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Memória Roda Viva

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José Serra

6/3/1995

Reforma tributária e de administração pública, entre outras propostas do governo Fernando Henrique, são detalhadas pelo então ministro do Planejamento nesta entrevista

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[programa ao vivo, permitindo a participação dos telespectadores]

Matinas Suzuki: Boa noite, eu sou Matinas Suzuki Júnior. Estarei com vocês a partir de hoje no Roda Viva. No programa desta noite está o principal articulador do pacote econômico anunciado hoje pelo governo. A desvalorização do real e o ajuste fiscal têm a marca do ministro do Planejamento, José Serra, no centro do Roda Viva. Nos últimos dez anos, Serra foi cotado para ministro em quase todos os governos, mas para chegar ao ministério, Serra teve que percorrer um longo caminho na política.

[Comentarista]:
A política começou cedo na vida do ministro. Aos vinte anos, Serra ainda tinha cabelos, mas já se sentava à mesa do presidente João Goulart na condição de presidente da União Nacional dos Estudantes [UNE]. O golpe militar em 1964 tirou Jango da presidência e José Serra do Brasil. Exilado no Chile, onde conviveu com o presidente Fernando Henrique Cardoso, fez carreira como professor de economia na efervescente Universidade do Chile. Em 1973, os militares esbarraram mais uma vez o seu caminho. Com fuzis, tanques e prisões, depuseram e mataram o presidente Salvador Allende [(1908-1973) com ideais socialistas, foi o primeiro presidente eleito democraticamente na América Latina. Em 1973, seu governo sofreu um golpe militar, liderado pelo general Augusto Pinochet com apoio norte-americano]. Serra chegou a ficar preso. Depois de quatro anos nos Estados Unidos, ele volta ao Brasil, retoma a sua vocação política e torna-se sócio fundador do PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro]. Indicado para o seu primeiro cargo público pelo governador Franco Montoro [(1916-1999) senador e governador do estado de São Paulo. Destacou-se na luta pela redemocratização do Brasil pós-ditadura militar, atuando fortemente na campanha pelas eleições diretas para a Presidência. Foi eleito governador do estado, em 1982, na primeira eleição direta para o cargo desde 1965, com 5,5 milhões de votos], o de secretário da Economia e Planejamento. A sorte parecia, afinal, ter chegado. Em 1985, Montoro empresta Serra para Tancredo Neves. Cotado como futuro ministro, ele elabora o plano de ação do que seria o primeiro governo civil em vinte anos de ditadura, mas o destino de novo fechou-lhe a porta. Às vésperas da posse, Tancredo Neves adoece e José Sarney assume. A morte de Tancredo, 39 dias depois, adia por mais dez anos a chegada de José Serra ao executivo.

Matinas Suzuki: Para entrevistar o ministro José Serra, nós convidamos hoje o economista Eduardo Gianetti, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo; Ricardo Setti, diretor de redação da revista Playboy e articulista político; Eliane Cantanhêde, editora sênior da Gazeta Mercantil; Tão Gomes Pinto, diretor de redação da revista Istoé; Leão Serva, diretor executivo do Jornal da Tarde; José Paulo Kupfer, editor-chefe do jornal Zero Hora em São Paulo; Eleonora de Lucena, secretária de redação da Folha de S.Paulo e Denise Campos de Toledo, comentarista de economia da Rede Cultura. O governo não mexia no câmbio por duas razões. Dizia-se, em primeiro lugar, que haveria uma evasão de investidores estrangeiros e, em segundo lugar, que a inflação subiria. Hoje, o governo finalmente mexeu no câmbio. Para quanto vai a inflação no próximo mês, ministro?

José Serra: Eu acho que a inflação praticamente não [muda] em função dessa mexida no câmbio. Trata-se de uma flexibilização da questão do câmbio, é uma pequena variação. Não acredito que tenha impacto inflacionário algum. É importante entender que no Brasil, hoje, não se importa mais que 5% ou 6% daquilo que se produz e, por outro lado, uma pequena movimentação pode perfeitamente ser absorvida. Eu não vejo motivos para preocupação inflacionária com essa política.

Matinas Suzuki: Mas, ministro, no mês de março já não há expectativa de elevação de preços, as tarifas não precisam ser reajustadas, não há a pressão de aluguéis, etc.? Quer dizer, há uma série de componentes que poderiam, junto com o aumento do dólar, pressionar uma inflação.

José Serra: Não há pressão, não há pressão de tarifas públicas de jeito nenhum, não tem havido. E a questão dos aluguéis já aconteceu, quer dizer, os aluguéis efetivamente aumentaram bastante, tanto é assim que são talvez uma das principais causas da inflação baixinha. Se não fossem os aluguéis, a inflação seria menor ainda e não se espera nenhuma aceleração no caso dos aluguéis.

Matinas Suzuki: E no caso do petróleo, ministro?

José Serra: O preço do petróleo e dos derivados foi fixado no ponto de partida do real, com a relação um dólar para um real, e ficou esse tempo todo abaixo, continua ainda abaixo, de maneira que não há razão alguma para que os derivados de petróleo, gasolina etc, aumentem por causa disso. Ainda há uma situação muito confortável nessa matéria.

José Paulo Kupfer: Ministro, o novo sistema [refere-se ao sistema de banda cambial, limite determinado pelo governo para a flutuação do real frente ao dólar. O sistema brasileiro foi adotado em março de 1995], que foi introduzido hoje para este mês até maio,  trabalha com o piso 0,86 centavos de real por dólar até 0,90 centavos. Qual é a expectativa do governo em relação à acomodação do mercado nesse intervalo? Vai ser mais que isso, vai ser um pouco menos?

José Serra: Vai ter que ser uma coisa por aproximações sucessivas, porque há a reação do mercado e a atuação do Banco Central. Em todo o caso, o dólar e o real ficarão dentro dessa faixa.

José Paulo Kupfer: Sim, mas qual é o ponto de acomodação que seria interessante?

José Serra: Olha, eu poderia até dar palpite, mas eu acho que é melhor a gente olhar...O governo, se for bater no teto, intervém, se bater no piso, intervém. Agora, o ponto intermediário que vai ficar, eu acho que só nos próximos dias a gente terá mais certeza.

Matinas Suzuki: Por que o governo sinaliza em maio o teto de 0,98 centavos?

José Serra: Na verdade, não sinaliza, ao contrário. Hoje o governo sinalizou para o começo de maio 0,93 [real] por quê?

José Paulo Kupfer: Foi.

Matinas Suzuki:  Mas então por que uma banda tão elástica?

José Serra: Porque se dispôs a fazer leilão a 0,93. Se o governo se propõe fazer o leilão, é porque está sinalizando 0,93. A questão da banda é no sentido que se ter um espaço para atuação para a política cambial que é diferente da idéia passada, da indexação [sistema de reajuste automático de preços em situações inflacionárias. O valor de um capital ou rendimento é ligado à evolução de uma variável de referência, que pode ser preço, produção ou produtividade]. Naquela época, o dólar se movimentava todos os dias, sendo um fator poderosíssimo de realimentação inflacionária. Nós temos que realmente tirar do Brasil aquela memória inflacionária, a cultura inflacionária, a idéia de que tudo se movimenta todos os dias. A banda é um instrumento que dá flexibilidade para isso e torna dispensável essa indexação.

Eleonora de Lucena: Ministro, com a decisão tomada hoje de fazer, na prática, um "real número 2", o governo está assumindo...

José Serra: [interrompendo] Não, não tem nada a ver o "real número 2", Eleonora, me desculpe.

Eleonora de Lucena:...O governo está assumindo que, de fato, o efeito México [crise do México] chegou no Brasil, que era preciso fazer alguma coisa para enfrentar esse terremoto que está havendo no mundo inteiro, no México, na Argentina, nas moedas. Os ajustes que estão sendo feitos tanto no México, quanto na Argentina, apontam para uma recessão profunda. No Brasil, o ajuste que está sendo provocado pelo efeito México vai levar o país a uma recessão?

José Serra: Não, não. Inclusive, nossas tentativas quanto à questão da demanda na economia não são destinadas a causar desemprego, queda de consumo, nada.

Eleonora de Lucena: Mas o governo está arrochando o crédito, está segurando...

José Serra: [enfatiza] Não, não, não! É apenas para moderar a velocidade.

Eleonora de Lucena: Hoje o senhor anunciou cortes...

José Serra: Eu sei, mas a economia pode perfeitamente andar a oitenta ou noventa por hora, o que não dá para andar é a cento e quarenta, é só esse o problema.

Eleonora de Lucena: Quer dizer que vai haver um freio no crescimento?

José Serra: Não, não. Eu acho que o ritmo do crescimento vinha muito acelerado, apenas isso. Nós temos que manter o crescimento e, para isso, você tem que atuar preventivamente. Nós estamos adotando medidas econômicas importantes e não foram apenas em relação ao câmbio. Há uma quantidade vasta e profunda de medidas no campo fiscal, de privatização, antecipadamente. A obrigação de um governo que atua responsavelmente é atuar com antecipação, pegar os problemas quando eles começam a aparecer, colocar-se à frente dos acontecimentos e não intervir quando a situação é grave, que aí as coisas ficam complicadas. Agora, é importante entender o seguinte: essa questão do México também é reflexo de um quadro internacional de problemas na condução da política mexicana que vinha de muito tempo, o déficit comercial de conta corrente no México no ano passado chegou a 27 bilhões de dólares num país que tem a metade da produção brasileira. Agora, na verdade, o evento México postergou a flexibilização da política cambial. Muita gente diz não, que foi por causa do México. Não, por causa do México demorou um pouco mais.

Eleonora de Lucena: Então está atrasado esse ajuste no câmbio?

José Serra: Foi postergado por causa da situação mexicana.

Eleonora de Lucena: Então deveria ter havido uma desvalorização do real antes?

José Serra: Não, inclusive eu não caracterizaria como uma desvalorização típica, o que houve foi...

Eleonora de Lucena: Como não?

José Serra: De jeito nenhum, a flexibilização da política cambial e o nível a que o câmbio chegue vão depender do mercado e de condições objetivas.

