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Memória Roda Viva

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Antonio Carlos G. da Costa

10/7/2000

Pedagogo e um dos redatores do Estatuto da Criança e do Adolescente, Costa afirma que as práticas e vivências pedagógicas com valores positivos é que fazem com que os jovens identifiquem e incorporem esses valores

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[Programa ao vivo, permitindo a participação de telespectadores]

Paulo Markun: Boa noite. Ele alerta que o Brasil não tem política para juventude, e que o combate à violência juvenil precisa conjugar três forças: pais, escolas e programas para ocupar de forma construtiva o tempo livre dos jovens. Na semana em que a programação da TV Cultura comemora e marca os dez anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Roda Viva entrevista o educador Antonio Carlos Gomes da Costa, um dos principais estudiosos brasileiros na área de políticas públicas para a infância e para a juventude. Pedagogo de formação, especializado em pedagogia terapêutica, participou de vários projetos ligados a políticas públicas para jovens. Foi presidente da Febem de Minas Gerais, do Centro Brasileiro para Infância e Juventude, e é conselheiro de várias entidades voltadas para o trabalho com crianças e adolescentes. Consultor do Unicef, o Fundo das Nações Unidas para Infância, Antonio Carlos Gomes da Costa é autor de diversos livros e artigos sobre o tema, e foi um dos redatores do Estatuto da Criança e do Adolescente, que agora completa dez anos.

[Comentarista Paulo Markun]: Sancionado em 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi anunciado como substituto do antigo Código de Menores. Chegou para trocar a visão do menor pobre abandonado como incômodo pela idéia de crianças e adolescentes como cidadãos, com direitos e obrigações. O estatuto é uma lei moderna, avançada, destinada a proteger a infância e a adolescência da crescente violência urbana no país. Provocou mudanças importantes no dia-a-dia da infância brasileira ao estabelecer, para toda criança e adolescente, o direito de estudar, brincar, ter saúde não trabalhar antes dos 14 anos, ter uma convivência familiar e comunitária agradável, ter dignidade, liberdade e respeito. E criava penas, algumas bastante duras, para quem violasse esses direitos. Quanto ao adolescente infrator, o estatuto criou medidas exemplares de correção e ressocialização, e determinou que o Estado seria legalmente responsabilizado cada vez que essas medidas não fossem cumpridas. Aos dez anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente registra avanços na proteção dos direitos das crianças, mas enfrenta ainda dificuldades e polêmicas, enfrenta também a dura realidade das ruas onde abusos, violações e abandono continuam desenhando um destino de violência e marginalização para crianças e adolescentes pobres.

Paulo Markun: Para entrevista o educador Antonio Carlos Gomes da Costa, nós convidamos o jornalista Gilberto Nascimento, editor de educação da revista Isto É; o jornalista Geraldo Vieira, diretor da Agência de Notícias dos Direitos da Infância e da Fundação Abrinq; a educadora Alda Marco Antônio, secretária municipal de Assistência Social de São Paulo. Convidamos ainda Paulo Afonso Garrido de Paula, procurador de Justiça de São Paulo; a socióloga Rebecca Raposo, diretora executiva do Gife [Grupo de Institutos, Fundações e Empresas]. E finalmente, o advogado Roberto da Silva, ex-menino de rua, escritor e conselheiro científico do Ilanud [Instituto Latino-Americano das Nações Unidas] e do Instituto das Nações Unidas para Prevenção da Delinqüência. Boa noite, Antonio Carlos.

Antonio Carlos G. da Costa: Boa noite.       

Paulo Markun: Eu sei que faz dez anos, aliás, agora exatamente no dia 13 foi publicado, no dia 14, o estatuto, mas eu queria começar pedindo que o senhor explicasse para as pessoas que não têm a menor idéia do que seja o Estatuto da Criança e do Adolescente, e eu tenho certeza que muita gente não tem idéia. O que contém esse estatuto em linhas gerais? O que ele significa? E mais do que isso: no que isso muda a vida dessas pessoas que estão assistindo ao programa hoje que não são educadores, não são autoridades ligadas ao tema, ou são pais, ou são parentes, ou são filhos? Enfim, gente comum que ouve falar no estatuto, mas não tem noção exata do que significa, embora faça dez anos. Eu acho que vale a pena começar por aí.

Antonio Carlos G. da Costa: Muito obrigado, queria agradecer a oportunidade de estar aqui no Roda Viva, com amigos que também fizeram a história desses dez anos de Estatuto da Criança e do Adolescente. O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma lei que faz a adequação para legislação brasileira daquilo que há de melhor nas normas internacionais a respeito do direito da população infanto-juvenil, ou seja, do direito da criança e do adolescente. Depois daqueles anos de regime militar, duas décadas, as duas leis que tínhamos no Brasil – o Código de Menores e a Política Nacional de Bem-Estar do Menor – faziam parte daquilo que a oposição àquele regime chamava de entulho autoritário, ou seja, nós tínhamos leis no Brasil que eram para fazer o controle social da pobreza. O controle social da infância pobre e não o desenvolvimento pessoal e social da população infanto-juvenil. Então o que fez o estatuto? Ele acertou o passo do Brasil com os países mais avançados em termos de direitos da criança e do adolescente. Então ele não tem nada que não esteja consagrado na ordem internacional como direitos humanos. Eu diria numa frase o seguinte: o Estatuto é uma lei que cria condições para que se possa exigir o cumprimento dos direitos da criança que estão na Constituição e nas normas internacionais ratificados pelo Brasil.

Paulo Markun: Quer dizer, então, só para entender definitivamente, não se trata de alguma coisa, como um manual de instruções que a pessoa pode pegar e dizer: “isso pode, isso não pode”. Na verdade são linhas gerais, de um conceito geral, é isso?

Antonio Carlos G. da Costa: Olha, esse conceito de lei que cria condições para exigir o comprimento dos direitos da criança foi muito bem interpretado por um dos redatores do estatuto, o Edson Sêda, que fala: “O Estatuto está para os direitos da criança como o Código do Consumidor está para os direitos do consumidor”. É a lei que permite você cobrar, exigir do Estado o cumprimento dos seus deveres e obrigações para com as crianças e os adolescentes.

Geraldo Vieira: Professor Antonio Carlos, dois segmentos que parecem ser sempre muito resistentes ao estatuto ainda hoje são os professores e os policiais. Por que nesses dois segmentos há tanta desinformação, mas há também tanta resistência ao estatuto? Eles perderam o poder com a nova lei, o que aconteceu?

Antonio Carlos G. da Costa: Sim, os policiais estavam acostumados, pelo Código de Menores, a tratar a criança e o adolescente como se fossem coisas. O Código de Menores dizia assim: “Qualquer pessoa pode e a autoridade administrativa deve apreender o menor em situação irregular e levá-lo à presença da autoridade responsável.” Então o policial, quando encontrava um menino em situação de risco, e este estivesse ou não cometendo um ato infracional, tinha o dever de apreendê-lo e de levá-lo à autoridade responsável. Então havia um grande poder discricionário [refere-se ao poder de escolher dentro de certos limites, a providência a ser adotada, mediante a consideração da oportunidade e da conveniência, em face de determinada situação não regulada expressamente pela Lei] por parte da polícia. Então quando veio o estatuto, o que fez o estatuto? Colocou para os policiais as mesmas obrigações que eles têm de cumprir, os mesmos requisitos para prender um delinqüente adulto. Então, trouxe as conquistas do Direito Penal de Adultos para a faixa etária de 12 a 18 anos. Então os policiais que costumavam apreender crianças e adolescentes como se fossem coisas, começaram a dizer que estavam com as mãos amarradas pelo estatuto, e a imprensa policial passou isso para a população dando a  impressão de que o estatuto era uma lei que protegia marginais. Em relação aos professores, a situação é outra. Os professores, quando ouviram dizer que a criança e o adolescente tinham o direito de recorrer às instâncias escolares superiores, tinham o direito de questionar critérios de avaliação usados na escola e também a questão disciplinar das punições desumanas ou degradantes coibidas pelo estatuto, então os professores sentiram isso como uma ameaça. Mas na verdade isso era uma garantia tanto para o educador como para o educando, porque trazia o Estado democrático de direito para dentro das relações escolares.

Gilberto Nascimento: Eu queria saber do Antonio Carlos qual o balanço geral que você faz desses dez anos do estatuto. E eu acho que além de professores ou policiais, há uma resistência até de segmentos da população de baixa renda. E eu que queria saber se as entidades da área da infância, as autoridades também têm conseguido dar uma resposta satisfatória no sentido até de esclarecer a população da importância do estatuto, da sua função e do seu objetivo.

