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Memória Roda Viva

Listar por: Entrevistas | Temas | Data

Lima Duarte

2/3/1987

O rapaz da "voz de sovaco" que se tornou um respeitado ator no Brasil relembra sua trajetória, seus personagens, conta vários "causos" e ainda fala de política nesta bem humorada entrevista

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Rodolfo Gamberini: Boa noite. Nós estamos começando agora mais um Roda Viva, o programa de entrevistas e debates da Rádio e TV Cultura de São Paulo, canal dois. Esta noite o nosso entrevistado é o ator Ariclenes Venâncio Martins. Pouca gente conhece, na verdade, mas está aí ele: é o Lima Duarte [Lima sorri]; aí todo mundo sabe quem é, não é? E para participar então esta noite do Roda Viva com o Lima Duarte estão aqui conosco: Chico de Assis, dramaturgo; Walter Durst, roteirista; Jéfferson Del Rios, crítico de teatro; Gabriel Priolli, jornalista da TV Gazeta; Walter Forster, ator; Dionísio de Azevedo, ator; José Amâncio Pedreira, diretor; Luiz Fernando Ramos, da revista Palco e Platéia; Pedro Augusto Costa, jornalista do Caderno 2 [caderno de Cultura] de O Estado de S.Paulo e Mauro César Carvalho, jornalista da Folha da S.Paulo. Mas, Lima, para a gente começar então a nossa conversa... Ah, deixa eu só fazer um lembrete para quem está em casa. Normalmente as pessoas telefonam, mas hoje nós estamos gra... [corrigindo-se] gravamos este programa com uma certa antecedência, então você que está em casa não pode participar pelo telefone. Lima Duarte, todo papel seu na TV acaba virando uma coisa de uma importância que acaba até escapando um pouco da televisão. Todo personagem seu vira modelo de comportamento popular, você lança gírias, as pessoas te imitam, é um fenômeno que ultrapassa a coisa da televisão. Qual é a importância que você acha que você tem na televisão?

Lima Duarte: [Sorri] Eu trabalho nisso há muito tempo [e] tal, o fato de me identificar sempre com os personagens e através dessa identificação chegar mais profundamente ao público é o resultado de... de aptidão mesmo, de eu ter nascido e de eu ter desenvolvido um tipo de sensibilidade específica para o veículo. Eu costumo dizer que eu gosto mesmo [é] de fazer televisão, eu tenho uma sensibilidade para o veículo, eu acho que não faço tão bem cinema e não tenho feito teatro também tão bem quanto faço televisão. Eu acho que televisão eu faço realmente muito bem, porque tenho uma sensibilidade desenvolvida para o veículo. Eu fiz o primeiro programa de televisão – né? - na América do Sul [risos], fiz o primeiro programa de televisão, de maneira que eu conheço todos que fazem televisão, e a maneira de eles trabalharem, o jeito de eles fazerem. Por exemplo: eu pergunto quem é o diretor de TV e conheço ele, e sei como é que ele faz. Então, se eu dizer assim, por exemplo, se eu tiver que dizer esta coisa execrável, assim: “eu te amo.”, eu consigo. Eu pergunto: “quem é o diretor?”. Eu já sei como é que ele vai fazer... Pergunto: “quem é o iluminador?”, [e] já sei que luz ele vai pôr. Pergunto: “quem é o sonoplasta?”, aí já sei que música ele vai pôr; e ver quem é o produtor... e eu consigo abstrair tudo isso e falar direto com o espectador, entendeu? Num átimo...

Rodolfo Gamberini: Sei.

Lima Duarte: ... numa loucura aqui, assim. E...

Walter Jorge Durst: [Interrompendo] A moça que vai ouvir [...]...

Lima Duarte: Hein?

Walter George Durst: [Interrompendo] A moça que vai ouvir [...]...

[Risos]

Lima Duarte: Você mesmo me dizia que televisão não tem frente, então a moça pode sair da frente que eu falo direto e eu digo para o espectador que ama a moça que está me ouvindo, não é verdade? Ao contrário de teatro, do teatro – né? - que você se projeta no teu parceiro em cena e através disso chega ao espectador, né?

Rodolfo Gamberini: [Interrompendo] Agora o fato...