José Paulo Kupfer: O senhor está apontando para esses 0,93 centavos, que é o valor que o governo pagará no dia 2 de maio para quem quiser comprar seus dólares, certo?

José Serra: O que se não significa que esteja a 0,93. Se você descontar a taxa de juros, na verdade, sinaliza até um nível menor.

José Paulo Kupfer: Sim, mas apontando para isso, em um cálculo grosseiro, a diferença desse 0,86 de sexta-feira e de hoje,  para esse 0,93, grosseiríssimamente, dá 4% ao mês, nesses dois próximos meses. É essa a inflação que a gente deve esperar?

José Serra: Não, de jeito nenhum, nem sonhando, nem sonhando! Em primeiro lugar, a referência correta não seria a inflação, mas a taxa de juros. Segundo, isso é um limite superior apenas para dizer que, de jeito nenhum, o limite superior na perspectiva do governo passará de 0,93, só isso.

Denise Campos de Toledo: Agora, ministro, como fica a política de juros com essa mudança na área cambial? Porque a expectativa do mercado hoje, e inclusive já houve uma alta de juros, é que se mantenha a trajetória de alta justamente para segurar o consumo pelo outro lado, já que o governo não vai poder contar muito mais com as importações. A intenção dessa medida é garantir um saldo mais positivo, não é?

José Serra: Não, eu acho que é um pouco cedo para deduzir o que vai acontecer com os juros a partir de hoje.

Denise Campos de Toledo: [interrompendo] Mas o governo deve estar planejando como vai administrar as duas pontas.

José Serra: Se você tem alteração na política cambial que vinha sendo praticada, embora numa linha de continuidade, você tem reações que são do dia, não dá para medir uma tendência. A idéia não é aumentar, não é ter juros reais mais elevados.

Denise Campos de Toledo: Na medida em que o dólar chegue, por exemplo, aos 0,93 que o governo sinalizou hoje para o início de maio, pode haver impacto na inflação.

José Serra: Por quê?

Denise Campos de Toledo: A estimativa dos consultores é de que, só com o aumento de preços dos importados com o espaço que isso daria para os produtos nacionais subirem, o impacto seria de 0,4 a 0,6%.

José Serra: Olha, são consultores muito incompetentes, inclusive, porque existe uma defasagem muito grande. Por exemplo, o caso de alimentos importados, isto ou aquilo, você tem uma defasagem sempre de dois ou três meses, está certo? Tarifas públicas não têm alteração.

Denise Campos de Toledo: Mas e a especulação que existe em cima disso?

José Serra: Serviços não têm alteração.

Denise Campos de Toledo: Preço de carros importados, por exemplo...Vão subir os alimentos.

José Serra: Mas carro não entra em custo de vida.

Denise Campos de Toledo: Mas alimentos entram, e tem muito importado!

José Serra: Alimentos, você tem uma defasagem enorme, nós temos uma safra boa para os próximos meses, de maneira que não vejo realmente...

Denise Campos de Toledo: [interrompendo] Então mesmo com o dólar subindo mais de 4%, se acontecer isso, o senhor acha que não vai ter impacto sobre a inflação?

José Serra: Significativo, não. Eu não diria que é deflacionário.

Denise Campos de Toledo: Mas se perde um pouco a âncora cambial, não é?

José Serra: Mas nunca houve a idéia do câmbio fixo, jamais houve compromisso nesse sentido.

Denise Campos de Toledo: Mas se perde um pouco a âncora cambial.

Eleonora de Lucena: Eu acho que a âncora cambial foi içada hoje.

José Serra: Âncora cambial pressupõe câmbio fixo, nunca houve propostas de câmbio fixo, nunca vi ninguém afirmar isso.

Matinas Suzuki: Ministro, a âncora, que até agora é do Plano Real, não estaria sendo substituída gradativamente por uma âncora fiscal, por alguma outra, para sair justamente da trilha do modelo mexicano e argentino?

José Serra: Exatamente. A questão fiscal é vital, tanto que a maior parte das medidas que a gente tem tomado se refere precisamente ao lado fiscal, ou seja, dos gastos e receitas do governo. Isso visa impedir déficit, segurar uma expansão do gasto público exagerada, essa é a nossa preocupação, é um ponto de apoio crucial, fundamental.

Eleonora de Lucena: Agora, hoje o Tesouro Nacional apontou o déficit pela primeira vez no Pano Real. As medidas têm sido insuficientes?

José Serra: É conjuntural de fevereiro, não.

Eleonora de Lucena: [interrompendo] É o primeiro déficit do real?

José Serra: Em fevereiro você tem problemas sazonais. E houve um aumento de salários muito forte, há um peso enorme pelo lado do salário do funcionalismo federal e dos inativos da área federal. É por isso, inclusive, que boa parte das medidas estão dirigidas às finanças federais: a unificação das bases de arrecadação do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] - previdência e fundo de garantia [por tempo de serviço - FGTS]. Eu não sei se todo mundo tem isso claro, mas essas duas arrecadações são feitas separadamente, o que é incrível, porque a receita do FGTS está muito aquém da que deveria acontecer se a cobrança fosse bem feita. Nós vamos unificar ambos os serviços, o que vai representar um aumento de receita substancial. Há um conjunto de medidas voltadas, seja para os gastos, seja para as receitas, melhorando a eficiência da arrecadação.

Eduardo Gianetti: Eu entendo que a flexibilização da política cambial foi positiva e mostrou uma disposição do governo em corrigir o câmbio, caso o déficit na balança comercial se mostre preocupante daqui para frente. No entanto, eu acho que, em relação ao problema fiscal, há muita incerteza e o quadro ainda está pouco definido. A questão dos juros me preocupa aqui. Nós estamos hoje, no Brasil, com uma dívida interna cujo estoque está em torno de sessenta bilhões de dólares. Sobre essa dívida interna, incide um juro real em torno de 25% ao ano, o que realmente é uma fonte de pressão muito grande sobre os gastos públicos. Por outro lado, temos reservas cambiais de 36 milhões de dólares, que são remuneradas no máximo a uma taxa de juro real a 5% ao ano, e por aí sentimos um desequilíbrio na estrutura financeira do governo. O senhor acredita que um esforço mais contundente de privatização para reduzir o estoque de dívida interna, diminuir, portanto a carga de juros que o governo paga no orçamento, diminuir também a pressão sobre os próprios juros...Se o governo demanda menos recursos, ele pode obviamente aliviar o mercado, permitir uma redução consistente da taxa de juros e ao mesmo tempo, abrir setores da economia brasileira para um investimento estrangeiro em áreas de infra-estrutura, que são muito necessárias. O senhor não acredita que esse é um caminho para resolvermos uma série de problemas: privatização, uso da receita para diminuir a dívida interna e assim desbloquear os problemas na política econômica?

José Serra: Acho, você está certo. Esse é um caminho importante e nós estamos tratando de acelerá-lo. Privatização é uma coisa que, no Brasil, tem sido feita muito lentamente, não apenas por lentidão operacional, mas também pelo fato de que privatização tem que ser uma coisa transparente, ter um controle muito grande da opinião pública, da mídia, dos jornais, de televisão, revistas. Você contraria interesses de corporações e fica todo mundo de olho, então você tem que fazer um processo não apenas honesto, ele tem que parecer também honesto. Portanto, é demorado. Hoje eu estava fazendo uma conta...você sabe que o tempo médio para privatizar uma empresa federal no Brasil é de quase dois anos, entre o dia que sai o edital para consultoria, para ver quanto a empresa vale, até o dia do leilão? E a idéia é encurtar isso. Agora, você tem toda a razão, a privatização, entre outras coisas, serve para isso. Você vende ativos governamentais, pega o dinheiro, reduz a dívida e reduz a despesa de juros. Inclusive, é errado utilizar dinheiro de privatização para despesa corrente, quer dizer, é como você vender uma casa para gastar em consumo. Isso, às vezes, pode ser inevitável, mas é errado. A idéia realmente é reduzir a dívida pública, aliás, hoje...

Eduardo Gianetti: [interrompendo] Qual é a despesa de juros prevista no orçamento de 1995?

José Serra: Olha, pelo critério de competência, é de uns sete bilhões de reais.

Matinas Suzuki: O senhor poderia explicar quais os critérios?

José Serra: É o que está no orçamento realmente, porque, às vezes, você tem períodos de vencimento que vão de um ano para o outro. Agora, no orçamento você põe tudo enquadradinho.
 
Eduardo Gianetti: Me corrija, se eu estiver errado, mas pelo que foi divulgado na imprensa, a taxa de juros prevista no orçamento era 12% real ao ano, ou seja, praticamente a metade da taxa de juros que vem sendo praticada. O orçamento é muito irrealista em relação a esse ponto?

José Serra: É...não, mas a expectativa, por exemplo, no ano passado foi 14%, se você for olhar também...

Eduardo Gianetti: Só isso no ano passado?

José Serra: Se você pegar direitinho, calcular direitinho...E a questão dos juros, você também tem que tomar em termos líquidos, é verdade que os juros das reservas são mais baixos, quer dizer, aqueles dólares que o Brasil tem, ele obtém menos lá fora do que paga aqui pela dívida interna. Mas também você tem que deduzir na despesa de juros isso que é recebido. Por outro lado, você tem que medir só a dívida que está em poder público. Há várias coisas que você tem que obter em termos líquidos aí dentro, é muita complicação...

[sobreposição de vozes]


José Serra: Agora, eu acho que a despesa de juros é alta, deve ser reduzida e tem duas maneiras concorrentes para fazer isso. Primeiro, melhorar a situação fiscal, quer dizer, quanto mais déficit você tem, mais você tem que se endividar, mais juros paga. Segundo, vender empresas públicas, é importante essa venda para reduzir dívida, para economizar capacidade de gestão do governo, para que o governo possa se dedicar àquilo que a população espera, educação e saúde, ciência e tecnologia, as coisas que o pessoal quer do governo, justiça e tudo mais, e não perder dinheiro em muitos casos com empresas. E terceiro lugar, inclusive, para você atrair mais investimento privado para serviços públicos, você pode ter um serviço público e o investimento ser privado, não precisa ser do governo. Então, essa é uma maneira também de você economizar dinheiro do governo no futuro, você tem um exemplo das hidrelétricas. Hoje eu estava olhando, você tem umas dez, 15 barragens hidrelétricas, usinas hidrelétricas paradas no meio, porque não têm dinheiro. Não é mais vantagem você vender para a área privada e eles terminarem? Quer dizer, é muito mais negócio para o país, melhor para todos e melhor para as contas do governo e para pagar menos juros também.

