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Memória Roda Viva

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Miguel Rossetto

15/9/2003

O ministro diz que o objetivo do governo é qualificar os assentamentos rurais e regularizar os programas de crédito fundiário no país

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[programa ao vivo, permitindo a participação dos telespectadores]

Paulo Markun: Boa noite! A meta do presidente Lula para a reforma agrária é assentar sessenta mil famílias no seu primeiro ano de governo, mas há apertos no orçamento e dificuldades na aquisição de terras. Para falar da reforma agrária,  está no centro do Roda Viva o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto. Ele já foi sindicalista, deputado federal pelo PT [Partido dos Trabalhadores] e vice-governador do Rio Grande do Sul.

[Comentarista]: Gaúcho de São Leopoldo, Miguel Rossetto tem 43 anos e é formado em ciências sociais. Começou sua militância política como sindicalista, primeiro na categoria dos metalúrgicos, depois petroquímicos. Foi eleito deputado federal pelo PT do Rio Grande do Sul, em 1995, e teve atuação destacada no Congresso Nacional. Em 1998, tornou-se vice-governador na chapa vitoriosa de Olívio Dutra [um dos fundadores do PT, foi deputado federal, prefeito de Porto Alegre, governador e ministro das Cidades na primeira fase do governo Lula]. Em 2002, tentou a reeleição como vice na chapa de Tarso Genro [ver entrevista com Tarso Genro no Roda Viva], mas o PT perdeu no estado. Tido como hábil negociador, Miguel recebeu do presidente Lula o Ministério do Desenvolvimento Agrário e a missão de conduzir a reforma agrária, uma das promessas de campanha do PT. Depois de uma trégua inicial, o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra] passou a pressionar o novo governo. Segue-se um período de turbulência com invasões de fazendas e prédios públicos e um cortejo nas estradas. O Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], órgão responsável pelas desapropriações de terras e pelos assentamentos, ficou no centro da crise. No início deste mês, o governo demitiu o presidente do Incra, Marcelo Resende, e nomeou o economista Rolf Hackbart para o cargo.

Paulo Markun: Para entrevistar Miguel Rossetto, nós convidamos: Gabriel Manzano Filho, sub-editor do jornal O Estado de S. Paulo; Luiz Hafers, fazendeiro; Evandro Éboli, repórter da sucursal de Brasília do jornal O Globo; Rosane de Oliveira, editora de política do Zero Hora; Fábio Santos, editor da revista e do site Primeira Leitura; José Eli da Veiga, professor de economia da Uuniversidade de São Paulo e colaborador do jornal Valor Econômico. Boa noite, ministro.

Miguel Rossetto: Boa noite, Paulo.

Paulo Markun: O senhor concorda com essa visão de que nós vivemos numa situação...uma reforma agrária que é complicada, porque, de um lado, há uma enorme pressão do MST, e nem sempre essa pressão é estabelecida dentro do marcos legais e, do outro lado, existe uma reação dos fazendeiros e dos proprietários de terras também nem sempre muito tranqüila e, finalmente, o governo parece não ter recursos necessários para tocar a reforma agrária na velocidade desejada?

Miguel Rossetto: Reforma agrária é uma urgência para o Brasil. O presidente Lula tem ratificado permanentemente essa visão, o programa do nosso governo. Temos a responsabilidade de operar uma reforma agrária que seja capaz de assegurar emprego, trabalho e produção de alimentos para o nosso país. O Brasil é um dos poucos países do mundo com um espaço importante no campo, é um vasto território nacional para colaborar com um projeto de desenvolvimento nacional. Essa reforma agrária, portanto, é um instrumento de desenvolvimento econômico, inclusão social, produção de alimentos e geração de emprego e renda. Nossa expectativa é que possamos avançar muito, já a partir deste fim de ano, e entrarmos numa velocidade, numa qualidade no ano que vem, que dialogue com esse sentido de urgência, não só dos movimentos sociais, das pessoas que estão envolvidas e querem trabalhar, mas aquilo que para nós é uma convenção muito forte da sociedade brasileira. É evidente que uma troca de governo cria uma situação que exige uma tomada de posição, mudanças de padrão de gestão, diagnósticos, não só do governo federal como nos governos estaduais. Nós estamos criando as condições para que possamos sustentar uma exigência  da sociedade, de um novo padrão de reforma agrária que seja muito mais que uma política de assentamento de pessoas, mas que tenha a capacidade de oferecer possibilidades a esses trabalhadores assentados de geração de renda, de assistência técnica, de estímulo a uma organização produtiva e de comercialização. Neste momento, estamos trabalhando no fechamento dessa nova possibilidade de trabalho do Incra, do nosso ministério e do governo.

Rosane de Oliveira: Ministro, o senhor fala em melhorar a qualidade dos assentamentos. Isso significa melhorar a qualidade dos próximos assentamentos ou os que já estão feitos e são, hoje, em alguns casos, verdadeiras favelas rurais?

Miguel Rossetto: Dos dois. Nós temos uma prioridade que é a recuperação dos assentamentos atuais e é um desafio gigantesco. Mas, se nós pegarmos os grandes números dos diversos momentos de reforma agrária do país, desde 1985 para cá, podemos trabalhar com algo em torno de quinhentas mil famílias e cinco mil assentamentos. Os dados que nós dispomos apontam enormes insuficiências, como ausência de energia elétrica, estradas, água, assistência técnica, habitação, portanto, com condições extremamente difíceis para que esses programas sejam oportunidades para esses trabalhadores. Nós temos uma prioridade, estamos trabalhando nesse sentido, é uma demanda gigantesca. Nossa prioridade é a assistência técnica, é criar uma condição para que grande parte desses assentamentos receba padrão de assistência técnica que estimule a produção e geração de renda. Para suprir essa deficiência de infra-estrutura, estamos trabalhando não só com o orçamento do ministério, mas numa articulação entre ministérios do governo. Um exemplo: é bem provável que na semana que vem nós terminemos um convênio, um contrato, juntamente com o Ministério de Minas e Energia, para que possamos, no programa de universalização de energia, na área rural, priorizar os assentamentos. São recursos de governos estaduais e municípios, então é um forte trabalho e a nossa prioridade, neste momento, é exatamente a capacitação e a garantia da assistência técnica como porta de entrada para gerar renda, produzir e ter acesso ao volume importante de créditos. Um dos temas que já estamos operando é o processo de renegociação das dívidas recorrentes desses assentamentos, de tal forma a permitir que eles entrem no novo ciclo de crédito produtivo. E, por outro lado, obviamente, vamos avançar no programa de assentamentos com essa qualidade.

