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Memória Roda Viva

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Zilda Arns

22/10/2001

A coordenadora da Pastoral da Criança fala sobre o trabalho e os resultados da instituição e conta episódios de sua vida numa família com 12 irmãos

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 Paulo Markun: Boa noite. Nesta semana em que a questão da solidariedade ganha a atenção especial em São Paulo e também na rádio e na TV Cultura, o Roda Viva apresenta o personagem que comanda hoje, no Brasil, a maior organização não governamental do mundo a trabalhar com a saúde, a nutrição e a educação da criança. É a médica pediatra Zilda Arns, fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança.

[Inserção de vídeo com imagens de Zilda Arns, de seu irmão, Dom Paulo Evaristo Arns, do trabalho dos voluntários na Pastoral da Criança e de sua indicação para o Prêmio Nobel da Paz]

[Comentarista Márcia Bongiovanni]: O sobrenome Arns, da Dra. Zilda, tem um significado nessa história: ela é irmã de Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo. Partiu dele, no início dos anos [19]80, o convite para que a irmã, que já tinha experiência com trabalhos comunitários, montasse um plano nacional para ensinar mães a combater a diarréia e a desidratação, que eram as principais causas da mortalidade infantil no Brasil, na época. O plano, baseado no trabalho voluntário e na ação de líderes comunitários, ganhou forma em 1983. Com o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, foi criada a Pastoral da Criança. A experiência começou no pequeno município de Florestápolis, interior do Paraná, e espalhou-se para o país todo, estando presente, hoje, em mais de três mil municípios brasileiros, desenvolvendo ações básicas de saúde e educação, junto às comunidades. A Pastoral da Criança articulou uma rede de solidariedade que já reúne mais de 150 mil pessoas, treinadas e capacitadas para um trabalho voluntário inédito no país: combater a mortalidade infantil e melhorar as condições de vida de mães e crianças brasileiras carentes. Os voluntários trabalham nas periferias das grandes cidades e nos bolsões de miséria dos pequenos e médios municípios, incluindo também as áreas rurais. Eles andam de casa em casa, ensinando como prevenir doenças e melhorar a saúde de gestantes e crianças. As mães recebem orientações e acompanhamento durante a gravidez. São estimuladas a dar atenção especial ao aleitamento materno, à vacinação. O desenvolvimento dos bebês é acompanhado mensalmente e as crianças recebem uma alimentação especial, enriquecida, para prevenir a desnutrição. A Pastoral da Criança, que através da campanha do soro caseiro, já tinha revertido um quadro nacional de morte de crianças por desidratação, promoveu outra mudança estatística. Nos municípios onde atua, a mortalidade infantil caiu 50% em relação à média brasileira. Os recursos que sustentam esse trabalho vêm, principalmente, do Ministério da Saúde, mas chegam também através de doações do setor privado. Os voluntários atendem a mais de um milhão e meio de crianças e quase oitenta mil gestantes, através de visitas mensais a um milhão e cem mil famílias. Além de ensinar às mães como prevenir doenças e melhorar o nível de saúde nas comunidades, os voluntários passaram a desenvolver um trabalho de prevenção de acidentes domésticos e de melhoria das relações familiares, estimulando uma cultura de paz e de melhor convivência entre as pessoas. Os resultados, que não só melhoram índices de saúde e saneamento, promovem a auto-estima e fazem crescer o sentimento de dignidade e de cidadania entre as populações atendidas. O modelo já foi exportado para países da América Latina e da África, e recebeu do governo brasileiro a indicação para o Prêmio Nobel da Paz deste ano. O prêmio não veio, pelo menos desta vez, mas no entendimento de Zilda Arns, a indicação já foi um prêmio, chamando a atenção do mundo para uma ação social que está ao alcance de qualquer comunidade, e que mostra como a solidariedade, através do trabalho voluntário, pode mudar a realidade salvando vidas e promovendo o desenvolvimento humano.

Paulo Markun: Para entrevistar a médica Zilda Arns, coordenadora nacional da Pastoral da Criança, nós convidamos: Gilberto Nascimento, colunista do jornal O Diário de São Paulo; a jornalista Nilza Iraci Silva, coordenadora executiva do Geledés - Instituto da Mulher Negra; Ricardo Soares, apresentador e diretor do programa Caminhos e Parcerias, da TV Cultura, e do programa Literatura, da STV; Stephen Kanitz, articulista da revista Veja e diretor do site www.voluntarios.com.br; Marcos Kisil, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e presidente do IDIS – Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social; Gilmar Carneiro dos Santos, representante da Central Única dos Trabalhadores, a CUT, no Conselho de Administração do BNDES - Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social, e curador do Projeto Travessia, e Cleide Silva, repórter de economia do jornal O Estado de S. Paulo. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Se você quiser participar deste programa, pode usar o nosso telefone que é o 0xx11-252-6525; o fax é 3874-3454, e o endereço do programa na internet [é] rodaviva@tvcultura.com.br.

Paulo Markun: Boa noite.

Zilda Arns: Boa noite. É um prazer muito grande estar aqui; eu gostaria de mandar um grande abraço para todos que me vêem, principalmente os voluntários, os líderes da Pastoral da Criança.

Paulo Markun: O prazer é nosso! É, a gente, vendo aí e lendo a trajetória da Pastoral, do trabalho dos voluntários, os resultados obtidos, dá a impressão de que aquele... a história do ovo de Colombo, quer dizer, uma idéia simples, uma coisa aparentemente banal, que funcionou. A senhora acha que existem outros desafios, outros problemas grandes da sociedade brasileira que podem ser resolvidos dessa maneira ou outras coisas exigem outro tipo de solução: políticas públicas, mudança na maneira de governar, enfim, alterações maiores do que as que a Pastoral promoveu?

Zilda Arns: Normalmente não se dá muito valor às coisas simples e também não se dá valor à promoção e à prevenção. É assim, tanto na área da saúde, quanto [n]a [de] educação, marginalidade, né? Então, eu creio que nessa área nós podemos avançar bastante, e, naturalmente, compete, não só ao governo, mas também à sociedade, às próprias famílias, assumir o seu papel. E a Pastoral da Criança, principalmente, se ocupa com as famílias, para saberem cuidar bem dos filhos. Agora, tem que também, muitas vezes, ter melhores condições de vida, alfabetização, geração de renda e outras coisas mais.

Paulo Markun: Qual foi a chave, na opinião da senhora, do sucesso do trabalho da Pastoral?

Zilda Arns:  Eu creio...

Paulo Markun: [Falando ao mesmo tempo que Zilda] O ponto central.

Zilda Arns: ... [que seja] a  solidariedade e a multiplicação do saber. Então, nós formamos uma rede de solidariedade humana em cada bolsão de pobreza e miséria, e o protótipo, o propulsor, vamos dizer, do desenvolvimento da Pastoral da Criança, foram as próprias líderes que moram nessas comunidades. Então, melhorando, vamos dizer, o tecido social da liderança, nós expandimos isso para todas as famílias.

Paulo Markun: Quer dizer, a solução, então, estava mais na própria comunidade, ...

Zilda Arns: Na base. Na base.

Paulo Markun: ... na base.

Zilda Arns: Eu creio que nós temos que dar muito mais valor às comunidades e fazer sempre o agente de transformação que mora na comunidade ser a pessoa principal.

Ricardo Soares: Dra. Zilda, eu tive a sorte de fazer aqui, recentemente, para a TV Cultura, um episódio de Caminhos e Parcerias, que mostrava a ação da Pastoral da Criança no norte de Minas Gerais, em Montes Claros, naquela região de Montes Claros. Aí eu tive uma impressão, ao fazer esse programa - e eu queria que a senhora me confirmasse ou não se é verdade -, que a ação da Pastoral, concentrada no norte de Minas, é uma ação de necessitados que ajudam necessitados, ou seja, quando a senhora fala da comunidade, da base da sociedade, dá a impressão [de] que grande parte dos voluntários da Pastoral da Criança são pessoas das camadas mais pobres da população. Isso procede? É, de fato, um enorme movimento onde os mais necessitados ajudam os mais necessitados?

Zilda Arns: É... já quando nós idealizamos o trabalho da Pastoral, assim o fizemos. A descentralização que, vamos dizer, na base... as famílias fossem cuidar de pessoas que moram perto delas, para serem da mesma cultura, conhecer as necessidades, né? E assim como em Montes Claros - até vim de lá há três dias, nós estamos capacitando 17 pessoas da África lá - assim acontece em todo o Brasil. São 132 mil os voluntários que moram nos bolsões de pobreza, que fazem o trabalho, assim, do dia-a-dia.

Paulo Markun: [Interrompendo] A senhora me desculpa interromper... Cento e trinta...

Zilda Arns: ... e duas mil. E as demais são das equipes de capacitação. [Por]que grande arte também é a gente capacitar as lideranças. Então, nós temos... nas microrregiões do País são 286 pontos, nós temos pequenas equipes de capacitação. Então esses moram, muitas vezes, na comunidade ou perto da comunidade ou vêm de fora, são profissionais, aposentados, a maioria ainda atuantes, que doam algumas horas por semana ou por mês - né? -, capacitando liderança, acompanhando...

Ricardo Soares: Seria leviano, então, concluir que os pobres ajudam os pobres mais do que os ricos ajudam os pobres?

Zilda Arns: É... eu diria que, para melhorar o tecido social, para fazer daquelas pessoas que não se sentem gente, verdadeiramente, uma obra de arte, elas próprias têm que ser trabalhadas.

Marcos Kisil: Dona Zilda, é com alegria que a gente vê o sucesso de um esforço de melhoria da qualidade de vida, particularmente, das crianças brasileiras. Mas uma dúvida que fica é: o quanto od trabalho que a senhora vem desenvolvendo com a Pastoral vem para substituir, ou vem para suplementar, ou complementar o papel do Estado? Como é que a senhora vê a relação da Pastoral com aquilo que, na Constituição brasileira , coloca, no seu capítulo de Saúde, que é direito do cidadão e dever do Estado? Como é que a senhora vê essa relação, baseada no sucesso que a Pastoral está tendo?

Zilda Arns: Você sabe que, antes de começar a Pastoral da Criança, trabalhei muito em saúde pública: [durante] 27 anos, eu fui dirigente. E antes disso eu consultava, e ainda continuava um pouco depois, mas não tinha mais tempo. E o que sempre faltava é... vamos dizer, a mãe ter alguém próximo, amigo, que ensinasse, que desse apoio - né? -, e isso é difícil o governo fazer. Por outro [lado], também a Constituição de [19]88 diz que quem deve cuidar da criança é o governo, a sociedade e a família. Então, a Pastoral da Criança faz com que a família possa cuidar melhor da criança. E não substitui [a família]. E o governo não é capaz de fazer o trabalho da Pastoral da Criança, que é um trabalho [feito], assim, com muito amor. Agora, a Pastoral precisa do governo e o governo precisa da Pastoral. Quer dizer, nós, sozinhos, sem parceria, não poderíamos treinar tantas lideranças; são, por mês, milhares de capacitações, milhares no Brasil. Então, tudo isso requer materiais educativos - né? -, viagens... quer dizer, viagens, pagar ônibus para o pessoal, porque são pobres - né? -, para irem se capacitar e todo o material que nós precisamos para recuperação dos desnutridos e tal... Então, nós fazemos um trabalho com muito calor humano, e o governo nos ajuda financeiramente e também tecnicamente. Todos os nossos materiais, vamos dizer, o Ministério da Saúde, na área de saúde,  [o da] Educação, na área de educação, Sociedade de Obstetrícia, Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância; em inglês: United Nations Children's Fund], Organização Pan-Americana de Saúde [orgão internacional de saúde pública dedicado a melhorar as condições de saúde dos países das Américas], muitos pediatras, nutricionistas, psicólogos colaboram para que esse material seja de excelente qualidade. Então, nós temos ajuda, mas nós damos também. Agora, o nosso trabalho é um trabalho de fraternidade.