Antonio Carlos G. da Costa: Olha, existe em relação ao estatuto uma grande desinformação ainda hoje, mas ela já é muito menor do que aquela verificada no início da década. Hoje eu falava com o Geraldinho Vieira [antropólogo e jornalista], momentos antes de começar esta entrevista, que a Agência de Notícia dos Direitos da Infância, o Grande Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo, de certa forma, ensinou a mídia, instalou a visão correta do estatuto na consciência da mídia, e a mídia vem instalando essa visão na consciência da população. Qual é o erro básico de interpretação em relação ao estatuto? O estatuto é uma lei, ela não se faz sem nós, ela requer a nossa interpretação, nossa participação. Então o que acontece? É um salto triplo. Nós temos que mudar a lei e depois temos que preparar as instituições para cumprirem essa lei de maneira adequada, e depois temos que preparar lá na ponta as pessoas, mudar a maneira de ver, entender e agir do monitor, do policial militar, civil, do professor, de todas as pessoas que lidam com a criança e o adolescente no dia-a-dia. Nós fizemos apenas a mudança do panorama legal; as instituições do país ainda não foram reordenadas. Eu costumo dizer o seguinte: implementar o estatuto com uma instituição como a Febem, é como tocar um disco CD numa radiola de 78 rotações, não dá som.  E aí nós vemos que há um déficit também de coragem administrativa, de ousadia para redesenhar as instituições. E também falta um grande esforço de capacitação das pessoas. E é vendido para a população em matérias assim: “Os filhos dos Estatuto”, mostrando meninos infratores nos anos 90 e hoje. Isso não é verdadeiro, por quê? Porque a gente atribui uma força mágica à lei, e coloca a lei no banco dos réus. Na verdade quem deveria estar no banco dos réus eram aqueles que deveriam implementar a lei e não o estão fazendo.

Alda Marco Antonio: Professor Antonio Carlos, muitos opositores do Estatuto da Criança e do Adolescente, aqui no nosso país, costumam dizer que essa lei não é para um país pobre como o Brasil, e sim uma lei adequada à Suíça. O senhor pensa assim também?

Antonio Carlos G. da Costa: Existem no Brasil dois grandes consensos em relação ao estatuto e apenas um dissenso. O primeiro consenso é que o estatuto é uma lei avançada. Nunca vi ninguém de direita, de centro, de esquerda negar que seja uma lei avançada. E alguns são a favor dele porque ele é uma lei avançada e outros são contra por ser uma lei avançada. O segundo consenso é de que existe uma enorme distância entre a lei e a realidade. Falando neste país, em toda a parte, eu nunca vi ninguém que afirmasse que não existe uma enorme distância entre a lei e a realidade. Agora existe um dissenso: como fazer para diminuir a distância entre lei e a realidade. Então, o Brasil hoje está dividido, e essa é a verdadeira natureza do debate sobre o estatuto. O Brasil está dividido entre os que querem piorar a lei para ela ficar parecida com a realidade, e os que querem melhorar a realidade para que ela se aproxime cada vez mais do que dispõe a legislação.

Gilberto Nascimento: O estatuto inegavelmente trouxe avanços. Mas por que, em situação como a da Febem, por exemplo, em 1990, a gente tinha uma realidade complicada; em 1990, por acaso, a doutora Alda Marco Antonio era secretária do menor. Naquela época já se falava das propostas de descentralização, já se falava da proposta de implodir a Febem, e hoje a Febem continua funcionando absolutamente da mesma maneira, crianças e adolescentes lá continuam sendo espancados, sendo vítimas de tortura, todo tipo de coisa ruim que não deveria existir. Por que isso ainda acontece? E o estatuto, mesmo com todas as garantias e propostas que faz, e essa tentativa de imobilização, de conscientização da sociedade e essa realidade não muda?

Antonio Carlos G. da Costa: Eu acho que os governos pensaram em mudar essa realidade mudando pessoas no poder. Então eu mesmo já fui convidado para assumir mais de uma Febem neste país. E as pessoas têm uma consciência meio mágica de que vai colocar uma pessoa certa, que pensa certo, que tem boas intenções no lugar certo, e a realidade vai transfigurar, a realidade vai mudar. Isso não é verdade. Para mudar a realidade é preciso fazer mudanças de conteúdo nas políticas, mudanças de método e mudanças de gestão. E preciso desconstruir isto que aí está, tijolo por tijolo, com um desenho lógico e reconstruir tudo: tijolo por tijolo, com outro desenho lógico. E que desenho lógico é esse? É a política de atendimento que está no estatuto da criança e do adolescente. Os governos tiveram baixo nível de vontade política e de compromisso ético com a questão da criança e do adolescente. Um amigo argentino costuma falar que um país que tem tantos recursos humanos de qualidade, e que tem uma oitava economia, e tratar as crianças como tratam no Brasil, só pode falar de ética entre aspas. Então, eu acho que nós tínhamos que tirar essas aspas da ética e fazer um ataque frontal a essa questão, fazendo os investimentos necessários. E investimentos não apenas financeiros, mas em recursos técnicos e um investimento na capacitação das pessoas.

Alda Marco Antonio: Professor Antonio Carlos, o senhor acabou de dizer em vontade política de governantes. E o Estatuto da Criança e do Adolescente não é uma lei comum, ela surgiu no bojo de um movimento que envolveu milhares e milhares de pessoas, de entidades, de autoridades, de deputados. E o senhor ocupava um cargo chave, talvez o senhor tenha sido a pessoa mais importante na aprovação do estatuto naquele movimento importantíssimo. E o senhor era representante do governo federal, e o presidente da República era o senhor Fernando Collor de Mello [1990-1992], e a presidente do CBIA [Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência] era a doutora Fátima Omena. E o senhor conseguia as coisas com muita rapidez, a aprovação e o encaminhamento das questões. Como é que foi trabalhar com essas duas personalidades do mundo político brasileiro? Como é que foi que o senhor obteve tanto sucesso?

Antonio Carlos G. da Costa: Primeiramente é o seguinte. O estatuto foi fruto de um movimento que envolveu pessoas do mundo jurídico, das políticas públicas e do movimento social. E ele, na verdade, foi aprovado durante o governo do presidente Fernando Collor, no meio do ano, no dia 13 de julho, vai ser o aniversário do estatuto. Naquele momento, como eu havia sido uma pessoa que trabalhou no Unicef, eu estava no Unicef no momento em que o estatuto foi aprovado no Congresso Nacional. Eu estava lá com Deodato Rivera [filósofo e cientista político], várias pessoas, Benedito Rodrigues dos Santos [antropólogo e cientista social]. Nós acompanhamos ali na cozinha do legislativo a aprovação do estatuto, e eu como consultor do Unicef. No momento seguinte, nós sugerimos ao governo a extinção da Funabem [Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor] e a criação de uma nova instituição. Eu passei então a assessorar a doutora Fátima Pelaes, que foi a primeira presidente do CBIA no governo Fernando Collor. Depois houve problemas e a doutora Fátima Pelaes deixou o governo, e por indicação de outras pessoas, do representante do Unicef, de Dom Luciano Mendes de Almeida, do senador Ronan Tito, que havia sido o autor do estatuto no Senado, o presidente Collor me nomeou presidente do CBIA. E durante o tempo em que eu me relacionei com o presidente Collor, ele permitiu que eu formasse a diretoria do CBIA, se eu errei, não foi ninguém do governo que fez com que eu errasse. A diretoria do CBIA foi toda escolhida por mim, entre pessoas da minha confiança e pessoas que merecem até hoje minha gratidão e a minha confiança. E naquele momento, eu tive todo apoio do presidente para tirar essa lei do papel. Quando tivemos a conferência de chefes de governo e de chefes de Estado, a primeira conferência de cúpula sobre os direitos da criança, quem falou pela região da América Latina e do Caribe foi o presidente Collor justamente em razão de ter sido a primeira legislação da América Latina que incorporou, na Constituição e nas leis do país, os direitos da criança e do adolescente que estavam na Convenção Internacional.

