar aquele tipo de pedra tirado da Amazônia, só a Novartis?
Wanderley Messias da Costa: Não, não é bem isso. Na verdade, o interesse da empresa é poder fazer a bioprospecção, isto é, a procura de algum produto que tenha potencial, para desenvolvimento de algum produto, com base nessa seleção de dez mil espécies de fungos e bactérias. Com essas dez mil espécies, depois de isoladas, caracterizadas aqui no Brasil, por uma equipe de brasileiros, vai se fazer um estágio de análises um pouco mais sofisticadas, através de equipamentos sofisticados, que vai mostrar quais são as características físico-químicas e biológicas dessas espécies, desses fungos e bactérias. Essas análises serão enviadas por internet, ou por um portador, pelo líder do projeto, serão enviadas para a empresa, a empresa vai olhar esses perfis e vai dizer: “Esta aqui interessa, isso aqui nós já temos, isso aqui não interessa”. Por quê? Porque é uma empresa que tem seiscentos contratos, seiscentos projetos de pesquisa no mundo inteiro, inclusive com países como o Gabão, Panamá, China, Venezuela, México etc. Ou seja, não é o primeiro país onde ela está pesquisando fungos e bactérias. Então a proporção de espécies de interesse para a empresa é muito pequena. Em nenhuma hipótese, isso foi inclusive muito mal divulgado por algumas pessoas, inclusive alguns órgãos de imprensa, a idéia de que a Bioamazônia estaria remetendo para a Suíça, dez mil espécies de micro-organismos, em nenhum momento o contrato prevê isso.
Regina Scharf: Agora, doutor Wanderley, o que é que fica dos royalties de um medicamento desenvolvido a partir de uma planta amazônica? O que ficaria para o Brasil, seja para os pesquisadores, para as instituições de pesquisa, ou para a comunidade de onde surgiu o conhecimento de que aquela espécie teria um princípio ativo? O que é que ficaria no país?
Wanderley Messias da Costa: Em primeiro lugar, pela Convenção sobre Diversidade Biológica, todo o material genético pertence, por princípio da convenção, ao país. Isso é uma questão de soberania. Nenhum país abre mão da propriedade, do direito de manter, sob qualquer hipótese, a propriedade sobre seres vivos. Então todos os fungos, todas as cepas de fungos e bactérias pertencem ao povo brasileiro, à nação brasileira. Agora a lei está tipificando isso, tentando fazer, através inclusive, de emenda constitucional, com que isso pertença à União, não só à nação de um modo vago, mas à União. Mas de fato, isso está mantido no acordo, isto é: todas as cepas de fungos e bactérias serão depositadas em uma coleção, em nome da Bioamazônia, para fins de patenteamento.
Regina Scharf: Mas a venda dos remédios, o medicamento vai ter uma venda mundial de tantos milhões, alguma porcentagem disso fica no país, qual porcentagem? Foi definido?
Wanderley Messias da Costa: O passo seguinte, depois da pesquisa feita sobre esses fungos e bactérias, se identificado algum potencial para desenvolvimento de alguma droga, então nós vamos entrar em uma fase de desenvolvimento da droga, que aliás, todos nós sabemos, é a fase mais cara da pesquisa. O desenvolvimento de drogas baseadas ou não em produtos naturais pode envolver duzentos, trezentos, até quatrocentos milhões de dólares, por isso as empresas nunca trabalham com um mercado potencial mundial de droga hoje, abaixo de quinhentos milhões de dólares, porque não vale a pena, do ponto de vista do quanto elas investem hoje, de percentual do seu faturamento. Ora, desenvolvido o produto, o que acontece? A cepa está registrada em nome da Bioamazônia, pelo contrato está previsto que a Bioamazônia tem direito de patenteamento, portanto, de tudo o que derivar dessas cepas. Por outro lado, o contrato prevê que toda a invenção, isto é, toda a agregação de tecnologia sobre esse produto pertence à Novartis. Ora, é um casamento, então o resultado dessa parceria qual é? É que nós vamos juntos patentear esses produtos. Porque ela detém a invenção, nós detemos a biodiversidade; patenteamos juntos, e a Bioamazônia, então, cede à Novartis direito exclusivo de comercialização desse produto, pelo qual receberá pela sua patente 1% dos royalties do faturamento mundial.
Thomas Traumann: Professor, deixe eu voltar um pouquinho, antes de se começar a coleta, tem que se começar essa questão do acordo, porque o fato é: o senhor está aqui, nós todos estamos aqui discutindo hoje a Bioamazônia, porque o governo federal considera que esse acordo que foi firmado entre a Bioamazônia e a Novartis é ilegal. Isso foi declarado várias vezes pela secretária da Amazônia, doutora Mary Alegrete. Também, tanto que eles fizeram uma comissão, que está hoje analisando esse acordo, esse contrato, e que deve terminar os seus trabalhos no final do mês. Antes de começar essa coleta, qual é a questão da legalidade desse acordo fechado entre a Bioamazônia e a Novartis?
Edson Luiz: Só para complementar, existe alguma parte do acordo que fala em sigilo, ou em alguma coisa secreta? Existe alguma coisa dentro do acordo que fala sobre isso? E se existe, qual seria esse?
Wanderley Messias da Costa: Eu vou responder primeiro a questão dele que é rápida. De fato, não haveria possibilidade de isso não estar previsto; um contrato desse tipo envolve sigilo por uma razão simples. Ao assegurar o sigilo dos resultados, pelo menos dos resultados estratégicos das pesquisas, porque está prevista, evidentemente, a aprendizagem de tecnologias, nas quais ainda não estamos treinados, e algumas delas são muito sofisticadas. Evidentemente isso deverá ser amplamente divulgado, difundido no âmbito da ciência brasileira. Mas resultados estratégicos de pesquisas que têm potencial para desenvolvimento de produto com valor comercial, esses realmente serão cercados com o maior sigilo, isso o contrato exige. Porque senão não tem como investir dinheiro e esforço em um trabalho que depois pode ser pirateado por concorrência etc, por vários meios. Hoje em dia a espionagem industrial é um perigo nessa área, por quê? Porque nós pretendemos é patentear. E para patentear, nós temos que, até o momento da patente, tomar cuidado com essa questão do sigilo, realmente.
Carlos Alfredo Joly: Pegando o gancho na pergunta dele, da discussão dessa comissão, está prevista a participação pública de se mandar sugestões para a melhoria desse acordo, isso foi colocado. Entretanto há uma dificuldade enorme para a gente acessar o texto completo do acordo. Temos acesso a um texto parcial do acordo e não a todos os anexos dele. Então eu gostaria de saber em que endereço é possível encontrar na internet, o texto completo do acordo para que possamos mandar [sugestões] e para quem devemos mandar essas sugestões de melhoria do acordo.
Wanderley Messias da Costa: Bem, de fato nós não colocamos o acordo na internet, porque um acordo assinado por representantes das duas organizações, nós temos que consultar a empresa nesse caso, e nós temos nos limitado a enviar cópias desse acordo, quando solicitado, por exemplo, pelo poder público, que solicitou, pelo Ministério Público que foi solicitado. Mas eu, nesse caso, não vejo problema. Há uma comissão que está trabalhando, está recebendo sugestões, eu me comprometo a consultar o coordenador da comissão, que é o professor Márcio [de] Miranda [Santos], e eu não veria problema de colocar esse acordo à disposição dos interessados, para fazerem sugestões.
Paulo Markun: Mas é ilegal ou não é?