Gilberto Nascimento: Agora, [sobre] o trabalho do governo, o papel do governo nessa área, qual é a avaliação da senhora? A senhora acha que o governo está fazendo o que cabe a ele da maneira correta?

Zilda Arns: Eu diria que melhorou muito. Porque eu trabalho [há] muitos anos, né? Eu, só de saúde pública, tenho quarenta anos e desde antes de me formar eu já trabalhava, assim, no hospital de criança, no setor público, como voluntária, e continuei depois como médica da Secretaria da Saúde. Mas, eu diria o seguinte: que [o trabalho do governo] era um horror, no começo. Eu era diretora da rede de postos de saúde, área metropolitana de Curitiba. Vinham sacolas [e] as mães, muitas vezes, deixavam de amamentar para receberem o leite. Elas queriam vir para um posto de saúde para vacinar [seus filhos] quando tivesse a cesta básica. Não tinha educação para saúde, não tinha motivação, muito baixa auto-estima. Hoje é totalmente descentralizado. O SUS [Sistema Único de Saúde], que, naquela época... e há pouco tempo, há dez anos, menos de dez anos, praticamente, melhorou de cinco anos para cá a descentralização - não é? -, que é uma coisa muito importante. O Brasil, enorme como é, oito milhões e 511 mil quilômetros quadrados, um serviço centralizado [seria] impossível de, vamos dizer, supervisionar. Então, hoje é descentralizado. Ainda não funciona bem; eu tenho a impressão [de] que falta, ainda, capacitar melhor a gerência e o controle social. Mas é descentralizado. Não só verba, como também a parte de medicamentos, que era uma máfia nacional; a parte de cesta básica era um horror, a concorrência nacional... vinham os caminhões, muitas vezes, do Sul, iam pelo interior de Amazonas... Eu viajo muito, eu chegava lá [e encontrava] feijão duro. Eu cheguei uma vez numa aldeia de índios e eles me disseram: “Pois é, colocamos [o feijão para cozinhar] seis horas da manhã, a senhora está aqui a uma hora da tarde, o feijão está duro ainda... ” [Zilda sorri] Então, realmente, o que se perdia no meio do caminho... uma corrupção... Uma vez, um... um... naturalmente não me conheciam, um deputado de um estado lá do Nordeste, me disse: "Olha, doutora Zilda, se eu conseguir cesta básica três meses seguidos, sou eleito." Hoje a Bolsa Alimentação vai diretamente para as mãos da mãe, quer dizer, [o programa] foi modernizado. Assim bem, também, [eu] diria assim, vamos dizer, Bolsa Escola, também é uma coisa muito boa, né? Então, eu creio que está no caminho da descentralização. O que falta, ainda, [é] acompanhar com a qualidade e o controle social.

Gilberto Nascimento: Porque, aqui em São Paulo, ainda, que é o maior centro do país, a gente ainda tem muitas filas nos hospitais, faltam médicos, falta de remédio...

Zilda Arns: Exatamente... [assente com a cabeça]

Gilberto Nascimento: E pelos grotões do Brasil a situação é bem pior, né?

Zilda Arns: [Interrompendo] É... Então, eu diria duas coisas: eu estive na Paraíba, há pouco tempo, [onde] eu tive uma reunião de prefeitos. Então, o prefeito - até [ele é] da oposição, era do PT -, ele levantou e disse assim: "Eu quero dizer aqui que nunca os municípios tiveram tanto dinheiro para a saúde quanto agora, porque foi descentralizado." Agora, as filas, realmente, o acesso ao Sistema Unico de Saúde é a pedra, realmente. Precisa ser melhorado, vamos dizer, a referência... centrais de vagas, ter assim, vamos dizer, cooperativas entre municípios, para terem referência a, vamos dizer, a um sistema de complexidade, assim, crescente, não é? Agora, a pesquisa que o Ibope [Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística] fez dos centros de saúde deu - foi uma surpresa para nós - [que] 72% dos que eram atendidos estavam muito satisfeitos. Quer dizer, o problema está no acesso. Agora, o que falta é, realmente, na base, criar uma autono[mia]...  vamos dizer, que as pessoas consigam fazer o que é seu papel. Por exemplo, a família poderia promover... prevenir tantas doenças. Então, ela deveria saber prevenir as doenças. Sobrariam menos doentes para os postos de saúde. E se lá estivesse bem organizado - medicamentos, vacinas e tudo o mais -, poderia prevenir, também, para não ir para um hospital. E, por outras vezes, a desorganização - não digo em São Paulo e em outros [estados] -... mas [a desorganização] existe. Então, faz com que o povo queira logo ir num lugar mais sofisticado, no hospital, né? Então, a organização, ainda precisa se fazer mais investimento nela.

Paulo Markun: Aonde funciona melhor a saúde pública no país? Que estado ou que região?

Zilda Arns: Bom, [é] difícil dizer. Nós temos municípios onde funciona bem, né? Então, a gente diria que existem muitos por aí. Eu até sentiria dificuldade em dizer quais são os melhores. Mas existem, de diferentes partidos políticos, municípios funcionando bem... depende muito da organização do sistema - não é? -, porque, realmente, a descentralização exigiu, assim, uma capacitação que muitos não tinham. E muitos, também, não procuraram se assessorar bem. Mas, eu diria que melhorou bastante.

Ricardo Soares: Doutora Zilda, pegando uma derivação da pergunta do Markun, em relação aos trabalhos da Pastoral, onde a ação da Pastoral encontra a situação mais dramática? Em que estado brasileiro? Desses três mil municípios [em] que a Pastoral está, onde é que a ação é mais dramática? Onde se encontram os maiores grotões de miséria onde a Pastoral atua... ?

Zilda Arns: Bom, eu diria que, ...

Ricardo Soares: ... e que precisaria até ser reforçado?

Zilda Arns: ... como estado, Alagoas é um grande problema. Eu diria que a saúde tem muita influência da escolaridade - não é? -, da cidadania, vamos dizer; então, [Alagoas] é um estado que, durante séculos, sofreu muito e tem muitos analfabetos. Então, realmente, é o estado onde nós temos mais dificuldade. Mas temos, assim, em todo o país... inclusive, eu fui visitar favelas aqui em São Paulo, [e] eu fiquei 15 dias [em] que não podia dormir direito, pelo que eu vi de horror,  né?  Aquelas casas de lata, de plástico - né? -, crianças pequenas com pneumonia, febre alta, chovendo lá fora, uma tina cheia de água e sabão e roupa suja, um mau cheiro dentro daquela salinha, que era tudo, e não tinha nem banheiro, nem nada, jogava[m-se] as fezes humanas na rua... A gente, quando andava, tinha que cuidar para não pisar em cima de fezes humanas. Quer dizer, aqui em São Paulo, no Rio de Janeiro, Recife...

Ricardo Soares: [Interrompendo] Situação igual à de Alagoas...

Zilda Arns: É... até eu diria, se fosse para escolher [entre] morar aqui ou lá, eu preferia lá - viu? -, porque, realmente, é muito desumano.

Gilmar Carneiro dos Santos: Dona Zilda, eu gostaria que a senhora falasse um pouco sobre uma coisa que mexe muito com a gente, que é o desafio da relação dessas pessoas pobres com a própria pobreza, essa cultura de passividade, e a relação dessas pessoas com a morte das crianças. Porque a Pastoral é da Igreja [Católica], que fala: "Os bebês são anjinhos. Se são anjinhos e morrem, é porque Deus quer." E a Pastoral, ela... o mérito principal dela é mudar os valores das pessoas, tanto em relação à vida, como em relação à morte. Embora sejamos religiosos, mas não é porque Deus quer que deixamos morrer as crianças.

Zilda Arns: É... quando nós começamos - né? -, que eu visitava, assim, o interior, eu ficava abismada que era natural morrer... um anjinho no céu... Mas já mudou - viu? - , hoje não se vê mais isso. Quer dizer, a comunidade quer salvar as crianças. Então, o valor cultural "criança", ele tem peso agora nas comunidades. A coisa mais, vamos dizer, o que tem mais valor na família é a criança. E também, morrer não é mais um valor, e sim fazer com que a criança seja bem nutrida, seja feliz, não é? Eu creio, Gilmar, que isso já está bem mudado, né?

Cleide Silva: Dra Zilda, a Pastoral consegue fazer uma coisa que o governo, na verdade, não consegue, que é reduzir a mortalidade infantil. Os índices das crianças atendidas pela Pastoral são bem menores em relação aos índices do país, como um todo. Como é que vocês conseguem, na prática, esse trabalho? E quanto custa isso para a Pastoral?

Zilda Arns: Eu vou começar com o útil: custa 86 centavos por criança [por] mês. [Algo em torno de] 86... 87 [centavos]. Nos últimos três anos sempre deu isso. No próximo mês, vamos fazer uma avaliação do último ano - que o nosso ano fiscal sempre termina em outubro. Mas eu diria o seguinte: que a Pastoral não faz o trabalho sozinha. Então, realmente, é uma rede que cuida da criança e faz tudo para que a família consiga cuidar da criança o máximo, [para] que [ela] não precise de médico. Tanto é que, até no nosso sistema de dados, nós temos quantas crianças foram encaminhadas ao sistema de saúde e quantos [casos] não foram atendidos e porque [esses casos] não foram atendidos. É um percentual pequeno: 4 ou 5%. Então, o que nós encaminhamos, vamos dizer, normalmente, são atendidos. Então, o sistema de saúde... Por exemplo, uma gestante: nós não atendemos a gestante, nem fazemos parto, e a maior mortalidade, assim.... [a maior] causa de mortalidade infantil do Brasil, principalmente no sistema público, é a mortalidade perinatal, quer dizer, as crianças que morrem em torno de oito dias, ou... de  vinte... neonatal, até um mês de idade. Então, a Pastoral da Criança, o que faz? Cuida das gestantes, [para] que elas sejam bem nutridas, [para que] nasça uma criança com mais de dois quilos e meio, [que a criança] tenha mais força para mamar e resistir - não é? -, e encaminha a mãe para o hospital e fica lá com ela, e assim vai se entrosando com o Sistema Único de Saúde. E, realmente, a gente pode dizer que nós podemos ter queixas, mas eu tenho muito mais louvores do que queixas, na Pastoral da Criança. Então, é um sistema que se complementa. Eu diria que a Pastoral tem aquele calor humano, e aquele braço é o oxigênio que muitas vezes falta às famílias para ir e procurar os recursos. Agora, naturalmente, a mortalidade perinatal é alta, depende das maternidades... Nós estivemos no Amazonas... eu estive no Alto Solimões há três anos e uma gestante nossa morreu dentro do barco, na véspera de eu chegar, porque a criança estava em má posição, não nascia sozinha e... morreu ela e a criança. Então, eu disse para o bispo Dom Alcimar Magalhães e prefeito - nós visitamos lá em Santo Antonio, no Alto Solimões -, e disse: "olha, é fácil de terminar com isso. Faz uma casa de apoio da gestante e [d]aqueles que moram longe. Para que esperar? São 10% que passam mal, mas, a gente nunca sabe quem são os 10%. Então, manda todas as gestantes, no último mês, aqui [na casa de apoio]; é melhor que ela fique aqui, descanse, aprenda bastante coisa, tenha uma criança saudável, e [depois ela] volta com a criança saudável para casa, não com uma criança... ou morta, ou ela até morrer... ou uma criança portadora de deficiência, por causa do trauma de parto, né?". Então, já fizeram casas, como também nós temos [uma casa de apoio] em Uraçu, aqui em Goiás e [outra] já no Rio Grande do Sul e a coisa está pipocando, assim, em áreas distantes. Melhora muito, quer dizer, reduz a mortalidade da mãe e também da criança.

[... ]: Esse é um programa...

Stephen Kanitz: [Interrompendo] Se eu entendi bem, a senhora falou 86 centavos por criança?