Lima Duarte: Porque eu acho que televisão tem uma sensibilidade específica, é um veículo muito específico, com leis, regras...

Rodolfo Gamberini: Quer dizer, o fato dela não ter frente, como diz o [Walter George] Durst, quer dizer, significa isso: que você não está falando para uma pessoa específica? Explica esta noção aí de que a televisão não tem frente.

Lima Duarte: Claro, claro. Então é assim, olha: a noção mais moderna de teatro, assim... por exemplo, eu trabalhei muito tempo no Teatro de Arena, 11 anos, e lá a gente trabalhava baseado quase que exclusivamente numa coisa chamada inter-relação. Você se relaciona tanto e a tal ponto com o teu parceiro sendo, no entretanto, personagem, que essa relação chega ao espectador como uma coisa viva, intensa, forte e real. Eu fiz circo também, muito tempo, mas o circo é uma coisa de antes do Freud [Sigmund Freud (1856-1939), médico neurologista austro-húngaro, fundador da psicanálise e um dos maiores pensadores do século XX], da psicologia, portanto você não tem essa coisa de você se projetar num personagem e chegar ao espectador: você abstrai, o personagem fala direto, né? Você diz: “ai, como eu estou sofrendo, a minha alma...!”, o cara está aqui [aponta como se a pessoa estivesse quase a seu lado] e diz: “A minha alma, e ele não sabe que eu sofro tanto...”, entendeu? É uma coisa específica do veículo, né? E a televisão também tem um pouco isso: ela tem uma especificidade que você pode desenvolver. Você tem um jeito de falar mais intimamente, né? Eu também considero que o espectador de televisão é diferente do espectador de teatro e de cinema. Ele vê televisão até nas suas ablusões, lá... Sei lá: a televisão está ligada e ele vai olhando. Então, nos momentos de maior intimidade você está lá trabalhando com eles. Então você deve considerar isso [e] eu penso que o ator de televisão deve considerar isso também, sabe? Ele deve ter uma maneira mais coloquial, mais íntima, falar como se fala com um companheiro velho: assim mesmo que eu vejo o espectador, né? Mesmo fazendo os mais ferozes bandidos – né ? - você tem que, sei lá, de certa forma, demonstrar que ninguém é mau só por ser mau e nem é bom só por ser bom: tem o bom e o mau e vice-versa, né? Então eu sempre considero isso e sempre acabo chegando ao coloquial – né? - das pessoas mesmo, lá dentro.

Rodolfo Gamberini: O Pedro Augusto Costa, do Caderno [2] do Estadão [jornal O Estado de S.Paulo] quer te fazer a próxima pergunta, Lima.

Pedro Costa: Você falou uma vez que você... a sua familiaridade é tanta com a televisão que você consegue cheirar, digo, chorar só com metade da cara. [risos]

Lima Duarte: Se eu cheirar fica difícil.

[Risos]

[...]: Ficaria perigoso.

[Risos]

Pedro Costa: Chorar só com a metade da cara... Eu queria saber como é que você consegue?

Lima Duarte: Não, só que depois aí se eu falar que eu consigo você pede para eu fazer, né? [risos gerais] Não consigo, não. Sabe quem consegue isso? A Secretária de Cultura, a Bete Mendes [Elizabeth Mendes de Oliveira (1949-), atriz e militante política brasileira]: ela conta até vinte e chora; pelo menos fez isso no Móbile. Nós tínhamos um programa que chamava Móbile – o poder jovem, um programa experimental lá na TV Tupi [primeira emissora de televisão do Brasil. Sediada em São Paulo, esteve em atividade de 1950 a 1980] que ia ao ar assim às duas, três horas da manhã, e a gente fazia muita loucura, e ela contava até vinte e chorava, assim, impassiva. Ela fazia: um, dois, três, quatro, cinco e... [faz gestos com as mãos, próximos ao rosto, como se lágrimas estivessem caindo de seus olhos] [risos]

Rodolfo Gamberini: Será que ela vai ter que fazer isso agora no cargo de secretária, Lima?

Lima Duarte: Eu não consigo isso... Só uma coisa meio interior... [risos]

Rodolfo Gamberini: Hein, Lima: será que ela vai ter que fazer isso agora no cargo de secretária?