Wanderley Messias da Costa: Agora respondendo à questão do Thomas. A questão dele é central e permite que a gente esclareça aqui uma questão fundamental. De fato, dias após a assinatura do acordo, que ocorreu no dia 29 de maio, houve uma série de reações ao acordo, de várias pessoas, inclusive uma delas do nosso próprio conselho de administração. Eu pessoalmente, como diretor, respeito a posição dessa pessoa, acho que ela tinha o direito de questionar, acho que haveria meios melhores de fazer esse questionamento, por exemplo, interna corporis [questão interna de uma entidade, órgão ou empresa]. Eu entendo que uma organização que pretende desenvolver atividades tão estratégicas para o país e para a própria organização deveria ter um código de ética. De fato, nós não temos ainda, mas ocorreram vazamentos, houve uma denúncia de um conselheiro nosso. Isso correu como rastilho de pólvora, envolveu algumas áreas do governo, dentre elas, mais sensivelmente, o Ministério do Meio Ambiente, por razões óbvias. O Ministério do Meio Ambiente é um locus de sensibilidade a essa questão e todos nós sabemos disso. Por conta de uma pressão muito grande, de opinião pública, da imprensa e alguns setores, como eu disse, da comunidade científica, o ministro resolveu soltar uma nota, se eu não me engano, no dia dois, quinta-feira, ou algo por aí, ou quatro, por aí, alguns dias depois, considerando o acordo ilegal. Aquilo caiu como uma bomba na Bioamazônia, na opinião pública. Nós tínhamos pareceres de juristas, assegurando que a Bioamazônia, como entidade de direito privado, qualificada pelo governo federal, através de decreto presidencial, que tinha um contrato de gestão, que tem um estatuto, que lhe assegura o direito de fazer bioprospecção e parcerias com a sociedade civil. Nós entendíamos que não haveria por que criar a Bioamazônia se não fosse para fazer parceria com a iniciativa privada, para carrear recursos para um programa do governo, que obviamente não funciona, sem parcerias desse tipo. Nós tínhamos absoluta segurança, mas o ministro resolveu soltar a nota, e nós então procuramos respeitar a posição do ministro. É uma posição jurídica, nós tínhamos a nossa posição jurídica e fomos conversar com o ministro para expor o nosso ponto de vista.
Thomas Traumann: Mas não é uma coisa fabulosa o fato de que a Bioamazônia foi criada pelo governo para fazer acordos e depois, quando a Bioamazônia faz um acordo, o governo diz: “Nós não sabíamos disso, esse acordo é ilegal”. Não está acontecendo aí uma falta de comunicação, no mínimo?
Edson Luiz: É uma contradição, eu concordo com o Thomas porque tem uma contradição assim...
Thomas Traumann: Há alguma coisa esquisita nessa história.
Edson Luiz: Alguma coisa está meio assim... Ou o governo está sabendo das coisas muito atrasado, ou vocês não comunicaram nada ao governo. O que houve na realidade? Esse acordo foi assinado no dia 20...
Roberto Smeraldi: Talvez Edson, seja melhor antes, tentar explicar o que é a Bioamazônia em relação ao governo, porque até agora não se falou que o governo tem um programa que é o Probem, e acho que o pessoal que está acompanhando aqui...
Paulo Markun: Desculpe, foi falado isso.
Roberto Smeraldi: ... tem uma certa dificuldade. O Probem é um programa de governo que está no plano plurianual que tem 48 milhões de reais. E a Bioamazônia foi criada como um instrumento, se eu não estou errado, no âmbito do Probem. Agora a Bioamazônia está trabalhando com um contrato de gestão para o Ministério do Meio Ambiente, que colocou recurso para tanto. Então a questão aqui é: o Ministério diz, mas eu quero primeiro saber, quero primeiro ser informado e quero também, como membro do conselho, poder opinar em relação ao que a Bioamazônia faz? Então primeiro, nós teríamos que explicar para o pessoal, qual é, vamos dizer, o objeto desse conflito. Ou seja, o governo quer conhecer, opinar sobre o que a Bioamazônia faz. A Bioamazônia diz: “Não, eu faço contratos independentemente do conhecimento do governo”. Como é que funciona esse negócio?
Wanderley Messias da Costa: Em primeiro lugar, a Bioamazônia, de fato, foi criada com esse espírito, para implementar, de um modo flexível, um programa que é do governo. Em segundo lugar, ela foi qualificada pelo presidente da República, que é o chefe de governo. Em terceiro lugar, o contrato de gestão é assinado por três ministros: do Meio Ambiente, da Fazenda e do Planejamento. Em quarto lugar, cabe ao Ministério do Meio Ambiente supervisionar a execução do contrato de gestão com a Bioamazônia, isto é, a execução daquelas 26 metas pactuadas conosco, e não supervisionar a Bioamazônia. A lei que cria as organizações sociais, em nenhum momento, atribui a nenhum órgão de governo, a supervisão da entidade, mas a supervisão da execução do contrato de gestão, isto é, onde você tem dinheiro público para terceirizar a atividade da entidade, isso é muito claro.
Roberto Smeraldi: Mas eles dizem que o Conselho de Administração tem que ser consultado.
Wanderley Messias da Costa: Então, veja! Para aí...
Roberto Smeraldi: Para realizar contratos.
Wanderley Messias da Costa: Exatamente, a legalidade ou não...
Roberto Smeraldi: O contrato envolve obrigações entre as partes.
Wanderley Messias da Costa: Exatamente, a legalidade ou não do acordo está restrita apenas a duas avaliações. Primeiro: se ele foi feito de acordo com as leis vigentes no país. Nós procuramos seguir a Convenção da Biodiversidade, toda a legislação vigente no país. Em segundo lugar: a legalidade do acordo ou a sua moralidade, a sua justeza depende de se ele fere interesses, mesmo que não legalmente previstos, interesses envolvendo a soberania nacional, coisas do gênero, coisas que nós procuramos seguir à risca, conforme eu já disse. Em terceiro lugar: a legalidade ou a moralidade do acordo depende de como foi feito o ritual de negociação desse acordo e a sua assinatura. E aí o que vale é o Estatuto da Bioamazônia, que assegura à diretoria da Bioamazônia o poder para celebrar acordos, convênios e contratos com o setor privado. E é isso que nós fizemos. Mas exige também que o Conselho de Administração aprove.
Roberto Smeraldi: [falando ao mesmo tempo que Wanderley] Mas depois da aprovação do Conselho. Aí que é a questão. A grande questão é o conselho.
Wanderley Messias da Costa: Por isso é que consta no acordo uma cláusula que obriga a diretoria a apresentar o acordo posteriormente ao conselho...
Roberto Smeraldi: E por que não foi feito?
Wanderley Messias da Costa: Foi feito, no dia 26 de junho, o conselho apreciou o acordo, inclusive o considerou uma boa iniciativa.
Roberto Smeraldi: Mas depois de assinado?
Wanderley Messias da Costa: Sim, mas é assim, você não apresenta ao conselho uma minuta; você apresenta ao conselho um acordo, que só passa a ter legalidade, efetividade, após a aprovação do conselho. É assim que funciona.
Paulo Markun: Professor, Ieda Novaes Ilha, pergunta o seguinte: “De acordo com o que tenho conhecimento, o projeto de lei para a regulamentação ao acesso a recursos genéticos foi proposto pelo Projeto de Lei do Senado número 3065, de 1995, e até hoje, cinco anos depois, a lei ainda não existe – existe a medida provisória. Por que tanta demora se o interesse é do próprio país? Tem gente do governo se beneficiando da falta dessa lei?”.
Wanderley Messias da Costa: Não creio. Houve uma audiência pública logo após a assinatura desse acordo, convocada pela Comissão da Amazônia e Desenvolvimento Regional, para a qual fomos convidados, eu, a doutora Mary Alegrete, o presidente da Novartis no Brasil [Andreas Strakos] e o professor Spartaco [Astolfi Filho, coordenador do Conselho Técnico-Científico da Bioamazônia] para um depoimento e para explicar as dúvidas a respeito desse acordo. E ali, então, foi muito questionada essa questão. Como que a Bioamazônia fez esse acordo se não tem a lei? Bom, há muitos outros acordos. Aliás, houve uma boa matéria em um jornal de circulação nacional, uma semana depois, mostrando que o acordo da Bioamazônia com a Novartis não era o único do gênero, havia muitos outros, inclusive envolvendo órgãos do próprio governo. E ali, eu mesmo, em um certo momento, apesar de estar ali como depoente, eu fiz uma pergunta aos deputados. Por que os projetos de lei não seguiram um ritmo de urgência dentro das duas casas? Porque não havia só um projeto de lei, havia...
Paulo Markun: São cinco.