Zilda Arns: Por criança, [por] mês.

Stephen Kanitz: A senhora faz tudo isso com 86 centavos?

Zilda Arns: Com 86 [centavos]. É que nós não pagamos...

Stephen Kanitz: E o governo brasileiro arrecada de nós, pobres contribuintes...

[Risos]

Stephen Kanitz: ... quatrocentos bilhões [enfatiza] de reais. Eu pago metade, praticamente... Só de imposto de renda, [são] 25%; IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados], 10%; ICM [Imposto de Circulação de Mercadorias], 21%. São quatrocentos bilhões de reais. E a senhora faz tudo isso com zero [vírgula] 86 [centavos de real]? Onde é que está indo o resto do nosso dinheiro?

Zilda Arns: Bom, mas tem muita coisa [risos] que deve ser feita com ele [o resto do nosso dinheiro], né? É que o nosso trabalho é simples. A gente... a Pastoral da Criança escolheu o que é simples, o que é barato e que dá para fazer em larga escala.

Stephen Kanitz: E o governo paga... esses 86 [centavos]. [Com isso] vocês conseguem fazer o quê?

Zilda Arns: Nós fazemos o projeto, já com uma série histórica, nós já temos experiência nisso. Quanto nós gastamos em treinamento? Por exemplo, no Norte custa muito mais caro, porque vem de barco, né?

Stephen Kanitz: O total que vocês gastam por ano é quanto?

Zilda Arns: Então, são cerca de 16 milhões e meio que...

Stephen Kanitz: Mi... mi... bilhões?

Zilda Arns: Milhões.

Stephen Kanitz: Milhões.

Zilda Arns: Milhões... e meio...

Stephen Kanitz: E o governo paga quanto disso?

Zilda Arns: Não. [São] 16 milhões...

Stephen Kanitz: Milhões...

Zilda Arns: ... milhões de reais, nós recebemos, vamos dizer, do Ministério da Saúde, que é...

Stephen Kanitz: Quanto? Total de...

Zilda Arns: ... oitenta... cerca de 80% da verba que nós temos vêm do Ministério da Saúde.

Stephen Kannitz : [São] 13 milhões?

Zilda Arns: Não, são 16 milhões.

Paulo Markun: [Esses] 16 [milhões] e meio são [... ] ?

Stephen Kannitz: Oitenta por cento. Quem é o matemático, aí?

[Sobreposição de vozes]

Zilda Arns: É [o equivalente a] oitenta por cento.

Stephen Kannitz : A senhora recebe 13 milhões do governo...

Paulo Markun: Não. [A Pastoral recebe] 16 milhões.

Stephen Kannitz: [A senhora recebe] 16 milhões do governo, que representa[m] 80%?

Zilda Arns: É. [São] 86 centavos por criança, [por] mês. Criança e gestante. Nós temos 77 mil gestantes, estamos com 16 mil idosos, né

[...]: Aqui, olha.

[Um entrevistador mostra uma folha de papel a Stephen Kannitz - provavelmente com os cálculos de gastos, para que ele verifique]

Stephen Kannitz: Eu estou achando... eu não estou achando isso muito...  Ela está fazendo milagres com muito pouco. Eu estou recomendando a senhora não para o Prêmio Nobel, mas para a Presidência da República...

[Risos]

Stephen Kannitz: Então nossos problemas estão resolvidos, se for ver. [risos]

Zilda Arns: Mas as coisas...

[... ]: Dona Zilda...

Zilda Arns: As coisas... as coisas complexas e caras a gente deixa para os outros, porque no Brasil a gente tem que fazer as coisas simples para todo mundo - né? -, ter condição de usufruir. Então, por exemplo, em saúde mental: nós começamos com uma coisa mais complexa e fomos reduzindo [faz o gesto de redução gradual], até chegar a um ponto [em] que era barato e facilmente exeqüível, e estamos fazendo em larga escala, como, por exemplo, trabalhar com a auto-estima das mães e dos líderes, inclusive, e relações humanas entre os familiares - uma coisa simples e que se pode fazer em todo o território nacional, em 32 mil comunidades, mais do que terapias, que também nós fazemos, mas é muito mais caro, e a gente precisa de profissionais, profissionais voluntários. Mas a gente não encontra isso em todos os municípios do Brasil, quer dizer, não tem nem médico.

Gilberto Nascimento: Ô Dona Zilda, a história é bem diferente, claro, de lidar com o recém-nascido e com o adolescente infrator, mas a Febem gasta mil e oitocentos [reais] com criança, com cada uma criança, e a gente não tem conseguido recuperá-los. O que a senhora... ?

Zilda Arns: [Interrompendo] Por isso que eu digo: "Gilberto, o Brasil precisa acordar que a gente tem que prevenir." Crianças da Pastoral, a gente nunca viu na rua. A gente até pergunta: "tem crianças nossas na rua? Na CPI de Prostituição Infantil [Comissão Parlamentar de Inquérito, criada em 1995, com o objetivo de apurar a situação e todas as circunstâncias relacionadas com a exploração sexual, prostituição, abuso sexual e maus tratos de crianças e adolescentes]?" Porque o quê [é] que leva essas crianças a vir[em] para a rua? É porque a criança é maltratada em casa, não tem comida, e joga[-se] a criança na rua. Ninguém quer ir para a rua. Depois ficam na rua, porque é melhor na rua do que em casa. Então, eu creio que nós devemos, assim, cuidar novamente da base. A base é a comunidade pobre - né? - , é um conjunto de famílias... Eu sempre digo, [deve-se] cuidar bem da criança desde antes de nascer, porque as pesquisas demonstram, também, que toda criança maltratada antes de um ano, ela tem uma tendência significativa à violência. Então, ela carrega aquela corrente pesada para o resto da vida e, muitas vezes, se marginaliza. Então, deve haver prevenção. Eu sempre digo: "[há] tanto gasto em hospital; vamos prevenir diarréias.". Prevenimos. Diminui, vamos dizer, o gasto com diarréias. Dificilmente, assim...

Gilmar Carneiro dos Santos: Mas, quando a senhora trabalha também com um milhão e cem mil famílias, trabalha com a mãe e com o pai ou só com a mãe?

Zilda Arns: É, família é o que nós temos. Muitas vezes família não tem pai, muitas vezes tem, muitas vezes são criados pela avó. Então, família, para nós, é aquele... aquele núcleo que cuida, vamos dizer, da criança, não é?

Gilmar Carneiro dos Santos: Mas, Dra. Zilda, ...

Zilda Arns: Mas é muito importante o pai; nós estamos chamando o pai, não é? Mas, naturalmente, a mãe, ainda, no Brasil, assume muito o papel. Mas nós já estamos chamando o pai, viu? E mesmo lideranças, assim, homens, já estão aumentando no Brasil. No começo, era raríssimo o homem ajudar ou ser voluntário da Pastoral da Criança. Mas, depois, nós descobrimos que eles gostam...

[Risos]

Zilda Arns: Tivemos até um caso, lá no interior do Ceará, uma irmã me contou que cada vez que a mulher ia trabalhar na Pastoral, visitar as famílias ou pesar crianças, o homem batia nela; chegou até a jogar água quente nas [suas] pernas. Eu disse: "então, vai ver o que [é] que há com esse homem?" Depois da terceira visita, ele disse: "A Maria está sendo muito considerada aqui na comunidade, está ficando importante; eu estou ficando prá trás e ninguém me convida para trabalhar na Pastoral da Criança.".

[Risos]

Zilda Arns: Então, muitas vezes, a agressão era a vontade de participar. Então, nós estamos agora com família, quer dizer, mãe, pai, até filhos trabalhando na Pastoral. Ainda hoje eu estive vendo, assim, marido e mulher trabalhando na Pastoral da Criança. Então, está virando um pouco o costume. Isso é muito, muito importante.

Marcos Kisil: Dona Zilda, uma pergunta que eu tenho: embora o custo por criança seja um custo que, pelo valor, diz o quanto nós estamos perdendo de oportunidade no Brasil, para a Pastoral da Criança, os 80% que vêm do governo... é um dinheiro significativo.

Zilda Arns: É.

Marcos Kisil: E eu gostaria de saber se a senhora tem medo de duas coisas: primeiro, nós sabemos que, no mundo das ONGs [Organizações Não Governamentais], ter um único financiador tem sempre o perigo [se] aquele financiador, por alguma razão, não puser o dinheiro, nós temos uma dificuldade seriíssima. Por outro lado, os nossos governos têm memória muito curta e quando trocam o governo, tem muita chance de o seguinte achar que ele tem que reinventar a roda e esquecer as coisas boas do governo anterior.

Zilda Arns: [Interrompendo] Mas se vier um que quer acabar com isso aqui [a Pastoral], cai [o governo].

Marcos Kisil: Não, como é que garante... ?

[Risos]

Zilda Arns: Cai.

Marcos Kisil: Como é que garante... ?

[Risos]

Zilda Arns: Não tem outra saída...

Marcos Kisil: ... o financiamento da senhora?

Zilda Arns: [O governo] Não pode ser tão burro de acabar com a Pastoral da Criança, viu?

Stephen Kanitz: Não superestime.

[Risos]

Stephen Kanitz: Não superestime...

Zilda Arns: Mas eu estou brincando! Nós estamos muito... vamos dizer, nos esforçando para conseguir mais doadores.  [A campanha] Criança Esperança [campanha anual que arrecada doações enviadas pelos telespectadores da TV Globo - rede televisiva que atua em parceria com a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) -  para apoiar projetos sociais dirigidos a crianças carentes de todo o mundo], da Rede Globo, doa 27% das doações para a Pastoral. Então, isso tem ajudado demais... Então, nós escolhemos os municípios com maior mortalidade infantil, com maiores problemas, e eles fazem projetos, e nós ajudamos. E tem sido muito bom. Temos, também, a colaboração através das [empresas de] energias, de luz, por exemplo, a Copel [Companhia Paranaense de Energia], no Paraná. Então, nós pensamos, assim: para a pessoa doar, cada mês doar ou alguém ir cobrar, sai caro. Então, como fazer?  Então, inventamos de preencher um talão e a pessoa diz: "Eu dou meio real, ou um real, ou mais, a cada mês". E têm que estar, naturalmente, os números muito certos. Houve muito erro de preenchimento de cartão e nós agora estamos treinando as nossas líderes, que vão às casas e preenchem, elas, junto com o dono da... vamos dizer, da casa, da [empresa de] energia de luz, e [recebemos] a doação. Mas, não acredita: mais de 90% doou meio real a um real. Quer dizer, novamente os pobres ajudando os pobres.

[Risos]

Zilda Arns: Então, [estamos] no Paraná, estamos em Alagoas, em Mato Grosso do Sul, em Santa Catarina. E a gente está... muito fe[liz]... e na Bahia. A Bahia está indo muito bem. Começamos com uma diocese e fizemos... porque sempre adquire experiência, são coisas novas, eu não estava acostumada... Então nem fizemos... Primeiro, nós fizemos sem propaganda por rádio, televisão.  Todo mundo colaborou, e foi um fracasso. Aí nós começamos a trabalhar nossas líderes e... pelo sistema de informação, a descentralização, de acordo com o que elas fizeram na base, quer dizer a comunidade que conseguiu mais doações é [a] que recebe mais. A coordenação nacional fica com 5%; a estadual, com 10%; e o resto fica nas bases.

Paulo Markun: Dona Zilda, nós vamos fazer um rápido intervalo e a gente volta já, já. Até já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando a coordenadora nacional da Pastoral da Criança, Zilda Arns. Para você participar do programa, nosso telefone é o 11, o código de São Paulo, 252 6525, o fax é 3874 3454 e o endereço eletrônico do programa, rodaviva@tvcultura.com.br. Gabriela Garcia, de São Paulo, que é estudante, pergunta se a senhora não considera paradoxal o fato de a Pastoral ser contra o método contraceptivo ou os métodos contraceptivos, como pílula anticoncepcional e camisinha, por exemplo. Eu pergunto, antes de mais nada, se é efetivamente isso: a Pastoral é contrária a isso?