Eliane Catanhêde: Já que o senhor tocou agora em saúde e educação, esse documento aqui, uma das leituras que se faz dele...É um documento de esclarecimento sobre as medidas recentes do governo na área econômica que o senhor distribuiu hoje...

José Serra: Ah, é o documento de hoje.

Eliane Catanhêde: Enfim, ele tem 23 páginas e é uma espécie de prestação de contas do atual governo. Só que nessas 23 páginas não há uma referência à área da social, nada, zero. Não é um governo social-democrata, ministro?

José Serra: É, eu acho que não há nenhuma incompatibilidade. É um documento sobre a questão econômica. Você não falar sobre tudo.

Eliane Catanhêde: [interrompendo] Mas ele é um documento feito também pela área de Planejamento, que cuida de orçamento, que tem a ver com a área social.

José Serra: Sem dúvida. No entanto, esse documento não foi feito porque alguém estava cobrando que o governo não está fazendo [nada]. Eu, pelo menos, nunca senti essa coisa, você nunca cobrou isso, de que o governo está parado, isso e aquilo.

Eliane Catanhêde: Então, o senhor anda lendo mal as minhas matérias!

[risos]

José Serra: Segundo, na verdade, ele faz um balanço do que foi feito nos dois últimos meses e anuncia coisas novas para mostrar que é o contrário da inércia, que está atuando preventivamente em questões como as que preocupam o Eduardo Gianetti, por exemplo. Hoje mesmo, nós anunciamos coisas importantes em matéria de privatização. Agora, ele é um documento que trata da questão econômica. Hoje o governo mexeu no câmbio, é um assunto importante, mexeu em questões fiscais, não dá para você entrar em educação e saúde, nisso e naquilo...

Eliane Catanhêde: [interrompendo] Então podemos esperar 23 páginas também sobre a área social?

José Serra: Isso não significa que nós não vamos voltar a isso, inclusive com o Planejamento "metendo o bico", porque nós cuidamos do orçamento...

Matinas Suzuki: [interrompendo] Ministro, quando o senhor diz "O Planejamento metendo o bico", em função das mudanças no câmbio de hoje, em função da resposta que o senhor deu ao Eduardo Gianetti, sinalizando que o plano daqui para frente deveria caminhar nessa direção, privatização, reforma fiscal, etc, há alguma alteração na rota do governo, ou seja, menos ingerência do [Ministério da] Fazenda nessas macropolíticas e mais diretrizes fornecidas pelo Planejamento?

José Serra: Não, não, Matinas. Olha, eu quero dizer uma coisa...

Matinas Suzuki: Mas, ministro, que parece, parece! O senhor pode tentar dizer aqui para muita gente que não, mas que parece, parece.

[risos]

José Serra: "Zum, zum" aceita tudo, é o que em espanhol se diz "copucha", fofoca comporta tudo. Mas uma coisa é certa, e eu digo isso de maneira muito sincera: o trabalho da Fazenda e do Planejamento é absolutamente integrado. Esse conjunto de medidas, essa articulação foi uma coisa elaborada em conjunto. Não há hoje na área econômica praticamente nenhuma diferença, exceto diferenças, às vezes, de pessoas que pensam diferente, mas não é porque é da Fazenda ou do Planejamento.

Leão Serva: Quer dizer que o ministro [da Fazenda nos dois mandatos do presidente Fernando Henrique] Pedro Malan aceitou bem as suas diretrizes?

José Serra: Não, nem remotamente a idéia de que eu dei diretrizes ao Malan, eu acho que você está brincando.

Leão Serva: Não, é porque o senhor é considerado hoje um virtual primeiro-ministro do Fernando Henrique.

José Serra: Não, não é isso, é porque você não conhece o Fernando Henrique! Ele nem aceita a idéia de um primeiro-ministro...Mas o que eu quero insistir é nesse ponto: nosso trabalho é absolutamente homogêneo, conjunto e de cooperação recíproca. Seria um equívoco acreditar que essas orientações são fixadas pelo Planejamento, elas são fixadas pelo conjunto da área econômica: Planejamento, Banco Central e o BNDES.

Leão Serva: Já foi comentado aqui que o Tesouro Nacional deu déficit pela primeira vez desde o Plano Real. No mesmo momento, o presidente do Banco do Brasil anunciou que o banco não vai reduzir o número de agências, seu quadro de funcionários, portanto, não vai fazer cortes, vai fazer apenas uma espécie de reordenamento. Quer dizer, não contradiz esse pacote do governo, que visa o enxugamento dos gastos para a redução do déficit?

José Serra: Olha, Leão, eu não vi essa declaração, mas posso te assegurar duas coisas. Primeiro, é interesse do governo fortalecer o Banco do Brasil e, para que seja fortalecido, ele tem que se enxugar, até porque, numa fase de instabilidade, o sistema financeiro tem que atuar mais austeramente. Isso vale para área pública e privada. O fato é o seguinte: com uma inflação de 40%, 50% ao mês, você tinha um imposto inflacionário de 12 a 15 bilhões de reais a cada ano, pago precisamente pelas pessoas mais pobres e desprotegidas. Isso era uma vergonha, porque são aqueles exatamente que têm menos condição de se defender ao longo do mês, que não podem aplicar o dinheiro a curto prazo e tudo mais. Pois bem, esse imposto inflacionário foi eliminado e ele era apropriado pelos bancos públicos e privados e pelo governo, inclusive pelo Banco Central. Portanto, os bancos - no caso, os bancos públicos têm maior responsabilidade - precisam se ajustar a isso. Isso inclui o Banco do Brasil, que nós pretendemos fortalecer. Esse ajustamento pressupõe sim o fechamento de agências que apresentem prejuízos econômicos permanentes. Não tem sentido, por exemplo, numa cidade pequena, você ter uma agência da Caixa Econômica Federal, uma agência do Banco do Brasil,  não tem cabimento nenhum. E no documento que está aí, que é do governo, do presidente da República, consta isso que eu estou dizendo. Acho que o presidente do Banco do Brasil concorda com isso. Aliás, é uma pessoa da maior competência na direção do banco.

[sobreposição de vozes]


Matinas Suzuki:  Por favor, senhores, vamos ouvir a pergunta do Ricardo Setti.

Ricardo Setti: Ministro, o senhor lembrou agora há pouco que as medidas de hoje não se esgotam no capítulo câmbio. E no documento que o senhor distribuiu hoje, uma explicação sobre as medidas fala em aprofundamento da privatização. Curiosamente, no fim de semana, os jornais registravam declarações suas dizendo que dificilmente seria possível arrecadar os 4,7 bilhões de reais previstos no orçamento com a privatização para este ano. Eu pergunto então: essas medidas de aprofundamento da privatização vão permitir agora que se arrecade? Segundo, quais são as principais medidas para esse aprofundamento? E como é que fica a questão da Vale [do Rio Doce]?

José Serra: Bom, hoje, por exemplo, houve duas decisões. Em primeiro lugar, o início do processo de privatização da Vale do Rio Doce. Nós pedimos ao BNDES - e a responsabilidade do caso é do Ministério do Planejamento e de Minas e Energia - para preparar a proposta que vai fixar os termos de referência da privatização da Vale.

Tão Gomes Pinto: [interrompendo] Quer dizer, daqui a dois anos, o senhor espera uma resposta a respeito disso?

José Serra: Não, acho que em dois anos a Vale já pode estar privatizada, é uma mega-empresa. [a empresa, que a partir de 2007 passou a ser denominada apenas Vale, foi privatizada em 1997]

Denise Campos de Toledo: A previsão é essa?

José Serra: Eu espero que seja até antes, mas o problema é o tempo que isso tudo demora. A Vale é uma empresa gigantesca, chegou a valer 14, 15 bilhões de dólares, é uma fortuna, é uma privatização complexa, porque envolve atividade de mineração, de transporte, de celulose e de alumínio. Então é muito complicado...Qual é o primeiro passo para privatizar a Vale? Decidir e anunciar que se pretende privatizá-la. Outra coisa com relação aos bancos: houve uma exposição de motivos feita pelo Ministério da Fazenda que foi aprovada pelo presidente da República, no sentido de se permitir o ingresso de capital estrangeiro para compra de bancos públicos, estaduais ou federais, esse é um outro passo importante. A questão da privatização é um modelo brasileiro e, além disso, é o que a sociedade brasileira exige: transparência, cuidado, clareza, porque não basta ser honesto, isso precisa ficar óbvio e evidente.

Ricardo Setti: Vai dar para dar pagar esses 4,7 bilhões que estavam previstos no orçamento?

José Serra: Não, não, na verdade, pelo cálculo do orçamento e na projeção, na reprogramação, excluímos a utilização de recursos de privatização para despesa orçamentária, isso está excluído.

Tão Gomes Pinto: Ministro, o presidente Fernando Henrique, recentemente, declarou que no caso do Fundo Monetário Internacional, se queixou de uma inexistência de mecanismos de controle com relação aos capitais que estão aí, os capitais especulativos que estão sobrevoando os mercados. O senhor concorda com essas críticas?

José Serra: Eu concordo. O tom do presidente Fernando Henrique não foi propriamente de criticar o FMI, apenas que nós não temos instituições financeiras internacionais que disciplinem o sistema financeiro internacional adequadamente. E nós vamos ter que chegar a elas.

Tão Gomes Pinto: Quais são os caminhos para isso?

José Serra: Com entendimentos, organizando, tomando medidas, enfim, não há uma proposta clara, mas nós temos que caminhar para isso.

Ricardo Setti: Enquanto não há essas instituições, o caminho que está sendo escolhido é da coordenação de esforços entre governos.

José Serra: [interrompendo] Exatamente, então eu acho que isso vai ter mais...