Wanderley Messias da Costa: ... o da senadora Marina Silva, no Senado, o do Executivo, na Câmara, de um outro deputado na Câmara, enfim, quatro ou cinco projetos tramitando, por quê? O que eles próprios responderam? Não havia e não há ainda hoje grande consenso, nem mesmo dentro do governo federal, a respeito de alguns aspectos, não apenas operacionais importantes dessa questão. Como não havia e não há consenso no Congresso Nacional e no interior da comunidade científica dos militantes da área de meio ambiente. Isso é uma matéria muito nova no país e no mundo, envolve muitas dúvidas, envolve muitos interesses e muito desconhecimento. Essa é a razão pela qual essa lei não foi aprovada. Agora eu não sei se motivada ou não por essa celeuma, essa polêmica toda em torno do nosso acordo, mas de fato o governo resolveu colocar um ponto final nessa história e baixar uma medida provisória, que eu particularmente considero um excelente documento. Óbvio de que precisaria ser aperfeiçoado, e ele está à disposição do Congresso para ser discutido, mas temos, de fato, agora, uma norma que regulamente minimamente essa questão.
José Bandeira de Mello: Professor, eu queria trazer a questão um pouco para o lado mais prático. Quero lembrar que o Brasil perdeu o primeiro bonde da história na síntese química, no que diz respeito à produção de medicamentos no Brasil. E perdeu não porque as empresas estrangeiras fossem mais poderosas ou porque a indústria farmacêutica foi desnacionalizada. Perdeu porque o Brasil não tinha uma indústria química à altura, não tinha ainda uma massa crítica, logo após a Segunda Grande Guerra, quando surgiu a quimioterapia experimental. E devemos lembrar que na Europa a Basf [empresa do segmento químico, presente em vários países, além de produtos químicos, produz plásticos, produtos para agricultura e química fina, óleo cru e gás natural] existia antes da Segunda Guerra, a Hertz existia antes da Segunda Guerra, a Bayer existia antes da Segunda Guerra; nos Estados Unidos, a Monsanto já existia, a Dow Chemical já existia, a DuPont já existia, e nós não tínhamos nada. Então, na verdade, nós perdemos a síntese química, ficamos defasados, porque o arsenal terapêutico farmacêutico até a Segunda Grande Guerra era igual na Europa, nos Estados Unidos, como no Brasil. Usavam-se ungüentos, extratos, formulações químicas rudimentares, mas era praticamente igual. E a nossa defasagem se iniciou realmente com a síntese química. Nós estamos agora no limiar de uma mudança do patamar tecnológico, pelo menos na indústria farmacêutica e certamente na indústria de alimentos e de cosméticos. Estamos saindo, ou pelo menos, estamos no final da era da síntese química, para entrar na era da biotecnologia e da fitoterapia. Então me parece da maior importância saber exatamente o que a Bioamazônia pode oferecer no sentido de que nós possamos encontrar princípios ativos, derivados dos micro-organismos, ou das plantas medicinais brasileiras, para que não fiquemos novamente na situação de país periférico, em termos de produção químico-farmacêutica, ou no caso, de insumos farmacêuticos ou farmacogênicos, como se diz. A Bioamazônia teria condições de parcerias com empresas nacionais ou imaginou algum modelo tripartite, por exemplo, onde se teria a participação da empresa nacional, da empresa multinacional e da própria Bioamazônia? Pergunto isso porque nós sabemos que o medicamento não é uma commodity. Quando ele precisa ser comercializado, quem decide se o medicamento vai ser vendido ou não, portanto se ele vai ter uma grande aceitação no mercado é o médico. E quem não tem atuação internacional não conseguirá, evidentemente, fazer com que esse produto seja aceito internacionalmente, porque não tem atuação internacional. Nós não temos nenhuma farmacêutica brasileira multinacional, atuando em outros mercados, que não exclusivamente no mercado brasileiro. Evidentemente que não se pode excluir a empresa multinacional quando se quer internacionalizar um produto, quando se quer a comercialização em nível mundial desse produto. Mas por outro lado, há que se considerar também a empresa brasileira, não se pode esquecer a empresa brasileira, que possivelmente poderia ficar, então, com o mercado interno, numa parceria com a multinacional e a Bioamazônia. Existem condições hoje de a Bioamazônia oferecer, ou seja, ela já estudou a possibilidade de um tipo de parceria que pudesse explorar esses aspectos?
Wanderley Messias da Costa: Sem dúvida, eu acho que a sua colocação é boa, eu registraria o seguinte. De cinco anos para cá, o Brasil se equipou com três iniciativas fundamentais para dar a partida e tentar recuperar em parte esse terreno perdido ao qual o senhor se referiu. Em primeiro lugar, uma lei de patentes. Em todas as viagens internacionais que fizemos até agora, falando do Probem, em todos os países a nossa lei é considerada uma lei avançada. Há uma controvérsia em relação àquele aspecto, se se pode ou não patentear seres vivos, genes, etc. Eu acho que essa é uma discussão que ainda vai rolar algum tempo, mas de modo geral é uma lei avançada e de acordo com a boa prática internacional. Em segundo lugar, faltava uma iniciativa que juntasse esforços de governo, do empresariado e da comunidade científica em torno de um programa integrado. E o Probem é esse programa. Em terceiro lugar, faltava uma regra mínima que regulamentasse o acesso, o uso e a repartição de benefícios envolvendo a biodiversidade. Bom, não falta mais nada, agora eu acho que... .
José Bandeira de Mello: Falta o empresário nacional se interessar agora.
Wanderley Messias da Costa: Eu acho que falta um mecanismo que possibilite a pequena, média e mesmo a grande empresa nacional a participar de uma corrida, que como eu disse, envolve muitas vezes 10, 15, 20% do faturamento global de uma multinacional. Uma multinacional que fatura – uma delas, eu estava vendo – trinta bilhões de dólares por ano. Ora, 10% disso são três bilhões de dólares. É praticamente o que o Brasil despende anualmente com pesquisa em ciência e tecnologia para o país todo, é muito dinheiro. Isso só pode funcionar com um esquema financeiro por trás. Eu tenho a impressão de que a criação de um fundo financeiro, que viva de pedágios, de bioprospecção, isto é, de taxas de overhead cobradas de acesso à biodiversidade, de royalties cobrados em contratos como esse; de doações, de cotas de investimentos, de investidores privados, institucionais, pessoas físicas e etc. Isso tudo deve possibilitar o crescimento desse bolo e, a partir daí, dar uma sustentabilidade, o que permitiria criar um consórcio, do qual pudessem participar micros, pequenos, médios e grandes empresários nacionais e compartilhassem desse esforço conjunto. Há uma fase da nossa pesquisa que pode, já, imediatamente, ser compartilhada com os empresários nacionais. É a fase do inventário, é a fase da coleta, da produção de extrato, da distribuição de extrato. A fase seguinte, que envolve o desenvolvimento de droga, essa realmente, sem parceria com a grande empresa internacional, é muito difícil.
Carlos Alfredo Joly: Bom, eu vou mudar um pouco a temática, o professor Colli acho que estava querendo perguntar alguma coisa nessa linha.
Walter Colli: É nessa linha sim, mas tudo bem.
Carlos Alfredo Joly: O que eu queria levantar é a seguinte questão. A medida provisória que regula o acesso aos recursos genéticos, no seu Artigo 14, ignora um direito assegurado pela Convenção sobre Diversidade Biológica: o direito das comunidades indígenas e comunidades locais de participarem da decisão sobre o uso dos seus conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético. Porque diz o Artigo 14, e eu leio: “Em caso de relevante interesse público, assim caracterizado por autoridade competente, o ingresso em terra indígena, área pública ou privada, para acesso a recursos genéticos, dispensará a prévia anuência das comunidades indígenas e locais”. Eu gostaria de saber qual a sua opinião sobre essa arbitrariedade e gostaria de saber também por que o acordo e a operação técnica com a Novartis não mencionam o direito às comunidades locais e indígenas, tanto no que diz respeito ao acesso a esse conhecimento, como na garantia do retorno do percentual de exploração econômica desse conhecimento.