Gabriel Manzano Filho: Ministro, a questão agrária sempre foi muito importante para o PT ao longo de sua vida inteira. Estamos praticamente no nono mês nesse governo e agora é que se ouve que ele está preparando um plano de reforma agrária. Não é politicamente ruim essa demora? Não era uma coisa que deveria estar praticamente pronta ao tomar posse?

Fábio Santos: Ministro, gostaria de acrescentar uma coisa: o senhor falou que a reforma agrária é uma urgência para o país e, no entanto, como diz o colega, o PT assume o governo e não tem propriamente um plano de reforma agrária. E mais, não se sabe exatamente ao certo quanto o governo quer realmente assentar. O Paulo Markun falou, no início, que a meta do governo seria de sessenta mil assentados para este ano, e isso já não vai ocorrer. No ano que vem, parece que serão assentadas, no máximo, 25 mil famílias.

Miguel Rossetto: Deixe-me aproveitar as duas perguntas. Primeiro, quando nós falamos em reforma agrária, historicamente, trata-se de uma questão secular. O Brasil, infelizmente, não resolveu suas questões agrárias ou fundiárias. Temos urgência nessa estabilização, regularização. É um dos poucos países que não conseguiu estabilizar ou produzir um processo de democratização de acesso à terra. Por exemplo, há cem anos, neste país, se trabalha com demarcação de terras indígenas, questões ambientais. Estamos trabalhando no sentido de assegurar uma estabilidade no crescimento da estrutura e um conhecimento da estrutura fundiária deste país.  Não é novidade para ninguém o tema das grilagens, das sobreposições e articulações do nosso país, as inseguranças provocadas a partir de uma situação daqueles que não dispõem de terras, como meeiros ou arrendatários e tantas outras situações. Estamos trabalhando todas essas dimensões nos vários ministérios. Quando nós falamos da reforma agrária, temos que olhar essa enorme diversidade de produção do campo brasileiro, essa enorme diversidade da presença do trabalho no campo. Estamos falando de instrumentos de política que permitam que aqueles que estão trabalhando no campo nas mais diversas formas, continuem e tenham condições de continuar trabalhando no campo. Portanto, não falamos só da questão fundiária do acesso à terra. O que já fizemos nesses primeiros meses de governo com o objetivo de reafirmar essa estratégia de desenvolvimento rural? Estamos em uma operação com o Plano de Safra 2003/2004. Estamos operando com maior volume de recursos da história deste país para a agricultura familiar e os assentados da reforma agrária. São 5,4 bilhões de reais em execução. Abrimos o Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, criado em 1995, com o intuito de atender de forma diferenciada o pequeno produtor rural, que desenvolve suas atividades por meio de emprego direto de sua força de trabalho, integrando-o à cadeia produtiva do agronegócio], reconhecendo a diversidade da estrutura produtiva do país, abrindo crédito para os jovens trabalhadores, diversificando a possibilidade de acesso a esse crédito ao país inteiro e nacionalizando esse crédito, levando-o para outras regiões do Brasil. Iniciamos programas de garantia de renda para a agricultura familiar e novos assentamentos e estamos em execução de um seguro-safra, que é um programa específico para os agricultores no semi-árido do Nordeste. São 250 mil agricultores inscritos nesse programa de renda básica, frente à frustração da lavoura por conta da seca. Estamos recuperando um sistema nacional de assistência técnica, trabalhamos com a renegociação das dívidas. Todos esses programas fazem parte da reforma agrária. Quais são os temas que já estamos trabalhando e queremos avançar muito mais em relação à nossa capacidade de assentamento, no programa de democratização do acesso à terra? Todos nós sabemos que reforma agrária neste país é instrumento fundamental um programa de desapropriação. Isso está previsto na Constituição Brasileira: desapropriação significa a análise, vistoria de terras improdutivas e grandes propriedades, indenização por justa remuneração dessas propriedades. Temos limites financeiros que são de conhecimento de todos. Neste ano, estamos expandindo e vamos expandir no ano que vem. Estamos, portanto, recuperando uma capacidade de desapropriação do Incra, qualificando e concluindo uma avaliação do estoque de terras públicas nacionais e estaduais de empresas estaduais, de empresas estatais, financeiras e não financeiras. É possível avançarmos bastante no programa de assentamento nessas áreas públicas. Estamos num processo importante, promissor, colaborando numa relação de convênios com vários governos estaduais a partir de terras devolutas como, por exemplo, São Paulo, Piauí, e tantos estados que têm terras públicas, as chamadas terras devolutas.

Fábio Santos: Desculpe insistir, mas quantos serão assentados neste ano? Sei que a reforma agrária não é apenas o assentamento, mas a questão do assentamento é importante, porque ela aparece como uma disputa política, mobiliza o MST que está nas estradas, nos acampamentos, nas fazendas invasoras, então, afinal de contas, quantos serão assentados neste ano e no ano que vem?

Miguel Rossetto: Nosso objetivo anunciado desde o início do governo é o assentamento de sessenta mil famílias.  É o número de que nós estimávamos. Já assentamos cinco mil famílias e estamos trabalhando fortemente para aumentarmos esse número até o final do ano.

Rosane de Oliveira: Mas esse número cresceu muito, ministro. Nos primeiros nove meses de governo, aumentou muito o número de invasões de propriedade e o número de assentamentos também. Então, qual é sua perspectiva para essa nova realidade?

Miguel Rossetto: Nós estamos trabalhando e eu penso que nós vamos avançar muito até dezembro, por conta de tudo que fiz referência. Entraremos no próximo ano para atingirmos a meta de sessenta mil por conta das exigências. Uma das exigências que estamos colocando, e que cobra tempo, é esse novo padrão de reforma agrária, que tem como base a escolha da terra, a qualidade da terra, não mais reproduzir experiências fracassadas que buscavam números. Usava-se as piores áreas para os programas de assentamento, áreas com baixíssima capacidade produtiva, e o resultado nós sabemos. Estamos trabalhando nessa perspectiva. Procuramos agora o cadastro dessas famílias acampadas - porque temos hoje no Brasil e esse número muda de estado a estado pela própria natureza dessas mobilizações - que é algo em torno de cento e quarenta mil famílias no Brasil inteiro, concentradas em estados como Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, São Paulo. Mais de 85% das famílias acampadas e cadastradas dispõem de vínculo direto com a agricultura e o trabalho no campo. Isso é importante porque alguns desses que estavam acampados não dispunham de vínculo com trabalho rural...