Ricardo Setti: Na véspera das medidas, o embaixador brasileiro em Buenos Aires teve um encontro com o ministro da Fazenda da Argentina, quer dizer, provavelmente ele antecipou algumas coisas, tranqüilizou o governo argentino. Esse tem sido o caminho? Vai continuar sendo o caminho? Arranjos bilaterais...
 
José Serra: É, naturalmente, a envergadura, a importância deles no nível europeu, nos países da OCDE [Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, criada em 1961, composta por trinta países que defendem a economia de livre mercado],  em matéria de economia, é crucial.

José Paulo Kupfer: O governo brasileiro comunicou os argentinos das mudanças que seriam anunciadas hoje?

José Serra: O presidente Fernando Henrique pediu que a área da Fazenda telefonasse para o ministro [da Economia] Domingo Cavallo.

José Paulo Kupfer: Quando foi isso, ontem?

José Serra: Foi ontem.

[...]: Ele disse, mas sem entrar em detalhes.

Eleonora de Lucena: [interrompendo] Agora, a Bolsa de Valores argentina caiu hoje em função da desvalorização do real. O que o senhor acha que vai acontecer com a economia da Argentina, que está indo para um buraco?

José Serra: Sobre o negócio de Bolsa, a gente precisa tomar cuidado para fazer grandes análises. Outro dia, era uma sexta-feira de Carnaval, eu estava em Brasília, e meu assessor de imprensa falou: "Era bom você conversar com os jornalistas do setor, porque eles ficam dentro do ministério querendo notícias todos os dias e reclamam quando não tem". Eu disse que tudo bem. Aí o Fernando Henrique me chamou para uma reunião, eu falei para ele: "cancela a reunião". Você acredita que caiu a Bolsa por causa disso?

Eleonora de Lucena: [interrompendo] Mas não dá para negar que a economia argentina está numa recessão.

José Serra: Quer dizer, à noite eu ia viajar, encontrei um cidadão que disse: "Perdi dinheiro por sua causa, você marcou uma entrevista e depois desmarcou, então a Bolsa achou que tinha alguma coisa de privatização que depois veio para trás etc".

Eleonora de Lucena: A economia argentina está numa recessão incrível, independentemente do que ocorre.

José Serra: Ainda não está, pode entrar.

Eleonora de Lucena: Não, está. As empresas argentinas estão começando a entrar em falência e as economias brasileira e argentina são intimamente ligadas. O que vai acontecer? O Menem corre o risco de não se reeleger em função dessa desvalorização de hoje?

José Serra: Bom, eu não vou entrar aqui na análise do Menem. Sou membro do governo, imagina dar palpite sobre a eleição de outro país!

Matinas Suzuki: Ministro, vamos raciocinar. Havia um medo terrível na Argentina de o Brasil mexer no câmbio, porque isso pode trazer mais problemas para a economia argentina. Qual é o risco para o Brasil? O risco, nesse caso, é que os investidores internacionais achem que Brasil e Argentina são a mesma coisa etc, e não apareçam mais. Quer dizer, eu acho que, em alguma instância, essa decisão pesou, quer dizer, havia uma dependência de negociações bilaterais com a Argentina que até atrasaram essa mexida no câmbio.

José Serra: Não, de forma nenhuma. Posso garantir o seguinte, não houve nenhuma consulta prévia à Argentina e nenhum pedido da Argentina. Há dez dias, estivemos em Foz do Iguaçu [cidade paranaense de fronteira], num encontro com a Argentina. Devo ter conversado cerca de uma hora com o ministro Cavallo, e em nenhum momento ele manifestou apreensão, podia ter falado. Por outro lado, nós não deixaríamos de fazer o que fosse adequado para o Brasil, em função da situação argentina, embora queiramos que a Argentina esteja bem, é importante para o Brasil, estamos torcendo para isso. Agora, a Argentina tem outro esquema de política econômica. Inclusive, no caso argentino, há uma relação fixa por lei entre o peso e o dólar [paridade fixa entre a moeda argentina e o dólar, instituída em 1991], esse não é o caso brasileiro. Acho que, no caso argentino, essa estratégia foi até correta, funcionou, a Argentina cresceu com estabilidade quase 35% em quatro anos, um recorde histórico. Quer dizer, não há processo econômico que não apresente problemas. Estamos torcendo para que a Argentina saia bem dessa situação.

Matinas Suzuki: Bem, faremos agora um breve intervalo e voltamos daqui a pouco com o ministro do Planejamento José Serra.

[intervalo]

Matinas Suzuki: Voltamos com o programa Roda Viva, que hoje está entrevistando o ministro do Planejamento, José Serra. O governo baixou hoje um pacote de novas medidas, mexeu no câmbio. Se você quiser saber como vai ficar a sua vida daqui para frente, envie as suas perguntas pelo telefone (11) 252-6525. Bem, agora vamos ver mais um pouco das imagens de arquivo do ministro José Serra.

[Comentarista]:
Nos 57 anos de vida da União Nacional dos Estudantes, nunca se fez tanta política como em 1963. De um lado, o presidente da UNE, José Serra, era recebido pelo presidente e governadores. De outro, a entidade se envolvia profundamente com a produção de uma cultura de vanguarda. Dos centros populares de cultura, surgiram talentos como o poeta Ferreira Gullar [ver entrevista de Ferreira Gullar no Roda Viva], o teatrólogo Vianinha e o cineasta Cacá Diegues [ver entrevistas de Cacá Diegues no Roda Viva]. Colocada na clandestinidade em 1964, a UNE ainda tentou resistir, mas nos 15 anos que se seguiram, a violenta repressão policial a deixou paralisada. Os estudantes voltaram à rua em 1992, pintaram o rosto e ajudaram a derrubar um presidente [refere-se ao impeachment do presidente Fernando Collor], mas a UNE corria atrás das passeatas. Nunca voltou a ter o prestígio de trinta anos atrás.

Matinas Suzuki: Ministro, do que o senhor tem mais saudade: dos cabelos ou da UNE?

José Serra: Da idade!

[risos]

Matinas Suzuki: O senhor participa de um governo exilado. Agora, como é para o senhor passar de estilingue à vidraça, quer dizer, como o José Serra que militou na esquerda se sente?

José Serra: Olha, eu acho que é uma conseqüência. Se você está na vida pública...Na verdade, entrei na vida pública na época de estudante, porque vida pública não é só cargo de governo, não é? É uma atuação que tem a ver com o conjunto da sociedade, então é uma conseqüência natural, para mim não é uma quebra de continuidade. Agora, claro que, olhando de trinta anos para cá, muda muita coisa, mudou o mundo, muda o Brasil, muda a gente.

Eliane Catanhêde: Ministro, uma coisa curiosa. Olhando esse currículo todo que a gente conhece, o senhor foi o senador mais votado do país, foi um secretário bem-sucedido em São Paulo, foi presidente da UNE. Por que sua escolha para o ministério foi tão polêmica? O que é polêmico nisso?

José Serra: Não sei, você pode responder...

Eliane Catanhêde: [interrompendo] Eu não, a imprensa inteira. De todos os ministros escolhidos, o senhor foi o mais polêmico.

José Serra: Mas Eliane, houve muita fantasia também em torno disso.

Eliane Catanhêde: Mas não tem uma personalidade difícil também?

José Serra: Eu não acho que eu tenha uma personalidade difícil.

Eliane Catanhêde: Mas o senhor ouve muitas críticas, vê jornal, faz uma autocrítica sobre isso, já que pretende ser governador de São Paulo, presidente da República?

José Serra: Não, eu acho engraçado. Há uma construção, fico fascinado, olhando como observador externo.

Eduardo Gianetti: Observando sua própria imagem?

José Serra: Não, a imagem que as pessoas fazem, entendeu? Eu acho engraçado, às vezes...

Eleonora de Lucena: [interrompendo] Agora, ministro, sua trajetória política e das suas idéias, nesse período, se modificou. O senhor teve idéias ligadas à esquerda. Agora, os últimos acontecimentos desde o México para cá, avivaram as críticas ao modelo neoliberal [neoliberalismo]. O senhor acha que a crise desencadeada pelo problema do México, pela Argentina, por tudo que está acontecendo nos últimos três meses, está colocando em xeque as idéias neoliberais que o senhor defende hoje?

José Serra: Olha, primeiro eu não defendo idéia neoliberal nenhuma. Segundo, não há o tal modelo neoliberal. Terceiro, existe uma crise econômica, seja o modelo neoliberal ou velho liberal etc. Quando você tem uma situação internacional com perturbação, é evidente que nenhum país no mundo, tão internacionalizado, é imune a elas. Quando os fatos mudam, mudo minhas conclusões. Você tem que raciocinar em função dos dados da realidade.

Eleonora de Lucena: Como o senhor se define hoje, então? O senhor não é neoliberal...

José Serra: Certamente, não é nada nem neoliberal, nem anti-neoliberal.

José Paulo Kupfer: Ministro, em um excelente artigo publicado na [revista] Veja em 1990, que eu considero até uma espécie de  plataforma ou testamento...

José Serra: [interrompendo] Que artigo? Artigo de quem?

José Paulo Kupfer: Seu.

José Serra: Ah, meu?

José Paulo Kupfer: Seu. O senhor diz que, em dez anos, o Brasil foi um dos mais ativos laboratórios de experiência econômicas do mundo, no que se refere à inflação. Foram tentadas fórmulas ortodoxas, heterodoxas, semi-ortodoxas, semi-heterodoxas e orto-heterodoxas. O senhor se enquadraria em qual dessas classificações? O Plano Real entra em qual delas? Ou não é nenhum desses caminhos?

José Serra: Não, eu realmente sinto muita reação para ficar me enquadrando em escolinha. Na verdade, eu tenho uma formação como economista na época da minha vida de intelectual, na universidade, heterodoxa. Tenho um certo inconformismo com as análises tradicionais, prevalecentes, não gosto muito quando uma idéia de repente passa a virar dogma, de repente muda a coisa, não vê diferentes aspectos. Então eu acho difícil esse tipo de enquadramento. E eu não divido as pessoas entre ortodoxos e heterodoxos, divido entre gente que sabe analisar, que é sensata e gente que não é. E aí você pode ser de esquerda, direita, o que for.