Lima Duarte: Como secretária ela vai contar até três e vai desabar...

[Risos]

Rodolfo Gamberini: O Chico de Assis é o próximo a te perguntar.

Chico de Assis:  Bom, queria colocar para o Lima é o seguinte...

Lima Duarte: Mas... Perdão, só que eu não respondi [a pergunta]. Eu falo mais que a boca, eu sou um falastrão – sabe? – famoso, e é uma coisa interior evidentemente: não consigo tecnicamente verter lágrimas – né? - , mas...

[...]: [Interrompendo] É só colocar o limão na...

Lima Duarte: ... é... eu acho que com um pouco de treino eu vou conseguir, viu! [risos]

Chico de Assis: Bom, duas coisas. Primeira: você sempre costuma se identificar dentro do rol do grande panteão dos atores brasileiros como o único ator de primeira linha do Brasil que vem do meio rural diretamente...

Lima Duarte: É.

Chico de Assis: ... e você vem do meio rural de Uberlândia, das proximidades...

Lima Duarte: Não, Sacramento.

Chico de Assis: Ou Passa Perto, Sacramento e tudo o mais. Agora mesmo você acabou de dizer que o vilão, você até dá um jeito de deixar ele o mais humano possível.

Lima Duarte: Senão eu não consigo realizá-lo, né?

Chico de Assis: É... Até que ponto isso tudo não é mineirice sua? Até que ponto esse ator rural é que amacia todos esses personagens? Estou vendo outro ator rural aqui na minha frente, Dionísio de Azevedo, também muito esperto em melhorar bandido e envenenar mocinho [discretos risos gerais]; como é que é esse negócio?

Lima Duarte: Eu não sei o que você chama de mineirice; eu sei lá o que é isso aí. [risos gerais] Não, eu costumo mesmo dizer que na elite dos atores brasileiros - se me permitem a imodéstia - eu sou o único com formação rural. Conheço até dentista que é ator; tem advogado, tem médico, entende? É isso que eu chamo por formação, né? Eu nasci lá no interior, me criei lá, o estofo psicológico do ator que eu sou hoje formou-se ali naquelas poeirentas estradas lá do lugar onde eu vivia, e percorri um caminho mesmo, para chegar até aqui, dos mais difíceis. Isso não torna a coisa mais fácil para mim, não; ao contrário: é mais difícil, né? Todo mundo diz que é ator de um personagem só, só sabe fazer isso – né? - e eu uso aquela coisa do Plínio Marcos [autor e diretor de teatro - ver com Plínio Marcos no Roda Viva], que somos eu e o Charles Chaplin... E eu estendo mais um pouco: eu, John Wayne [(1907-1979) ator norte-americano], Marlon Brando [(1924-2004) ator norte-americano] e Charles Chaplin só sabemos fazer um personagem, que é - no meu caso o meu personagem é bem grande -, que é o brasileiro, enfim – né? - na questão do caipira, do caboclo, isso é uma coisa relativa, né? A minha idéia mesmo é mostrar que eles têm tanta grandeza quanto Hamlet [tragédia escrita por Shakespeare entre 1599 e 1601]. Não quero dizer o Sinhozinho Malta [personagem da novela Roque Santeiro (1985), de Dias Gomes, notável por seu poder e sua relação com a viúva Porcina, vivida pela atriz Regina Duarte], mas o Augusto Matraga [personagem do conto de João Guimarães Rosa A hora e a vez de Augusto Matraga, do livro Sagarana (1946), um fazendeiro perverso e debochado], por exemplo, o Joãozinho Bem-Bem [personagem do mesmo conto conto de Guimarães Rosa, um jagunço conhecido] ou o Zé Bebelo [personagem de Grande sertão: veredas, romance de Guimarães Rosa, um misto de cangaceiro e aspirante político], eles são personagens realmente muito grandes, e que a gente, por ser isto aqui uma colônia cultural e nós sermos todos colonizados culturalmente, achamos que eles são menores – né? - por serem assim, brasileiros.

José Amâncio Pereira:  Ô Gamberini, deixa eu pegar essa deixa aqui, do que ele acabou de dizer.

Rodolfo Gamberini: Pode, pode.