Zilda Arns: Sabe, Gabriela, é um prazer muito grande você me fazer essa pergunta. A Pastoral da Criança, ela procura educar as famílias de tal forma que eles, conscientemente, escolham o método que desejam, e nós ensinamos a eles os métodos naturais, né? Você vê que eu estive, assim, no interior de Maranhão, em Bacabal, e quando eu dei... assim, falei para as mulheres, lá reunidas, sobre a Pastoral da Criança sobre a reprodução humana e mostrei para elas como se reproduz, como é que é a concepção, e quando terminei, a Dona Rita - nunca esqueço o nome dela - ficou tão feliz. Ela me abraçava e dizia assim: "Hoje é o dia mais feliz de minha vida, porque eu achava que eu ficava grávida quando lavava roupa no Rio São Francisco, em lua cheia.". Quer dizer, nós trabalhamos com pessoal abaixo do conhecimento. Então, e por outro lado também, vamos dizer, do jeito que estamos trabalhando, o número de filhos por família, na Pastoral da Criança é menor do que a média brasileira, apesar de nós trabalharmos com bolsão de pobreza e miséria. Quer dizer, na hora que você educa, que cria bem as crianças, cai o, vamos dizer, o número de filhos. Então, a multiplicação dos filhos se faz muito pela miséria do conhecimento também.

Paulo Markun: Ângelo Guedes, de São Bernardo, aqui em São Paulo, que é sociólogo, pergunta qual é a relação da Pastoral da Criança com os grupos evangélicos?

Zilda Arns: Nós temos um relacionamento muito bom. Eu estive em Manaus há pouco [tempo], três meses atrás. Nós fazemos oito reuniões regionais, vem uma pessoa de cada microrregião para nós avaliarmos a Pastoral da Criança e fazermos planejamento etc. E uma delas era da Assembléia de Deus [igreja evangélica originada a partir da Reforma Protestante, que teve seu início no Brasil em 1910, trazida por missionários suecos vindos do Estados Unidos. Hoje é uma das maiores do Brasil e do mundo], era coordenadora diocesana, que é um grau bastante elevado na Pastoral. Então, em toda a parte nós temos a... A Pastoral nasceu ecumênica. Já em Florestópolis, tinha outras três religiões. Eu disse: "eu quero todas.". E todas vieram. E assim, líderes excelentes, não é? Nós tivemos em Caicó [município brasileiro do estado do Rio Grande do Norte]... há 13 anos, eu estive no interior de Caicó,  num lugarejo chamado Equador, e havia uma área de prostituição, mas muito grande: 117 mulheres à beira da estrada. E fomos visitar [essa área]. Me disseram que as crianças estavam sofrendo muito; eram casinhas de barro, com o muro em volta. Eu nunca tinha entrado numa área de prostituição, foi a primeira vez. Eu fiquei com muita pena daquelas mulheres, naquela sujeira, né? Até reuni[-me com elas] e disse: "vamos rezar um Pai Nosso." Todas elas rezaram juntas. [Depois eu lhes disse:] "vocês querem uma Bíblia?" [e elas respoderam:] "Queremos." Eu disse: "querem ganhar a vida de outra forma? Por exemplo, fazendo redes?" [e elas:] "Queremos, né?". [Eu lhes disse:] "então vamos começar a Pastoral da Criança aqui. Vocês escolham duas, entre vocês." Escolheram duas prostitutas. Nós [as] treinamos, acompanhamos as mulheres, e foi uma surpresa. Agora, três anos depois, no dia 24 de agosto, véspera do meu aniversário, me convidaram para ir lá. As crianças, que eram daquela época, [estavam] tocando flauta. A coisa mais linda, aquelas crianças tocando flauta!  Meninas... aparecia uma fotografia que tiraram na época, com uma desnutrição gravíssima e... [hoje] cantando no microfone, quer dizer, estudando e cantando. Então, a Pastoral da Criança não tem prevenção contra nada, nós trabalhamos com qualquer pessoa que queira realmente e que precise ser ajudada.

Paulo Markun: Nilza.

Nilza Iraci Silva: Eu queria voltar um pouco, quando a senhora falava das condições, ou melhor, das subcondições de miserabilidade da população, e qualquer indicador socioeconômico vai demonstrar o impacto do racismo como estruturante das desigualdades e como ele incide de maneira perversa sobre mulheres e crianças negras. O Movimento Mulher Negra [o Movimento das Mulheres Negras iniciou-se no Brasil na década de 1990 e denuncia a geração de deseigualdades sociais decorrentes da subordinação da mulher negra] vem, há pelo menos dez anos, vinculando a questão da mortalidade infantil ao racismo sofrido pela mulher negra. Uma pesquisa recente do Nepo Unicamp [Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas] demonstra essa vinculação, quer dizer, os resultados apontam diferenciais na mortalidade infantil, dependendo de raça e etnia. Eu gostaria de saber de que maneira o trabalho exemplar da Pastoral trabalha com esse recorte racial ou como é que a Pastoral enfrenta o racismo no seu trabalho cotidiano.

Zilda Arns: Sabe, a Pastoral não tem preconceito. A gente trabalha numa comunidade onde a maioria é negra. Eu já fui a áreas [em] que havia só negros, redutos africanos. Por exemplo, no Piauí, em Oeiras, eu visitei comunidades rurais. Mas eles são tão bons. Eu diria mesmo que os pretos são tão bonitos. Nós, os brancos, somos negros desbotados, viu? Eu acho bonitos os negros. E eles têm tanta... tanto valor, tanto talento. Eu fico, assim, encantada! Agora que nós estamos com 17 africanos, aí de Angola, Guiné Bissau e Moçambique, as celebrações são uma obra de arte!  Então, realmente, os negros, para nós, são muito bem vindos; nós temos muitos coordenadores negros. Não só, vamos dizer, é a clientela negra, mas eles são, realmente, os propulsores do desenvolvimento.

Nilza Iraci Silva: Mas a Pastoral reconhece o racismo?

Zilda Arns: Nós reconhecemos, mas, ...

Nilza Iraci Silva: [Interrompendo] [A Pastoral reconhece] Que existe o racismo que permeia toda a sociedade, e que provoca...

Zilda Arns: [Interrompendo] ... na Pastoral,...

[Zilda e Nilza falam simultaneamente]

Nilza Iraci Silva: ... uma desigualdade.

Zilda Arns: ... nós notamos isso, é evidente. Mas, assim, dentro das comunidades da Pastoral da Criança todos se sentem bem, se sentem felizes. Eu vou às reuniões da Pastoral e fico encantada!  Os negros tão felizes, tão realizados na Pastoral!  Eu creio que é uma riqueza a gente poder trabalhar com os negros. E quando eu fui à Angola e treinei as primeiras 17 mulheres, eu fiquei, assim, encantada pelo interesse e pelo talento [delas]. Hoje são mais de 400 mulheres trabalhando na Pastoral da Criança. Então, eu creio que o racismo, também, está muito, assim, na cabeça das pessoas. Na hora [em] que a gente trabalha com elas e melhora a auto-estima, elas mesmas, elas se incluem melhor.

Marcos Kisil: Dra. Zilda, a senhora, que viveu [n]esses últimos meses a possibilidade do Prêmio Nobel para a Pastoral da Criança... esse esforço de internacionalização da experiência que o Brasil está vivendo, aparentemente, está mostrando que isso é uma forma concreta de se falar da paz.

Zilda Arns: Exatamente.

Marcos Kisil: Se a gente olhar um pouco os ganhadores do Prêmio Nobel dos últimos anos, por exemplo, em [19]88, ganhou a ONU [Organização da Nações Unidas], através de uma Força de Paz [tropas militares  multinacionais, também chamadas boinas azuis,  enviadas pela ONU a regiões de conflitos, para garantir o cumprimento dos tratados de paz]. [Em 19]94, o Shimon Peres e o Yasser Arafat foram ganhadores. Em [19]98, nós tivemos os dois da Irlanda do Norte [John Hume e David Trimble], um que representava o catolicismo, outro [que] representava os protestantes. E nós continuamos vendo guerra nesses lugares, continuamos tendo isso daqui, não como esses indivíduos, como grande indicadores do caminho da paz. Então, minha pergunta para a senhora é a seguinte: como a senhora viveu a ansiedade do Prêmio Nobel, como é que a senhora vê o Prêmio Nobel da Paz?

Zilda Arns: Eu só queria corrigir você: não [é] a ansiedade do Prêmio Nobel, [mas] a alegria de já ter ganho o Prêmio Nobel, salvando cinco mil crianças por ano, viu? Então, esse é o sentimento que eu tinha, e o Brasil estava, realmente, eufórico. Foi coisa assim... [foi] maravilhoso, porque todas as religiões, todos os partidos políticos, todas as classes sociais, todo mundo, assim, vamos dizer, feliz, na expectativa, esperando o Prêmio Nobel da Paz. Mas, realmente, o prêmio nós já ganhamos só por essa mobilização e os resultados. Agora, eu diria que o mundo tem que despertar, né? Se você olhar o mundo, assim, tão revolto, com tantas guerras e tantos problemas e tanta pobreza, você vai dizer: "Para onde esse mundo quer seguir?  Quer se acabar, de tanta guerra?".  Nós temos que começar com a educação para a cultura de paz, e é urgente. Então, naturalmente, as grandes premiações, não tenho nenhuma crítica a fazer, foi um momento que eles acharam melhor a ONU receber, para talvez valorizar mais a ONU na interferência para a paz. Mas eu penso que a prevenção ainda não tem valor cultural, não é? A gente tem que trabalhar semeando a paz em terra fértil, não improvisando; a gente tem que investir, pagar para ter paz. Como eu digo: a gente tem que pagar para a criança mamar no peito. A mãe que amamenta tem que ganhar alguma coisa para ela perseverar bastante tempo, de tão bom que é para a criança, de tanta educação que faz. Então, eu creio que o Brasil poderia ser... realmente, poderá ser, porque o povo brasileiro é fantástico, tem uma solidariedade incrível. Nós temos que começar com a cultura de paz, começando antes de nascer. E eu diria que o tipo Pastoral da Criança, complementado por médico de família, Bolsa Alimentação, com escolas melhores - porque também nossas crianças precisam ir à escola, uma escola boa, eles são pobres, né? -, Bolsa Escola, treinamento melhor dos professores... o país tem que investir nos recursos humanos, na educação, mas tem que ter saúde,  senão também a educação perece, não é? Então, eu creio que o caminho é esse. E também as crianças deviam ficar na escola o dia inteiro. Lá em Forquilhinha [município brasileiro do estado de Santa Catarina], minha terra Natal - não é? - , [onde] vivi uma infância tão feliz,  porque eu repito tanto esse nome, mas nós tínhamos aula o dia inteiro. De manhã nós íamos à aula, vínhamos para casa almoçar e voltávamos [para] reforço escolar, música, arte, coral, esporte, aprendendo e gostando de lá. Eram freiras especializadas, educação da Alemanha. Eu penso por que [é] que o Brasil não gasta na promoção dos seus recursos humanos, na educação, em vez de gastar tanto com polícia e... e a coisa não tem fim. Pode mudar diretor, pode mudar ministro, que a coisa continua cada vez pior. A gente tem que, realmente, investir na prevenção, na educação para a paz. E o mundo tem que saber disso. E em todo lugar aonde a gente vai a gente vê que as crianças, vamos dizer, as nossas estão melhores, as famílias estão melhores, só que falta ainda atrairmos políticas públicas para o centro de pobreza. O que a gente vê, por exemplo, aqui em São Paulo, que eu vi esses dias -  realmente, a Pastoral está fazendo sua parte -, mas não tinha banheiro dentro de casa, não tinha água dentro de casa, não tem emprego, [há muitos] analfabetos. Então, a gente tem que cuidar, assim,  de do desenvolvimento mais integral - né? -, mais intersetorial. E ter também áreas de lazer, porque as pessoas não podem só trabalhar; elas têm que também ter lazer, para terem saúde mental, para manterem a família unida - né? -, para a comunidade ter oportunidade de congraçamentos.