Rosane de Oliveira: Que seriam desempregados recrutados nas favelas da periferia.

Miguel Rossetto: Exatamente. A imensa maioria é de trabalhadores rurais que saíram, perderam sua capacidade de trabalho de várias formas. No Nordeste, são trabalhadores da cana, bóias-frias que, por conta da mecanização, perdem seus empregos. A imensa maioria das famílias que se mobiliza para acessar a terra tem vínculo e experiência no trabalho rural.

Luiz Hafers: Ministro, a questão central é a pobreza no interior. Por que outras soluções mais fáceis e mais modernas, como o Banco da Terra [programa do governo instituído em 1999, cuja finalidade é conceder crédito para compra de terras e construção de infra-estrutura básica para trabalhadores rurais], sofrem implicância do próprio Incra? Por que implica-se também com arrendamento [espécie de contrato pelo qual o dono cede suas terras para uso temporário de outro que  retribui pagando com  parte do lucro ou da produção obtida com agricultura ou pecuária]? Minha impressão e de muitos é que o MST não tem interesse na solução, porque são administradores do problema. Na minha cidade, há diversos casos de Banco da Terra, há um vizinho meu que teve grande sucesso...

Miguel Rossetto: O governo está preservando os programas de crédito fundiário. É importante separar o programa de crédito fundiário com o que ficou conhecido como Banco da Terra. Banco da Terra era sinônimo de determinado padrão, tipo de programa de crédito fundiário. Por que nós encerramos o Banco da Terra e preservamos o crédito fundiário? Por duas razões. Primeiro, infelizmente, encontramos um volume enorme de irregularidades na utilização do recurso público.

Rosane de Oliveira: Que tipo de irregularidades?

Miguel Rossetto: Irregularidades como superfaturamento de terras, absoluto descontrole do padrão de gestão estadual e municipal, o crédito público utilizado para garantir pagamento à vista para o proprietário e, posteriormente, o arrendamento das áreas, montagem de associações coletivas absolutamente inexistentes, fantasmas, um conjunto de irregularidades.

Luiz Hafers: A Universidade de Viçosa fez um trabalho de sucesso, dizendo que era favorável [ao Banco da Terra] e houve pressões com relação à conclusão. O senhor está a par disso?

Miguel Rossetto: Eu desconheço isso....Mas nós temos um problema sério e estamos mudando o padrão de gestão, envolvendo mais estados, prefeituras, sindicatos e criando um controle social. É inaceitável que recurso público dessa natureza seja desviado. Já concluímos esse processo do estabelecimento de novo padrão de gestão com controle social, com controle público. Segundo, esses programas tinham grandes problemas estruturais. Quando falamos de crédito fundiário, estamos falando basicamente de dois financiamentos: compra da terra e infra-estrutura. No Nordeste, basicamente, essa infra-estrutura não é reembolsada, ou seja, ela é fundo perdido. Quando juntamos os dois financiamentos e pegamos o terceiro e eventual financiamento que é o Pronaf, somando todas as taxas de juros etc, nossos cálculos indicam uma inadimplência assustadora. Estamos diminuindo o custo desse empréstimo, de tal forma que possamos reduzir o potencial de inadimplência, portanto, faz parte do nosso programa um crédito fundiário como instrumento exclusivo de programa de reforma agrária. Agora, estamos esperando o voto do Conselho Monetário Nacional. Em dezembro, estará pronto.

Evandro Éboli: É para este ano ainda, ministro?

Miguel Rossetto: Sim, é nossa expectativa, nossa parte está rigorosamente pronta. O crédito fundiário é importante como instrumento complementar. Todos sabem que a possibilidade de trocarmos um instrumento de desapropriação de áreas pelos marcos legais faz referências às grandes propriedades por mais de 15 módulos rurais. Nós temos mais de quarenta milhões de hectares de propriedade abaixo dessa referência, que não podem deixar de ter uma utilização para gerar trabalho, emprego e renda. E aí entra o crédito fundiário. Mas a questão central é que a reforma agrária é uma política pública ativa do governo, é uma obrigação do Estado, prevista na Constituição. Ela fica à espera de algum proprietário, de alguma situação que eventualmente se disponha a entrar nesse programa. Nós achamos que esse é o grande problema desses programas, porque o Estado não pode abrir mão de instrumentos, como desapropriação, para que possa ter uma política ativa e positiva.

Luiz Hafers: O que nós estamos falando é ir além... Outra coisa que tem funcionado muito bem são os arrendamentos. Não sei se o público sabe que mais da metade da cana, hoje, é feita com arrendamento. A soja tem crescido muito com arrendamento. Precisamos da sua ajuda para que os bancos dêem financiamento à competência e não à garantia.

Fábio Santos: O arrendatário, no caso da soja, é um exemplo de sucesso.

Miguel Rossetto: Esses arrendatários que nós conhecemos, da cana, de soja, majoritariamente aqueles que se utilizam desses instrumentos, são médios e grandes proprietários. E mais: são áreas basicamente de produção, não são áreas de moradia. Há problemas quanto ao arrendamento. Primeiro, não temos nenhuma cultura nem tradição de arrendamento de longo prazo no país, todos esses arrendamentos são de curto prazo. Criar condições de investimento, de infra-estrutura e moradia, escola etc, traz um problema enorme por conta da instabilidade do processo de apropriação das terras. São instrumentos em análise, previstos em lei. Não estamos falando em novidades, pois neste país a legislação autoriza esses instrumentos.

Luiz Hafers: Mas há uma implicância com eles.

Miguel Rossetto: Não, da nossa parte não. O programa do presidente Lula contempla essas situações. O desafio nosso é usar de forma correta um instrumento de desapropriação que permite que o Estado brasileiro tenha uma postura ativa para a solução desse tema. O que interessa ao país é uma reforma agrária qualificada, e nós temos que enxergar essa enorme possibilidade aberta pela realidade brasileira.