José Amâncio Pereira: Você diz que você, na televisão, você representa bem, você pega os personagens e consegue trabalhar os personagens. Como é, de repente, você fazer um programa de televisão onde você não representa nenhum personagem, onde é você mesmo? Aí você é um pouco esse ser humano rural? Que é o caso do Som Brasil [programa de música brasileira regional lançado em 1985 pela Rede Globo e exibido nas manhãs de domingo. Tinha como tema de abertura a música Vive Vida Marvada, de Rolando Boldrin, que apresentava o programa. Em 1984, Rolando Boldrin foi substituído por Lima Duarte para apresentar o programa]: você não representa nenhum personagem no Som Brasil, ...

Lima Duarte: Não.

José Amâncio Pereira: ... você é o Lima Duarte. Talvez uma das poucas vezes na televisão brasileira [em] que você é o Lima Duarte. Você é o Zeca Diabo [personagem da novela O bem amado (1975), de Dias Gomes, um pistoleiro  redimido, que recebe a missão de matar alguém para a inauguração do cemitério], é o Sinhozinho Malta, é um monte de gente. Como é isso para você? O que representa isso para você, você falar com pessoas que de repente se identificam um pouco com todo o seu passado?

Lima Duarte: É... Eu tenho um problema sério para fazer esse programa porque eu aí  não sei se interpreto um apresentador, ou se me comporto mesmo, assim, eu mesmo lá, né? Mas também não sei se serve à emissora, se ela se interessa por eu estar fazendo lá ou pelos personagens que eu tenha feito para ela, né? Eu tenho muitos problemas nessa área aí para fazer aquele programa, o Som Brasil. Eu às vezes gostaria de interpretar mil coisas, mil personagens, e fazer um programa mesmo interpretado, mas também não sei se será o caso [porque] tem lá os cantores que são objetos mesmo do programa e que devem interessar mesmo, né? Então eu penso muito nesse programa, gosto dele. Eu acho que esse programa é mais importante e o espectador desse programa é mais importante que o da novela das oito [horas], porque [é para] a novela das oito que são [gastos] setenta milhões de dólares, [para] oitenta milhões de espectadores, essas coisas acachapantes e terríveis que em última instância acabam caindo sobre a sua cabeça, sobre a cabeça do ator, essas coisas às oito horas da noite acontecem: todo mundo vê televisão às oito horas da noite, ela está ligada. Agora, o sujeito que, às oito e meia da manhã, se levanta para ver um programa de televisão, ele é muito especial: ele é particularmente interessante para mim, e é com esse sujeito que eu quero falar. Eu tenho procurado o tom exato para falar com ele e confesso... reconheço que não tenho encontrado. Ele tem um tom certo para falar... como, sei lá, como um irmão, como um cara... Porque veja: o Brasil passou da estrutura agrária para urbana em apenas vinte anos - isso não é nada diante dos grandes fatos sociais, não é verdade? É um... Então todos nós temos um pé na roça, todos ficamos um pouco caipiras, e é para esse pé na roça que eu tento falar. O tom eu não sei se eu achei direto ainda, eu tenho procurado mesmo. E confesso aqui que é difícil encontrar um jeito de falar com ele: próprio, especial, para esse homem que levanta e liga a televisão para me ouvir falar aquelas coisas e para ouvir aquelas músicas, e para falar de um tempo que ele perdeu e que... eu tento me colocar às vezes... eu sou igual a você e vim para cá, para a cidade; e tem uma certa nostalgia daquilo ali, e é dessa nostalgia que eu gosto de falar - entende? - , do sujeito que se perdeu nesse caminho de lá até aqui, da roça até a enxada transistorizada, sei lá – né? -, e é um tom muito difícil: eu não o encontrei direitinho ainda, reconheço que não faço bem aquele programa. Mas também acho que o programa não é exatamente o que eu queria fazer; por ser um programa às oito e meia da manhã, ele tem uma verba muito restrita, é um programa que tem muitas limitações de dinheiro, de custo; nós trabalhamos em televisão! Eu gostaria de fazer com uma grande verba e fazer um programa sobre a cultura brasileira; sem ser chato  - né? -, tentar pelo menos não ser muito chato. Eu gostaria de fazer esse programa, mas... E penso que às vezes o Som Brasil poderia sê-lo, mas não é ainda não. Mas eu tento me comportar como um irmão, assim, falando com o outro, entendeu? É o que eu penso lá no fundo da minha cabeça.