Roberto da Silva: Professor Antonio Carlos, em março, abril deste ano, foi criada a comissão para se fazer avaliação nacional do ECA, nesses dez anos, da qual participam o Ministério da Justiça, o Conanda [Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente], Cecria [Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes] e assim por diante. Eu queria saber do senhor se tem um balanço no Congresso Nacional, por exemplo, qual é o volume, quais são as alterações que hoje se pretende fazer no ECA. E mais: quais são os grupos, os setores da sociedade que elaboram essas propostas? Isso para esclarecer uma preocupação, porque a gente tem a impressão de que são alguns setores da sociedade que mais resistem à aplicação do estatuto que buscam patrocinar essas mudanças, mudanças estas no sentido até de retrocesso em relação ao estatuto. Por exemplo, a questão do trabalho infantil que ainda hoje é polêmica. O ECA aprovou a restrição até os 14 anos, depois posteriormente se ampliou essa idade para 16 anos. A questão da menoridade penal ainda é uma questão não resolvida e tem setores da sociedade que insistentemente trabalham no sentido dessa redução, diversas idades são propostas aí. Nós identificamos, por exemplo, que por parte dos operadores do direito, juízes, por exemplo, há manifestações deles no sentido de expressarem dificuldade, ou mesmo resistência de aplicar alguns dos princípios estabelecidos no ECA. Enfim o senhor teria esse balanço do que são as propostas de alteração do ECA e de quais são os setores da sociedade de onde partem essas propostas?

Antonio Carlos G. da Costa: De um modo geral, eu acredito que elas partem daqueles setores que querem adaptar a lei à realidade e não querem ir melhorando gradativamente a realidade para que ela se aproxime daquilo que dispõe a lei. Então, eu sei de magistrados que são de uma certa maneira saudosos da discricionariedade existente nos tempos da doutrina da situação irregular, ou seja, do Código de Menores da Política Nacional de Bem-Estar do Menor. Existem outras pessoas, parlamentares que gostam de explorar, quando acontece numa capital, um crime envolvendo adolescente. Então gostam de apresentar um projeto de impacto e de dizer “olha, eu pedi a redução da idade penal no Congresso”, sabendo que isso rende votos. De outra forma também, eu acho interessante o questionamento da lei e não das políticas públicas. Por exemplo, a dengue voltou, era uma doença do tempo de Osvaldo Cruz, a dengue, a febre amarela, tudo isso. Então, em vez de fazer uma campanha sanitarista adequada, uma abordagem para erradicar a dengue, dizem “vamos mudar a lei orgânica da saúde”. Eu acho que é isso que está acontecendo com o estatuto.

Geraldo Vieira: Pois é, o pessoal que em caso de febre prefere quebrar o termômetro.

Antonio Carlos G. da Costa: Exatamente. [risos]

Geraldo Vieira: Para completar para o senhor Antonio Carlos nessa questão dos jovens, que causa muito impacto, e de fato os políticos em Brasília, a cada novo crime, quem trabalha nessa área sabe que quando acontece um crime cometido por jovem, basta esperar no dia seguinte para ver o que vai acontecer no Congresso Nacional em que algum aventureiro lança mão de uma proposta milagrosa. Antes de entrar em outras partes do estatuto, porque o estatuto é muito mais propositivo de direitos à educação, à saúde, à família estruturada, do que propriamente uma lei para o jovem infrator, esse é apenas um aspecto da lei. Existe um pouco de mito ou pelo menos a realidade é muito exagerada. Quer dizer, quando um jovem comete um determinado ato infracional ou um crime, é claro que isso choca muito a população, até porque se trata de um jovem. Se fosse um jovem, aquilo já seria de alguma maneira impactante. Mas o que se sabe é que o número de jovens infratores é absolutamente pequeno diante do mundo adulto infrator, e o Código Penal, por exemplo, é muito severo, e as prisões de adultos não são propriamente nenhuma coisa branda onde algum criminoso fale que não há nenhum problema passar dez anos ali. Como é que o senhor relaciona a questão do aumento ou desse impacto da violência juvenil exatamente com a falta de políticas públicas para a juventude, na medida em que não basta mudar a lei, ou tornar as penas um pouco mais fortes?       

Antonio Carlos G. da Costa: Eu acho que nós temos que dar uma chance à proposta da política de atendimento do estatuto para o adolescente autor de ato infracional. Nos lugares onde essa política tem sido implementada com um pouco mais de critério, com um pouco mais de observância...

Geraldo Vieira: Por exemplo.

Antonio Carlos G. da Costa: ... daquilo que dispõe a lei. Por exemplo, na Bahia, o governador Paulo Souto fez uma unidade de infratores, não digo que ela é perfeita, mas é uma unidade que parece com as do Primeiro Mundo se comparada com aquelas do centro-sul do país. O atendimento ao infrator em Belém do Pará, o atendimento ao infrator lá em Roraima, o atendimento ao infrator no Rio Grande do Norte; em várias capitais nordestinas nós temos visto que quanto mais se aproxima do cumprimento da letra e do espírito da lei, a situação se torna melhor. Agora quanto mais a lei é desleixada, Emilio García Mendez [jurista argentino, consultor autônomo da Unicef para a América Latina e Caribe] fala assim: “Não existe resposta pedagógica séria sem justiça garantista”. Ou seja, a justiça tem que ser garantista para que a resposta pedagógica seja séria. E eu costumo dizer assim: não existe justiça garantista sem resposta pedagógica séria. E muitas vezes os magistrados cumprem todos os elementos formais, mas encaminham o adolescente para um lugar de deseducação, que a gente sabe que não vai ter a menor chance de a pessoa se desenvolver como pessoa e como cidadão naquele local. Então eu acho que precisamos dar uma chance à política do estatuto antes de mudá-la no que se refere a um infrator.

Geraldo Vieira: Perdão pela interrupção, quando o senhor diz sobre um centro de atendimento de Primeiro Mundo, o senhor não está falando simplesmente de instalações físicas, mas de projeto pedagógico?

Antonio Carlos G. da Costa: Projeto pedagógico. Eu falo da relação educador-educando. Porque os meninos que estão numa Febem estão ali não é porque não sabiam as quatro operações, não é porque não sabiam profissão; eles estão ali porque não souberam viver e conviver no seio da sociedade. Então, eles precisam aprender as competências pessoais e as competências sociais para o convívio com pessoas humanas e como cidadãos, e isso o sistema nega. Porque o sistema que nós temos hoje no país só tem um problema na maior parte do país. Ele deveria privar o adolescente de liberdade, ou seja, privá-lo do direito de ir e vir, mas ele priva o adolescente de liberdade, respeito, dignidade, integridade física, psicológica e imoral, individualidade, então ele priva o adolescente de condições mínimas. [Anton] Makarenko [educador ucraniano que concebeu um modelo de escola baseado na autogestão, vida em grupo e na disciplina, contribuindo para a recuperação de jovens infratores] falava o seguinte: “Se o homem é fruto das condições do ambiente, porque não criar humanamente essas condições”. E quando nós criamos as condições que existem hoje no sistema de atendimento, em grande parte do país, nós estamos criando condições desumanizadoras e querendo que produzam homens.

Paulo Markun: Antonio Carlos, nós vamos fazer um rápido intervalo e o Roda Viva volta daqui a instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o educador Antonio Carlos G. da Costa, na semana em que se comemoram os dez anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Pela internet veio a pergunta de Luiz Antonio Silveira, de 41 anos, de Belo Horizonte. Ele diz o seguinte: “O cidadão comum, na maioria dos casos, velhos e mulheres, são assaltados e agredidos por um menor, entre aspas, “gigante de rua”. A polícia lava as mãos e diz não poder fazer nada. O menor de 16 anos vota e não tem como contrapartida a mesma responsabilidade. Acho – diz ele – que o estatuto pode ter protegido os verdadeiros menores, mais deu asas para marginais menores, entre aspas. Como fica a nossa segurança?

Antonio Carlos G. da Costa: A proposta do estatuto para o adolescente autor de ato infracional, eu sempre costumo dizer, é de severidade e justiça. A polícia não está de mãos amarradas diante do adolescente autor de ato infracional. O que cabe à polícia fazer? Fazer uma intervenção repressiva da mesma natureza da repressão que é feita ao adulto. E o policial tem que ter as mesmas condutas, quando prende um adolescente, que tem em relação a um adulto, exceto o uso de algemas e a condução desse adolescente para a repartição policial  especializada. Então, não há razão nenhuma para que o policial não intervenha. O policial  que diz isso não está cumprindo...

Paulo Markun: [Interrompendo]. Desculpa, ele é funcionário público, não é policial não.

Antonio Carlos G. da Costa: Não, mas ele se refere, na pergunta, que a polícia fala que não pode fazer nada...

Paulo Markun: Sim.

Antonio Carlos G. da Costa: Então essa é aquela teoria que existe na cabeça de alguns policiais de que o estatuto amarrou as mãos dos policiais...

Paulo Markun: Quer dizer que não é verdade então... vamos ver mais objetivamente, porque eu acho que aqui...

Antonio Carlos G. da Costa: Isso não é absolutamente verdade.

Paulo Markun: ... aqui, Antonio Carlos, a bancada certamente torce a favor dos menores infratores de tal maneira que distorce o ponto de vista da opinião pública...