Paulo Markun: André Bidak é de Valinhos, diz que foi aluno da senhora, pergunta o seguinte: a organização das comunidades eclesiais de base e das pastorais - Pastoral do Trabalho, Pastoral da Terra - foi muito influenciada pela Teologia da Libertação, que, de certa maneira, segundo ele, foi renegada pelo Vaticano. Como a Igreja Católica se posicionou em relação à Pastoral da Criança e à indicação da Pastoral para o Prêmio Nobel?

Zilda Arns: Bom, a indicação da Pastoral para o Prêmio Nobel foi, assim, unânime. Foi apresentada em Itaici [bairro do município paulista de Indaiatuba onde se localiza a casa de retiro dos jesuítas Vila Kotska, também chamada de Itaici] com 100% de aprovação. Agora, eu penso assim: no início nós tivemos problemas, problemas da extrema esquerda que dizia que: "Como é que agora a Igreja vai fazer trabalho que é do governo?", [e] eu dizia: "olhem, eu sou médica sanitarista formada pela USP [Universidade de São Paulo], e eu sei que a gente, pesando criança na comunidade, tem muito mais valor do que num posto de saúde.". Porque não adianta só pesar: tem que tirar a criança da desnutrição, tem que animar a mãe, e a gente vê, assim, aquela solidariedade. Às vezes tem desemprego, tem tudo, a líder acolhe essa criança, recupera, devolve à família, procura tratar o alcoolismo do pai, melhorar as condições de saúde, isso... jamais o serviço público tem essa sensibilidade, não é? Então, nós, no começo, tivemos muito [problema] da extrema esquerda, que achava que a gente deveria lutar por políticas públicas. E eu dizia: "bom, é preciso, realmente, que haja políticas públicas, como existe até hoje; só que até que elas cheguem na comunidade a criança já está na rua, já morreu, ou já está com problemas.". Então, a gente tem que trabalhar no tecido social, na qualidade humana, e também nas políticas públicas básicas, principalmente, [para] que elas estejam disponíveis. Mas foi um prazer ele fazer essa pergunta para mim. Muito obrigada.

Gilberto Nascimento: Dona Zilda, o irmão da senhora, Dom Paulo Evaristo Arns, é o símbolo da luta pelos direitos humanos no Brasil - acho que em todo mundo -, foi a pessoa elogiada e respeitada no mundo inteiro por tudo isso, mas foi cerceado pelo Vaticano, foi... [gesticula] teve a atuação dele questionada, a divisão da Arquidiocese de São Paulo [sede arquiepiscopal - isto é, uma estrutura de poder da Igreja Católica - localizada na Catedral da Sé, na cidade de São Paulo. Em 1989, por decisão do papa João Paulo II, teve seu território reduzido, com a criação de novas dioceses. Mesmo assim, apesar de limitar-se às áreas centrais da cidade, congrega mais de seis milhões de fiéis]  foi uma atitude tomada pelo Vaticano [menor estado independente do mundo, localiza-se na região norte de Roma. O Papa é o seu chefe de Estado, eleito por um colégio de cardeais, e detém em suas mãos os poderes legislativo, executivo e judicial], claramente, para tirar das mãos de Dom Paulo as arquidioceses onde as áreas da diocese onde as comunidades eclesiais de base estavam muito mais organizadas, muito mais atuantes... E como é que a senhora vê isso?

[Risos]

Gilberto Nascimento: Hoje, felizmente, a senhora é até bastante elogiada no Brasil inteiro, por fazer esse tipo de trabalho e essa mobilização em favor dos pobres e oprimidos. E o irmão da senhora...

Zilda Arns: [Interrompendo] Bom, eu sou um pouco herdeira de Dom Paulo, né? Eu sou um pouco herdeira de Dom Paulo. Ele semeou bastante e a gente está colhendo aquela experiência das comunidades de base na Pastoral da Criança.

[... ]: Dona Zilda, ...

Zilda Arns: Então, isso tem nos ajudado bastante. Agora, realmente, vamos dizer, eu tive muita resistência do lado, vamos dizer, da extrema esquerda, porque achava que a gente estava invadindo a área do governo; da direita [também, que  questionava]: "Por quê [é] que... que a igreja tem que, vamos dizer, evangelizar, vai se meter nisso aí?". Então, o quê [é] que eu fazia? Eu fazia de conta que não ouvia e continuava meu caminho. E, com os resultados, eu fui, realmente, conquistando espaço. A Pastoral não ganhou espaço, a Pastoral conquistou espaço.

Gilmar Carneiro dos Santos: Mas já que a senhora está falando em Dom Paulo, como a senhora fala, tem que ter amor, tem que ter educação, tem que investir na solidariedade, quer dizer, para uma família que tem Dom Paulo, tem a senhora e tem os outros irmãos, ... fale um pouco do pai e da mãe da senhora. Qual é o segredo?

Zilda Arns: É, realmente minha família...

Gilmar Carneiro dos Santos: [Interrompendo] Tem muito a ver com eles, não tem?

Zilda Arns: Papai e mamãe investiram na saúde e na educação. Mas muito na prevenção, também. Mamãe dizia assim: "Onde entra boa comida e sol dentro de casa, não entra médico.". E muita higiene, muita alimentação. Realmente, a gente tinha, assim, uma vida realmente regada por um modelo de saúde. Papai investia muito na educação. Treze filhos [Gilmar ri], [dos quais] nove [tornaram-se] professores, dois [formaram-se] engenheiros, eu sou médica e um [outro é] agricultor. Então, eu me lembro, eu sou a penúltima, número doze. Então, ele vendeu terras para custear as escolas. Pagava, no início do ano, a escola [pel]o ano inteiro, e a gente ia para cima e para baixo em Santa Catarina. Naquele tempo, a gente levava dois dias para chegar em Curitiba. Ele escolheu Curitiba para nós morarmos, construiu uma casa em cima de três terrenos. Um terreno era para esporte, então eu fui campeã de vôlei do Paraná [por] três anos seguidos. A gente jogava vôlei todo dia, em casa, com a vizinhança. E nós tínhamos também tênis de mesa, tinha garagem, mas não tinha carro, e a gente colocou mesa de tênis de mesa, e jogávamos, né? E do lado esquerdo da casa, nós tínhamos galinheiro e plantávamos horta, verduras etc. Tinha muitas flores. Então, a gente viveu assim: meus irmãos mais velhos estudavam e trabalhavam. E os pequenos, quer dizer, a minha irmã menor, a Zélia, e eu, nós cozinhávamos, arrumávamos a casa todo dia e estudávamos. Não tínhamos empregada. Segunda-feira vinha uma lavadeira, só. Então, a gente... eles investiram em nós. E quando eu quis ser médica, meu pai queria que eu fosse professora. Porque ele achava o máximo: "O professor é que tem o mundo na mão. Se o povo tem educação, vai pra frente.". Então, meus irmãos eram, os mais velhos, eram praticamente todos professores, com exceção de dois que eram engenheiros. Então, eu queria ser médica, eu achava assim que... eu ia para o Amazonas - né? - curar [doentes] da malária, eu tinha visto vídeos [sobre isso], [queria] ir para o Rio de Janeiro, aquelas favelas. Então, eu, com 15 anos, decidi ser médica. Mas depois os meus irmãos ajudaram a convencer meu pai que deveria me deixar livre. E eu fiz medicina, e éramos apenas seis mulheres para 114 homens, que passamos no vestibular. E fiz medicina. Então, meus pais, eles cuidavam muito da saúde e da educação. E nós tínhamos também em casa... a religião, para nós, fazia parte da nossa cultura, não é? A gente [ia] rezar, cantar... Agora nós perdemos o irmão Osvaldo, que foi reitor da Universidade Católica; ele era o tenor da família. Então, agora cantamos em três vozes em vez de quatro. Então, nós cantávamos toda noite. Nós tínhamos, assim, um ritual muito bom. Com cinco anos - hoje [se] fala muito de criança trabalhar -, com cinco anos eu levantava de manhã e segurava o rabo da vaca, viu? Era o meu trabalho [aos] cinco anos. Mas não me prejudicou. Então, a gente tinha aquela responsabilidade, desde pequeno, de colaborar na casa, sem prejudicar o estudo, o lazer, né? Nós brincávamos demais, nós líamos muitos livros. Em Forquilhinha, organizaram uma biblioteca. Eu me lembro até hoje das filas que tinham depois das missas para emprestar livros e devolver livros, né? Então, a gente tinha  uma organização comunitária muito boa, e a gente aprendeu a participar, não é? Então, eles [os pais] foram assim; e creio que foram muito felizes. Mamãe, com quase oitenta anos, dançava e tocava gaitinha de boca maravilhosamente bem. Então, a gente, assim... só tem a agradecer a Deus, né? Mas eu creio que a família, a escola, a paróquia, seja de que religião for, teria que trabalhar junto com o Estado. Naquele tempo não tinha Estado, lá em Forquilhinha não existia Estado, porque a escola nós construímos; os professores, a comunidade que pagava, a gente fazia as provas orais com a presença dos pais, né? Então, era um tipo diferente de escola, né? Mas eu diria que a gente deve perder um pouco, assim... de pensar que a gente vai salvar o mundo sozinho. E também, o Estado [deve deixar de] ser arrogante [e] de dizer: "Isso é nosso trabalho, não precisamos de vocês.". Então, a gente tem que trabalhar juntos pra melhorar o país.

Ricardo Soares: Dra. Zilda, deixa eu voltar aqui numa ação cotidiana da Pastoral da Criança que se refere à multimistura. Queria que a senhora contasse ao telespectador que não sabe o que é essa multimistura que está... que é um aliado cotidiano no trabalho da Pastoral da Criança e de onde surgiu essa, aspas, "tecnologia da multimistura" que está em todo o Brasil, acompanhando o trabalho da Pastoral da Criança.

Zilda Arns: Você sabe, Ricardo, que a metodologia da Pastoral da Criança, a maneira de ela trabalhar, é fundamentada no Evangelho de São João [livro da Bíblia] quando fala da multiplicação, [d]o milagre da multiplicação dos peixes e pães. Quando cinco mil homens - né? - acompanharam Jesus, chegou a noite [e] os discípulos disseram: "É melhor que vocês vão para casa, estão com fome, já está ficando noite.". E Jesus disse: "Dai-vos vós mesmos de comer.". Então, o que a Pastoral faz é aproveitar ao máximo a comunidade para a "resolutividade" dos seus problemas. Então, a multimistura é aproveitar tudo o que a gente joga fora, mas tem valor nutritivo: a gente faz uma multimistura. Então, nós temos, assim, vamos dizer, lá no Amazonas tem a pupunha [palmeira de rápido crescimento consumida em forma de frutos e palmito], que é riquíssima em vitamina A, tem até cheiro de vitamina A, que era jogada [fora] e[nquanto havia] crianças desnutridas. Então, foi feito o pó da multimistura, agregada à farinha que eles costumam comer lá no Norte, mais farinha de mandioca, em outros lugares farinha de milho, farinha de trigo... Então se mistura casca de ovo, [que] é riquíssima em cálcio. Ainda hoje, existem pessoas que protestam, mas a minha mãe, quando tinha galinhas que botavam ovo mole, ela dizia assim: "Vamos guardar as cascas, torrar e dar para as galinhas.". Três dias depois estavam com os ovos duros. E nós aproveitamos aquele cálcio e ralamos, fazemos um pó - parece um pó de arroz branco - e misturamos à multimistura. Os farelos, antigamente pilavam [amassavam com o pilão]. Eu não peguei mais o tempo do pilão, mas eu já vi pilar [faz o gesto de pilar] o arroz, então era arroz integral. A gente vai para a Alemanha [e] o pessoal come arroz integral; nós comemos aquele arroz anêmico, né? Então, a gente pega aquele farelo que cai do arroz e coloca também na multimistura. E, muitas vezes... por exemplo, amendoim, que é riquíssimo - não é? -, o soja é riquíssimo, gergelim, girassol e outras coisas mais. Então, o que tem na região, a gente procura misturar tudo isso aí. E muitas vezes o governo, o prefeito, dá o leite, alguma coisa, ainda mistura o leite junto e fica muito gostoso. Isso é multimistura. Mas a multimistura é diferente em todas as regiões do país. Eu não posso dizer: "são tantos gramas disso ou [d]aquilo." Mas é muito, muito bom para saúde.