Rodolfo Gamberini:  Lima, o Jéfferson Del Rios, crítico de teatro, quer te fazer uma pergunta.

Jéfferson Del Rios: Ô Lima, uma vez o Marcello Mastroianni [(1924-1996) ator italiano], ao ser entrevistado, perguntaram para ele: “Mas, Mastroianni, qual é o seu método de preparação de personagem? Qual é a sua preparação?”.

Lima Duarte: Eu achei uma maravilha.

Jéfferson Del Rios: Ele falou: “Mas que método? Não tem método: vai-se e faz-se.”.

Lima Duarte: [Rindo] Isso...

Jéfferson Del Rios: Quer dizer, você me dá a impressão [de] que você é um pouco assim: você entra e faz. Mas eu queria saber qual é o seu método.

Lima Duarte: Eu adorei – viu - o Marcelo Mastroianni ter dito aquilo e desmistificado um pouco essa frescura dos atores... assim, né? [Faz um movimento como se estivesse mostrando algo grandioso]

Walter Forster: [Em meio à fala de Lima Duarte] Sem laboratório.

Lima Duarte: Uma tremenda frescura que cerca essa coisa, mas muita frescura. Mas eu gostei mesmo de o Mastroianni ter dito aquilo, mas no fim de tudo eu achei ele um pouco leviano assim – sabe? -, eu fiquei pensando assim...

Jéfferson Del Rios: É, porque tem processo...

Lima Duarte: O cara que faz essas coisas maravilhosas como aquele Casanova [referência ao filme Casanova e a revolução (título original, La nuit de Varennes) de Ettore Scola, lançado em 1982] de uma sofisticação impressionante, chega a essa sofisticação por caminhos tão vulgares assim? E eu fiquei pensando um pouquinho nisso. Mas o resultado do trabalho dele é maravilhoso, isso é maravilhoso. Mas ele me decepcionou um pouco: eu talvez esperasse um pouco de frescura dele, que ele dissesse que sofre, assim, e tal; eu não: eu sou um cara...

Jéfferson Del Rios: [Interrompendo] Como é que você chega lá?

Lima Duarte: Eu sou um cara que tem umas certas frescuras também: eu sou bastante... Não é “chego lá e faço.”. Por exemplo: a gente estava falando dos sinais, essas coisas [como] “Ai, meu padim pade Ciço”, essas coisas que o povo repete. Mas isso eu procuro fazer com uma rigorosa base psicológica, bem correta, senão não funciona, senão fica oca. Então o Sinhozinho Malta chacoalhava o braço [chacoalha o braço, balançando o relógio, tal como o personagem] - um exemplo, né? -, chegava [e dizia:] “Tô certo ou tô errado?”; chacoalhava... Então, para que [é] que dá certo isso? Se não estava todo mundo chacoalhando o braço nas novelas aí, e o povo sai chacoalhando também. Mas não é bem assim: o povo sabe das coisas - bem lá no fundo ele sabe. Tinha uma razão psicológica perfeitamente fundamentada: é que ele tinha muitas pulseiras de ouro – sabe? - e quando ele era contrariado ele jogava os ouros na cara do povo: [fala chacoalhando o braço novamente] “Tô certo ou tô errado?"  [como quem diz:] "Sai para lá, não venha me aborrecer. É isso mesmo!”;  e jogava o ouro na cara. Era assim que eu pensava, e isso passou de uma maneira muito gostosa, que todo mundo repetia, né?

Gabriel Priolli: Esse gesto você tirou de alguém que você conhecia?