Wanderley Messias da Costa: Eu tenho registrado, realmente, através de manifestação de vários seguimentos envolvidos nessa questão, uma certa preocupação especificamente com esse artigo, e temos tentado ouvir os vários lados dessa questão. Pessoas, inclusive, que participaram da formulação, da redação dessa lei, têm me explicado que muitas dessas questões terão realmente que passar por uma regulamentação, através de um decreto. De fato, em muitos aspectos operacionais, a lei, propositalmente, é vaga, depende de um decreto. Quer dizer, a composição desse conselho interministerial que vai definir essas regras, a caracterização da instituição é nacional, de pesquisa e desenvolvimento, as condições para que os direitos das populações tradicionais sejam atendidos. Porque há muita dúvida sobre isso, não é? Quem é o interlocutor? Quem é a terceira parte? Vamos supor que haja três partes no contrato de bioprospecção: a União através de um órgão, que recebe uma delegação para isso, ou esse próprio conselho; a empresa interessada, no caso a Bioamazônia, que leva junto um contrato com uma empresa, por exemplo, e a terceira parte que é a população tradicional. Quem é a população tradicional? Há uma discussão. Se é a comunidade indígena, é a Funai [Fundação Nacional do Índio]; ou é a Coiab [Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira], ou é uma entidade que representa aquela comunidade específica, ou uma entidade que represente todas as comunidades. Isso realmente está em discussão. Agora eu tenho absoluta certeza de que o espírito da lei é de respeitar os direitos das populações e do conhecimento tradicional associado. Como isso vai ser feito? Se vai ser feita uma alteração nesse artigo ou se isso vai ser operacionalizado através de decreto, eu não posso lhe assegurar. Mas eu tenho certeza de que isso vai ser contemplado. No caso do nosso acordo, eu poderia dar uma resposta técnica e uma resposta não técnica. Eu prefiro a segunda, mas vou falar da primeira. A resposta técnica é a seguinte. Não está ainda cientificamente comprovado como é que é possível retribuir benefícios a conhecimento tradicional associado sobre bioprospecção, envolvendo micro-organismos. Evidente que isso pode ser matéria de controvérsias, o senhor é um especialista nessa matéria, poderá esclarecer esse ponto, mas eu não tenho dúvidas de que, dificilmente, uma planta medicinal da Amazônia, se pesquisada, eu não tenho nenhuma dúvida de que não há nenhuma delas que não envolva alguma forma de conhecimento tradicional associado. Mas eu tenho dúvida, no caso de fungos e bactérias, se isso é válido. Apesar disso, quero registrar aqui que uma das cláusulas do acordo deixa claro o seguinte: “Este acordo poderá ser modificado para atender a qualquer legislação que venha regular a matéria, objeto do acordo”. Justamente porque prevíamos que poderia haver, em seguida, na vigência do acordo, uma lei como essa que veio.
Carlos Alfredo Joly: Eu entendo que a comunidade tradicional não vai conhecer o micro-organismo. Mas no momento em que ele faz uma infusão de uma raiz qualquer e atribui àquela infusão o poder de cura de alguma doença, pode muito bem ser a substância produzida pelo microorganismo associado à raiz e não a raiz propriamente dita. Portanto ele está usando diretamente o micro-organismo. Então há um conhecimento tradicional associado.
Wanderley Messias da Costa: Por isso que eu prefiro a minha segunda resposta e não a primeira que eu disse que era técnica, mas apenas para registrar de que há posições.
Edson Luiz: Professor Wanderley, eu vou continuar com essa pergunta, sobre isso baseado nas populações tradicionais. Uma coisa que se faz hoje em dia na Amazônia, que já virou uma coisa pitoresca, isso vem desde a década de 70, já vem antes da época dos barracões, aquela coisa toda. Hoje se pega as coisas da Amazônia... Por exemplo, um caboclo da Amazônia, ou até um índio pega uma tora de madeira, de mogno, por exemplo, que chega a custar oitocentos dólares o metro cúbico do mogno e troca por um quilo de sal, ou uma lata de leite Ninho [nome de leite em pó da Nestlé] para os filhos. E o que se vê aqui é que esse acordo – e quero até que o senhor me explique – algo que o senhor até falou: “É que esse acordo não previu isso, não previu aquilo”. Mas a gente sabe – eu sou da Amazônia, por exemplo – que tudo que passa pela Amazônia vem das populações tradicionais. Vocês não podem fugir disso. Agora o que a gente está vendo é que vocês fugiram. Foi feito um acordo sem que isso fosse levado em conta por enquanto. “Quando a legislação mudar, a gente também vai mudar”. Por exemplo, hoje em dia nós temos no Brasil uma coisa absurda – eu não me lembro a instituição, o Smeraldi ou até o Thomas podem me auxiliar depois. Alguns genes dos índios Suruí de Rondônia foram roubados. Porque isso é um roubo, não é? Pegar os genes de uma coisa é roubar. A gente descobriu uma...
Thomas Traumann: Foi colocado à venda na internet.
Edson Luiz: Exatamente, está à venda na internet. A gente tem o caso, por exemplo, de uma questão lá de um belga, parece, não sei se é um belga, lá na Serra do Divisor, lá na Amazônia, [divisa] do Amazônia com o Acre, que estava pegando plantas dos índios Caxinauá, se eu não me engano. Eu estive conversando com o delegado da Polícia Federal em Manaus, uma vez, ele me falou que hoje saem do Brasil entre um a nove bilhões por ano em biodiversidade. Então se pega do Brasil, não se vê, tudo mais, seja um microorganismo, ou até uma árvore de mogno que a gente não sabe. Mas o que eu quero questionar não é isso, o que eu quero questionar é por que, se não se previu, bom... Se tudo sai da Amazônia, como é que fica para o caboclo da Amazônia? Como é que fica o índio? Como é que fica o seringueiro, o castanheiro da Amazônia? Então vocês estão pegando hoje... Se essa é uma empresa que tem duas vertentes, que é do capital privado e entra o governo no meio. Por que da parte do governo, pelo menos, não se pensou no caboclo da Amazônia agora e vai se pensar depois?
Wanderley Messias da Costa: Eu queria esclarecer o seguinte. Independente desse acordo, o programa do governo, que tem a colaboração da Bioamazônia na sua execução, prevê expressamente uma série de atividades voltadas para as populações locais, sejam indígenas, ou populações ribeirinhas, associações de produtores da Amazônia. Eu mesmo participei, em 1998, do primeiro curso que foi oferecido na Amazônia, para lideranças indígenas, sobre o direito das populações indígenas frente à questão dos direitos de patentes.
Edson Luiz: Mas nessa época o senhor já era governo ou não?
Wanderley Messias da Costa: Não, eu era governo, mas aí eu quero deixar claro o seguinte. Que o espírito do Probem é exatamente este, de ter um esforço muito grande na capacitação, na elevação da capacidade técnico-científica da região e no benefício às populações tradicionais de vários modos, inclusive pela sua capacitação também, através de treinamento, aquilo que muitos biólogos chamam de treinamento de parataxonomistas, isto é, mateiros empíricos [nativos de uma região, conhecedores de sua flora e fauna], que têm que ser capacitados para fazer um trabalho em outro nível técnico. Ora, o que é que está fazendo a Bioamazônia? É exatamente isso. Nós temos uma equipe de biólogos de várias partes do Brasil, mas com uma grande concentração, inclusive na cidade de Manaus, que está percorrendo a região, fazendo identificação de grupos, fazendo o diagnóstico de grupo, trabalho de comunidades. Por exemplo, nós temos um trabalho com o município de Envira, que é um município que tem 12 anos de experiência em cultivos, em sistemas agroflorestais, em coletas sistemáticas etc.
Edson Luiz: Mas Envira não deixa de ser um município subdesenvolvido...
Wanderley Messias da Costa: Sim, é verdade, mas...
Edson Luiz: ... todo esse tempo, até hoje.
Wanderley Messias da Costa: ... o trabalho da Bioamazônia tem seis meses, nós começamos o nosso contrato de gestão e agora que completou seis meses.
Roberto Smeraldi: Mas é justamente por isso, Wanderley.
Wanderley Messias da Costa: Nós estamos apostando nesta vertente: capacitação desses grupos, e essa coleta, inclusive desses micro-organismos, será feita junto com esses grupos. E a nossa idéia é de que parte desses recursos possa ser aplicada nesses grupos.
Edson Luiz: [falando ao mesmo tempo que Wanderley]: Ou seja, aproveitando o conhecimento desses grupos.
José Bandeira de Mello: Permita-me fazer uma observação na linha da sua colocação?
Edson Luiz: Sim, professor Bandeira.