Rebecca Raposo: Não apoiado. 

Paulo Markun: Aqui nós não temos uma representação da opinião pública brasileira, eu tenho absoluta certeza. Eu estou inclusive me incluindo nessa bancada favorável. O que muito se diz e acontece freqüentemente – como jornalista a gente vê isso – em muitos assaltos, quem porta a arma é o menor, porque o menor tem mais chance de escapar, o que se alega, justamente em função do Estatuto da Criança e do Adolescente. Do seu ponto de vista, isso não é verdade, ou isso é verdade e a lei está sendo usada errado?

Antonio Carlos G. da Costa: Não, o que eu estou dizendo, eu concordo com o que ele disse de que as pessoas – velhos, mulheres – estão sendo atacadas na rua por adolescentes que têm porte físico avantajado e são menores de idade, em alguns casos até mesmo usando armas. O que eu discordo nessa questão é que a polícia esteja de pés e mãos amarrados e que não pode fazer nada, isso é que não é verdade. A polícia pode intervir da mesma forma como intervém com um delinqüente adulto e pode prender, vamos falar sem eufemismo, o estatuto fala apreender, mas na verdade é prender, o policial pode prender o adolescente.

Paulo Markun: E levar esse menor para a Febem.

Antonio Carlos G. da Costa: Levá-lo com certas regras de condução: não algemar e não jogar dentro do camburão. Essas são as duas limitações que o estatuto coloca neste ponto da apreensão do adolescente autor de ato infracional. Então, nós queremos que a polícia saiba usar a técnica de ação policial adequada, e saiba aplicar a lei de forma eficiente, porque ela não está de forma alguma com as mãos amarradas, e as pessoas devem cobrar isso da polícia e não do estatuto.

Paulo Afonso Garrido de Paula: Professor Antonio Carlos, dois aspectos eu gostaria que você abordasse a respeito das questões já debatidas aqui. O primeiro deles diz respeito ao processo de construção do Estatuto da Criança e do Adolescente. Você fala em revolução do conteúdo, revolução do método, revolução de gestão que o Estatuto da Criança e do Adolescente introduziu, mas talvez tenha introduzido também uma revolução na elaboração da norma jurídica. Foi um processo muito interessante de elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente. E, por outro lado, sempre se diz que o estatuto é uma lei avançada, que o Estatuto da Criança e do Adolescente se baseou nas convenções internacionais, em documentos internacionais, servindo até de crítica na medida em que – eu pelo menos entendo – o estatuto é uma criação tipicamente tupiniquim, é uma criação brasileira. Eu tenho até a impressão de que vários dispositivos da convenção dos direitos da criança e do adolescente se inspiraram no próprio Estatuto da Criança. E acho que talvez o aspecto primordial seja a história de construção do estatuto que não tem paternidade; o estatuto pertence praticamente a toda população que ajudou a construí-lo. E é dessa história que se disse um não à criminalidade infanto-juvenil. Então eu gostaria que o senhor retomasse o seguinte aspecto: como esse processo de construção do Estatuto da Criança e do Adolescente disse um não à criminalidade violenta? Ou seja, como o estatuto foi gestado? Como ele foi elaborado? E se isso representou na ocasião um não sonoro principalmente à criminalidade violenta?

Antonio Carlos G. da Costa: É muito interessante essa pergunta, doutor Paulo, porque a grande originalidade do estatuto na sua exportação, vamos dizer assim, para a América Latina, pelo Unicef, não foi apenas do seu conteúdo, não foram apenas as revoluções de conteúdo, método e gestão. A grande revolução, porém, foi o processo democrático da sua elaboração, porque as pessoas confundem muito a elaboração do estatuto com o trabalho do grupo de redação; foram duas coisas completamente diferentes. O grupo de redação foi alimentado por eventos, por seminários, por encontros, por congressos que aconteceram nos mais diversos pontos deste país. E naquela época nós conhecíamos o projeto de Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente que nos foi trazido ao Brasil. Antes que o Unicef tivesse esse projeto, um jurista americano chamado Daniel O’Donnell nos trouxe essa primeira versão do projeto de Convenção Internacional dos Direitos da Criança das Nações Unidas. Mas aqui no Brasil a originalidade do estatuto foi que a Funabem estava fazendo um projeto. O doutor Edison Sêda estava trabalhando, a pedido da professora Marina Bandeira, no projeto que criava uma instituição chamada ICA, Instituto Nacional da Criança e do Adolescente. E aquelas forças que fizeram o Artigo 227 então procuram se aproximar da Funabem, e o doutor Edison Sêda, num gesto de grandeza muito grande, se integrou ao grupo e jamais tentou impor nada daquele projeto que vinha sendo elaborado no seio do governo. E aí nós tivemos o concurso de três forças. Pessoas do mundo jurídico, como promotores, magistrados, professores de direito, pessoas com o conhecimento na área, como o doutor [...] de Oliveira, na área do trabalho, por exemplo, grande especialista. Nós tivemos participações dos movimentos sociais representados pela Pastoral do Menor e pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Tivemos pessoas de políticas públicas – Edison Sêda e eu vínhamos de políticas públicas. O doutor [Antônio Fernando do] Amaral, o doutor Munir Cury, o doutor Paulo Afonso Garrido, que está aqui, foram representar o mundo jurídico naquele processo de elaboração. Também contávamos com o padre Clodovil Piazza, nesse grupo de redação. Nós ouvimos a Sociedade Brasileira de Pediatria; encontros realizados em várias partes do país mandavam sua contribuição e ela era considerada pelo grupo de redação do estatuto. Quando ela enquadrava no paradigma, que era um paradigma de direitos humanos, um paradigma que de certa forma estava expresso na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, então aquilo ali era assimilado no corpo da lei. Então, o estatuto não foi escrito por meia dúzia de mãos, nem pensado por meia dúzia de cabeças. Ele foi escrito por milhares de mãos e pensado por milhares de cabeças. E isso não é uma metáfora do tipo “correr um rio de sangue”, isso é coisa verdadeira. Porque no país inteiro nós tínhamos gente se reunindo, mandando subsídios. Tanto que [integrantes de] um grupo de luta por creches, lá em Belo Horizonte, falaram assim comigo um dia: “Nós é que fizemos o capítulo de creche do estatuto”. Por quê? Porque eles se reuniram, fizeram um evento, levaram sua contribuição, e ela foi de alguma forma considerada na redação do estatuto. Esse foi um processo democrático, e essa gente não se desmobilizou, o principal é isso. Eu ando por este país e encontro essas pessoas em toda a parte, nos mais longínquos municípios brasileiros. Um dia, na cidade de Camamu, no interior da Bahia, um grupo de mulheres da Pastoral trouxe o estatuto para que eu autografasse. Então, essas pessoas estão mobilizadas, estão lutando, estão construindo conselhos municipais, conselhos tutelares. Então, enganam-se aqueles que pensam que poderão introduzir uma mudança nessa lei, na calada da noite, de maneira astuciosa. Isso não vai acontecer, porque no estatuto existe um movimento social por trás dessa lei.

Rebecca Raposo: Professor Antonio Carlos, eu queria trazer [a discussão] exatamente um pouco para esses personagens, para essas pessoas, que fazem parte desse movimento social, que de fato resultou no estatuto. E, pensando um pouco no nosso ouvinte, por exemplo, no Gife, nós temos uma experiência, das 54 organizações filiadas, dos quinhentos milhões que elas investem, 80% vai para criança e o adolescente. E esses 80% representaram um crescimento expressivo a partir da criação do ECA. Na sua opinião, nesses últimos dez anos –  nós falamos aqui de todas as dificuldades que ainda temos como desafio para resolver – que evoluções nós vimos? Porque no âmbito do Gife, a gente tem uma experiência bastante positiva. Então, na sua opinião, que avanços nós conseguimos para aquele contingente enorme de crianças adolescentes que não estão em conflito com a Lei? E na seqüência, pensando ainda no nosso ouvinte também, eu queria que o senhor me desse duas ou três sugestões. Nós estamos em plena campanha municipal, é um momento em que estamos decidindo o voto. Se tem um cidadão lhe ouvindo neste momento, que está interessado em fortalecer o ECA, e votando correto pode ser uma das maneira de se fazer isso, que sugestões o senhor daria para que ele fique atento ao discurso que vamos ai ouvir uma seqüência longa agora?