Lima Duarte: Não, não; eu falo muito com as mãos também e o cara do som veio reclamar e eu falei: “não, então vamos incorporar isso. Sempre que eu [o personagem] for contrariado eu faço assim.” [agita novamente o braço]. [risos gerais] Isso é sensibilidade para o veículo, sabe? E o Sinhozinho Malta é engraçado. A [Rede] Globo te pressiona muito – né? - muito, muito: esses milhões de dólares, esses número estapafúrdios que essa emissora tem, de audiência e de tudo acabam caindo sobre a sua cabeça mesmo-, não é Walter? – [dirigindo-se a Walter Durst; discretos risos gerais] e se você não tiver uma estrutura bem rigorosa, bem sólida, você não segura essa barra porque... Você pode imaginar que é difícil – né? - e eu sozinho, um ator só [ouvindo:] "Vai ser o astro das oito.", "[São] oitenta milhões de espectadores.",  “Vê lá, hein! Cuidado”... Você fala: “pelo amor de Deus, o que é isso?”; e te mostram dados, números, contas; você fala: “nossa senhora! Manhê, eu quero voltar pra Sacramento!”, [risos gerais] não é verdade? Mas então, quando eu estava fazendo o Sinhozinho [me diziam]: “Vê lá, tira o bigode porque está igual ao Zeca Diabo. Tudo fica igual, você faz tudo igual, está parecendo o Zeca Diabo.”. Pelo amor de Deus, então me deixa fazer o personagem, se não eu não vou ter tranqüilidade para trabalhar. [Insistiam]: “Não, tira o bigode.”; [eu respondia]: “não, não vou tirar o bigode, o personagem tem bigode.”. [Aí falavam] [em tom de desespero] “Então põe peruca, põe peruca para ficar diferente, põe peruca. E fala, e a voz? Como vai ser a voz? Como é que vai ser a voz? Aí, aí, aquela hora que você fala assim está igual ao Zeca Diabo. Corta, vem ver, vem ver...”- e mostra - “Passa o tape, passa o tape. Olha lá, olha lá, viu como você olhou igual o Zeca Diabo? Corta, corta.”. Mas é uma coisa brutal. Então eu falava: “meu Deus do céu!”.

Pedro Costa: Estou certo ou estou errado?

[Risos]

Lima Duarte: Então como é que eu vou fazer para fazer isso diferente? Então o Zeca Diabo era pobre. [Eu pedia]: “me dá uma camisa de seda.” - [e traziam] uma camisa de seda – “me dá umas pulseiras de ouro, me dá pintura, peruca e coisa e tal...”, e fui lá na rouparia e pedi tudo isso, e quando eu saí da rouparia assim enfeitado para testar um pouquinho – né? - o look lá do personagem, tinha um negrinho que olhou para mim e disse assim: “Ih, o Zeca Diabo ganhou na [loteria] esportiva!”.

[Risos]

Lima Duarte: Parecia o Zeca Diabo.

Walter Forster: Ô Lima, ... [dirigindo-se a Rodolfo Gamberini] Posso falar?

Rodolfo Gamberini: Pode.

Walter Forster: Para ficar um pouco no Zeca Diabo...

Lima Duarte: [Interrompendo] Não, então: só... Perdão, só... Eu não sei se respondi a pergunta dele. Eu não sei... Como é que eu armo – né? - o personagem, você perguntou?

Jéfferson Del Rios: É, como você arma...

Lima Duarte: É isso aí. Então eu procuro bem pensar mesmo. Agora, eu procuro me esquecer [de] toda essa pressão, toda essa coisa, vou para casa e penso numa pessoa, onde eu quero chegar, visualizo ele fora de mim -  entendeu? - para ver o tipo que ele usa, a roupa que ele usa, porque também na televisão tem muito disso: o personagem é meio, um pouco, feito de fora para dentro - sabe? - porque a televisão é muito imediata. Então eu vejo ele [de] fora assim, como é que ele anda, como é que ele fala e como é que ele se relaciona com os seus – né? - filha, tal, tal, e depois de eu ver como é que ele anda e como é que ele se veste, eu chego a como é que ele pensa, entendeu?

Jéfferson Del Rios: Agora, aí você já tem muito do ator do teatro, do aprendizado, muito do Teatro de Arena, muito do Boal nessa história.

Lima Duarte: É, isso... Muito.

Walter Forster:  Agora, para ir para um lado mais pitoresco do Zeca Diabo, que foi - como todos os personagens que você fez - profundamente marcante, o público às vezes tem a tendência de misturar a pessoa, o ator, com o personagem que ele está interpretando, principalmente quando tem sucesso. Você é uma pessoa que eu conheço há tantos e tantos anos...

Lima Duarte: Tantos anos... É.