José Bandeira de Mello: Eu estava observando, o Ministério do Meio Ambiente publicou junto com o Sebrae [Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas] e a Comunidade Solidária [programa do governo federal que visa dimunição da pobreza, das desigualdades e da exclusão social], uma série de publicações a respeito do açaí, acerola, guaraná, andiroba, plantas medicinais. E em todos estes trabalhos [mostrando as publicações] se menciona justamente o desenvolvimento regional. Quer dizer, se menciona a oportunidade para o pequeno empreendedor, para o morador da região de, com isso, procurar gerar uma fonte de renda para as populações daquela localidade. Lamentavelmente, no Brasil não se faz o follow up [acompanhamento] de nada. Isto aqui foi publicado e ninguém sabe o que é que aconteceu depois. Ou seja, esses projetos andaram ou não andaram? Aconteceu alguma coisa como resultado de tudo isso que está aqui, todas essas publicações, cujo objetivo, me parece, estava na linha da preocupação do jornalista Edson. De modo que a gente fica no Brasil, às vezes, estupefato com isso. Iniciam, fazem investimentos, reúnem pessoas, cientistas, economistas, antropólogos, sociólogos e, de repente, sai alguma coisa que a gente não sabe se teve continuidade ou não teve continuidade.
Edson Luiz: E o Smeraldi é uma prova disso. Isso aconteceu pouco depois da morte do Chico Mendes. Por exemplo, o Chico Mendes morreu, aí se fez tudo no Brasil. Só que 12 anos depois, não se tem o resultado de nada.
Roberto Smeraldi: A questão, Wanderley, você foi um homem de governo, nós trabalhamos até juntos para gerar emprego e renda na região. Essa é a prioridade, como eles falaram, acho que até aqui tem um consenso. Bom, então você não acha que na hora de discutir um acordo que prevê pagamento de royalties, eu não sei se 1% está certo? Tem quem diga que 3% ou 5% é melhor, eu não sei, sinceramente. Mas é um ponto importante. Na hora em que você dá licença exclusiva para requerer e manter patentes dos compostos diretos isolados e derivados, não apenas patentear invenções, mas manter patentes de compostos diretos. Então é uma questão bastante delicada. Na hora em que você dá à Novartis o direito de repassar os direitos também a empresas coligadas – outra coisa que está no contrato – isso tudo não deveria, de alguma maneira, no interesse da própria Bioamazônia e do Probem, que é programa de governo, ser, de alguma maneira, discutido com estes atores: com os atores econômicos locais, com os potenciais beneficiários, em termos de população da floresta, com as ONGs, com o mundo da ciência, dos especialistas. Ou seja, esse fato de fazer tudo um pouco no escuro não acaba se revertendo contra o próprio potencial do acordo de gerar realmente na região aquela mudança que nós todos estamos desejando?
Wanderley Messias da Costa: Bem, acho que você coloca várias questões, eu vou tentar responder as principais.
Roberto Smeraldi: Era só para dizer que elas são questões relevantes, não necessariamente estou criticando os pontos do acordo ...
Wanderley Messias da Costa: Não, sem dúvida!
Roberto Smeraldi: Estou citando alguns pontos para mostrar que são questões, que na ausência de uma lei, se tornam de grande relevância, porque estamos criando um precedente, o primeiro contrato desse tipo.
Wanderley Messias da Costa: Isso. Devemos ter em mente o seguinte: discute-se a questão do acesso e do aproveitamento econômico da biodiversidade no Brasil pelo menos desde 92. Você sabe, você é partícipe disso. Segundo: se há alguma coisa que tem consenso hoje, na comunidade científica no país, que vai desde o ministro até o mais jovem dos pesquisadores de iniciação científica do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] ou da Fapesp, é que não há futuro para a ciência e tecnologia, especialmente para a aplicação de tecnologias e desenvolvimento de produtos, a partir do conhecimento científico, sem parceria com o setor privado. Há dez anos, pelo menos, que eu participo de debates, na Universidade de São Paulo, fora da USP... Todo mundo, não há ninguém que...
Roberto Smeraldi: [interrompendo Wanderley] Todos queremos isso.
Wanderley Messias da Costa: ... duvide de que este é o caminho: estabelecer parcerias com o setor privado. Em terceiro lugar: ninguém, até hoje, em todos os seminários no país, fora do país, com populações locais, tradicionais, representantes indígenas, comunidades científicas, governadores, prefeitos, deputados, senadores da Amazônia, ninguém é contra de que qualquer desenvolvimento científico e tecnológico e qualquer aproveitamento das riquezas da Amazônia devem reverter em benefício da Amazônia. Nós estamos, portanto, diante de três grandes consensos neste país. Eu pergunto: por que as coisas não andam em termos concretos? Por que as parcerias não acontecem? Por que os empresários não procuraram o governo para fazer parcerias desse tipo até agora? Por que os empresários não fizeram parcerias com as instituições clássicas de pesquisas da Amazônia, com as universidades da Amazônia? Não é uma boa pergunta? Essa pergunta nós nos fizemos nos últimos três anos. Ou você cria condições mais do que legais, em um ambiente propício a negócios que envolvem riscos, inclusive de errar, há riscos muito grandes. Mas quero dizer também, mesmo que isso possa provocar risos de pessoas que estão aqui ou fora daqui, que também há riscos para a empresa. Nada assegura que uma empresa invista milhões de dólares em bioprospecção de micro-organismos e que chegue a um produto. Ela pode até chegar ao produto, chega à fase clínica do produto, esse produto pode fracassar; ou quando chegar ao mercado, três anos depois de chegar no mercado, dá efeitos colaterais, ela perde todo o seu investimento.
Thomas Traumann: [falando ao mesmo tempo que Wanderley] Isso é muito comum na indústria farmacêutica, extremamente comum.
Wanderley Messias da Costa: Então o risco é dos dois lados. A Bioamazônia está nesse jogo, é um jogo de risco, agora...
Roberto Smeraldi: Mas não deveria se discutir com os atores essas questões mais chaves?
Wanderley Messias da Costa: Sim, o programa do governo tem que ser discutido, e a Bioamazônia tem que ser discutida no âmbito de sua rede, coisa que fizemos. A equipe que negociou esse acordo durante o ano é uma equipe multidisciplinar, inclusive com advogados, com pessoas acostumadas a negociar, com pesquisadores da mais alta relevância deste país. Pelo visto, erramos em algumas coisas, tanto é que estamos fazendo pequenos ajustes no acordo. Mas se você não tenta, você não vai adiante. É esse o nosso ponto de vista. Não é possível continuar discutindo indefinidamente as regras e os métodos e não partir para fazer alguma coisa na prática. É esse o nosso ponto de vista.
Paulo Markun: Professor, eu tenho aqui algumas perguntas de telespectadores. Dois deles, Dirceu Danilo, de Belo Horizonte, Minas Gerais, e Alexandre Silva, de Sobral, no Ceará, querem saber o seguinte: “Se não é possível fazer nada contra as empresas espalhadas pelo mundo, que acabaram levando parte da nossa biodiversidade e através da biotecnologia, transformando-a em produtos rentáveis?”. E Viviane Maimone, de São Paulo capital, pesquisadora do Instituto Butantã, observa o seguinte: “O bem sucedido projeto genoma da Xylella [Fastidiosa, bactéria causadora da praga do amarelinho que afeta os cítricos] foi financiado pela Fapesp e executado por uma rede de laboratórios do estado de São Paulo, envolvendo quase 120 pesquisadores. Se a Bioamazônia foi criada para estimular as pesquisas, por que não criar uma rede de bioprospecção nos mesmos moldes?”.
Wanderley Messias da Costa: Bom, quanto à primeira pergunta, de fato é possível hoje, com as tecnologias mais sofisticadas, disponíveis em biologia molecular, detectar, com mais facilidade, práticas de biopirataria, desde que se consiga resgatar todo o processo de desenvolvimento da droga. Há um caso, um precedente ocorrido em 1997, muito interessante. Uma multinacional norte-americana entrou em contato com uma comunidade do interior da Índia, começou a trabalhar em uma planta medicinal de conhecimento dessa comunidade, desenvolveu um produto em cima dessa planta, patenteou esse produto nos Estados Unidos; a comunidade procurou o governo, denunciou a empresa. O governo da Índia contratou uma grande banca de advogados de Nova Iorque, acionou a empresa, ganhou em primeira instância, foi para a Suprema Corte e esta deu ganho de causa, o primeiro ganho de causa contra uma multinacional, por prática declarada de biopirataria. E hoje a multinacional paga royalties ao governo da Índia, que o repassa à comunidade. Então estamos começando, não é? É um bom exemplo de que é possível você fazer o caminho inverso, e os povos, as nações, os países que têm biodiversidade começarem a acompanhar isso aí. Quanto à rede, a Bioamazônia tem uma rede, tem uma rede de bioprospecção. Como eu disse, tem identificado 55 grupos, essa é uma roda que começa agora a girar. Nós temos um recurso já de um milhão de reais do Basa [Banco da Amazônia], para financiar pequenos projetos de pesquisas. As coisas começam a acontecer; há alguns trabalhos desenvolvendo alguns extratos de plantas e toxinas animais da Amazônia. Temos um contrato de mais 1,5 milhão de reais com o Basa e vamos acionar aí, pelo menos, uma meia dúzia de grupos que trabalham com micro-organismos que vão utilizar as cepas coletadas para esse projeto da Novartis. Então antes mesmo do CBA [Centro de Biotecnologia da Amazônia] estar construído, essa roda começa a girar, essa é a nossa expectativa.