Antonio Carlos G. da Costa: Agradeço imensamente essa pergunta, porque ela nós permite mostrar o lado mais luminoso do Estatuto da Criança e do Adolescente. Primeiro dos três segmentos que mudaram completamente de posição em relação à população infanto-juvenil: o empresariado. As organizações sociais ligadas ao empresariado cresceram em número, cresceram em recursos investidos e cresceram também na amplitude e na diversidade das intervenções em favor da criança e do adolescente. Até na área do infrator, por exemplo, o Prêmio Sócio-Educando, do qual umas das lideranças é o empresário Luiz Norberto Pascoal. Mas fora desse campo nós tivemos um imenso crescimento do investimento do empresariado na questão da criança e do adolescente. Outra revolução que ninguém percebe e não se valoriza no momento como este: os municípios. Nós fizemos uma pesquisa da qual participaram a Fundação Vitae, o Instituto Ayrton Senna, a Fundação Odebrecht, o Ministério do Trabalho, o Instituto Abraço. O que aquela pesquisa nos mostrou? Que os governos municipais estavam investindo em iniciativas de educação profissional para o adolescente mais do que os estados e a União, e isso era impensável antes do estatuto, porque essas questões eram sempre questões de Febem, questão de juizado, manda para lá. E agora a gente vê surgindo políticas públicas em nível municipal em favor da população infanto-juvenil. E essa já vai ficando uma rubrica normal de gastos da municipalidade junto com a educação, com saúde, com assistência social, o investimento na criança e no adolescente. E como o terceiro segmento, além dos empresários, além da revolução municipalista, tivemos a visão da mídia. Eu costumo dizer que a mídia brasileira, nesses dez anos, mudou tremendamente a sua visão dos direitos da população infanto-juvenil. Eu acho que poucos países têm uma população, tem uma mídia que conhece tanto os direitos da infância e da juventude como no Brasil. E a mídia fez uma revolução copernicana quando parou apenas de fazer denúncias, mas passou a trabalhar no binômio denúncia e alternativas de solução. Então eu acho que esses são três aspectos luminosos dos quais temos orgulho nesses dez anos.

Paulo Markun: Ficou faltando a segunda parte da pergunta.

Rebecca Raposo: E a sua sugestão para quem estão pensando no seu voto no momento? Como devemos ficar atentos ao discurso que vamos ouvir?

Antonio Carlos G. da Costa: Eu diria para os candidatos...

Rebecca Raposo: O que é possível no plano municipal ser feito é isso?

Antonio Carlos G. da Costa: Eu diria para os candidatos a prefeito, fazer duas coisas. Primeiro: apoiar o surgimento das novas institucionalidades, o Conselho Municipal e o Conselho Tutelar onde eles ainda não existem. Segundo: onde eles existem e não estão funcionando bem, que criem as condições para que essas instituições possam funcionar de maneira mais adequada.

Paulo Markun: Seria conveniente explicar o que é isso, porque eu acho que a maioria do nosso público não sabe... Até porque existem 2600 conselhos no país, teoricamente.

Antonio Carlos G. da Costa: Existem muitos conselhos que ainda não estão funcionando bem, mas já existem belos exemplos de conselhos que funcionam a contento. O Conselho Municipal é um grupo paritário de pessoas do governo municipal e das organizações sociais do município, que trabalham com criança e adolescente, e ali, meio a meio, eles se reúnem para traçar o plano municipal de atendimento aos direitos da criança e do adolescente. E o Conselho Tutelar, para ser simples, é como se fosse o Procon da área dos direitos da criança e do adolescente. Quando a gente encontra uma criança desatendida em seus direitos, devemos conduzi-la ao Conselho Tutelar, que tem a possibilidade, ele tem o poder de requerer serviços de escola, de saúde, de assistência social para atender essa criança ou adolescente. Nós temos que acreditar nas instituições, temos que colocar essas instituições para funcionar, porque ela são frutos, como disse o doutor Paulo Afonso, da imaginação política criadora de um grupo de pessoas interpretando o pensamento de milhares de pessoas preocupadas e empenhadas na defesa dos direitos da criança no Brasil.

Paulo Afonso Garrido de Paula: Professor Antonio Carlos, alguns governos não apóiam os conselhos municipais, nem os conselhos tutelares, omitem até a existência desses conselhos, pensando que estão dividindo poderes. Pensando até na pergunta da Rebecca, considerando as eleições municipais, é um bom conselho apoiar os conselhos tutelares, os conselhos municipais?

Antonio Carlos G. da Costa: Olha, eu acho que os conselhos não são apoiados por muitos políticos e, podem ter certeza, são os maus políticos. Eles não são apoiados porque é o que eu chamo os “dragões da maldade”. Tem algumas coisas na cultura política brasileira que impedem leis como o estatuto, como a Lei Orgânica da Assistência Social, como a Lei Orgânica da Saúde, de gerarem os efeitos que elas podem gerar. Como são esses "dragões da maldade"? O primeiro é a nossa cultura política. A verdade é que no Brasil, apesar das poucas e honrosas exceções, que só confirmam a regra, a nossa cultura política ainda é predominantemente clientelista e fisiológica. A nossa cultura administrativa é burocrática e é corporativa. Burocratas não gostam da população participando nas políticas públicas, e são muito corporativistas, acham que eles sempre estão com a razão e colocam os seus interesses acima dos interesses dos destinatários das políticas. A terceira é a nossa cultura técnica que é muito auto-suficiente e formalista. O técnico tem a cabeça cheia de idéias e acha que isso o dispensa de ler os acontecimentos reais que transcorrem diante de seus olhos, desde a hora em que ele levanta até a hora em que ele vai dormir, na área social. E temos ainda a nossa cultura cidadã, que infelizmente é uma cultura ainda de subserviência e de conformismo. Então eu acho que nós temos que derrotar esses "dragões da maldade", porque eles impedem a cultura dos conselhos, da transparência, da participação; eles impedem a cultura da cobrança, da cidadania, do controle externo. E hoje um grande aliado – isso eu não posso deixar de dizer – dessa mentalidade tem sido, em todo país, o Ministério Público, principalmente os mais jovens membros do ministério.

Roberto da Silva: Professor, com um olhar muito crítico e desapaixonado, hoje se nós formos fazer uma avaliação do que são as dificuldades de plena implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente, surgem alguns pontos que o senhor pontua muito bem, mas eu diria: será que essas dificuldades não são decorrentes da própria concepção que o estatuto colocou? Eu citaria alguns exemplos. O estatuto concebeu a estrutura de conselhos, conselhos de direitos e conselhos tutelares, como vinculados ao executivo municipal. Eu acho que isso representa uma dificuldade muito grande, porque deixa ao sabor de um prefeito municipal criar ou não os conselhos. E mais, um prefeito pode criar esses conselhos, mas nunca tirá-los do papel. E isso o estatuto é que reza, dá essa prerrogativa ao prefeito municipal. Mas no caso dos conselheiros tutelares, pelo Brasil todo, quando a gente anda para conversar com os conselhos, também aparece isto: o problema de subsistência do conselheiro tutelar. O conselho de direito é claro que não é remunerado, agora os conselheiros tutelares que se dedicam exclusivamente a essa função, o estatuto não prevê a possibilidade da renumeração deles, deixando isso ao sabor de cada prefeitura municipal decidir. E aí o disparate pelo Brasil é bastante grande. Mais uma questão. O estatuto prevê, junto aos conselhos municipais, a existência do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Só que eu entendo que foi muito tímido ao fazer a provisão de verbas para esse conselho, deixando ao sabor da contribuição individual, da contribuição empresarial e uma parcela muito pequena do orçamento público. E isso faz com que, primeiro, na composição dos conselhos, na sociedade civil, não tenha técnicos especializados em orçamentos, e os recursos públicos estão preferencialmente alocados junto às secretarias municipais que executam as suas políticas desprezando ainda o estatuto e os conselhos. Mais um exemplo. Em relação à adoção, o ECA aboliu a figura da legitimação adotiva, relegando tudo aquilo que se chamava adoção à brasileira. Todo processo de adoção é centralizado na mão de um juiz hoje. Também não se criou uma dificuldade no Brasil para que se avançasse efetivamente na cultura da adoção de modo legal. Uma outra questão ainda: os conselhos. O conselho recebeu a atribuição importante de ser a instância da sociedade civil na formulação das políticas públicas, reservando ao poder executivo a execução dessas políticas, mas não se deu poder sancionatório aos conselhos. O conselho hoje precisa estar constantemente em parceira com o Ministério Público, pedindo que o Ministério Público cobre o executivo, cobre os autoridades, porque o conselho não tem competência para aplicar punições. O senhor não acha que – para finalizar – muitas dessas dificuldades que nós identificamos hoje são decorrentes da própria concepção que o estatuto colocou?