Walter Forster:  ... sei que você é uma pessoa de hábitos assim muito discretos, hábitos alimentares muito discretos. Nas homenagens que te prestaram pelo Norte e Nordeste, prestavam a você e ao Zeca Diabo, você não teve que enfrentar muita buchada de bode [prato típico do Nordeste]?

[Risos]

Lima Duarte: Tenho... [Lima ri] Olha, e os caras...

Walter Forster: [Interrompendo] Como é que você fazia?

Lima Duarte: O sujeito falava: “Ô, come essa buchada!”, [e eu respondia] “não, eu não como; me faz mal, eu não estou acostumado.”. [Insistiam] [fala com sotaque nordestino]: “Come, come... Ah, vai ver que é bicha. [risos gerais]. Isso é artista, é artista, isso aí não é nada daquilo. Ih...”....

Walter Forster: Zeca Diabo não come buchada de bode?

Lima Duarte: ... "... eu pensei que você fosse afinal um homem maior, um homem assim... um homem...”. Eu não sou... Isso me lembra o Jaime Barcelos [(1930-1980), ator brasileiro]. Eu estava trabalhando em Portugal, fazendo teatro lá em Portugal, quando Jaime Barcelos foi lá. Tem uma cidade lá em Portugal que chama Tomar, que tem um carnaval - que é a sede dos Templários, aliás [famosa ordem militar de cavalaria fundada em 1096, existiu por cerca de dois séculos na Idade Média. Seu propósito original era proteger os cristãos  que voltaram a fazer a peregrinação a Jerusalém após sua conquista. Os templários entraram em Portugal quando a condessa Teresa de Leão lhes doou a povoação de Fonte Arcada, Penafiel, em 1126, e, a partir de 1160, sediaram-se na cidade de Tomar] - tem carnaval lá e sempre eles levam um ator brasileiro em voga, na onda, lá para fazer o carnaval de Tomar. Mas é um carnaval português – né? -: o cara desfila assim, numa carroça assim, e com uma coroa para ser o rei do carnaval de Tomar [risos gerais], e o Jaime Barcelos estava fazendo muito sucesso porque ele fazia aquele [imitando o personagem] “Narciso, meu filho!”; lindo o personagem que ele fazia, lindo, aquele... aquele do bar lá... Durst, você que adaptou, como é que chamava o personagem do Jaime Barcelos na Gabriela [novela de Walter Geroge Durst exibida pela Rede Globo (1975), adaptação do romance de Jorge Amado Gabriela cravo e canela]? “Narciso, meu filho!” [imitando novamente o personagem], ele falava assim.

Walter Durst: O do próprio Jaime?

Lima Duarte: É.

Walter Durst: Era doutor... um advogado bêbado lá...

[Risos discretos]

Lima Duarte: É, um advogado lá decadente, bebia... Mas então ele fazia isso e quando ele foi lá - e fazia muito sucesso em Portugal - quando ele foi lá eu estava fazendo teatro e eu falei: “ah, vou lá receber o Barcelos, vou andar com ele, né?”. Eu tive muita sorte que não tinha passado nenhuma novela minha e ninguém me conhecia em Portugal, e eu estava com Armando Bogus [(1930-1993) ator paulistano], que fazia o [personagem] Nacib [comerciante turco da novela Gabriela] – né? - e  os portugueses batiam nele porque ele não tinha os caracolinhos... [Eles diziam]: “Cadê os meus caracolinhos?” [gesticula como se estivesse estapeando alguém] [risos gerais] Ele tinha o cabelo enroladinho, mas ele desenrola, ele não tem o cabelo enrolado... “Os caracolinhos!” [com sotaque lusitano] E “bam”... [faz o som e gesticula novamente como se estivesse estapeando alguém] E eu: quá, quá, quá! E o Barcelos chegou, e assim que ele chegou já deram um garrafão de vinho. E Barcelos é um sujeito nérveo, um sujeito nervoso, e ele assim tenso – né? -: [imitando o ator, como se estivesse tenso] “Não, eu não bebo, não bebo, não bebo.” ; [e os portugueses]: “Mas como não bebe? Você... meu filho, bebe aí meu filho!”. [Imitando novamente Jaime Barcelos] “Não, o senhor, por favor... o senhor, por favor... Eu vou acabar brigando com o senhor, o senhor tira esta porcaria desse vinho da minha frente, eu não bebo [gesticula e fala como se estivesse irado], eu não bebo!”. E ficou o rei do carnaval abstêmio, com a coroa torta na cabeça... [risos gerais] Comigo acontecia isso lá no Norte também, [onde] eles me tratam como um igual, o que me lisonjeia, o que me faz feliz. Está certo: eu cheguei lá, atingi aquele território inconsútil que tem dentro de cada um – né? -, cheguei dentro dele; aquela corda mais sensível, eu toquei nela, então ele me trata como um igual, mas só que eu não como como um igual [risos], nem ando, nem penso, nem me visto, aí fica difícil.