Ricardo Soares: E está sendo copiado, né?

Zilda Arns: Está sendo copiado. O Brasil inteiro está fazendo. Até o Cesar Vitor, uma vez nós pedimos a ele, um grande pneumologista de Pelotas: "não dá para fazer uma pesquisa para ver [os benefícios da mistura]?". O pessoal nos exigia provas científicas. Nós só tínhamos fotografias de criança antes e depois, não tínhamos nada mais, né?

[Risos]

Zilda Arns: E então quiseram, assim, nos maltratar com a multimistura e... mas eu dizia assim: "olhem, vocês encontram uma criança da Pastoral no hospital porque comeu multimistura? Não encontram! Agora, quantas crianças que catam lixo [e] ninguém reclama?". Agora, a Pastoral procura fazer o melhor possível né? [Ricardo ri] E, às vezes, com muita benção junto - né? -, e a coisa vai bem! Então, ela não tem, assim, vamos dizer, uma fórmula.

Ricardo Soares: Ela varia de região para região.

Zilda Arns: Varia. Mas até eu tenho um irmão, o frei João Crisóstomo [frei João Crisóstomo Arns (1915-2002), educador, coordenador e orientador na Universidade Federal do Paraná] - né? -, que foi professor da Universidade Federal, grande educador, tem 86 anos, ele diz assim: "Ó, desde que comecei a tomar a multimistura, minha saúde está outra!".

[Risos]

Zilda Arns: Então, é para velho, é para criança... e por outro [lado], digo assim, a gente... todas as ações básicas ajudam, não é só a multimistura. Se você dá multimistura, mas não vacina a criança, não educa a mãe - não é? -, a mãe está relaxada, deixa a coisa fermentar, pode ter multimistura, não vai adiantar. Então, a gente tem sempre que trabalhar o ser humano na sua promoção humana, multiplicando o saber, a solidariedade, animando - né? -, fortalecendo. É isso que dá o resultado.

[... ]: Nessa...

Paulo Markun: Dona Zilda, nós vamos fazer mais um intervalo e a gente volta já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando a coordenadora nacional da Pastoral da Criança, Zilda Arns. Dona Zilda, perguntas aqui de Laércio Pereira, do município... perdão [corrigindo-se], do bairro de Santana, aqui na capital, que é empresário; Evandro de Moraes, de Ribeirão Preto, que é biólogo; e Alberto Santos Neto, do Balneário Camboriu, Santa Catarina, têm o mesmo sentido, com alguns detalhes. O Alberto quer saber como ele pode contribuir com a Pastoral; o Evandro pergunta: “O que é que preciso fazer para ajudar a Pastoral com dinheiro?”; e o Laércio, que é empresário, disse se a Pastoral... pergunta se a Pastoral não tem programa que permite doar um percentual de recursos e vincular o nome da empresa à Pastoral da Criança.

Zilda Arns: Ah, eu agradeço muito; essas perguntas são muito úteis. Vocês serão muito bem recebidos. Nós não aceitamos só se é dinheiro de droga ou de álcool, de cigarro. Mas fora isso, todos são muito bem recebidos. Bom, em relação à doação de dinheiro, pode procurar a paróquia mais próxima da casa dele, ou então ligar-se com a coordenação nacional, e a gente estuda. Nós estamos, inclusive, formulando critérios para ligarem o nome da empresa à Pastoral da Criança, porque isso é muito interessante para a empresa e é muito interessante para a Pastoral da Criança. Por exemplo, a TIM celular [empresa de telefonia móvel] está alfabetizando oitocentos alunos nas áreas onde eles têm... vamos dizer, [nas áreas de] abrangência deles: Paraná, Santa Catarina e Pelotas, Rio Grande do Sul. Assim, outras também poderão ter e podem vincular [mensagens que informem]: "Olha, nós ajudamos a Pastoral da Criança." e tal, né? Agora, para quem quer, assim, ajudar pessoalmente, é bom ir à paróquia mais próxima de sua casa - seja de que religião for - e será bem recebida. [Sabemos que] 60% das paróquias do Brasil já têm Pastoral da Criança. Mas, se não [tiver na paróquia procurada], pode-se ligar, também, à Pastoral da Criança. Nós temos um telefone, temos e-mail também, talvez pudesse ser dado.

Paulo Markun: Claro. Sim, sem dúvida. Por favor.

Zilda Arns: É (41) 336-0250.

Paulo Markun: (41) 336-0250. Até o final do programa nós vamos colocar isso em caracteres na...

Zilda Arns: E tem e-mail também; o Fachina pode dar.

Paulo Markun: E como é o e-mail?

Zilda Arns: [Chamando seu assessor] Fachina, o e-mail... ?

[...]: [... ]

Paulo Markun: www.pastoraldacrianca.org.br. A Deise, por favor, depois providencia, para a gente colocar isso em caracteres. Agora, a senhora tem idéia de quanto falta de dinheiro para resolver o problema que a Pastoral soluciona? Quer dizer, vocês têm 16 milhões; são 80%.

Zilda Arns: [Interrompendo] Falando... falando em dinheiro, gostaria de dizer bem claro que esse dinheiro é para todas as atividades da Pastoral. Então, nós temos saúde, educação, temos geração de renda, alfabetização de 38 mil alunos, né? Então, todo o trabalho de saúde mental, inclusive terceira idade... nós estamos atendendo mais de 16 mil pessoas também, já está aumentando muito, e para as comunidades, nós gastamos, principalmente, em capacitações, em materiais educativos, balanças, encontros para a troca de experiência, sempre animando a rede de solidariedade. Agora, para dizer quanto nós precisamos,  precisamos muito para avançar, não é? Quanto mais... Nós temos... por exemplo, alfabetização estava com pouco dinheiro, foi para 19 mil alunos, agora ganhamos dinheiro, foi para 38 mil alunos. Quer dizer, foi, assim, um salto. Porque a gente precisa, o monitor não recebe, mas ele precisa de uma ajuda de custo, porque, geralmente, ele não mora dentro da favela, da comunidade, ele tem que vir, gasta tempo e ônibus, né? Então, os três são muito bem vindos e podem nos procurar - né? -, que serão bem atendidos. E gostaríamos muito, até, que fossem... que os empresários realmente quisessem participar. Inclusive, nossa prestação de contas costuma ser muito transparente. Então eles podem ver como entrou o dinheiro e para onde vai. Quando nós mandamos, assim, cheques para as paróquias, para as dioceses, vai assim: Pastoral da Criança/Ministério da Saúde, Pastoral da Criança/Ministério da Educação, Pastoral/Copel, Pastoral/tal entidade. Então, inclusive, para onde vai o dinheiro, eles sabem donde...

Paulo Markun: [Interrompendo] ... veio.

Zilda Arns: Qual é a fonte.

Paulo Markun: Miguel dos Santos - para não dizer que eu não fiz nenhuma pergunta mais capciosa -... Miguel dos Santos, de Itabuna, na Bahia, que é aposentado, diz que ele trabalha como coordenador de uma paróquia, em Itabuna, que está ligada à Pastoral, e quer saber por que é que os voluntários precisam pagar as camisas que usam.

Zilda Arns: É porque...

[Risos]

Zilda Arns: É porque nós não temos dinheiro para promoção. Então, até no começo a gente pedia para a [...] e outras, eles mandavam, vamos dizer, dez mil camisas, com mais de cem mil pessoas. Então nós mandávamos para um, outro não ganhava... Então, a gente... a gente pede para eles se virarem lá. O que nós aconselhamos - e que a gente tem visto no Brasil inteiro acontecer - [é] que muitas vezes o empresário, uma casa de comércio, alguém doa, né? Mas, realmente, nós não temos dinheiro para isso.

Paulo Markun: E mais...

Zilda Arns: E também para a comunidade, assim, em dinheiro vai muito pouco. Vai muito pouco. Então, são 35, quarenta centavos. Nós até temos um estudo de quanto vai em cada ação que nós fazemos. Então, uma comunidade... cheguei em uma comunidade do Norte do Brasil, perguntei: "quanto dinheiro vocês ganham por mês da coordenação nacional?". Então disseram: "Dez reais." [e eu perguntei:] "e adianta alguma coisa? "[, disseram:] "Ai, ajuda demais!". Dez reais por mês. Então, o dinheiro que vai para a comunidade é muito pouco. Nós promovemos as lideranças e as lideranças procuram se ajudar e se virar.

Paulo Markun: Aniz Maia, de Fortaleza, que é médico, pergunta: "Qual é o dado estatístico sobre mortalidade infantil mais confiável: do governo ou da Pastoral?".

Zilda Arns: Eu creio... eu creio que da Pastoral é melhor, porque nós, independente de atestado de óbito ou atestado de nascimento, registro de nascimento, a criança nasceu, consta na estatística; morreu, consta, tenha ou não atestado. Inclusive, o nosso sistema de informação, que é considerado o melhor do mundo pelo Unicef [em inglês, United Nations Children's Fund ou Fundo das Nações Unidas para a Infância], Organização Mundial de Saúde... o próprio Ministério reconhece que nós temos um sistema de informação excelente, gostaria de entrosar conosco. Nós sabemos até a causa de morte, e não é o médico que nos dá. São as líderes comunitárias que descrevem como a criança morreu. E aí nós temos o código internacional e temos programas informatizados que nos dizem, e quando vão pesquisar na comunidade, é isso mesmo. Quer dizer, as três primei[ras]... principais causas de morte são perinatais ou neonatais, quer dizer, as crianças que morrem antes dos sete dias ou então antes de um mês. E a segunda causa são doenças respiratórias, pneumonias, né? E a terceira causa [é] diarréia. Antes da Campanha do Soro Caseiro [campanha de âmbito nacional com o objetivo de informar a população brasileira sobre o preparo e utilização do soro caseiro (solução sal/açúcar para reidratação oral)], que todos ajudaram - aliás, aqui eu queria agradecer, assim, toda a Igreja, o Ministério da Saúde... o ministro José Serra tem ajudado demais a Pastoral, dobrou inclusive os recursos, o Ministério da Educação, o BNDES [Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social], que nós fizemos um convênio que vai ajudar muito a Pastoral, nós vamos informatizar a Pastoral, e tantas coisas mais, eu queria agradecer muito. Mas, realmente, os nossos dados são muito idôneos. Porque ela é controlada, não é só uma líder. A comunidade controla o que manda para nós. Quer dizer, o controle é interno.

[Sobreposição de vozes]

Marcos Kisil: Dona Zilda, uma pergunta: a senhora nos recordou, aí, a experiência pessoal sua ao entrar na faculdade de medicina, e depois a...

Zilda Arns: [Interrompendo] Tinha horror à sala de anatomia... fiquei assim três semanas sem comer carne... tinha um cheiro de formol... e o que eu sonhava era tratar doentes, salvar vidas e tinha que trabalhar nos cadáveres. Eu sofri muito!

Marcos Kisil: Eu diria... eu diria que a senhora foi uma estudante normal...