Thomas Traumann: Professor, a empresa da qual o senhor é diretor geral fechou um acordo com a multinacional Novartis para ter acesso a bactérias e fungos da Amazônia e a partir daí produzir remédios. A pergunta é muito simples: qual o direito que a sua empresa tem em fazer um acordo desses? De onde que a Bioamazônia recebeu esse poder para fazer um acordo com uma multinacional, para permitir que ela faça esse tipo de pesquisa? E eu queria que o senhor também fizesse uma comparação entre os acordos que a sua empresa fechou e os outros acordos de bioprospecção que se tem no país?
Wanderley Messias da Costa: Bem, a Bioamazônia não tem nenhuma prerrogativa especial. De certo modo, a Bioamazônia, pela sua natureza de organização social, isto é, uma entidade mais ou menos anfíbia, porque ela tem um vínculo indelével com o governo, na medida... Não é porque o governo faz parte do nosso conselho não, é porque nós fomos criados em obediência a uma lei que regula a criação de organizações, nós só fomos qualificados porque nós nos adaptamos no nosso formato...
Roberto Smeraldi: É a primeira, não é?
Wanderley Messias da Costa: Não, é a terceira.
Roberto Smeraldi: É a terceira.
Wanderley Messias da Costa: A primeira foi o Laboratório Nacional de Luz Síncroton [localizado em Campinas (SP), é um laboratório mantido com recursos financeiros do Ministério da Ciência e Tecnologia, cuja infra-estrutura permite pesquisas nas áreas de física, química, engenharia dos materiais, meio ambiente e ciências da vida] e a Fundação Roquette Pinto [fundação do governo federal que presta serviços à comunidade nas áreas de educação e cultura], que se tornaram organizações sociais. E já foi qualificada também a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá [criada em 1990, como estação ecológica, pelo governo do estado do Amazonas] em Tefé no Amazonas. Então, veja, na verdade, nós temos muito mais obrigações, nós temos uma missão muito mais complexa, em termos de bioprospecção do que uma empresa privada. Mas não há nenhum instrumento legal existente no país que nos proíba de fazer bioprospecção. O que ocorreu, quando nós fizemos o pacto com o governo e negociamos 26 metas com o Ministério do Meio Ambiente, o que disse a secretária do Meio Ambiente, desculpe, de ...
Thomas Traumann: Da Amazônia.
Wanderley Messias da Costa: ... Coordenação da Amazônia, naquela ocasião, olha: “Nós não podemos colocar nas metas deste contrato de gestão nada que signifique que vocês devam fazer bioprospecção, porque o Ministério do Meio Ambiente não tem base legal para delegar à Bioamazônia fazer a bioprospecção”. Mas não estava dito, ela não me disse, em contrapartida, “vocês, portanto, estão proibidos”. Não existe essa compreensão e nem poderia, porque a Bioamazônia é uma entidade de direito privado. Nós temos que seguir regras estabelecidas: Convenção da Biodiversidade, decretos, resoluções. Por exemplo, mesmo antes de existir a medida provisória, muitos dos senhores sabem que estava atribuída ao Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], através de um decreto presidencial, a função de autorizar...
Thomas Traumann: Licenças.
Wanderley Messias da Costa: Sistemas de coleta. Ora, você sabe muito bem, porque você é o autor de uma boa matéria na Folha de S.Paulo sobre essa questão. Essa polêmica envolvendo o acordo com a Novartis mostrou o quê? Mostrou que havia vários outros acordos de bioprospecção, envolvendo empresas privadas, envolvendo os grupos de pesquisadores, envolvendo inclusive, órgãos do próprio governo. Então, de fato, o direito que a Bioamazônia tinha de fazer um acordo como esse é o mesmo que qualquer empresa, qualquer entidade privada dentro da lei poderia fazer.
Thomas Traumann: Mas o fato da Bioamazônia receber este ano – são dois milhões de reais, se não me engano, o orçamento que vai passar da União para a Bioamazônia – não significa até uma responsabilidade maior em responder ao governo do que as outras empresas?
Wanderley Messias da Costa: Sim, significa uma obrigação legal e contratual de responder pelas 26 metas, que lhe são atribuídas pelo governo. Agora, eu quero deixar claro o seguinte, mais uma vez. O Probem não foi criado para competir com o CNPq, Fapesp, Finep [Financiadora de Estudos e Projetos], PADCT [Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico], ou qualquer órgão de fomento, um. O Probem e o CBA não foram, e o CBA não está sendo construído para competir com instituições típicas de pesquisa básica, seja na região ou fora da região, competir com universidades, Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia], [Instituto] Goeldi, etc. Em terceiro lugar, a Bioamazônia foi criada e isso é parte do seu estatuto e isso está em um anexo inteirinho que integra o contrato de gestão assinado por três ministros, para fazer parcerias com o setor privado, e é isso que nós estamos fazendo. A Bioamazônia foi estruturada para fazer isso. E nós não podemos abrir mão dessa prerrogativa.
Walter Colli: Wanderley, eu vou trazer de novo para a área científica a discussão, inclusive porque se eu fosse telespectador, talvez eu não estivesse entendendo a discussão. Eu vou tentar traduzir em palavras simples o que está escrito no acordo, e você vai me corrigir se eu estiver errado. Eu imagino que as equipes da Bioamazônia retiram micro-organismos da terra, isolam, fazem crescer em grandes quantidades um microorganismo, depois faz uma maçaroca inteira [faz o gesto de misturar algo com uma colher de pau], tira o líquido daquilo, põe em um aparelho que o separa em uma série de frações e isso vai para a Novartis junto com a bactéria. Aí a Novartis identifica a molécula, vê se serve ou não serve. E a pergunta é: para cada uma dessas amostras, a Bioamazônia recebe cem reais. Os críticos desse acordo dizem que cem reais não pagam esse trabalho, primeiro. Segundo: que esse tipo de trabalho é de rotina e não desenvolve a ciência na região e mesmo no Brasil. E pelo prazo de dois anos, dez mil bactérias e fungos é muito, tem gente apostando que não vai dar. Então a pergunta é se não vai ter multa se não der dez mil amostras? Ou se então pega a terra e manda a terra mesmo e pronto, aí eles isolam. [risos] Por favor.
Wanderley Messias da Costa: A sua seqüência está correta, à exceção de um ponto. Após a caracterização, a identificação taxonômica, quer dizer, a classificação e a identificação da espécie, isso vai para o cromatógrafo [aparelho utilizado na análise de substâncias por processo químico, capaz de separar os vários componentes da amostra], para realmente fazer aqueles perfis, a separação das substâncias etc. O que vai para a empresa, para futuros desenvolvimentos, não é a bactéria. Vai o perfil; para os perfis em que eles têm interesse, eles vão solicitar os extratos. Então depois dos perfis, vão os extratos. E para os extratos dos quais eles têm extratos, quer dizer, essa substância em meio líquido etc ...
Walter Colli: É isso aí, a fraçãozinha.
Wanderley Messias da Costa: ... que as bactérias produziram, apenas para isso é que eles solicitarão o envio da cepa viva, do microorganismo vivo. Então vai ser uma fração muito pequenininha dessas dez mil que vão seguir.
Walter Colli: Quer dizer, a Bioamazônia vai saber que eles têm interesse naquela cepa.
Wanderley Messias da Costa: Naquela específica.
Walter Colli: E portanto ela pode seguir, ela pode cobrar, porque a Novartis podia dizer: “Olha, não deu nada”, não é?