Eliane Catanhêde: Ministro, agora uma divisão que pode fazer o economista pragmático e o político que tem pretensão futura -  inclusive isso está na entrevista da revista Playboy - de ser governador de São Paulo e até candidato à Presidência da República.

José Serra: Não, isso o entrevistador pôs que eu disse, ele não pôs nem que eu disse isso, o entrevistador me perguntou.

Eliane Catanhêde: Não, é o que ele disse. Enfim, o senhor tem pretensão para a política, não esconde isso, e agora existe uma polêmica entre governo de São Paulo e o governo federal em torno do Banespa [Banco do Estado de São Paulo]. Quer dizer, se você fizer uma consulta, em São Paulo você vai pegar sindicalista, empresário, político de esquerda, de direita, ortodoxo ou não, que é contra a privatização do Banespa e você chega em Brasília e é consensual a posição favorável à privatização. E o senhor? O senhor, nesse caso, é um economista pragmático ou um político paulista?

José Serra: Nesse caso, como em tudo, sou as duas coisas ao mesmo tempo. Mas a questão do Banespa...acho que o enfoque em torno de privatizar não é o mais importante neste momento, porque o problema do Banespa hoje é a dívida do governo de São Paulo com o banco, que é contratual, de dez bilhões de reais. Pois bem, se essa dívida não foi equacionada, o Banespa não pode ser privatizado, nem continuar funcionando como um banco normal, você percebe? Então há uma questão que é anterior a essa, eu acho que a questão da privatização vai ser uma decisão do governo de São Paulo, porque o Banespa é um banco do governo de São Paulo, mas ela só vai poder ser tomada, uma vez equacionada essa outra questão.

Eduardo Gianetti: Mas, ministro, o Brasil tem 31 bancos estatais, incluindo os bancos federais, estaduais, regionais e as Caixas Econômicas. O Brasil precisa de 31 bancos estatais?

José Serra: Não.

Eduardo Gianetti: Só o Banco do Brasil tem 125 mil funcionários e uma despesa com pessoal de 1,5% do PIB [Produto Interno Bruto] brasileiro. O Brasil agüenta carregar nas costas tantos setores públicos?

José Serra: Não, eu acho que banco estadual, de propriedade do governo estadual, não tem sentido. Outra coisa são as realidades que vão se criando, está certo? Eu acho que o Banco do Brasil tem um papel no Brasil, eu acho que seria errado o governo se desfazer do Banco do Brasil, ele tem um papel hoje de apoio inclusive à agricultura, que é indispensável.

Eduardo Gianetti: E para isso precisa de 125 mil funcionários?

José Serra: De jeito nenhum, não, não. Isso não justifica nada em matéria de desperdício, nada disso. O fato é que se chegou a essa situação. Na época do governo Montoro, nós deixamos o Banespa arrumadinho, o presidente do Banespa era o ministro Bresser Pereira [economista e político brasileiro. Foi ministro da Fazenda do governo Sarney em 1987, ministro de Administração Federal no primeiro governo de Fernando Henrique e ministro da Ciência e Tecnologia em 1999. Presidiu o Banespa entre 1983 e 1985], tinha uma diretoria excelente, o Banespa se tornou competitivo com o Itaú e com o Bradesco, que também são bancos de varejo, com grande número de agências. Depois, não por culpa dos funcionários, você sabe que o Banespa tem bons funcionários...

Eduardo Gianetti: [interrompendo] Sem dúvida.

José Serra: Mas por culpa dos governos estaduais, se levou o banco a essa situação. O problema do Banespa é a dívida do governo do estado, fora outros créditos ruins dentro da área privada. Então, o drama do banco público é esse. Você elege uma administração séria, competente, mas como nós estamos num processo democrático e é ótimo que assim seja, você tem alternância de poder, então de repente elege-se alguém que resolve faturar obras às custas do Banespa.

Eduardo Gianetti: Se consertarem o brinquedo e devolverem para a mão dos políticos, pode perfeitamente acontecer de novo?

José Serra: Não com o Mário Covas, porque ele...

Eduardo Gianetti: [interrompendo] Pois é, mas quem garante que o sucessor do Mário Covas não abuse de um banco estatal e resista à tentação de usar um banco para fins políticos?

José Serra: Eu acho que esse é um problema, por isso que essa discussão tem que ser feita a respeito do futuro dos bancos estaduais e resolver os problemas que são fundamentais, eu insisto nisso. Não tem como privatizar o Banespa com essa dívida.

Matinas Suzuki: Ministro, sobre privatização, eu estou me afogando em fax de leitores, porque hoje realmente há muita coisa a ser perguntada.

José Serra: Pode prorrogar o programa, vim de Brasília para isso.

Matinas Suzuki: Tem uma pergunta do José Franzoni, de São Bento do Sul, Santa Catarina; do Antônio Sanze, de Porto Alegre; do Sílvio Balbierato, de Campo Grande; e todas elas são sobre privatização. Basicamente eu gostaria que o senhor respondesse duas perguntas. Uma delas é do Luís Fernando Veloso, que é daqui da capital: qual será o modelo de privatização do setor elétrico? A Eletrobrás será privatizada? E o senhor Peter Covaneviki, de São Paulo, pergunta o que acontecerá com a privatização da Telebrás.

José Serra: Olha, a Eletrobrás é o que se chama de uma holding, composta de várias empresas de energia elétrica. É intenção do governo tocar a privatização nessa área. Neste momento, em matéria de hidrelétrica, pegar as que estão no meio, porque não há nada mais estúpido, do ponto de vista econômico e social, do que uma obra no meio.Você está pagando juros pelo dinheiro que empatou lá, a obra está se deteriorando e não teve retorno nenhum.

Eduardo Gianetti: [interrompendo] Quanto custa isso para o país?

José Serra: E nós estamos agora embarcando na privatização de distribuição de energia elétrica, como a Light e a Eletropaulo. Vamos partir para privatização na área de geração. No caso da Telebrás é a mesma coisa, parecida com a questão da Eletrobrás, na verdade o que vale são as empresas de telecomunicação estadual, e é pensamento do governo em avançar em privatização, inclusive em relação a essas empresas.

Matinas Suzuki: Ministro, hoje também outra medida importante para o nosso telespectador foi que governo vai deixar de antecipar o salário do funcionalismo federal. O senhor podia explicar essa medida?

José Serra: É que o funcionalismo federal recebe hoje, no dia 20. Isso veio da Constituinte, porque a nova Constituição estabeleceu que o governo tem que enviar os recursos para o legislativo e para o judiciário até o dia 20, então o legislativo e o judiciário passaram a pagar no dia 20. O legislativo começa a pagar no dia 10 do mês. Então, posteriormente, isso foi estendido, não por requisito constitucional. Na verdade, se tivesse dinheiro para isso, não teria problema, porque, enfim, se puder, ninguém quer criar nenhuma dificuldade. Mas isso representa uma situação difícil em um ano em que a gente tem que arrumar a questão fiscal, por isso nós estamos tomando providências para que o pagamento no funcionalismo federal e das empresas estatais seja feito até o dia 5 de cada mês, como, aliás, acontece em toda a economia, permitindo a antecipação do dia 20 de 40%, quando houver recurso. Na empresa privada isso também é feito, mas não é obrigatório por lei.

Matinas Suzuki: Outra pergunta: igreja tem de pagar imposto?

José Serra: Olha, a Constituição dá imunidade aos templos religiosos. Eu não sou contra imunidade tributária a um templo religioso, mas, na verdade, nessa parte há muita confusão a respeito de imunidade. Nós chegamos hoje na seguinte situação: eu sou filiado a uma empresa prestadora de seguro saúde, minha família tem. Por conta da advocacia tributária e interpretações da Constituição, esse pessoal não paga imposto de renda. Você acha correto? Não, não paga, acaba não pagando, isso tudo porque está cravado na Constituição. O que eu defendo é que isenções sejam feitas por leis, porque quando você bota na Constituição, isso dá margem às interpretações mais inacreditáveis e a que coisas não sejam pagas. Então se você me perguntar se sou a favor de uma igreja pagar imposto, não, não sou. Agora, a maneira como isso tem que ser estabelecido é que eu colocaria em discussão.

[sobreposição de vozes]

Eliane Catanhêde: E a quebra da reserva de mercado no setor saúde?

José Serra: Olha, eu acho que a entrada de empresa estrangeira na área de seguro de saúde não tem nenhum problema.

Eliane Catanhêde: E por que está essa confusão então?

José Serra: Não sei.

Eliane Catanhêde: O senhor não sabe?

José Serra: Porque a imprensa publica...Eu nunca discuti com o Jatene [então ministro da Saúde], nunca houve uma reunião em que ele dissesse uma posição e eu ao contrário, mas acabou saindo da imprensa. Você sabe de uma coisa? Tinha até uma reunião com ele hoje à tarde, que eu não pude ir, porque eu vinha para o programa.

Eliane Catanhêde: Agora, ministro, porque não está no pacote da Previdência? Tem que ser um pacote específico de saúde?

José Serra: Não, não está, porque a proposta da Previdência se restringiu à Previdência e depois, a emenda constitucional vai ser decidida soberanamente no Congresso Nacional, não há nenhuma de dificuldade de se colocar isso. Agora, eu sou a favor de maior concorrência na área dos serviços de saúde, de seguro de saúde, por que não?

Eliane Catanhêde: Será que é um medo do governo em relação a essa forte bancada?

José Serra: Não é medo nenhum, o governo nunca tomou posição contrária.

Eliane Catanhêde: Porque no Congresso vocês têm uma forte bancada que tem interesses consolidados nessa área.

José Serra: Olha, eu nunca recebi nenhuma manifestação contrária à permissão de ingresso de empresas estrangeiras na área do seguro de saúde. Eu acho que seria bom ter mais concorrência nessa área, porque é uma área problemática, cara, cada consumidor tem reclamações, e você tem mais concorrência. É bom ou não é?

Ricardo Setti: Pois é, mas o governo vai tomar alguma iniciativa para mexer nisso?