Antonio Carlos G. da Costa: Não, eu acho que mais do que da concepção do estatuto, elas são decorrência do choque de culturas políticas. O modelo que está no estatuto é um modelo, de certa forma, comunitarista; ele se baseia na descentralização, na participação e na mobilização. O estatuto é a única lei que eu já vi aqui no Brasil que prevê a mobilização da população, no Inciso 6 do Artigo 88 do estatuto. Então ele se baseia num pressuposto de se ter uma descentralização, mas não apenas descentralizar, porque seria prefeiturizar, e não seria isso. Descentralização, participação, que é a criação dos conselhos, e mobilização. Ou seja, ele pressupõe uma sociedade mobilizada. Porém, esse modelo não é o modelo da política pública brasileira e nem latino-americana. Esse modelo é mais anglo-saxão, a verdade é essa. Então o que acontece? Eu vou ter que falar um pouquinho mais aqui para dizer o seguinte. Quando você pega os países de formação anglo-saxã, protestante, alemã, o que aconteceu? A política de educação nasceu nas comunidades com a reforma protestante. [Martinho] Lutero [[(1483-1546), clérigo alemão cujas idéias deflagraram a Reforma Protestante em 1517, que mergulhou a Europa em guerras religiosas até 1648. Defendia a tradução da Bíblia do latim para as outras línguas, para que todos pudessem ler] falou que todo mundo para rezar tinha que ler a Bíblia, e Gutenberg, que estava inventando a imprensa, possibilitou que cada alemão tivesse uma Bíblia na mão, e todo mundo se alfabetizou. Então, o modelo de sistema de educação básica nasceu em cima do modelo paroquial, quer dizer, o modelo comunitário de base. O nosso modelo de educação é um modelo piramidal napoleônico, que tem na cúpula um ministro da Educação, secretários de Estado, secretários municipais, então nós temos uma política piramidal. A França levou isso a sério e implantou, a ferro e fogo, uma política revolucionária, uma escola laica, gratuita, pública, obrigatória e universal. O que aconteceu? No Brasil nós não fizemos nenhuma coisa e nem outra; o nosso modelo é piramidal, mas é uma pirâmide que nunca atingiu a base. Nunca, nesses quinhentos anos de governo, todas as crianças foram à escola. Nós nunca tivemos políticas sociais de bases, tivemos sempre políticas sociais piramidais. E nós, ao fazermos o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas não só ele, também a Lei Orgânica da Saúde e também a Lei Orgânica da Assistência Social, optamos em Brasília por um modelo comunitário e tentamos levar esse comunitarismo, decidido em Brasília às bases. E hoje o Brasil vive esse impasse da nossa cultura política que é avessa a essa questão do estatuto. Quanto à adoção, eu diria o seguinte. Eu acho que a adoção é uma questão, eu não acho que a gente tem que promover mais uma cultura da adoção, eu tenho medo disso. Temos que promover a cultura do direito à conveniência familiar ou comunitária. Portanto, além dos conselhos, o segundo ponto que eu gostaria de dizer para os candidatos a prefeito é que eles fizessem nos seus municípios programas de orientação e apoio sociofamiliar, porque não tem criatividade. Os países que deram certo na política de infância tiveram duas instituições como base: a família e a escola. Quem foge disso aí acaba errando; família e escola são a base da política. E uma americana falou o seguinte um dia em que ela visitou uma fundação brasileira: “Vocês trabalham muito com crianças, mas eu não vejo o trabalho com a família”. “Ah, não, nós trabalhamos aqui é com as crianças, a família é muito complicado”. Então ela deu o exemplo do avião e falou assim: “Quando você está no avião, aquela voz lá fala assim: ‘Em caso de despressurização da cabine, máscaras de oxigênio cairão a sua frente. Se você estiver com a criança, coloque primeiro a máscara em si, para depois colocá-la na criança’.” Então o Brasil hoje é uma cabine despressurizada, [risos] e se nós quiséssemos fazer alguma coisa pela criança, deveríamos começar pela família, quer dizer, colocando a máscara no adulto para que ele possa ajudar a criança. E a nossa opção histórica foi errada, esse país sempre procurou ajudar a criança para a criança ajudar a família, e não ajudar a família para a família ajudar a criança. Por isso nós tivemos tanto incentivo ao trabalho infantil.

Paulo Markun: Nós vamos fazer uma rápida escala aqui no nosso avião e voltamos daqui a alguns estantes. [risos].

[intervalo]

Paulo Markun: Bem, estamos de volta com a Roda Viva, esta noite entrevistando o Educador Antonio Carlos G. da Costa, na semana em que se comemoram os dez anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Eu começo aqui com três questões de telespectadores que eu acho que resume bem algumas coisas. Ronaldo Barcelos, do Tremembé, aqui de São Paulo, pergunta como é que o senhor vê a responsabilização dos pais pelos menores delinqüentes. Aqui não é feita – diz ele – a cobrança se a criança está ou não na escola como é feito nos Estados Unidos. Se uma criança é pega na rua, seus pais lá são chamados – diz ele – e isso minimiza a criminalidade. Marta Alvarez, de Curitiba, no Paraná, terapeuta, pergunta o seguinte: “Como é que um cidadão pode fazer para cobrar da administração pública da sua cidade que se cumpra o estatuto oferecendo uma pré-escola de zero a seis anos de conformação para os adolescentes e não uma creche como acontece? Como é que podemos cobrar do governo uma atitude contra a violência dos pais sobre os seus filhos?” E finalmente o juiz de direito da Vara da Infância de São Carlos, aqui em São Paulo, João Batista Galhardo Junior, diz o seguinte: “O senhor afirma que vários magistrados andam na contra-mão da direção do espírito do estatuto quando internam em locais que não reeducam o infrator. O que fazer quando esta é a única opção para a proteção da sociedade diante da falta de políticas públicas para melhor atendimento do menor infrator?” Quer dizer, são três perguntas que de alguma forma se interligam aí.

Antonio Carlos G. da Costa: Sim, eu vou começar pela última. Eu acho que enquanto nós aceitarmos o inaceitável em termos de condições para cumprir o estatuto, as autoridades responsáveis pela aplicação da lei, pela estruturação da política de atendimento, ficarão acomodadas. A primeira coisa era não aceitar o inaceitável. E para que o Estado possa se mover, [deve] criar uma intolerância a essas condições degradantes de atendimento que nós temos no país. Quanto à outra pergunta, sobre a criança de zero a seis, é muito interessante. O atendimento de zero a seis veio tradicionalmente da assistência social das mães crecheiras, das creche-dia, de tudo isso. E aí o que nós temos? A partir da Constituição de 1988, a educação infantil da criança de zero a seis anos. O Brasil ainda precisa estruturar essa política nos municípios de maneira mais digna, porque até aqui ainda permanece um dualismo entre as políticas herdadas da assistência social e uma política de educação que ainda não assimilou, em toda a sua inteireza, a população de zero a seis. E eu vejo o Ministério Público, os conselhos tutelares, os conselhos municipais, quando funcionam bem, eles podem ser um instrumento importante para trabalhar, é uma ferramenta, é uma arma para lutar por esses direitos. Quanto ao maltrato da criança na família e quanto à responsabilização dos pais, o estatuto não é omisso. O estatuto responsabiliza os pais, responsabiliza a família, e aí é o desconhecimento da lei. O estatuto coloca à disposição do município uma série de instrumentos que poderão ser acionados pelo Conselho Tutelar, pelo Conselho Municipal, pelo Ministério Público da Infância e da Juventude, pela Justiça da Infância e da Juventude. Uma série de instrumentos que, se bem compreendidos e corretamente articulados, eles podem efetivamente melhorar as políticas para a infância.

Gilberto Nascimento: O senhor tem dito que a violência entre os jovens, a violência nas escolas, por exemplo, a violência juvenil poderia mudar a partir do momento em que os pais, a própria escola e o governo passarem a ver o jovem de uma maneira diferente. Agora a gente nota é que existe uma ausência total de políticas para a juventude, e diariamente, trabalhando como repórter na periferia, a gente vê milhares de jovens nas grandes cidades à toa na rua, sem nenhuma atividade de lazer, de esporte, ou qualquer outro tipo de opção para que se ocupasse o tempo dele de maneira construtiva, como o senhor sugere. Eu queria saber, então, porque que, em primeiro lugar, o poder público não oferece nenhum tipo de atividade e nenhuma alternativa e quais as sugestões que o senhor daria para que essa população acabe não sendo atraída aí, por exemplo, para o mercado do tráfico que oferece, ao mesmo tempo, possibilidades de ganhos assim imensas. Eles ganham, vendendo drogas, muito mais do que um policial, do que um professor, do que os seus próprios pais, por exemplo.