[Risos]

Marcos Kisil: ... porque todos nós passamos por isso. A minha pergunta para a senhora é a seguinte: a faculdade de medicina, normalmente, ela hoje, ela tem um currículo que tenta sofisticar e preparar o médico para uma medicina curativa, uma medicina de intervenção hospitalar, e, geralmente, a universidade trata esses temas sociais, eu diria, com um certo menosprezo. Não entram nos seus programas de pesquisa, não entram nos seus treinamentos em serviço, as áreas de extensão da universidade não valorizam muito isso. Eu gostaria que a senhora, que nós aqui, como colegas da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, que aprendemos a entender também um pouco a universidade, como é que a senhora vê a participação da universidade na vida social brasileira, no sentido de resolver os problemas sociais?

Zilda Arns: Eu acho que existe uma distância enorme. Eu... lá em Manaus, tinha um professor que trabalhava com plantas medicinais. Eu disse: "vamos chamar esse professor!". Ele vinha, assim, fim de semana, porque ele não podia deixar as aulas durante a semana. Nós pagávamos a condução para ele, quer dizer, o barco, o avião, para ele dar curso para o nosso pessoal sobre plantas medicinais. Quer dizer, uma coisa extraordinária! Por que [é] que a universidade, vamos dizer, as universidades não colaboram? Nós fizemos, assim, pegamos alguns professores e fizemos reunião com nosso pessoal para eles ensinarem como preparar, como fazer os remédios caseiros, aproveitar a alimentação da região, que jogam fora, no lixo, a maior parte. Aliás, o Brasil desperdiça incrivelmente, né? Eu sempre digo, o Brasil não tem falta de comida, desperdiça demais. A gente teria que ter um foco social mais... Eu até faria um apelo às universidades, eu sou irmã de tantos professores; tenho 4 irmãos que fizeram doutorado, foram professores de universidade, um foi reitor. Mas eu diria, assim, que a universidade não se despertou para o seu papel social. A gente vê [que] mesmo um médico de família falta. Então eles são muito especialistas em coisas sofisticadas, né? Quando eu ia aos congressos de pediatria, também, a área de ações básicas quase não tinha gente, né? Era meia dúzia de gatos pingados; quando era coisa, assim, muito difícil, estava, no dia, gente de pé. Então, tem razão, eu até faria um apelo para as universidades procurarem a Pastoral da Criança, humildemente. Nós... bem no começo, até procurei a universidade, mas eles entendiam como eles tinham que pesar as crianças, eles tinham que fazer as coisas. Não, assim nós não queremos. Nós queremos multiplicar o saber. Então, a comunidade tem que fazer. Então, o nosso esforço é fazer a comunidade fazer e não nós fazermos pela comunidade. Fiquei muito feliz. Eu fui, uns três meses atrás, a Recife e dois professores de uma universidade [de] lá me procuraram. Tem uma cadeira de mestrado sobre pequenas rodas de conversa. Nós inventamos as pequenas rodas de conversa. O Ministério da Saúde nos patrocinou. São, assim, o que se fazia no tempo da ditadura, né? Eu fui da JUC [Juventude Universitária Católica, associação civil católica reconhecida pela hierarquia eclesiástica em 1950, que tinha como objetivo difundir os ensinamentos da Igreja no meio universitário] também. A... vamos dizer, uma pedagogia problematizadora: ver, julgar, agir, avaliar e celebrar. Quer dizer, fazia o povo sentir. Então, por exemplo, o tema central: gravidez precoce - que é um problema enorme, na Pastoral da Criança, como em todo o Brasil. Então, a comunidade identifica: "Existe a gravidez precoce. Qual a causa da gravidez precoce?". Então, um fica escutando o outro: "Não, é porque... tem que usar camisinha e não usam.". Outros dizem: "Não, não é isso. É que os pais têm que conversar mais com os filhos." [ou] "Não, são os programas da televisão que estimulam...", "Não, porque o menino não tem o que fazer - né? -, gasta energia em quê? Está com os hormônios nas alturas, vai fazer filho, né? Se estivesse na escola, se estivesse ocupado, ele não... ele estaria cansado a noite, ele ia dormir, não é?". Então, as diversas idéias se cruzam; então, com isso se faz uma educação comunitária participativa. E a universidade gostou tanto que eles criaram uma cadeira de mestrado para pequenas rodas de conversa. Eu disse: "mas que material vocês usam?"  [e eles respondem:] "Da Pastoral da Criança, da pobre Pastoral da Criança." Então, é uma beleza! Eles tiveram a humildade de ir às nossas comunidades e de nos ajudarem. Então, pensa na área de nutrição: em vez de criticar, realmente, ajudar a entender melhor que existem muitas riquezas. Eu diria que a agronomia, a agricultura - não é? -... um nome de turma lá do Paraná, da Universidade Federal do Paraná, deram o meu nome. Eu disse para eles: "olha, o que eu desejaria para os meus afilhados seria que vocês vissem que a arte da profissão de vocês é, principalmente, fazer com que o acesso dos mais pobres - não é? - à alimentação, evitar o desperdício, ensinar aos pobres, a fazer...". Nós fizemos, estamos fazendo muitas hortas, né? Eu fui a Lábrea, no interior do Amazonas, aqueles quintais enormes sem nada. E uma escola de agricultura que o povo queria, escola agrícola, o governo federal construíu lá. E o governo estadual e municipal brigaram entre si, abandonaram os recursos humanos. Estavam lá os guardas, cuidando daquela escola. E o povo, lá, com os quintais sem nada. Quer dizer, essas dissonâncias entre, vamos dizer... eu diria, a falta de cidadania, porque a gente, quando tem as coisas, é para servir ao povo; foi criado para isso. Houve esforço e não chegou lá, não é? Então, eu creio que a universidade, também, quando pensa em alguma coisa, tem que pensar que nós estamos assim, com 49 milhões de pobres no Brasil, e que eles podem nos dar muito. Agora, eu creio que as coisas estão vindo, né? Mas eu gostaria de convidar as universidades para trabalharem conosco. Só que quando eles dizem [que] nós precisamos pagar isso, pagar aquilo, o que nós fazemos é pagar a passagem, a hospedagem, né? Agora, [para] pagar, nós não temos dinheiro.

Gilmar Carneiro dos Santos: Dona Zilda, este ano é o Ano Internacional do Voluntariado [proclamado pela Assembléia Geral das Nações Unidas para que houvesse uma conscientização generalizada da necessidade de se institucionalizar o voluntariado entre os vários agentes sociais] - né? -, e, dos 132 mil líderes, o princípio da Pastoral é que eles são habitantes da própria comunidade.

Zilda Arns: É... exatamente!

Gilmar Carneiro dos Santos: Agora, se tem empresário que quer ajudar...

Zilda Arns: [Interrompendo] Essa é a arte, Gilmar. E, inclusive, outros países. Nós já estamos em 12 outros países. Alguns acharam: "Não! Vêm da paróquia e vão na favela pesar criança.". Um fracasso! Tem que ser gente de lá, por causa da continuidade.

Gilmar Carneiro dos Santos: Então, mas eu queria fazer uma reflexão que é o seguinte: esse trabalho com a criança, com a liderança comunitária, ele tem sido extremamente positivo. Agora, a Pastoral tem acrescentado algo importante, que é o quanto é importante a rede comunitária, com os universitários, com os empresários, com os trabalhadores. Agora, como expandir isso para outros segmentos das próprias pastorais - né? -, não só da criança, mas das redes. Tem-se 5.150 paróquias que participam; como os padres conclamarem a comunidade para organizar esse trabalho, não só com [crianças de] zero a seis anos. Porque depois entram na escola e quantos milhares não saem da escola ou repetem o ano porque não têm um acompanhamento escolar adequado.

Zilda Arns: Nós estamos... estamos sendo pressionados para, realmente, nós expandirmos. Agora, a gente tem medo, assim, de pegar um mundo muito grande [abre os braços] e diminuir a qualidade. Então, a gente tem que mensurar. Por exemplo: Bolsa Escola. O Ministério da Educação nos pediu para nós cuidarmos da vigilância, porque, muitas vezes, [o dinheiro] é desviado para afiliados políticos e nossas crianças, paupérrimas, não têm Bolsa Escola. Então, onde nós atuamos nós vamos fazer essa vigilância. Quer dizer, não nos custa muito trabalho, porque não é todo mês; faz-se uma, duas vezes por ano e pronto. Agora, outras pastorais, como, por exemplo, Pastoral da Juventude... nós estamos com mais de 15 mil jovens trabalhando na Pastoral da Criança. Agora, precisava formalizar uma rede, né? A Pastoral da Criança tem uma experiência administrativa grande, né? Já veio, assim, com experiência administrativa desde o início. Por exemplo, [o] sistema de informação foi implantado na primeira comunidade. Então, a gente já tem uma experiência. Mas você tem razão. Eu creio que, se tivesse uma rede funcionando [entrelaça os dedos] com crianças de sete a 12 anos, de 12 a 18, né? E vamos ocupar essa gente e pressionar o governo para nos ajudar, eu creio que daríamos um avanço. Mas vamos pensar juntos nisso aí, que eu creio que todos poderão ajudar a pensar, né?

Stephen Kanitz: Agora, seis anos atrás, se falava muito pouco da Pastoral - aliás, se falava muito pouco de todo o terceiro setor - e agora há um enorme interesse. A senhora atribui a que esse... esse... ?

Zilda Arns: Bom, nos primeiros anos, eu até escondia a Pastoral.

[Risos]

Zilda Arns: Porque, já imaginou, colocar na mídia e não encontrar nada, né? Então, a gente tem que cuidar, porque a credibilidade é o que nós temos. Na hora [em] que a Pastoral perde a credibilidade, perde o voluntariado e acaba a Pastoral. Então, a gente foi, assim, cuidadoso no processo. Agora, por outro lado, foi descoberta a Pastoral. E com a [rede de televisão] Globo e outras televisões - né? -, vendo o trabalho, ficou conhecido. Isso é muito bom, porque as líderes, os voluntários, sentem-se valorizados, né? Imaginem [que eles comentam]: "Viu a Pastoral? Nós estamos na televisão!". Então, aquilo melhora a auto-estima. E agora, também, com a mobilização do Prêmio Nobel, então, fomos muito procurados, né? Mas eu creio que o terceiro setor é, assim, um... vamos dizer, [tem] um potencial enorme. Eu duvido que haja um país mais solidário que o Brasil. Quando eu vejo nossas mulheres, às vezes, sem quase ter o que comer, com aquela alegria de fazer, não é? Então, até psiquiatras sociais nos analisaram. [Por]que nós trabalhamos em três áreas: primeiro, da promoção humana. Quer dizer, ainda hoje eu perguntei para um grupo de mais ou menos trezentas lideranças, perguntei: “vocês aprendem todo mês mais um pouco, não é? Tem que aprender mais. Promoção humana... vocês se sentem como em família, como os primeiros cristãos: vede como se amam... Vocês se ajudam mutuamente, aquela rede... a comunicação funciona nessa rede?". Quando, como diz São Paulo Apóstolo: "Nunca sofre, porque quando um está desanimado, o outro anime.", então a gente, quando trabalha num trabalho pesado como o da Pastoral, muitas vezes, chega numa família, as crianças desnutridas, o marido bêbado, a mulher deficiente mental e as crianças desnutridas. E daí - né? -, a líder fica: "O que é que eu faço?". Então, se reúne... Eu vi casos assim, vamos dizer, as próprias lideranças resolverem. Eu não vejo casos de encaminhamento para o juizado de menores ou para a polícia. Eles procuram resolver o problema, não é? Então, realmente, o terceiro setor é um potencial enorme que o Brasil tem. Agora, ele precisa ter objetivos definidos. Saber: "Eu vou ser voluntária para alcançar o quê?". Deve ter um sistema de informação que diga: "Ollha, reduziu a mortalidade.". Ou então: "Na escola reduziu a repetência escolar.", né? [Ou:] "Melhorou tal coisa.". Então, tem que ser capacitado, ter um sistema de informação, ter motivações, quer dizer, encontros, para troca de experiências. Eu diria que a capacidade, também, de articular, porque a gente não pode trabalhar isolado. Se o governo, a sociedade, todos se reunirem, com o objetivo, mas não perdendo a identidade... Eu sempre digo, a gente deve articular, e não integrar. Porque quando integra, não sabe a farinha de que [é] que é mesmo? Está misturada. Então, tem que manter a identidade, não é? Eu creio que isso o Brasil ainda vai conseguir bastante.