José Serra: [interrompendo] Não, mas a idéia é que não proíba, mesmo que não tenha emenda no Congresso.

Eleonora de Lucena: Agora, o governo já mandou um primeiro bloco de medidas na área econômica, deve mudar a Previdência e a questão da reforma tributária vai ficar para 1997, pelo menos é o que tem sido dito...

José Serra: Não, não.

Eleonora de Lucena: O governo não está muito lento na exposição da sua reforma constitucional?

José Serra: Não.

Eleonora de Lucena: O governo não tem uma força política para impor uma rapidez maior a essa reforma constitucional? Porque a análise que se faz e que se observa, ouvindo tanto empresários como políticos, é que o governo está excessivamente lento na apresentação das suas reformas.

José Serra: Não está lento. O sujeito diz que está lento e depois não sabe explicar o porquê. Na verdade, não está lento, por isso é que não consegue explicar. Mas veja só, já foram as emendas da ordem econômica, as da Previdência vão agora, esta semana.

Eleonora de Lucena: Esta semana?

José Serra: Já estão prontas há duas semanas. Claro que se você tem mais tempo, o que você faz? Você revisa. A da reforma tributária deve ir provavelmente no final da semana que vem, eu acho que é uma mistura de coisas. Uma coisa é quando entra em vigência as reformas do sistema tributário e outra é quando o governo envia e aprova, porque se você faz uma mudança na Constituição, na parte tributária, você precisa ler.

Eleonora de Lucena: E qual é o seu cronograma?

José Serra: Você também tem o problema da anualidade, entendeu?

Eleonora de Lucena: Sim, na questão fiscal isso é claro.

José Serra: Na Constituinte, você aprovou a Constituição em outubro, só entrou em abril do outro ano.

Eleonora de Lucena: Agora, qual é a sua previsão?

Denise Campos de Toledo: Justamente por esse ponto, o governo não deveria ter mais pressa na aprovação?

José Serra: Nós estamos apressadíssimos, o Congresso é que tem o ritmo dele, que pediu que nós mandássemos, inclusive no caso da Previdência, que demorasse um pouco mais, porque não iam começar a trabalhar, porque tinha o Carnaval...

José Paulo Kupfer: Qual é a reforma?

[sobreposição de vozes]

José Serra: E veja, não é só tributária, tem inclusive a de gasto público. Tudo é importante, coração, pulmão, fígado, tudo é importante. Mas eu diria que a mais importante se refere à questão de gasto público, de mudanças na Constituição em relação à questão do orçamento, administração pública. Tudo isso vai ser enviado.

Eleonora de Lucena: Quando a reforma da Constituição estará pronta?

José Serra: Oha, eu calculo que a parte econômica vai ser a primeira a ser aprovada em uns três ou quatro meses, não é pouca coisa.

Eleonora de Lucena: Três ou quatro meses?

José Serra: Se você considera que a ordem econômica foi a causa da não-realização da revisão constitucional, o que o Brasil mudou é fantástico, extraordinário e positivo, eu acho que a gente tem que valorizar isso. Agora, o resto eu diria que é para setembro ou outubro, é um palpite.

Eduardo Gianetti: O Fundo Social de Emergência está previsto para terminar no final deste ano. As reformas aprovadas ao longo do ano serão suficientes para substituir o papel do Fundo Social de Emergência [emenda constitucional criada em 1994 que dá ao governo liberdade para dispor de 15% a 20% de todo o orçamento da União para combater a inflação e equilibrar os juros. O objetivo é o saneamento financeiro da Fazenda Pública Federal, com a aplicação prioritária de recursos em programas relevantes de interesse econômico e social]?

José Serra: Claro, se essas reformas ficarem para 1997, vamos pedir a prorrogação do Fundo Social de Emergência.

Eduardo Gianetti: Que medidas seriam importantes para que o Fundo Social de Emergência não fosse prorrogado? O que o governo espera?

José Serra: Basicamente, eu acho que as da ordem econômica, tributária e do gasto público, é um conjunto.

José Paulo Kupfer: As tributárias quais são? Quais são as quatro principais medidas da reforma tributária que o governo vai oferecer? Basicamente, nós conhecemos a história da junção do ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] com o IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados], também seria bobagem se o ISS [Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza] municipal entrar nisso ou ficar de fora. É isso que é a reforma tributária?

José Serra: Não, esse é um ponto importantíssimo, você está falando como se fosse pouca coisa.

José Paulo Kupfer: Não, não, não, mas e o resto? E os 14 estados que não se agüentam por conta própria?

José Serra: Bom, mas não se agüentam por conta própria não é por causa de arrecadação.

José Paulo Kupfer: E o fato, e a base de tributação? E a cobertura da tributação? 55 mil empresas brasileiras respondem por 80% do ICMS.

José Serra: Eu acho a sua pergunta muito oportuna. Reforma tributária não é para aumentar a receita do governo.

José Paulo Kupfer: Não, não.

José Serra: Eu não estou dizendo que você está dizendo o contrário, estou aproveitando para esclarecer. Reforma tributária não é para aumentar a receita do governo, isso você aumenta combatendo sonegação e aumentando alíquotas ou criando novos impostos, está certo? Reforma tributária é o segundo objetivo que você tem, para melhorar o funcionamento do sistema tributário em relação ao desempenho da economia. Há muita confusão, tem gente que fala de reforma tributária para pagar menos imposto, tem gente que quer arrecadar mais. Na verdade, não é que não exista problema de arrecadação, mas a reforma não é para isso. Segundo ponto que nós devemos levar em conta para a questão do déficit público: há três esferas de governo. Para grande parte dos municípios, de 1988, quando foi promulgada a Constituição, para agora, as receitas reais, descontada a inflação, cresceram em alguns casos, 50 a 60%. No caso de estados, o crescimento foi de 20 a 30%, está certo? Onde não cresceu foi no governo federal e na administração direta, como saúde, ciência e tecnologia, em que praticamente caíram as receitas, porque aumentaram os encargos e as vinculações. Então, se algum estado tem problemas, ele tem que resolver o problema de déficit cortando gasto e não aumentando mais o imposto de ninguém, não tem cabimento.

Eduardo Gianetti: Mas a União pretende repassar para os estados e municípios, em áreas como saúde, educação, universidades federais, por exemplo? O governo federal pretende mantê-las sem qualquer condição de financiá-las?

José Serra: Eu acho que deveria. De 1988 para cá, já houve uma descentralização considerável, a Constituição não proíbe isso. Ao contrário do que se diz, ela não centralizou encargos. O problema é que no Brasil, governo em geral é considerado governo federal. Estados e municípios são considerados entidades beneficentes, esquecendo-se que estados e municípios pagam o dobro de salários do que o governo federal paga. Portanto, são entidades importantes no Brasil para efeito da vida das pessoas, para o desenvolvimento e tudo mais. Eu acho que essa descentralização tem que avançar, o problema das universidades federais é eminentemente político. E é normal que seja assim. É evidente que as esferas de governo estadual e municipal preferem transferência de recursos, mas não de encargos, é óbvio isso, está certo?

Eduardo Gianetti: Mas o governo federal não pode continuar gastando 70% do orçamento em educação com as universidades federais, é uma distorção muito grande.

José Serra: Mas você sabe que a educação tem 18% dos impostos de vinculação, tudo isso vai para as universidades federais.

Eduardo Gianetti: Se justifica?

José Serra: Ao meu ver não. O Brasil gasta em ensino superior público duas vezes mais do que gasta em educação secundária. Em nenhum país bem educacionalmente você tem isso.

Eduardo Gianetti: Há alguma iniciativa para corrigir essa distorção?

José Serra: Eu acho que aí é um caminho, é um processo que você tem que ir vendo o que é fundamental, mas eu estou de acordo com você quanto ao diagnóstico.

Denise Campos de Toledo: Ministro, agora se não é para aumentar a arrecadação, se não é para reduzir a carga tributária, qual que é o objetivo básico do governo com as propostas de reforma tributária? E quais serão os pontos principais?

José Serra: Eu vou te dizer um: aumentar a competitividade da economia brasileira, porque hoje o que está acontecendo é que uma importação às vezes paga menos imposto do que a produção doméstica do mesmo produto, por distorções.

Denise Campos de Toledo: Então vai reduzir a tributação de produção?

José Serra: As exportações ainda são tributadas, e pelos estados também. Não pode acontecer isso, porque o mínimo, para você ter uma nação, por mais descentralizada que seja, é que tenha uma única política monetária unificada e uma única política de comércio exterior. No Brasil, você não tem tido as duas coisas, porque os bancos estaduais têm criado dinheiro, emitido dinheiro e segundo, os estados tributavam de maneira anárquica as exportações. Temos que recuperar essas duas condições.

Denise Campos de Toledo: Como se chega a isso?

José Serra: No caso tributário, nós já estamos fazendo emendas permitindo isso, unificando isso. O que quer dizer? Imposto sobre exportação será só federal.

[sobreposição de vozes]

José Paulo Kupfer: Desculpa, esse objetivo não é atendido quando se mantém o ICMS, impostos estaduais. Eles vão continuar guerreando.

José Serra: Não, não, você dá imunidade às exportações em relação ao ICMS.

José Paulo Kupfer: Sim, mas e todo o resto? Vão continuar guerreando.

José Serra: Não, mas estou falando de comércio exterior. O Brasil hoje precisa vender, tem uma economia aberta, nenhum país é tolo de tributar suas exportações e perder competitividade, menos empregos e tudo mais, pois nós estamos fazendo isso. Não é que você nunca deva tributar exportação, às vezes quando um produto sobe muito de preço, quando você tem problema de abastecimento interno, justifica você botar um imposto, mas tem que ser um imposto federal de política econômica que você põe e tira, e não um imposto dos governos estaduais.

Denise Campos de Toledo: Mas e a carga na produção, que é voltada para o mercado interno, como é que fica?

José Serra: Bom, a idéia é não pagar imposto, exportação, bens de capital, ou seja, máquinas e equipamentos para baratear o investimento. Precisamos de emprego no Brasil. Para ter emprego, não conheço outra forma que não seja investindo. Nossa idéia é tirar imposto de insumos agrícolas para ter alimento mais barato; segundo, máquinas e equipamentos; terceiro, exportação.