Evandro Éboli: Ministro, o senhor tratou da questão orçamentária, que é um problema que todos os ministros estão enfrentando. Uma das poucas boas notícias que o senhor deu, este ano, é que o orçamento de 2004 para a reforma agrária seria o maior da história. Uma semana depois, o senhor desmentiu e disse que não seria mais. [risos] Qual é a razão do recuo desse recurso?

Miguel Rossetto: Houve uma alteração na previsão de receita.

Evandro Éboli: As restrições vêm de onde?

Miguel Rossetto: Há uma absoluta transparência nesse debate, todos vocês acompanharam. Construiu-se uma previsão de receitas, que foi reavaliada e cortada. Teremos uma expansão de recursos para este ano, que vai permitir que nós possamos aumentar...Temos uma boa capacidade de aquisição para reforma agrária de terras públicas - são mais de quatro milhões de hectares que o governo está avaliando neste momento - e temos algo em torno de trezentos mil hectares de empresas públicas, como o setor elétrico, que dispõem de terras que não são para suas atividades.

Evandro Éboli: [interrompendo] Nem todas aproveitáveis...

Miguel Rossetto: Exatamente, é isso que nós estamos fazendo neste momento, avaliando a qualidade dessa terra. E, por fim, há um tema que é público e importante, que é a retirada desse instrumento de financiamento fundamental de um programa de desapropriação daquilo que é o conceito de déficit primário. Para o telespectador entender, quando nós desapropriamos uma grande propriedade, que não responde pela sua função social, é improdutiva, há um pagamento ao proprietário, não há um confisco, o Estado paga esse proprietário à vista, com preços de mercado. No Brasil, confisco só é admitido quando há produção de entorpecentes. A terra é paga com títulos da dívida agrária, que podem ser resgatados de 12 a vinte anos. Mas qual é o problema? Esses títulos são resgatados em até vinte anos e, portanto, o Tesouro Nacional, a cada ano, desembolsa vinte avos desse valor. Por uma operação contábil, há uma mudança na forma com que esse dinheiro é contabilizado, de tal forma que, pelo mesmo título de vinte anos eu vou pagar vinte milhões de reais, é integralmente contabilizado, o que obviamente asfixia uma capacidade financeira. Nós estamos trabalhando nisso e eu penso que temos boas possibilidades para o ano que vem.

Paulo Markun: Ministro, nós vamos fazer um rápido intervalo.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o programa Roda Viva, nesta noite entrevistando o ministro de Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto. Ministro, vendo o senhor falar com essa competência, com esse conhecimento técnico, dá a impressão de que a restrição da reforma agrária era apenas de convencer os agentes de que essa é a melhor política e estamos andando. A sensação que eu tenho - e aí estou me despindo da função de apresentador - é que eu já assisti, aqui no Roda Viva, a uma entrevista muito elucidativa, com o líder do MST, há vários anos, e o que ficou nas entrelinhas daquela entrevista foi que, na verdade, muitas lideranças do MST estão envolvidas em um processo de luta de classes. Estão em busca de uma transformação muito significativa da sociedade, que não será resolvida apenas e tão somente com a reforma agrária. Na imprensa e reuniões, o MST fala de encarar os grandes proprietários de terra, os latifundiários, como adversários e como inimigos e daí colocam, de um lado, milhares e milhares de pessoas que não têm terras. E aí até o mais imperativo dos reacionários vai publicamente admitir que é a favor da reforma agrária. Mas, de outro lado, há os grandes proprietários de terra que dominam o sistema e daí as invasões etc. Existem essas duas coisas ao mesmo tempo?

Miguel Rossetto: Eu não gostaria de opinar sobre a sua avaliação do MST. O governo tem programas, cumpre leis, e é minha responsabilidade e do governo criar as melhores condições a partir das regras que existem no Brasil para a reforma agrária. Nessa perspectiva, estamos qualificando o Incra, que foi muito agredido ao longo dos últimos anos, nós perdemos muitos quadros do Incra, que é um instrumento operacional da reforma agrária, onde existem quadros muito dedicados. Temos que qualificar esse instrumento, agilizar o processo de desapropriação. Para você ter uma idéia, entre o processo de vistoria até o processo de emissão de posse para desapropriação, temos um prazo médio de um ano. É muito tempo, temos que encurtar isso, criar um processo mais ágil e determinado. Mas quero crer que essa imensa maioria dos movimentos sociais de luta pela terra merece o nosso respeito, mas não necessariamente nossa concordância com todas as suas táticas e opiniões. Estamos construindo condições para que possamos, definitivamente, em médio prazo, superar essa agenda de violência. Não é possível conviver com uma agenda de mortes e violência. Temos que avançar em políticas agrícolas que garantam renda e qualidade de vida, avançar no programa de assentamentos para estabilizar esse espaço do campo. Na medida em que nós conseguirmos avançar nas três dimensões, juntamente com o poder judiciário, estadual e federal,  com o Ministério Público e governos estaduais, nós teremos condições de trabalhar em cima de uma agenda de paz,  justiça, produção.