Wanderley Messias da Costa: Inclusive porque nós vamos fazer a identificação digital dessas cepas antes de elas seguirem.
Walter Colli: Como é isso, é o DNA?
Wanderley Messias da Costa: Nós vamos fazer o que eles chamam de... os senhores chamam de fingerprint, é a impressão digital através do DNA,...
Walter Colli: Está bom, não precisa complicar, está bom, está bom.
Wanderley Messias da Costa: ... dessa bactéria, quer dizer, nós vamos ter o controle completo desse processo.
Paulo Markun: O professor Thomas Lewinsonh, que é do Instituto de Biologia da Unicamp, coloca duas questões que tem tudo a ver com esse ponto, primeiro: “Toda a pesquisa de bioprospecção na Amazônia vai passar pela Bioamazônia, por um pesquisador. A instituição que trabalhar na Amazônia tem que ter o aval da Bioamazônia?” E a segunda pergunta: “Pelos termos do contrato, a Novartis é a única a ter acesso aos trinta mil perfis de organismos vivos e retém essa informação. Não vai haver publicação científica dos resultados, mesmo pelos quais ela não manifestar interesse, ao menos a lista de organismos será tornada pública?”.
Wanderley Messias da Costa: Não, eu quero... Esse ponto é fundamental, merece ser esclarecido. Todas as cepas, supondo que nós consigamos identificar, selecionar trinta mil espécies. Todas essas trinta mil pertencem ao Brasil, serão depositadas em uma coleção, habilitada para coleções desse tipo, serão caracterizadas, identificadas etc, etc, e apenas aquelas que demonstrarem interesse para uma pesquisa posterior com a empresa é que terão, evidentemente, uma pesquisa coberta de sigilo. Mas à medida que nós vamos fazendo essas caracterizações, e essas cepas vão sendo depositadas etc, e a empresa não demonstrar interesse, já de cara, todas elas poderão ser distribuídas para a nossa rede de pesquisadores e evidentemente gerar uma pesquisa. Até complementando uma resposta ao professor Colli, eu vou deixar claro um ponto: a nossa única instituição especializada em coleção de micro-organismos, segundo os padrões internacionais, inclusive da Convenção da Biodiversidade, em 12 anos, conseguiu uma coleção completa de fungos e bactérias de seis mil espécies, quase seis mil espécies. Se nós conseguirmos que não sejam dez mil, mas sejam oito mil espécies por ano, em três anos, nós chegaremos a 24 mil espécies. Isso significa multiplicar por quatro o inventário de micro-organismos do Brasil em três anos.
Walter Colli: Você está falando do [Fundação Tropical de Pesquisa e Tecnologia] André Tosello?
Wanderley Messias da Costa: Isso. Da Fundação André Tosello. Essa é uma grande conquista. Segundo: nossa equipe vai passar dez semanas lá e vai ser treinada em high throughput screening. Eu pergunto ao senhor e aos que conhecem essa tecnologia, quem no Brasil domina esta tecnologia? High throughput screening é um sistema robotizado de alta performance que consegue analisar centenas, dezenas, milhares de amostras de vegetais e de micro-organismos por dia. Existe uma outra high throughput screening que é capaz de analisar até trezentas mil amostras por dia. Eu pergunto: o Brasil já, em toda a sua história, produziu trezentas mil amostras? Não.
Walter Colli: Posso fazer apenas uma pergunta em cima disso e em seguida eu termino.
Wanderley Messias da Costa: Então há tecnologia, sim, transferida para nós.
Walter Colli: Exato. O Brasil tem cientistas no Sul e no Sudeste que são capazes de fazer muito disso. Inclusive está cheio de pós-doutorandos, que voltam do exterior e não têm emprego no Brasil. Por que a Novartis não monta um laboratório no Brasil e contrata essas pessoas para fazer isso? Vocês pensaram nessa possibilidade?
Wanderley Messias da Costa: Quem disse que a Novartis não poderá fazê-lo? Qual é o modelo do CBA que nós pensamos, inclusive em termos arquitetônicos? Favos, módulos, 26 laboratórios, semi-estanques, inclusive não tem comunicação entre um laboratório e outro. Quem disse que cada um desses laboratórios não poderá ter na sua porta: Projeto Bioamazônia, ou Probem, barra empresa A; Projeto Bioamazônia, barra empresa B, em condições de confidencialidade. Agora eu quero deixar claro. Nós vamos exigir confidencialidade e sigilo dos nossos pesquisadores sim, com contratos, inclusive envolvendo penalidades criminais, inclusive porque "gato escaldado tem medo de água fria", não é?
Edson Luiz: Só para complementar a pergunta. Foi feita alguma escolha, alguma relação de outros laboratórios? Por que só a Novartis por enquanto?
Paulo Markun: Há vários telespectadores perguntado por que não houve algum tipo de licitação ou concorrência para se escolher a Novartis?
Wanderley Messias da Costa: É uma boa pergunta. Como eu disse, nós...
Edson Luiz: [interrompendo] E qual foi o processo de escolha? Como é que foi o processo de escolha?
Wanderley Messias da Costa: Nós estivemos em 15 capitais no mundo inteiro, devemos ter apresentado esse programa para mais de quinhentos empresários de todo o mundo, em várias ocasiões. Conversamos com vários empresários do país e do exterior e lançamos o apelo, convidando empresas para estabelecerem o um joint venture [modelo estratégico de parceria empresarial para alcançar objetivos comuns, em que há união legal entre duas empresas sem que haja necessariamente subordinação societária] com o Brasil, isto é, contratos de risco como este que estamos fazendo. Temos várias empresas interessadas nos procurando da área de cosméticos, da área de fitoterápicos e da área farmacêutica. De grandes empresas do setor farmacêutico, só esta [Novartis] nos procurou, levamos um ano conversando com ela, um ano de negociações. Essas negociações foram interrompidas durante quatro meses e após esse período, quando inquiri o presidente da empresa no Brasil, e ele foi se informar em Basiléia, foi informado de que a empresa já não tinha muito mais interesse, porque haviam acabado de fechar dois acordos enormes com o governo da China. Então, já naquele momento, eu pensei “poxa, uma única empresa, grande empresa, demonstra interesse de acordo conosco e agora até mesmo essa poderemos perder”. Por quê? Quem somos nós para competir com a China, que tem cinco mil anos de história de utilização de plantas medicinais, por exemplo. Mas felizmente, o contrato chegou a bom termo.
Regina Scharf: Agora, professor Wanderley, o senhor não acha que é um pouco preocupante que a Novartis, em dois meses do acordo, nunca tenha se manifestado, nunca tenha detalhado o programa, o projeto dela, tanto a Novartis na Suíça, quanto a Novartis no Brasil? Vários jornalistas estão tentando falar com eles e eles não falam?
Edson Luiz: É, e apesar de tudo o que está acontecendo, não é?
Regina Scharf : Eles não dizem se têm planos de investir no Brasil se não tem, onde que eles fazem projetos similares. É preocupante, não é?
Wanderley Messias da Costa: Nós fomos informados pelo presidente da empresa daqui de que eles soltaram um release, um press release [documento divulgado por assessorias de imprensa para informar, anunciar, esclarecer ou responder à mídia sobre algum fato que envolva a instituição assessorada], em Basiléia, falando desse acordo, do mesmo modo como soltaram um press release a respeito do acordo que eles fizeram com a China, com o Panamá e o México. Eu realmente não posso lhe responder; tenho a informação e inclusive tenho cópia desse press release.
Edson Luiz: Sim, mas não é uma coisa muito... Porque a gente acha que um press release é muito pouco para uma questão que envolve não só a Amazônia, mas que envolve uma polêmica toda, não é?
Wanderley Messias da Costa: Eu solicitei da empresa mais do que press release a respeito do acordo que eles fizeram com a China, com o Panamá e com o México e eu não consegui. Eu acho que talvez isso ajude a explicar um pouco a política da empresa de divulgação de acordos desse tipo.
Edson Luiz: Agora, só voltando à pergunta, o senhor falou que a Novartis não tinha mais interesse e por que ela voltou a ter interesse?