Eleonora de Lucena: Eu queria lhe pedir uma análise do desempenho do real. Quando o presidente assumiu em janeiro, a situação econômica e situação do real pareciam ser bastante favoráveis para o governo. Hoje, o cenário parece ser bem diferente, o governo admitiu essa a mudança de cenário com o "real 2", o que será?

José Serra: Não é "real 2".

Eleonora de Lucena: Não, é uma mudança substancial do plano.

José Serra: Não é "real 2". Se você mudar os seus óculos, emagrecer ou engordar um pouquinho, vou dizer "Eleonora dois"?

Eleonora de Lucena: Mas não é uma mudança estética. É uma mudança no conteúdo de uma das principais medidas, âncoras do plano. O que vai acontecer daqui para frente? O real corre risco?

José Serra: Veja, a situação atual da economia brasileira está boa, nós tivemos, em fevereiro, inflação inferior a 1%, está certo?

Eleonora de Lucena: Mas as previsões para março superam os 2%.

José Serra: Espera um pouquinho, tivemos uma inflação inferior a 1%. A economia está crescendo, o emprego...

Eleonora de Lucena: [interrompendo] Mas já dá sinais de arrefecimento.

José Serra: Em São Paulo, foram criados trezentos mil empregos no ano passado, então o real vem vindo bem, a situação do balanço de pagamentos, de reservas etc. As reservas brasileiras dão para 13 meses de importações.

Eleonora de Lucena: [interrompendo] Mais ou menos, muitas vezes não. Essas reservas têm que pagar os credores externos,  não são tão confortáveis assim.

José Serra: Eu estou respondendo a pergunta, estou respondendo. Então o que acontece? Tem problema na área fiscal, do déficit público, da velocidade excessiva de crescimento da economia e de perturbações na economia internacional.

Eleonora de Lucena: E a saída de dinheiro?

José Serra: Estamos interferindo nisso, atuando, antes que esses problemas se agravem.

Eleonora de Lucena: [interrompendo] O dinheiro está saindo do Brasil. A cada mês, saem quase dois bilhões de dólares.

José Serra: O nível de reservas é confortável, é confortável.

Eleonora de Lucena: Agora, se computar o que o Brasil precisa pagar para os seus credores, se computar esse dinheiro volátil que é do mercado financeiro, sobra muito pouco.

José Serra: Mas qual dinheiro volátil? Não há paralelo entre Brasil e México, por exemplo.

[sobreposição de vozes]

Eleonora de Lucena: [interrompendo] Mas o dinheiro só tem saído, concretamente.

[sobreposição de vozes]

José Serra: O dinheiro de curto prazo que sai não faz falta.

Eleonora de Lucena: Sem promessas, sem promessas.

Matinas Suzuki: Por favor, ministro. Sobre isso, nós temos aqui uma pergunta do Valdir Amado, da Vila Mariana, que toca num ponto que eu acho que é importante: com a queda vertiginosa do dólar, principalmente no Japão, como o Brasil poderá tirar proveito dessa conjuntura?

José Serra: Paradoxalmente, a desvalorização do dólar ajuda as exportações brasileiras. Há uma pressão menor sobre o real. Veja, eu não estou aplaudindo que o dólar tenha problema, mas não nos prejudica nesse aspecto.

Matinas Suzuki: O Bruno Colasso, de Campinas, faz três perguntas para o senhor: se o senhor tivesse uma dívida em dólar hoje, o que o senhor faria? Pagaria antecipadamente? Tentaria adiar ao máximo e aplicaria os recursos em reais aproveitando os juros altos atuais? Buscaria uma forma de aplicação vinculada à variação cambial que lhe garantisse juros reais relativamente pequenos em dólar? Você vê que nosso telespectador é esperto...

José Serra: Você sabe o que eu faria se eu tivesse uma dívida assim? Arranjaria um bom consultor econômico e perguntaria a ele.

[risos]


Matinas Suzuki: Que conselho o senhor daria hoje para quem tem dívida em dólar?

José Serra: Sinceramente, procure um consultor.

Matinas Suzuki: Mas, ministro, o senhor acabou de dizer que os consultores são péssimos neste país.

José Serra: Não, não. Eu disse os consultores que dizem que essa movimentação no câmbio vai causar um grande impacto inflacionário, ou são malandros que estão torcendo por alguma especulação ou são muito incompetentes. Mas nem todos os consultores dizem isso...

Denise Campos de Toledo: Ministro, até onde o dólar pode chegar? Qual é a expectativa? O governo já anunciou que a banda de flutuação muda no mês de maio e hoje à tarde o diretor do Banco Central, Gustavo Franco, já admitiu que esse processo pode ter uma continuidade até o final do ano. O dólar chega ou passa de um real?

José Serra: Aí vai depender das condições, só isso.

Denise Campos de Toledo: Vai depender do quê, basicamente?

José Serra: De um real não passa, mas aí vai depender das condições de mercado, das taxas de juros, da evolução do balanço dos pagamentos, de um conjunto de fatos.

Denise Campos de Toledo: E essa mudança de hoje já resolve o problema de fluxo de câmbio?

José Serra: Não, a mudança de hoje, a criação desse sistema de bandas, intervalos, dá uma flexibilidade razoável para a política cambial.

José Paulo Kupfer: Aproveitando esse seu balanço ultra-positivo do Plano Real e levando em conta também o fato de que o senhor esqueceu o que disse, vou ler mais um trecho do seu diagnóstico do Brasil em 1990: "É possível extrair do Plano Cruzado, do Plano Bresser, do Plano Verão e das dificuldades do Plano Collor [planos econômicos das décadas de 80 e 90 implementados no Brasil com a tentativa de bloquear a escalada inflacionária e o déficit público], uma lição idêntica: não existe plano de estabilização que seja bem-sucedido, popular e ainda tenha uma vacina contra seus custos sociais". Quem vai pagar o custo do sucesso do Plano Real? Por enquanto, está todo mundo ganhando.

José Serra: Nós estamos conseguindo uma inflação baixa. A Eleonora há pouco disse que a inflação no mês que vem pode ser 2%, o que é bom. Não estou confirmando o que ela está dizendo...

Matinas Suzuki: Quase.

José Serra: Não, de jeito nenhum. Mas para uma inflação que estava 40% a 50%, parece uma coisa...

José Paulo Kupfer: Sim, e ainda cresceu a economia de uma maneira que até preocupa o governo, os mais pobres conseguiram chegar ao mercado.

José Serra: Se o salário aumentou, aumentou emprego, sem controle de preços e congelamento. É uma boa evolução. Agora que diferença tem o real com relação a esses outros planos? Eu não me lembro se está nesse artigo exatamente, mas eu escrevi muito sobre isso. A mobilização nacional, a vontade nacional para acabar com a inflação, é fundamental, porque o Brasil já demonstrou que não aprende por experiência alheia, nem pela própria, mas que, pelo menos pelo cansaço, poderia aprender. Eu acho que o Real está demonstrando isso. Outra diferença é a ênfase na questão do déficit público...

José Paulo Kupfer: [interrompendo] Mas quem vai pagar essa conta, ministro? Porque, no mesmo artigo, no parágrafo seguinte, o senhor diz assim: "Quem chegasse em Israel na hora do bem-sucedido plano econômico, não ia haver ninguém, nenhum cidadão falando bem da equipe econômica que fez o plano". Aqui se falou tão bem, que até se elegeu equipe econômica. Como ficam as coisas?

José Serra: Mas você sabe também que os judeus reclamam bastante, eles mesmos dizem que sempre estão reclamando e se queixando. Estive em Israel e todos reclamando porque a inflação estava 20% ao ano, os salários reais tinham aumentado  uns 3% ou 4% antes do plano. E a inflação, quando veio o plano, estava 30% ao mês. Então, na verdade, as carências são tantas, os salários, o poder aquisitivo etc, que há sempre uma pressa e uma ansiedade. Segundo, questões como essa da privatização, trazem descontentamentos, assim como cortes de gasto público.

José Paulo Kupfer: [interrompendo] Sim, mas aqui isso não houve ainda. É isso que eu estou estranhando...O Plano Real é o contrário desses planos todos, inclusive do plano mais bem-sucedido. Tem alguma coisa errada

José Serra: Não, eu estava analisando os outros planos. Finalmente nós tivemos um plano que, em primeiro lugar,  já  se passaram oito meses, nenhum durou isso. E, com as condições envolvidas, com a inflação decrescente, hoje não tem preço reprimido, você não tem ponto de estrangulamento, coisas assim. Mas, eu ainda insisto no seguinte: a vitória contra a inflação está consolidada? Eu respondo que não. Nós derrubamos a inflação no chão. Para consolidá-la definitivamente, nós temos que conseguir consolidar o equilíbrio fiscal, isso é fundamental.

Eleonora de Lucena: As medidas tomadas hoje, especialmente na área cambial, sinalizam claramente que o governo, neste momento, está abrindo mão do combate prioritário à inflação para segurar a questão.

José Serra: Não, não.

Eleonora de Lucena: Essa análise não é minha, é do Banco Mundial, foi feita hoje. Nós ouvimos técnicos do Banco Mundial que estão dizendo isso. O senhor concorda com isso?

José Serra: Você vai me desculpar, eu acredito que você ouviu um técnico do Banco Mundial, mas ele não tem mais valor do que um economista brasileiro qualquer. Não é porque o sujeito trabalha no Banco Mundial que ele está fazendo uma análise certa. O que eu vejo de besteira dita por economista estrangeiro! A imprensa aqui dá títulos grandes só porque o sujeito se chama Bill ou William, realmente...

Eleonora de Lucena: Agora câmbio é prioridade número um, não é mais a inflação?

José Serra: Não, a prioridade número um é a estabilização. O que nós estamos fazendo agora é para manter a estabilização da economia, isso que é fundamental.