Paulo Markun: Cleide.

Cleide Silva: Dra. Zilda, a Pastoral já conseguiu... consegue todo ano salvar a vida de milhões de crianças, mas ainda tem milhões de crianças desnutridas, sem escolas, partindo para a marginalidade. A senhora vê uma alternativa, uma saída para essa situação da infância no Brasil, e, principalmente, se o projeto da Pastoral dá tão certo, na sua avaliação, por que [é] que o governo não copia isso e não amplia para o Brasil todo?

Zilda Arns: Acho que o governo já copiou bastante, viu? Por exemplo, o programa de agentes comunitários de saúde, né?  Começou... a Pastoral da Criança começou com agentes voluntários em [19]83. Em [19]87, o Ceará começou a pagar. Nós estávamos com quatro mil líderes, ficamos com duas mil. Ficaram agentes comunitários pagos, não é? Então, depois, em [19]91, no governo Collor, Alceni Guerra [exerceu durante o governo Collor o cargo de ministro da Saúde]... começou a cólera [doença causada pelo vibrião colérico, uma bactéria que se multiplica rapidamente no intestino humano, produzindo uma potente toxina que provoca diarréia intensa]. Começou em Chimbote, no Peru, e nós tínhamos Pastoral da Criança lá, em Chimbote. O Peru tem 36 dioceses com pastoral. Então, a cólera foi descendo, lá pro Peru - né? -, desceu para o Alto Solimões [uma das microrregiões do estado brasileiro do Amazonas, pertencente à mesorregião do sudoeste amazonense e dividida em 9 municípios], foi descendo... assim, voluntários, não é estalar o dedo [Zilda  faz o gesto de estalar o dedo]  [e] eles aparecem, são treinados. A gente tem que preparar a terra. Aí, o Alceni me chamou, e eu [lhe] disse: "bom, [com] o que nós pudermos colaborar, colaboramos.". Então, demos treinamento, ajudamos a treinar as primeiras setecentas [pessoas]. Os nossos manuais serviram para treinamento [e] o Ministério da Saúde treinou a respeito de cólera, que a Pastoral da Criança não tinha experiência, né? Então, aquilo depois foi para o Nordeste e se expandiu pelo Brasil. É um trabalho semelhante, mas o trabalho da Pastoral é diferente, porque a Pastoral da Criança atende... cada líder atende dez, 15 famílias, cinco, vinte [famílias], depende da condição de tempo que ela tem disponibilidade. E os agentes têm que atender muitas famílias: 150, duzentas. Então, a Pastoral da Criança tem mais tempo para a solidariedade humana, para ensinar, e nós nos entrosamos muito bem. Então, nós ficamos muito felizes, há um entrosamento bom. Médico de família também. A alfabetização de jovens e adultos, quem tinha muito no Brasil era a igreja, o Mobral [Movimento Brasileiro de Alfabetização, projeto criado pelo governo brasileiro em 1967, que propunha a alfabetização funcional de jovens e adultos, visando "conduzir a pessoa humana a adquirir técnicas de leitura, escrita e cálculo como meio de integrá-la a sua comunidade, permitindo melhores condições de vida"]. Eu era diretora de postos de saúde, e era obrigatório ter também uma sala de alfabetização. Quer dizer, antes do Mobral, era a igreja que alfabetizava. Depois começou o Mobral e a igreja foi se retirando, né? Agora, novamente, nós entramos com a alfabetização. Então, são esses movimentos sociais, mas eu creio que a gente não deve, assim, vamos dizer, misturar. A Pastoral tem o seu objetivo - né?-, é também a cidadania. Por exemplo, o nosso novo guia do líder, que é como a "bíblia" da Pastoral, tem desde o registro de nascimento, batizado na religião que for, aleitamento materno, cantar, rezar etc, com a criança, porque a saúde, mudou até a definição dela. Há dois anos, a Organização Mundial de Saúde acrescentou mais uma qualidade: "É o completo bem-estar físico..." - quer dizer, não ter doenças -, "...social,..." - estar bem consigo e com os outros -, "... mental,..." - quer dizer, com todas as faculdades sadias -, "...e espiritual." Quer dizer, então a gente procura desenvolver isso aí, e o governo, naturalmente, tem um papel muito importante de fazer com que as políticas públicas cheguem até as comunidades. Então, a descentralização que houve no Brasil, nos últimos cinco anos, no governo Fernando Henrique [Fernando Henrique Cardoso (1931-), presidente do Brasil de 1995 a 2003], é incontestável. Muito ainda não se produziu para o povo sentir, porque a qualidade, ela vai se construindo; mas, vamos dizer, só a descentralização do SUS, Sistema Único de Saúde, foi extraordinária. A da educação... você deve lembrar da merenda escolar, [que] era um horror, né? Hoje, vai para a mão da mãe e, com o dinheiro, há o desenvolvimento local integrado e sustentável. Eu falava com o dono de um boteco, esses dias, no interior, que eu estive no Nordeste... Ele me dizia: "Agora, com o dinheiro do Bolsa Escola, melhorou o meu boteco, estou fazendo mais negócios.". Então, eu creio que todos os programas devem convergir para melhorar a base.

Paulo Markun: Dona Zilda, o nosso tempo está acabando, mas eu queria colocar uma última pergunta para a senhora. Aliás, confesso que, ouvindo a senhora falar, muito me lembra o Dom Paulo, com quem tive uma convivência bastante grande  muito tempo atrás, e que tem também essa mesma visão - eu não vou usar a palavra cor-de-rosa, mas iluminada, vai, pelo menos - das coisas.

Zilda Arns: É muito real [risos]. Tanto é que estamos alcançando. O que a gente deve deixar é... assim, sempre achar que os outros... os outros [têm que fazer]... O que a gente tem que enfrentar, a gente tem que fazer e deixar as limitações de lado - né? -, e a gente trabalhar. Realmente é isso.

Paulo Markun: Mas eu tenho certeza [de] que, nesse tempo todo de Pastoral, a senhora, certamente, encontrou momentos de desânimo e situações de indignação. E eu queria que a senhora relatasse algumas dessas experiências.

Zilda Arns: Tempos passados foram de inflação muito alta. A gente fazia convênio, vamos dizer, em março, quando chegava junho e julho não valia mais nada, com a inflação de 50% ao mês. E a gente ainda tinha atrasos: três, quatro meses de atraso. A gente trabalha, eu dizia: "meu Deus, um trabalho tão bom e não é valorizado, né?". Então, aquilo realmente era um problema grave, não é? Então, caia ministro cada nove, dez, 11 meses. Então eu dizia: "sou viúva e tenho vocação para viúva. Começo a namorar, noivo, caso e cai o ministro!".

[Risos]

Zilda Arns: "Tenho que começar a namorar, noivar e casar [de novo], [e outra vez] cai o ministro!". Então, eu [tive] sempre aquele problema de, realmente, a gente não ter uma estabilidade, não é? Era tudo, assim, feito... A gente esperava, muitas vezes, com "chá de cadeira" [tempo grande de espera]. Então, isso era realmente muito desagradável. Agora, por outro lado, a Igreja  [Católica] que pegou no colo a Pastoral, e, realmente, ela [a Pastoral] caminha porque tem o apoio de toda a Igreja, tanto a direita, [como d]a esquerda, [d]o meio... que hoje a gente não fala mais tanto nisso - né?-, e está apoiando a Pastoral da Criança. Outras pastorais também estão conosco. Então, no começo, era um pouco mais difícil, né?

Paulo Markun: E qual é o sonho que a senhora tem, ainda, para realizar?

Zilda Arns: Bom, quando eu vejo essa miséria, digo: "por que [é] que a gente não trabalha juntos e vai até a comunidade resolver os problemas?". Segundo estudo que eu li no jornal, esses dias, seria um bilhão e setecentos mil reais por mês para acabar com a pobreza, com a miséria, né? Por quê [é] que não se faz isso aí? Agora, por que [é] que os partidos políticos não se unem na hora que é [para promover] o bem-estar do povo? Muitas vezes, não querem fazer passar programas bons porque vai, vamos dizer, prejudicar a nossa eleição para a próxima... para a próxima vez. Quer dizer, a cidadania, aquele compromisso de a gente fazer com que os outros não sofram tanto... Eu gostaria, até, assim, eu penso: "meu Deus, se eu ficasse morando três dias numa... num barraco daquele que eu fui, que não tinha nem água, eu acho que eu sairia de lá e berrava: vamos fazer logo uma melhoria, porque isso é insuportável!". Agora, tem milhões de pessoas, muitas vezes, entrando como traficantes de drogas, porque não têm o que comer. Quantas crianças maltratadas, não é? Então, isso não é governo federal, é todos os governos, a sociedade e a família. As escolas deveriam ter programas de cidadania, de experiências de cidadania, para formação do caráter, da co-responsabilidade. Agora, eu diria também [que] os países têm que ser mais solidários. Quando eu vejo a dívida externa sangrando o Brasil e outros países - né? -, em detrimento de programas... Eu diria, por que [é] que os outros países... ? Talvez aprendam com essa guerra, agora, porque uma guerra é aquela [e] a outra guerra é aquela que nós temos aqui, que vai explodir... Então por que [é] que os países ricos não perdoam a dívida, mas empregam a dívida em programas sociais? Porque produziria a inclusão social, quer dizer, economicamente, o Brasil tem um potencial enorme e seria maior ainda, né? E paz no mundo... Trabalham tanto com polícia, para controlar drogas, por que não trabalham para erradicar a pobreza, não é? Então, eu penso que o Brasil tem que pensar um pouco o futuro, e o mundo tem que pensar, os países ricos têm que pensar que eles também vão sofrer com a pobreza dos outros países. Estão vendo agora quanto, né? Eu acho horrível a guerra que está acontecendo no [...]. A guerra deveria trabalhar mais com a inteligência, diplomacia - né? -, mas quanto gasto numa guerra? Eu estive em Timor Leste, em janeiro, na comitiva presidencial, né? A ONU gastava vinte... vinte milhões [de dólares] ao mês para manter toda a estrutura e Timor Leste estava pedindo oitocentos mil para reconstruir escolas e não tinha esse dinheiro. Então, eu penso assim: "por que [é] que nós gastamos tanto em defesa e tão pouco nas causas? As causas [é] que são importantes.".

Paulo Markun: Dona Zilda, muito obrigada pela sua entrevista. Tomara que a senhora prossiga nessa batalha...

Zilda Arns: [Interrompendo] Obrigada. Eu é que agradeço.

Paulo Markun: ... que é de tanta importância.

Zilda Arns: Agradeço a oportunidade, gostaria de mandar um carinhoso abraço para todo o povo da Pastoral, os prefeitos e todo mundo que ajuda a Pastoral da Criança. E eu gostaria de fazer uma brincadeira que eu sempre faço: "prefeito inteligente faz parceria com a Pastoral da Criança.". [Zilda sorri]

Paulo Markun: Ok! Obrigado a você que está em casa, aos nossos entrevistadores, e na próxima segunda nós estaremos aqui com mais um Roda Viva. Até lá, boa noite e uma ótima semana.

Zilda Arns morreu em janeiro de 2010, vítima de um terremoto que atingiu também outras milhares de pessoas no Haiti, onde estava em missão para ampliar as ações da Pastoral da Criança em países pobres.

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