Wanderley Messias da Costa: É boa pergunta também. Nós insistimos por quê? Porque esteve aqui, em fevereiro de 1999, o presidente mundial da empresa. Fez visita ao presidente da República, ao vice-presidente da República, ao ministro da Fazenda e à Secretaria da Amazônia, ocasião em que era secretário o doutor José Seixas Lourenço, que hoje é o presidente do Conselho de Administração da Bioamazônia. Eu estava saindo do governo, mas ainda colaborava com essa transição do Probem para a Bioamazônia. E esteve lá o presidente e disse que tinha interesse em estabelecer uma parceria com o Probem, na época a Bioamazônia tinha sido recém criada, mas não estava ainda nem mesmo qualificada, e um acordo que envolvesse alguma forma de pesquisa, alguma forma de parceria etc. E que ele considerava isso parte da política externa da empresa, porque eles estavam – como eu repito – fazendo isso com a China, com o Panamá, com o México e universidades. Eles têm seiscentos projetos de pesquisas envolvendo muitas universidades. Quando houve essa ameaça, ou essa possibilidade de um recuo, o presidente da empresa aqui mandou uma mensagem para o presidente mundial, lembrando do compromisso político que ele tinha com o país de fazer algum tipo de acordo. E foi uma decisão política, tanto é que ele veio no dia 29 de maio, veio especificamente para assinar esse acordo.
Edson Luiz: Então, quer dizer que a posição política foi maior do que a posição econômica, do que os interesses comerciais?
Roberto Smeraldi: Bom, agora estamos em um impasse...
Wanderley Messias da Costa: Eu quero dizer que empresas como essa tem políticas externas, como os governos.
[falas simultâneas]
Roberto Smeraldi: O risco não é que agora, frente a toda essa situação, o ministro não gostou muito do contrato, os que estavam com preconceito contra a bioprospecção estão ainda mais preocupados com esse acordo. Os que acham que isso deve acontecer, como a gente, também estão um pouco surpresos, um pouco com a falta de discussão... Não é um risco que estamos de um passo atrás agora, em vez de tocarmos para frente as atividades, com vistas ao aprimoramento da geração de emprego, renda na região etc? Não é um risco que toda essa situação não leve um pouco ao impasse? E como sair desse impasse? Uma maior transparência não pode ser a saída? Uma discussão com os setores produtivos, acadêmicos, com o não governamental? Ou seja, se essa discussão tivesse acontecido antes do acordo e não depois?
Wanderley Messias da Costa: Bom, eu sou mais otimista do que você. Eu trabalhei com uma pessoa durante muitos anos que dizia que "não há como fazer omelete sem quebrar os ovos", não é? E de fato, eu acho que há um aspecto positivo nessa polêmica toda. Em primeiro lugar, uma medida provisória. Em segundo lugar, nunca se discutiu tanto bioprospecção na Amazônia, direitos de comunidades, da população tradicional. Nunca comunidades científicas se posicionam tanto na imprensa. Eu acompanhei agora um noticiário sobre a SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], e dava impressão de que só o que se discutia na SBPC eram os transgênicos e biodiversidade. Todo o dia eu ia lá: o que sai hoje contra ou a favor dessa questão. Então eu acho que tem esse aspecto positivo, a sociedade, especialmente esses ciclos mais interessados, têm discutido mais. E vou lhe dizer, com agradável surpresa, uma coisa que eu não esperava um mês atrás, mas que hoje eu estou vendo o que está ocorrendo, muitas empresas estão procurando a Bioamazônia e fazendo propostas, de inicio de conversas, para que possamos replicar acordos desse tipo. Eu acho que o resultado é extremamente positivo.
José Bandeira de Mello: Professor, isso não significa que nós precisamos então gerar mais crises aí para conseguir que mais empresas se interessem? [risos]
Wanderley Messias da Costa: Espero que não, porque elas são extremamente estressantes, não é?
José Bandeira de Mello: É brincadeira.
Paulo Markun: Duas questões que colocam um pouco mais de pimenta e demonstram interesse justamente dos telespectadores em relação ao tema. A professora doutoranda Aparecida da Silva Almeida, de Taubaté, diz o seguinte: “Sou professora universitária e com tristeza assisto ao nascimento da Bioamazônia”. Pergunta o seguinte: “O senhor sabe quem é o maior produtor de borracha da atualidade?”, e ela responde: “A Tailândia”. Pergunta novamente: “Sabe por quê”? Ela pergunta e já responde: “Porque no início desse século, o governo brasileiro permitiu que o inglês de nome [Henry Alexander] Wickman retirasse da região de Tapajós 26 plantinhas de seringueira, as quais foram melhoradas no Jardim Botânico de Kil [Suécia] e posteriormente introduzidas nas colônias inglesas na Ásia.” É um engodo ou inocência acreditar que a Bioamazônia é caso diferente desse que ela contou?
Wanderley Messias da Costa: Bem, eu queria comentar dois pontos rapidamente. Primeiro lugar: o maior produtor de borracha não é a Tailândia, é a Malásia, porque soube adaptar esse cultivo, em condições de larga escala industrial e hoje domina o mercado internacional, inclusive com ótima qualidade.
Paulo Markun: O quê, diga-se de passagem, não invalida a observação dela, porque realmente é do Brasil.
Wanderley Messias da Costa: Não invalida, mas eu acho que a borracha não é o único exemplo, há muitos exemplos. Eu gostaria de lembrar, por exemplo, que o café não é nativo da biodiversidade brasileira, e o Brasil foi o maior produtor de café do mundo. Eu gostaria de lembrar que o Brasil é campeão de tecnologia de produção de grãos em larga escala de muitas modalidades, inclusive de adaptação de sementes a ecossistemas hostis a determinadas agriculturas, como é caso da soja, por exemplo, no cerrado, e não me consta que a soja seja produto nativo brasileiro. Eu acho que esse intercâmbio, desde que feito dentro da lei, desde que feito através de cooperação internacional, é perfeitamente válido. Uma pena que ainda existam casos de biopirataria, mas eu acho que programas como o nosso e organizações como a nossa estão aí para tentar superar isso.
Paulo Markun: Thomas Shaw faz a seguinte pergunta, ele não diz de onde é, manda a pergunta pela internet, eu peço aos telespectadores, que se puderem, se identifiquem, porque é mais fácil. “Voltando à analogia com o petróleo”, diz ele, “podemos facultar a uma empresa a prospecção do nosso subsolo, se for encontrado petróleo, ele continua no nosso subsolo e o vendemos se quisermos. Quando fornecemos dados da biodiversidade amazônica, estamos lidando não mais com uma commodity, como o petróleo, mas com algo muito mais sutil, ainda que a informação é quase uma inspiração. O senhor acha possível que venhamos a ter condições de cobrar royalties da Novartis de algo pouco mensurável como uma inspiração?”.
Wanderley Messias da Costa: Eu acho que é impossível um país pretender manter o monopólio da informação genética, por várias razões. Em primeiro lugar, porque a informação genética sai todo o dia do Brasil, nos sapatos dos nossos turistas que visitam a Amazônia. Quantos milhões de espécies de micro-organismos já saíram do Brasil em toras, que são exportadas de modo legal ou ilegal? Quantos frascos, quantas porções do solo, com milhares de informações genéticas já saíram? Isso é impossível. Quanto de informação genética, os pássaros que migram pelo planeta, nas suas várias escalas de reabastecimento, transmitem e retransmitem em escala planetária a informação genética? É impossível. O que nós temos que fazer é valorizar a nossa biodiversidade e é isso que a gente pretende. Temos que ser capazes de aproveitar o máximo aqui, mas temos que ser capazes de reconhecer que não podemos fazer tudo. Eu gostaria, como muito dos meus colegas cientistas, que nós pudéssemos fazer o ciclo completo aqui: partir da biodiversidade e chegar à droga, em uma escala de um mercado global. No momento é preciso ser humilde, nós não temos condição de desenvolver tudo aqui. Uma parte desse processo, certamente, eu acho que temos condição, mas não todo o processo.
Paulo Markun: Professor Wanderley, muito obrigado pelos seus esclarecimentos, aos nossos entrevistadores também obrigado. Eu acho que de alguma forma o programa pelo menos avançou um pouco na discussão desse tema em que a televisão muitas vezes se coloca à margem. O compromisso do Roda Viva é justamente o de botar temas como esse em debate, com todas as dificuldades que a gente tem de administrar, às vezes, os diversos interesses de questões específicas e, ao mesmo tempo, manter a discussão num nível em que as pessoas possam acompanhar. Espero que a gente tenha feito isso aqui.