Antonio Carlos G. da Costa: Gilberto, essa era a pergunta que eu mais queria responder. Nós precisamos fazer no Brasil uma revolução igual àquela de Copérnico, precisamos revirar totalmente o nosso olhar sobre o jovem. E qual é hoje a situação? Hoje a concepção do jovem, quando se fala em adolescência, as pessoas lembram-se dos problemas da adolescência. Então, um dia eu estava no interior da Bahia e falei assim: “Vamos fazer no ano 2000 um seminário sobre o adolescente. Quais os temas que você sugere?” Então um falava “drogas”, o outro, “violência”, o outro falava “gravidez na adolescência”, o outro falava “doenças sexualmente transmissíveis”, “depredações”...

Gilberto Nascimento: [Interrompendo] Só desgraça.

Paulo Markun: Só desgraça.

Antonio Carlos G. da Costa: ... falava só coisas ruins a respeito do jovem. Então eu falei: “Gente, nós estamos fazendo uma política em função do jovem que não queremos”. O Brasil faz uma política para a juventude, em função do jovem que não queremos. Qual o jovem que não queremos? E aí faz uma política. O Brasil não faz uma política perguntando qual o jovem que nós queremos? Então, as campanhas contra, quer dizer, fazer campanhas contra drogas, contra aids, eu acho que essas campanhas são uma droga, elas próprias, e acho que elas têm efeito contrário, porque elas acabam colocando no centro a droga, colocando no centro a gravidez, colocando no centro as doenças sexualmente transmissíveis. Então é preciso mudar essa escrita. E como nós vamos mudar essa escrita? Eu sempre digo o seguinte: fazer sempre as mesmas coisas do mesmo jeito e querer resultados diferentes é uma insensatez. E essas campanhas todas, esse sanitarismo campanhista, essas campanhas contra isso e contra aquilo, ninguém tem coragem de avaliar, porque nenhuma deu certo, é sempre jogando dinheiro fora. O que nós temos que pensar? Temos que pensar no jovem que queremos ter. Então, temos que fazer uma educação para valores. Eu acho que é disso que os jovens hoje têm uma fome, muito mais do que de comida, uma fome de sentido nas suas vidas. Então, é preciso aproveitar duas coisas de que o jovem dispõe. Primeiro, um relacionamento intenso com seus pares. Segundo, reservas colossais de tempo livre. E nós temos que criar espaços, criar oportunidades para que os jovens, através de práticas e vivências pedagógicas, possam vivenciar, identificar e incorporar valores positivos.

Paulo Markun: Dê um exemplo, como é isso na vida real?  

Antonio Carlos G. da Costa: Olha, a coisa mais simples. A revolução de Copérnico de que eu falava, Copérnico falou que era o Sol e não a Terra que era o centro do nosso sistema. Eu costumo dizer assim: “Temos que virar o nosso olhar, ver o adolescente como solução e não como problema”. Quando você reúne os adolescentes numa escola e fala assim: “Olha, vamos resolver os problemas que temos aqui. Quais são? O que fazer? Como fazer? Quando fazer? Onde fazer? Quando começar?” E você monta um plano e envolve os jovens nisso, ocorre o que eu chamo de “protagonismo juvenil”. O jovem como solução de problemas reais na escola, na comunidade e na vida social mais ampla. Então, o país tem uma riqueza imensa que é a sua juventude e fica preocupado não com o jovem que queremos formar, mas com o jovem que não queremos formar. Ponha os jovens para participar da solução dos problemas, e eles se comportam como solução.

Gilberto Nascimento: Na periferia, a única coisa que a gente vê, por exemplo, nas grandes cidades, é a escola. E a escola hoje não dá nem salário para o professor e não está nem ensinando o aluno também nem a aprender a ler e escrever. Recentemente a gente viu casos de alunos de 15 anos na quinta, sexta série, completamente analfabetos, isso aqui em São Paulo, a vinte quilômetros da Praça da Sé. Então, em bairros da periferia extremamente pobres, extremamente violentos, não há outra, não há nada lá a não ser a escola. E a escola não está cumprindo o seu papel mínimo e básico ali que é ensinar fazer as quatro operações e ensinar a ler e escrever. Como é que essas propostas do senhor vão chegar lá na prática nesses bairros?

Antonio Carlos G. da Costa: Eu acabei de escrever um livro agora, Gilberto, falando sobre isso, o livro chama O professor como educador, um resgate necessário. Jacques Delors, no relatório “Educação: um tesouro a descobrir”, da Unesco, fala na educação aprender a ser, aprender a conviver, aprender a fazer e aprender a conhecer. Ou seja, o jovem tem que desenvolver competências pessoais e competências relacionais. E os nossos professores estão sentindo muita dificuldade de fazer isso. Então, hoje, o grande problema da escola... existe problema de conteúdo, existe problema de metodologia e de didática, mas o grande problema da escola, hoje, com o adolescente no Brasil é um problema relacional. Então, o professor fala assim: “Ah, o manejo de classe não sei o quê”. Eu acho que não é mais essa questão de manejo de classe. Nós temos que repensar a escola, e o modelo que eu vejo para isso é o modelo de Dom Bosco [(1815-1888), padre italiano conhecido como “padre dos jovens”, atuou na área de educação infantil e juvenil e ensino profissional, e foi um dos criadores do sistema preventivo em educação. Foi canonizado e é o padroeiro dos jovens e dos aprendizes], no século passado. Dom Bosco dividia a escola em três grandes eixos. Primeiro: docência, transmissão de conhecimento dentro da sala de aula. Segundo: práticas e vivências, o criar acontecimentos. Porque os jovens hoje não acreditam muito no que nós falamos, mas se nós fizermos as coisas acontecerem, eles acreditam no curso dos acontecimentos, mais do que no discurso das palavras. E o terceiro: presença educativa. Não se ensina apenas aquilo que se sabe, nem aquilo que se quer ensinar, ensina-se aquilo que se é. O professor tem que ter a coragem de interagir com o aluno numa relação educador-educando verdadeiramente autêntica.

Alda Marco Antonio: Professor Antonio Carlos, o senhor é um homem antenado com o mundo e conhece o Brasil como poucos. Eu queria lhe fazer uma pergunta sobre como está a organização dos governos estaduais e municipais que o senhor conhece, pelo seguinte. Em 1987, o governo do estado de São Paulo inovou aqui criando a primeira e, por algum tempo, a única secretaria de Estado dedicada inteiramente à questão da criança e do adolescente. E essa secretaria serviu de modelo para muitas outras no Brasil, só que em São Paulo ela não sobreviveu, infelizmente. Como é que anda a situação dos governos estaduais e dos governos municipais em relação aos organismos que aplicam as políticas públicas dedicadas às crianças.

Roberto da Silva: Deixe eu emendar a minha questão com essa? O senhor se referiu ao movimento social que resultou na criação, aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, e esse movimento social que ainda sustenta o Estatuto da Criança e do Adolescente. Agora eu vejo que numa cidade, num estado como São Paulo e particularmente na cidade aqui, esse movimento dá mostras de cada vez mais estar perdendo a sua força ou ter chegado a alguns limites. Eu citaria novamente alguns exemplos: a luta por creche. O movimento social fez o que precisava fazer e não se avançou muito. O movimento pela pré-escola. O movimento para se estabelecer as unidades de tratamento de drogaditos, de adolescentes envolvidos com drogas; não se avança um passo nisso. A criação de espaços de lazer para a juventude nas periferias. Estão todos os nossos centros da juventude abandonados aí. A questão dos programas de renda mínima, os programas de apoio sociofamiliar. Enfim, o movimento social fez o que fez para pressionar os governos estadual e municipal, e os avanços têm sendo muito tímidos aí. E, por último, a maior violação que nós temos do Estatuto da Criança e do Adolescente é aqui em São Paulo. Quando um governador autoriza que adolescentes sejam compulsoriamente transferidos para as penitenciárias e os mantêm lá em regime de privação da liberdade, isso dá mostras de que o movimento social, Fórum da Criança e do Adolescente, conselhos de direitos esgotaram todos os recursos necessários para fazer valer o estatuto e tem esbarrado em um fator que é comum para todos nós, a questão da vontade política. O Ministério Público, por exemplo, já cobrou por todos os meios possíveis que o governador tirasse esses meninos das penitenciárias. Não se consegue fazer isso. O Ministério Público e o judiciário já obrigaram prefeito, governador a tomar todas essas medidas que nós citamos aqui. E ninguém consegue dobrar nem o chefe do executivo municipal, nem o chefe do executivo estadual a implantar essas medidas. Será que a questão “vontade política” aí novamente não está se sobrepondo ao plano das nossas boas intenções?