José Eli da Veiga: Ministro, gostaria de recordar um pouco o que aconteceu no governo anterior, apenas como uma forma de comparar com que está acontecendo agora e tentar vislumbrar a possibilidade de que o processo avance em vez de parar. No início do governo FHC [Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002] nem a reforma agrária, nem uma política de assentamento estavam na agenda, tanto é que os conflitos levavam a massacres [de trabalhadores rurais sem-terra e militantes dos movimentos  pela reforma agrária]. Foi depois disso que a base de apoio do governo Fernando Henrique mudou de atitude em relação à questão. Era um momento inclusive que o próprio MST era muito bem visto pela sociedade. A gente não deve se esquecer daquela novela O rei do gado [telenovela exibida pela TV Globo entre 1996 e 1997, escrita por Benedito Ruy Barbosa], que favoreceu muito a imagem que o MST tinha em relação à sociedade. Nesse contexto é que o governo começou a tentar fazer alguma coisa. E era um momento em que a terra estava baratíssima...Muitos proprietários de terra "faziam fila" para serem desapropriados, os "reis da soja" ofereciam, durante muito tempo, suas terras para serem compradas pelo governo. Algumas delas foram usadas para esses assentamentos todos mas, na verdade, não houve seleção das famílias. Houve casos em que a terra era muito boa e que os resultados foram duvidosos, porque as pessoas que foram assentadas não necessariamente eram capazes de tocar um sítio. Tocar um sítio, como a gente sabe, é uma coisa extremamente complexa, embora muita gente pense que não. Por esse conjunto de situações, mal ou bem, o governo FHC conseguiu, no segundo mandato, assentar um número de famílias absolutamente incomparável com tudo que havia sido feito antes. Conseguiu também passar para a sociedade a idéia de que: "Será que promover o acesso à terra faz com que se combata a miséria?". E as pessoas estavam sendo convencidas que sim. E hoje, em primeiro lugar, a primeira variável é que as pesquisas mostram que o MST não desfruta da simpatia que a sociedade teve há muito tempo atrás, e o senhor colou muito sua imagem à do MST. Dois, o preço da terra triplicou. O programa, que já era muito criticado por ser caro, hoje é caríssimo. O senhor citou que o preço da terra é a principal variável no custo de um assentamento de uma família. O principal fator que impulsiona esse tipo de assentamento, inclusive, é que o MST consegue que umas terras sejam desapropriadas depois de uma ocupação, mas não aceita que as famílias sejam selecionadas por critérios técnicos. A sensação que dá é a de que, mesmo tendo o governo de esquerda, liderado por um partido historicamente ligado à bandeira da reforma agrária, as condições hoje são muito piores para que o processo avance do que no segundo mandato do FHC. O senhor concorda com essa análise?

Miguel Rossetto: Eu quero fazer duas ou três observações,  é um tema absolutamente correto. Primeiro, eu acho que dois temas devem ser agregados na análise em relação ao período passado. Mais de novecentas mil famílias que dispunham de terras no Brasil, na década de 90, abandonaram o campo, não assentados. Eram famílias estruturadas, com um histórico de trabalho...

José Eli da Veiga: [interrompendo] Houve um problema sério, o último censo agropecuário trouxe uma mudança de definições. O número acaba sendo uma leitura superficial. Agora, essas definições foram outras vez corrigidas e, no próximo censo, as pessoas vão achar que aumentou muito esse número.

Miguel Rossetto: Concordamos, nós vamos ter um próximo censo agora em 2005, de base 2004, que vai ser muito importante. Mas o que é substantivo? Há uma diminuição de renda agrícola brutal no país e isso nós estamos de acordo, em toda a década de 90, na atividade produtiva rural. Pesquisas mostram que os produtos característicos da produção da agricultura familiar tiveram uma perda de renda maior do que os produtos que se sustentaram via exportação. Então, do que estamos falando? De uma insuficiência de condições para o trabalho e ausência de políticas agrícolas que garantissem renda, possibilitando a milhares e milhares de famílias sustentarem sua condição no campo. Não é razoável imaginarmos um programa com forte peso em assentamentos, mas cujo saldo líquido seja a diminuição do número de propriedades médias ou pequenas no campo brasileiro. Acompanhamos uma verdadeira contra-reforma agrária, maior concentração de terras, de tal forma que neste momento o 1% das propriedades com mais de mil hectares foi a 45% das terras do Brasil. O primeira desafio é constituir elementos de políticas agrícolas que permitam a manutenção daqueles que estão no campo e dialoguem com esses assentamentos. Uma das opções é melhorar o acesso ao crédito, recuperar assistência técnica, estimular o cooperativismo, tudo isso são instrumentos de política agrícola que abastece todo esse povo. Não há política agrária sem política agrícola. Segundo, se nós pegarmos a grande concentração de assentamentos durante o governo Fernando Henrique Cardoso, especialmente naquele período, foram na região norte do país, como Mato Grosso, sul do Pará e Maranhão. Exatamente nessas áreas é que nós temos um dos maiores índices de evasão, porque é irracional para um sujeito trabalhador, uma família, ficar numa situação em que não há escola, saúde, transporte, condição de vida. As pessoas vão embora, saem dos assentamentos, sabem que aquilo que era oferecido como condição de vida e trabalho é inexistente. As pesquisas nos mostram que daqueles assentamentos que dispõem de uma rede básica, temos taxa de evasão inferior a 10%. Então, penso que o desafio para nós é este: a grande mudança qualitativa dos setores da sociedade. É aí que entra os temas custo, desperdício e a ineficiência do programa...São recursos públicos que não têm retorno. Hoje nós trabalhamos com uma referência de vinte mil reais médio o preço  nacional por uma área de 25 hectares [um hectare equivale a dez mil metros quadrados]. O que nós estamos tentando fazer? Melhorar a escolha de áreas de tal forma a diminuir a área necessária para a grande maioria sustentar o padrão formal e burocrático que foi construído neste país de reforma agrária. Para usar uma expressão que os técnicos usam, trata-se do famoso "quadrado burro", assentamento previamente estabelecido, burocraticamente, formalmente, do Amapá ao Rio Grande do Sul onde se pega um lote e o recorta em lotes individuais, de vinte a 25 hectares, cerca-o e vai embora. Isso é ineficiente...

José Eli da Veiga: O senhor acha que os agrônomos do Incra estavam fazendo isso nos últimos anos?

Miguel Rossetto: Basicamente.

José Eli da Veiga: Eu tenho impressão que há um grande engano...Quando a gente diz que há, de fato, muito mais assentamentos na zonas mais periféricas e menos assentamentos em áreas que têm mais infra-estrutura, ambiente mais favorável ao sucesso, etc, isso está muito relacionado ao fato de que nas áreas onde temos condições favoráveis, é muito mais difícil encontrar propriedades que possam ser desapropriadas. Aí teria que ser pela compra, o que complicaria ainda mais em termos de custos. O senhor está também, mais ou menos, condenado a conseguir áreas em regiões relativamente marginais, não vai poder escapar dessa dificuldade.

Luiz Hafers: Ministro, o senhor falou em paz no campo. Não acha que ter dado a superintendência ao pessoal do MST é como tentar fazer um campeonato injusto com o Corinthians dominando o departamento de árbitros?