Denise Campos de Toledo: Ministro, agora se a inflação de repente começa a subir nos próximos meses e o governo adotou essa nova posição em relação ao dólar, já tomou medidas para estimular exportações e desestimular um pouco as importações como no caso de veículos, como é que vai se segurar a inflação? Por onde? Já que o governo, de certa forma, está deixando um pouco de lado a âncora cambial, porque foi o que segurou a inflação, sem dúvida alguma.

José Serra: Olha, não acho que nós vamos ter um descontrole no processo inflacionário. Vamos continuar atuando na área fiscal, nas questões fundamentais e vamos atuar com determinação. O presidente da República está convencido disso. Quer dizer, o peso do governo todo se jogou, se joga e vai continuar se jogando para manter a estabilidade. E a questão do apoio, a questão do Plano Real, o que foi fundamental? Quem ganhava pouco perdia 10, 15, 20% do seu salário ao longo do mês. Quando se levou a inflação para baixo, ganhou-se poder aquisitivo. Segundo, nós não estamos baseados em condições precárias transitórias como no caso do congelamento, que em Israel até funcionou, poderia até ter funcionado no Plano Cruzado, mas não funcionou porque se deixou de lado a questão fiscal e a questão da velocidade do crescimento.

Denise Campos de Toledo: Mas tem que acontecer a reforma fiscal?

José Serra: Sem dúvida.

Tão Gomes Pinto: Ministro, eu queria esclarecer só o seguinte: duas vezes tentamos aqui obter uma resposta do senhor a respeito de que âncora nós estamos usando, a fiscal ou a cambial? O senhor evitou a resposta.

José Serra: Sabe o que acontece? Não evitei, é que o nosso programa de estabilização não é baseado em uma âncora.

Tão Gomes Pinto: Exatamente, isso que eu queria ouvir do senhor.

Denise Campos de Toledo: Mas a cambial era principal, não é?

José Serra: Não, nunca foi colocado que é âncora cambial, ou seja, como no caso argentino, a idéia de uma taxa de câmbio fixa que fica para sempre. Recorremos a uma estabilidade do câmbio como um instrumento de estabilização, mas é diferente de você ter um plano doutrinariamente baseado nisso.

Ricardo Setti: Ministro, o senhor falou, no começo, agora a pouco, quando a gente estava discutindo a questão da reforma tributária, que é permitir que a economia brasileira seja competitiva internacionalmente. E foi criada, em razão disso, essa taxa de juros de longo prazo. Mas aí falta uma série de passos, inclusive a redução de encargos trabalhistas que é proclamada. Como é que está essa questão de baixar o custo Brasil?

José Serra: O ministro do Trabalho está coordenando um grupo dentro do governo, cuja finalidade é ter uma proposta concreta de redução dos encargos salariais, que são impostos cobrados sobre os salários, que levam a uma situação tal que o assalariado ganha cem e o patrão gasta duzentos. Há um ônus altíssimo em matéria de encargos sociais. E é nosso propósito reduzir esses encargos. Estamos trabalhando uma proposta nessa direção e é pensamento do governo apresentá-la. É uma batalha duríssima, porque esse é o tipo do problema que está todo mundo de acordo.

Ricardo Setti: Os sindicatos provavelmente vão dizer que isso aí vai lesar direitos adquiridos.

José Serra: Não, não, olha Ricardo, na minha campanha para senador em São Paulo, eu apresentei na televisão essa idéia, porque há muito tempo eu defendo isso. Quer dizer, nós temos que reduzir o imposto que encarece o trabalho e que o trabalhador não recebe, só dificulta o emprego. Agora, essa tese você ouve de empresários, de todos. Quando é na hora H, o sujeito quer que você tire o encargo que beneficia o vizinho, não ele. Isso é muito brasileiro, isso é muito brasileiro!

Ricardo Setti: E o governo apresenta essa proposta ainda neste semestre?

José Serra: Nossa idéia é colocá-la, inclusive, para debate, é um tema delicado, complexo. Você tem que fazer um esquema bem trabalhado, porque é muito complicado. Também não mandamos agora para não congestionar, você já está com muita proposta de reforma aí e se você acrescentar ainda mais o volume, pode entupir as coisas.

Matinas Suzuki: Ministro, vamos ouvir a pergunta do Eduardo Gianetti.

Eduardo Gianetti: Duas perguntas bem curtas, eu gostaria de ouvir a reação do ministro. Primeiro, o senhor concorda com a afirmação de que até agora foi a parte mais fácil do Plano Real e que a parte mais difícil ainda está por vir? Ou seja, os custos, as perdas, o ônus ainda é algo a ser conquistado? E a segunda pergunta relacionada a essa é a seguinte: será que esse conto de fadas que foi o real até agora - porque ninguém teria previsto em julho do ano passado que as coisas caminhariam tão bem - não cria uma atmosfera no Congresso de que já não é mais preciso fazer tantas coisas e reformas tão profundas, porque afinal de contas as coisas estão indo tão bem, por que mexer?

José Serra: É uma boa observação a sua, excelente observação. Quer dizer como a inflação está baixinha e a economia crescendo, muita gente fica com a sensação de que está tudo numa boa, está certo? "Agora é hora de gastar", estou me referindo à área pública, não é? E isso nos preocupa, porque a situação só vai continuar boa se você fizer reformas, então o nosso empenho político é nessa direção. Por isso nós fizemos reuniões com cada bancada de partido, foram reuniões e reuniões, discutindo livremente, colocando isso com a maior liberdade. Então esse é um desafio, eu acho que você pegou num ponto que é verdadeiro, e nós estamos naturalmente lutando para modificá-lo. Quanto à questão da parte fácil e agora a época difícil, eu diria que, do ponto de vista político, sim, mas não do ponto de vista da economia real. Eu não vejo razão para a economia não manter um bom ritmo de crescimento do emprego, da produção e do consumo, eu acho que isso dá para tocar em frente. Então, do ponto de vista social, eu não vejo nenhuma fase penosa para o plano. Mas, do ponto de vista político, é indiscutível que a coisa atrita um pouco mais.

Eduardo Gianetti: Só para completar, essas reuniões da equipe econômica e dos ministros com as bancadas dos partidos, o senhor não acha que é muito fácil concordar no abstrato, ou seja, em relação à direção geral das mudanças e que a dificuldade realmente é quando você detalha e vem para o específico? Será que quando o governo definir realmente as propostas a coisa muda?

José Serra: Olha, eu acho que é mais fácil concordar no abstrato que no concreto, mas eu não menosprezo o acordo no abstrato. Eu conheço bem o Congresso, estive oito anos lá e quando uma tese não passa, o pessoal se manifesta, entendeu? Quando o clima está ruim para este ou aquele problema, você tem discurso, você tem oposição, você tem contestação. Quer dizer, o fato de que as pessoas concordem da boca para fora, em minha opinião, é extremamente importante, eu não menosprezo isso. Vamos lutar para que essa concordância teórica, abstrata, ocorra concretamente. Agora, que há problemas de resistência, isso é inquestionável.

Eliane Cantanhêde: Agora, esse apoio abstrato não veio dos governadores e dos prefeitos até agora...

José Serra: Olha, para te dar um exemplo, nós tivemos, há umas duas semanas, uma reunião com os governadores do PSDB. O que nós ouvimos deles foi só estímulo em aprofundar as propostas, radicalizar nas propostas de reforma. Não houve nenhuma palavra para moderarmos a proposta. A reunião foi com os governadores do Pará, do Ceará, de Sergipe, de São Paulo, de Minas, do Rio de Janeiro, estados muito diferentes, numa conversa íntima, que não ia para a imprensa.

Leão Serva: [interrompendo] No concreto, o governador Mário Covas...

José Serra: Com o Mário Covas à frente nessa tese.

Leão Serva: Mas ele diverge, o governador de São Paulo diverge radicalmente  da possibilidade de privatização do Banespa.

José Serra: O Mário Covas é governador de São Paulo, ele tem uma posição funcional, não é de administração federal, é administração paulista, ele quer encaminhar as coisas dele aqui, na ótica do que ele considera os interesses do governo do estado. Ele tem os problemas da dívida, de financiamentos e tudo mais. Agora eu quero dar um testemunho: nessa reunião, quem fez antes um estímulo para que o governo aprofundasse suas propostas de reforma, que são conhecidas na área de privatização, porque mexe com a ordem econômica, da previdência, do gasto público etc, foi o Mário Covas. Tivemos apoio total.

Eliane Cantanhêde: E qual foi a proposta que o governo levou para os governadores para compensar os estados exportadores?

José Serra: Aprovando essa idéia de não tributar as exportações, nossa idéia é criar um fundo para fazer um ressarcimento durante um período.  Nós não entramos em discussão nesse detalhe.

Eliane Cantanhêde: Seria um fundo temporário?

José Serra: Temporário.

Matinas Suzuki: Ministro para encerrar, eu tenho que um elenco de perguntas de pequenos empresários e pessoas que têm dívidas e que reclamam da taxa de juros: "Para produzir com trabalho honesto, nós temos que pegar juros que chegam a 300% e que vão para o governo e para o banco". Como vai sobreviver um pequeno ou médio empresário com essa política de juros?

José Serra: Olha, para o governo não vão e nem diretamente para os bancos, porque tem alguém que está aplicando, está certo? O banco intermedia. Eu acho que se os juros altos são uma coisa ruim para a economia, temos que combatê-los com políticas estruturais, fortes, na área de privatização e no combate ao déficit público, porque os juros só estão onde estão, porque o governo tem déficit e porque tem dívida. Temos que diminuir essa dívida. O objetivo é abaixar juros para ter mais investimento, mais emprego, mais recurso para educação, para saúde. Quando nós falamos em privatizar, é para ter dinheiro para diminuir dívida e direcionar os recursos do governo para as áreas da saúde, da educação, da segurança. Portanto, as mudanças na ordem econômica representam um objetivo social, como também juros menores para os produtores.

Matinas Suzuki: Bom, é o que nós queremos também, ministro. O Roda Viva termina aqui, nós agradecemos a presença do ministro do Planejamento José Serra, agradecemos também a presença e a participação dos entrevistadores e do telespectador. O Roda Viva volta na próxima segunda-feira, às dez e meia. Até lá, uma boa noite e boa semana a todos.

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