Antonio Carlos G. da Costa: Olha, primeiro a pergunta da secretária Alda Marco Antonio. Eu acho que nós temos hoje no Brasil tendências saudáveis em algumas políticas públicas. Eu vejo duas coisas. A educação, a escola nunca foi tão colocada numa condição de centralidade nas políticas para atender a criança e o adolescente como hoje. Eu digo a centralidade não por uma deliberação dos governos, mas na visão da imprensa, na visão da população, há uma centralidade na escola. E a grande novidade nos anos 90 no Brasil é a política de família. Nós tivemos na saúde os programas de saúde da família, a política de família emergindo dentro da saúde. Tivemos na educação a participação crescente e cada vez mais efetiva dos pais na vida das escolas, prevista inclusive na Constituição e na LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação]. Nós temos na política de assistência social a renda familiar mínima. Essas foram as três grandes novidades que não tínhamos nos anos 80 e passamos a ter nos anos 90. Então, os governos que estão alinhados com essas tendências estão fazendo algum tipo de política social inovadora. Agora, qual é o grande pecado das políticas sociais brasileiras? A descontinuidade. O trabalho que a secretária Alda Marco Antonio começou aqui em São Paulo era antes do Estatuto da Criança e do Adolescente e assimilava nas políticas públicas, no corpo das políticas públicas, uma série de conquistas que haviam sido feitas pelo movimento social em favor das crianças no chamado atendimento alternativo. Eu até criei a expressão “atendimento alterativo”, porque à medida que ele começava a ser incorporado pelo Estado, ele passava a alterar o perfil da ação do Estado nessa área. Agora, eu acho que a grande novidade hoje vem dos municípios; em termos de sociedade civil, a grande novidade foi a emergência do terceiro setor empresarial com grande expressão e expressão cada vez mais crescente e, no plano das políticas públicas, as iniciativas municipais. Agora, Roberto, nessa questão da vontade política, eu digo apenas uma coisa: quando a gente pensa em vontade política, a gente pensa no governante. Quando a gente pensasse a expressão “vontade política”, nos tínhamos que pensar a vontade política soberana do cidadão, porque enquanto nós pensarmos que a vontade política está com quem tem o cetro na mão, e nós ficarmos aqui como súditos, nós não teremos alçado ainda uma postura verdadeiramente cidadã. Então, eu acho que nós temos, não existem atalhos, nós temos que criar massa crítica, temos que mobilizar pessoas e organizações para pôr em prática a exigibilidade dos direitos da criança...

Roberto da Silva: [Interrompendo]. Não, mas nos parece...

Antonio Carlos G. da Costa: E eu volto a dizer que o Ministério Público é um aliado importante nessa luta de reconstrução ou construção da cidadania no Brasil.

Roberto da Silva: Só para reforçar. Hoje se estão utilizando as ações civis públicas para obrigar os governantes municipais e estaduais a implementarem essas políticas nas diversas áreas. Eles chegam lá, quando o Tribunal de Justiça dá ganho de causa, os governantes aceitam, dizem que vão implantar e depois fazem acordo com o Ministério Público, com o judiciário, fica por isso mesmo e não se faz nada. Quer dizer, se esbarra novamente na vontade de uma pessoa que ocupa um cargo e está na mão dela deliberar fazer ou não. Isso acaba inviabilizando, neutralizando toda a força do movimento social. Como é que a gente lida quando a questão é essencialmente política? Esse parece ser o nosso problema aqui em São Paulo. Todas as ações de mobilizações social foram feitas; de recursos judiciais, foram feitas. Agora toda questão se resume em politicamente alguém dizer: “Aconteça o que acontecer, nós vamos executar essas políticas”. Como é que a gente resolve isso?

Antonio Carlos G. da Costa: Eu acho que aí tanto nos poderes instituídos como por parte da população, continuam prevalecendo aquelas culturas que eu mencionei em outra parte, aquilo que eu chamo “os dragões da maldade”. Eu acho que nós estamos amarrados por dentro.

Rebecca Raposo: Professor Antonio Carlos, pegando um gancho na pergunta do Roberto, se o estatuto avançou na sua concepção, se ele mudou de paradigma, ele pressupõe um espaço político de interação entre sociedade civil e Estado, diferenciado. Se esse espaço político é diferenciado, não teria um papel para a sociedade civil aí, também diferenciado, no sentido da participação inclusive individual? Quer dizer, não temos que mudar a nossa relação e o nosso conceito do que é político, de que político não... embora eu esteja entendendo a colocação do Roberto, eu sei que ele tem razão, em particular, no caso do estado de São Paulo, embora, graças a Deus, não seja a situação no Brasil como um todo. Mas, se ela é uma lei que traz para o âmbito e para o seio da família, do Estado, da escola, do município, da sociedade civil como um todo, a responsabilidade pela garantia dos direitos, não caberia a nós também, no plano individual, um posicionamento? Porque o movimento social é uma parte da sociedade civil. O terceiro setor é uma coisa muito ampla, como tem uma parte do empresariado que por mais representatividade ou por mais recursos financeiros que tenha, é uma parte da história, sociedade civil é heterogênea mesmo, ela não é harmônica. Mas no plano dos indivíduos, qual é a papel político que o senhor diria que nós hoje podemos desempenhar principalmente – volto a dizer – nesse momento de eleição?

Antonio Carlos G. da Costa: Tem uma história de que no parlamento inglês, quando foi feita a lei do voto universal, um parlamentar conservador, um parlamentário assumiu a tribuna e disse assim: “Agora que temos o voto universal, temos que ter um ensino universal, porque ai do país que não educa o seu soberano”. Então, o que era o soberano? Era o eleitor que ia escolher os dirigentes da nação. Essa imagem da educação do soberano é a imagem mais bonita que eu vejo da educação para a cidadania. E o que a nossa geração... como nós fomos educados para a cidadania? Foi nas aulas de [Educação] Moral e Cívica e de OSPB [Organização Social e Política Brasileira, ambas foram adotadas como matérias obrigatórias do currículo escolar a partir de 1969, em substituição às de filosofia e sociologia, sendo caracterizadas pela transmissão da ideologia do regime autoritário ao exaltar o nacionalismo e o civismo dos alunos e privilegiar o ensino de informações factuais em detrimento da reflexão e análise] decorando que democracia era o governo do povo, para o povo e pelo povo, na vigência plena do AI-5 [Ato Institucional número 5 foi determinado no contexto da ditadura militar (1964-1985) pelo presidente Costa e Silva, em 1968, e dentre outras medidas, estabeleceu o fechamento do Congresso Nacional, decretou intervenção nos territórios, estados e municípios, cassou mandatos, suspendeu direitos políticos e decretou o confisco de bens], da Lei de Segurança Nacional, da Lei de Greve, da Lei de Imprensa, de todo aquele entulho autoritário. Nós precisamos ensinar as novas gerações a viver a cidadania, então eu tenho falado muito do protagonismo juvenil. Ver o jovem como fonte de iniciativa de liberdade, de compromisso, e nós temos que dar exemplo para a juventude. Eu sempre digo o seguinte: “o exemplo não é a melhor forma de exercer uma influência construtiva e duradoura sobre um jovem, é a única”. [risos] Diante disso, o que devemos fazer? Eu acho que nós devemos, como gerações adultas, levantar essas questões junto aos jovens, posicionarmo-nos e assumirmos uma posição. As eleições municipais são uma grande oportunidade de fazermos um grande processo de pedagogia social em torno do voto. Darcy Ribeiro [ver entrevistas do Roda Viva com o antropólogo e educador Darcy Ribeiro] falava que só tem duas perguntas importantes no Brasil. A primeira: por que que o Brasil ainda não deu certo? A segunda: o que cada um de nós tem que fazer no âmbito das suas atribuições para que o Brasil dê certo? Eu acho que se fizéssemos um exame de consciência dessa natureza, fizéssemos debates coletivos, a gente chegaria às eleições municipais mais preparados para romper essa escrita que vem se repetindo há tanto tempo.

Paulo Markun: Antonio Carlos, o nosso tempo terminou. A TV Cultura vai continuar discutindo esse assunto durante esta semana. E, da nossa parte aqui, nos cabe apenas encaminhar as perguntas e observações que foram feitas pelos telespectadores, e que como eu já afirmei aqui, mostram que ainda há uma distância entre o que está se discutindo aqui e o que muita gente considera em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente. De todo modo, eu gostaria muito de agradecer a sua participação aqui no nosso programa, aos nossos entrevistadores e a você que está em casa.   

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