[risos]

Miguel Rossetto: Esse é um tema importante e que nos acompanha desde janeiro. Sou responsável pela indicação de todos os meus assessores, Incra, Secretaria de Agricultura Familiar etc. O critério que orienta essa indicação é de natureza técnica, capacidade de gestão e, obviamente, identidade com programa de fazer reforma agrária. Todos os superintendentes gestores da minha equipe têm boas relações sociais com vários movimentos, não só com esse. Não acho que o fato de um cidadão, um advogado, um engenheiro agrônomo, um economista, ter experiência, conhecimento e relações sociais positivas esteja impedido de ocupar uma função dessas. Ao contrário, isso ajuda o processo de trabalho. Os gestores do meu ministério são analisados pela sua capacidade de trabalho e penso que devem ser analisados pela sociedade por esse critério. Com todo o profundo respeito que tenho pelo senhor, essa pergunta tem uma carga de preconceito enorme....O governo Lula tem essa representação, isso qualifica o governo Lula, temos representantes classistas em vários ministérios. Acho isso correto e positivo.

Fábio Santos: Houve uma correção política com a troca do superintendente do Incra...

[sobreposição de vozes]

Rosane de Oliveira: Por que o Marcelo Resende foi demitido?

Miguel Rossetto: Certamente pelas razões que coloquei. Essa é a minha forma de governar, de gestão e, infelizmente, na avaliação de gestão, em minha opinião, havia insuficiências técnicas de capacidade de resposta operacional.

Fábio Santos: A Presidência da República disse, por meio de seu porta-voz, que a troca seria para fazer uma reforma agrária pacífica e de qualidade.

Miguel Rossetto: Eu sou ministro e é minha a responsabilidade da mudança. Tenho uma exigência de padrão de gestão pública e somos cobrados por isso. Fiz uma mudança porque há uma exigência urgente de qualidade. Esse foi o critério.

Evandro Éboli: O senhor afirmou também, na demissão dele, que havia falta de sintonia. Queria fazer outra pergunta ao senhor: se esses 29 superintendentes do Incra nos estados não fossem vinculados aos movimentos sociais, o senhor acha que a tensão no campo hoje seria pior?

Miguel Rossetto: Todos nós, que somos gestores públicos, temos uma responsabilidade a partir das exigências legais de uma conduta. Nosso compromisso é com o programa, respondendo ao presidente Lula, pela capacidade de trabalho e eficiência. Tenho viajado muito com ele, andado muito pelos estados, e nunca recebi uma crítica em relação à conduta de um superintendente. Por isso é que digo que há uma carga de preconceito, pois todas as outras áreas do governo têm representações sociais das mais distintas e não há essa análise como do Incra. Nossa tarefa política é realizar a reforma agrária, fortalecer e ampliar a agricultura familiar, criar condições para a ampliação da produção de alimentos, geração de trabalho e renda, a partir dos marcos da legalidade, de um ambiente de negociação permanente e eficiência no trabalho que estamos desenvolvendo.

Paulo Markun: Ministro, nós vamos para mais um rápido intervalo e voltamos já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com Roda Viva. A entrevista é com o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto. Ministro, duas perguntas de telespectadores, mais ou menos sobre o mesmo assunto. Dionísio de Andrade, da Praia Grande, de São Paulo, disse ser agricultor e que há dois anos se inscreveu pelo correio num programa para assentamentos do governo Fernando Henrique. Há pouco tempo, obteve informações em Brasília de que essas inscrições foram canceladas e que a prioridade agora é para quem está nas beiras das estradas. Ele pergunta se é verdade e o que vai acontecer com quem  se inscreveu pelo correio. Hélio Novaes, de Curitiba, Paraná, que era lavrador, pergunta se na citada reforma agrária estão sendo considerados os inscritos no MST ou no Incra.

Miguel Rossetto: Sobre a primeira, nós cancelamos a continuidade da inscrição, porque o nosso cadastro já dispunha de setecentas mil inscrições e, em nossa opinião, seria uma irresponsabilidade continuar um programa dessa natureza, na medida em que nós não temos capacidade de atender a essa expectativa. Estamos concluindo uma análise do cadastro, os critérios são exatamente iguais para todos, é muito importante que eles liguem ou procurem o Incra do seu estado. A reforma agrária é uma política pública de governo, nós temos critérios de acesso e essas inscrições são feitas no Incra, todo o programa de assentamento passa por um cadastramento junto ao Incra, porque isso qualifica o trabalhador para esse programa. Quais são os elementos fundamentais da qualificação? O tempo de trabalho no campo, um determinado nível de renda e a não existência de outra propriedade ou de outro programa.

Gabriel Manzano Filho: O senhor tem raríssimas vezes mencionado em detalhes o que é esse novo modelo de reforma agrária que está sendo preparado. Mas, li algumas entrevistas com algumas informações que gostaria que o senhor me confirmasse. Trata-se de um modelo que, basicamente, propõe menos assentamentos, que seriam maiores e voltados basicamente para produção. A posse da terra continuaria sendo do governo, na maior parte dos casos. O senhor confirma que é um pouco nessa direção? E isso não é uma maneira de estatizar a terra, o que não combina com o estímulo aos pequenos agricultores?

Miguel Rossetto: Deixe-me tentar ser o mais objetivo possível...A reforma agrária é um instrumento de inclusão social, de desenvolvimento econômico, de fomento à produção, portanto, pensar nesse programa significa pensar dentro de uma estratégia de desenvolvimento sustentável. Quando digo isso, é porque terra não é só o campo, que é uma paisagem, mas é esse fantástico mundo rural que é o brasileiro, que tem floresta, que tem campo, que tem tantas outras características. É evidente que um programa de desenvolvimento econômico ou de assentamentos deve levar em consideração a capacidade desse  ambiente rural. Nós acabamos com uma política democrática burocrática e formal que provocou um desastre, especialmente na Amazônia, fazendo com que trabalhadores fossem para a floresta amazônica derrubar, desmatar e plantar arroz e feijão. Estamos trabalhando nesse conceito, teremos várias reformas agrárias. Por exemplo, hoje, estamos trabalhando junto ao Ministério do Meio Ambiente o Programa de Assentamento Florestal. Nós temos condição de gerar trabalho através de programas de manejo florestal, a riqueza está em cima da terra, isso é renda. Temos que superar a inexistência de um ambiente econômico, de mercado, de atendimento nesses assentamentos. Conhecemos assentamentos que distam duzentos quilômetros um dos outros, são trinta a quarenta famílias absolutamente abandonadas. Então, seguindo critérios, vamos estimular a escala de produção e condições de criar uma boa cooperativa, um programa de assistência técnica, diminuir o custo de levar uma rede de energia elétrica, uma escola. Terceiro, vamos agregar tecnologia. Temos que democratizar a tecnologia, pois tão grave quanto a concentração da terra neste país é a concentração do conhecimento. Estamos criando parcerias com a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], com as universidades, estruturas regionais que garantam a utilização da melhor tecnologia para produção no ambiente sustentável. Temos que respeitar as culturas regionais e estaduais, mas obviamente estimulando um padrão de utilização da terra que responda a esses critérios fundamentais.

Fábio Santos: Eu gostaria de ler para o senhor uma frase dita hoje aqui em São Paulo pelo ministro José Dirceu [ministro-chefe da Casa Civil no primeiro mandato do governo Lula] a respeito da questão agrária. Ele disse o seguinte: “Não se pode ver os conflitos no campo como causa, mas sim, como conseqüência da crise econômica”. Ele está, me parece, vendo o campo como uma solução. O campo brasileiro, hoje, é responsável por boa parte do superávit comercial que o país produz e ele está dizendo que, na verdade, o que existem não são milhões de sem-terra mas sim milhões e milhões de sem renda, sem emprego, de pessoas que poderiam estar empregadas e trabalhando na cidade, caso o país estivesse crescendo. O senhor concorda com essa avaliação, é isso mesmo? O senhor acha que o problema do campo hoje é muito mais falta de renda das cidades do que efetivamente falta de terra para as pessoas? O senhor, por várias vezes aqui, deixou mais ou menos claro que o foco principal da reforma agrária não é exatamente assentamento, tanto que no ano que vem estão previstas apenas 25 mil famílias assentadas. A reforma agrária seria então...

Miguel Rossetto: Reforma agrária aqui, na China, na Bolívia, no México, é democratizar o acesso à terra. Reforma agrária é uma questão fundiária. O que nós discutimos aqui foi exatamente como lançar um programa de reforma agrária que seja para além de um programa de assentamento. Qual é nosso desafio, já que tratamos de um tema secular e gravíssimo? Os conflitos fazem parte  da nossa história. A sociedade brasileira sabe diferenciar a linha que separa o direito à manifestação, o direito à opinião e a existência de conflitos. O que é inaceitável é a violência. Não é possível continuar assistindo às mortes no campo. Nosso desafio é entender que essa grande reforma do agrário brasileiro, que vai contemplar demarcação de áreas indígenas, demarcação de áreas de reserva florestal, estabilidade para a produção...Que bom que agropecuária brasileira vem produzindo muito! Esse ambiente vai fazer com que esse Brasil responda ao acesso à terra, que tenha política agrícola e ambiental, temos essa oportunidade histórica. Agora, o que nós necessitamos é pensarmos outro padrão institucional democrático republicano para o campo brasileiro. Infelizmente, nós temos territórios inteiros deste país que não têm república.

Fábio Santos: Existem 23 milhões de sem-terra? Quantos são os sem-terra no Brasil?

Miguel Rossetto: Nós temos algo em torno de cento e trinta, cento e quarenta mil famílias, temos em torno de setecentos mil inscrições no programa pelo correio. Vários pesquisadores e professores  trabalham com números que são avaliados. Por exemplo, o público beneficiário da reforma agrária [inclui] meeiros, arrendatários, posseiros que buscam terra para trabalhar, trabalhadores assalariados, trabalhadores sazonais, trabalhadores bóias-frias, isto é, aqueles que vivem uma situação de grande instabilidade no campo...Esses números mudam muito, vão de três a quatro milhões. Quando nós falamos em vinte milhões, trata-se de um modelo agrário, agrícola. A agricultura familiar no Brasil hoje corresponde a cerca de quatro milhões e duzentas mil famílias, é um dado que poucos conhecem. Trata-se de um agricultura pequena em propriedade, mas grande em produção, pois quase 40% de tudo que é produzido no Brasil vem daí. É este setor que gera quase 80% do trabalho no campo. Por fim, há um tema que foge do debate, que é uma estratégia de desenvolvimento territorial mais harmônica e equilibrada.  As décadas que estimularam a existência de uma mão-de-obra mais barata nas grandes cidades e que construíram a idéia de que cidade é modernidade e campo é atraso, causaram situações insustentáveis. Grandes metrópoles não são capazes de oferecer trabalho e emprego. Portanto, pensar uma ocupação territorial mais equilibrada faz parte de uma estratégia correta de desenvolvimento nacional.

Gabriel Manzano Filho: Uma série de características da vida moderna tem mostrado na Europa e nos EUA que a população rural tende a diminuir. Quando o Brasil foi um país essencialmente agrícola, havia cerca de 60% da população rural. Hoje, de acordo com os últimos dados, está em 29%. Não se procurou por um novo modelo voltado para o futuro a possibilidade de que a quantidade de pessoas necessárias seja muito menor?

Miguel Rossetto: Isso é claro, mas essas políticas produziram o quê? Estimularam o abandono o trabalho agrícola, desestimularam a manutenção do rural, no período em que a economia brasileira sustentava taxas de crescimento. Ns décadas de 70 e 80, havia certa capacidade dessa absorção de mão-de-obra. Agora, isso acabou. Essas políticas que construíram metrópoles gigantescas são um verdadeiro desastre, estrategicamente. A nossa estratégia de estímulo à atividade agrícola é sustentar uma estratégia de desenvolvimento que gere nesse imenso mundo rural, cidadania, capacidade de trabalho, qualidade de vida, serviços públicos, escola,  saúde, capacidade de geração de renda. Penso que, ainda hoje, a atividade agrícola, agropecuária é a grande atividade organizadora da renda no mundo rural. Mas é evidente que nós temos um conjunto de outras atividades econômicas que estão aparecendo em várias regiões e devem ser estimuladas. Outra coisa, os governos e a sociedade devem responder pelo direito ao trabalho, e óbvio que nós temos, neste país enorme, necessidade de ampliação de produção de alimentos. Nós estamos trabalhando com três cenários de futuro, todos eles prevêem necessidade de ampliação de produção de alimentos e, portanto, espaço de geração de renda, com uma visão de sobrevida e segurança alimentar. O programa Fome Zero é importante,  são nove milhões e seiscentas mil famílias que vão receber renda para comprar alimentos. Queremos estimular a produção na própria região, garantido renda. Obviamente, trabalhamos com crescimento econômico e geração de renda, democratização de renda, e a primeira coisa que as famílias fazem é ampliar a cesta básica de alimentos. Nós queremos continuar com o padrão de exportação da nossa produção agropecuária. Como nós recusamos a idéia de abastecimento de mercado via importação de produtos, que seria uma estupidez, e como rejeitamos a pressão inflacionária, é óbvio que trabalhamos com cenários de aumento de demanda. E isso é um ciclo virtuoso e positivo de desenvolvimento.

Evandro Éboli: Mudando de enfoque, os números estão revelando que, desde a edição da medida provisória que proíbe a vistoria da terra ocupada, nunca se teve tanta invasão de terras, assassinato e morte no campo. Quer dizer, fechamos agosto com 184 invasões e vinte mortes, é o mesmo número ocorrido em 2002. Por que no governo Lula a medida provisória [Medida Provisória 2183-56/01, instituída no governo FHC, que proíbe a vistoria de imóveis rurais ocupados por sem-terra. Essa medida alterou o Decreto-Lei 3365 (Lei de Desapropriação), em que constam normas básicas da desapropriação e do processo para a reforma agrária] não está intimidando ocupações e esses atos de violência no campo?

Fábio Santos: Complementando, o senhor é a favor da medida provisória?

Miguel Rossetto: Nós vamos alterar a medida provisória definitivamente.

Fábio Santos: O senhor assumiu o Ministério dizendo que ela precisava de alterações...

Miguel Rossetto: Essa medida provisória dispõe de mais de oitenta regras novas, entre artigos e parágrafos. Constrói, em minha opinião, uma confusão, porque mistura questões penais, econômicas e jurídicas. Quando a imprensa questiona se eu concordo com a medida provisória, quero saber sobre que parágrafo ela se refere, porque é muita coisa... Sobre o sistema da vistoria, categoricamente, não vamos alterar esse tema, porque achamos que isso não impede o programa de reforma agrária. Queremos um ambiente de diálogo com os movimentos e com o Congresso. Nós achamos que é possível apresentar uma proposta que organize o conjunto de regras e normas sobre o tema. Quando você tem isso com a sociedade, direitos claros, regras claras, é evidente que é um estímulo ao ambiente de estabilidade e de paz. Não vamos mudar.

Evandro Éboli: O governo Lula não está intimidando os sem-terra, já que aumentaram as ocupações e assassinatos no campo?

Miguel Rossetto: É evidente que também não podemos aceitar qualquer padrão de violência. As leis têm que ser cumpridas, as responsabilidades são de várias instituições, como a Justiça estadual, a Justiça federal, o Ministério Público, o governo estadual, que responde pela política de segurança pública. Nós já tivemos anos com maiores níveis de conflito, mortes, infelizmente...

Evandro Éboli: Não depois da edição da medida provisória...

Miguel Rossetto: Para nós, não se trata de um problema estatístico, nenhuma morte é tolerável para o conflito agrário. Isso é uma exigência da sociedade. Como enfrentar? A medida provisória não resolveu o problema, mas é mais complexo do que isso. Não se trata de uma medida provisória de ocupação ou não, o que eu penso é que nós estamos trabalhando para apresentar...nós temos que buscar para o campo brasileiro um padrão novo de institucionalidade republicana. Não é possível que um conflito seja resolvido com morte.

Fábio Santos: A medida provisória está sendo aplicada?

Miguel Rossetto: Claro que sim, todas as leis são aplicadas.

Fábio Santos: Porque existem terras que vão ser desapropriadas, foram invadidas e vistoriados agora pelo Incra.

Miguel Rossetto: São terras que envolvem acordos, são decisões do STF [Supremo Tribunal Federal].

Fábio Santos: Vai vender justamente para fazer reforma agrária?

Miguel Rossetto: Sim, nós utilizamos instrumento de compra legal. Se interessar, vamos fazer a avaliação, é um decreto. Existem regras e o governo está autorizado a comprar. Ele avalia publicamente o preço da terra. A deficiência com o programa de reforma agrária não tem a ver com ilegalidade. Nós temos territórios onde não há república, não há democracia, não há institucionalidade. Nós estamos, por exemplo, orientando e dialogando com um judiciário estadual a experiência de varas agrárias. Isso foi muito importante em Minas Gerais, ajuda a diminuir o conflito, amplia a presença do Estado, tem ajudado. Isso é um esforço da sociedade brasileira, um desafio para a democracia brasileira, me parece que todos nós estamos convocados, nós estamos trabalhando muito, decidindo, percebemos uma boa recepção de governadores, do judiciário estadual, do judiciário federal. Temos uma boa oportunidade para avançarmos na afirmação da República, da democracia, em todo o nosso território.

Paulo Markun: Nosso tempo está acabando e gostaria de fazer uma última pergunta. O senhor acha que esse raciocínio que conduz a política de reforma agrária desse governo está sendo eficientemente passado para a população, ou seja, a guerra da comunicação quanto à reforma agrária está sendo bem conduzida?

Miguel Rossetto: Nossa obrigação é informar à população. Não estou fazendo propaganda, propaganda não é informar. Temos que avançar muito no nosso programa de assentamento.

Paulo Markun: Se o público em geral for ouvido, ele vai ter a impressão que a reforma agrária já foi sucesso no Brasil, mas que, de repente, virou uma coisa que não está funcionando. É essa a sensação...

Miguel Rossetto: Foram oito anos de longo debate. A sociedade brasileira tem uma enorme expectativa com nosso governo, com a reforma agrária. Ela compreende o significado de modernização, de emprego, de produção. Isso é uma prioridade do presidente Lula, do nosso governo. Nós temos que ampliar esse programa, nós estamos organizando a casa, preparando uma expansão de um programa de assentamento. Na medida em que realizamos isso, a percepção conjunta vai ser bastante diferente.

Paulo Markun: Ministro, muito obrigado pela sua entrevista, boa sorte na sua empreitada. Obrigado aos nossos companheiros aqui de bancada e a você que está em casa. Nós voltamos na próxima segunda-feira com mais um Roda Viva.

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