Rodolfo Gamberini: Lima, o Walter Durst quer te fazer a próxima pergunta.

Lima Duarte: Pois, não.

Walter George Durst: Olha, eu, na verdade, eu queria fazer uma porção de perguntas para você. Eu queria te perguntar se os críticos te ajudaram, se o [...] teve alguma influência, tem alguma coisa a ver com a [telenovela] Beto Rockfeller - que é uma coisa [...] novela -, eu queria perguntar...

Rodolfo Gamberini: Ô Walter, eu espero que você tenha...

Walter George Durst: Espera um pouquinho. Não, eu estou...

Rodolfo Gamberini: ... a oportunidade de fazer  todas as perguntas.

[Risos]

Walter George Durst: É literatura só. Se... se você, olha aqui, veja que estranho, se você tem alguma coisa a ver com o Elisha Cook Jr [(1903-1995), ator norte-americano, famoso por interpretar vilões, covardes e neuróticos] ou com o Peter Lorre [(1904-1964), ator austríaco; fez o vilão Le Chiffre no filme Cassino Royale (1954)], eu acho que você teria resposta para tudo isso que eu gostaria de falar, mas você falou, respondendo ao Amâncio, eu pensei, eu entendi que é mais difícil para você hoje ser o Lima Duarte do que ser ator. Tudo bem, então eu quero falar com o ator. Também me lembro aí que depois do Mephisto [(1981) adaptação cinematográfica do romance homônimo de Klaus Mann, dirigida por István Szabó e estrelada por Klaus Maria Brandauer, como Hendrik Höfgen] é difícil falar com o ator hoje, quem tiver qualquer nível de consciência... você viu o filme - né? - e nós conversamos sobre ele e tudo. De qualquer forma, eu vou arriscar uma pergunta um pouquinho mais... [...], é o seguinte: o Gian Maria Volonté [(1933-1994), ator italiano] disse o seguinte, definiu a coisa dele de ser ator do seguinte modo, ele disse o seguinte: “O que eu pretendo é que os filmes em que eu atuo digam alguma coisa em relação ao mecanismo da sociedade.”.

Lima Duarte: Que bela colocação.

Walter George Durst: Ele disse... O Gian Maria Volonté você conhece, né?

Lima Duarte: Eu conheço.

Walter George Durst: Eu acho que ele está entre os três melhores atores do mundo, na minha opinião. Você... Para mim está entre eles.

Lima Duarte: Não, e ele se coloca como um ser social – né? -, sempre bem...

Walter George Durst: Tudo bem. Agora, mas a minha pergunta então é a seguinte... Tudo bem, agora, num país subdesenvolvido ou em desenvolvimento – assim, [para] falar um pouquinho mais bonito - como o nosso, é possível o ator ter uma posição?

Lima Duarte: Olha, eu tenho... assim... eu fico pensando: se nós vivêssemos na república ideal de todos nós, que seria uma república pluripartidária, que tivesse mesmo partidos que fossem veículos da sua ideologia, seria mais fácil, sabe? Por exemplo: qual é a ideologia do PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro]? Ou qual é a ideologia do PT [Partido dos Trabalhadores]? No entanto, eu tenho a minha, e quero uma organização, uma coisa organizada através da qual eu possa exercer, pressionar, exercer a minha ideologia, mas, infelizmente, não encontro nenhuma. Então a gente fica pateticamente votando no homem, na pessoa: “Aquele cara é um cara legal, bacaninha, vamos nele.”; e vota nesse, entendeu? Então é muito difícil você, como ator, se colocar socialmente, assim, nessa anarquia [em] que a gente vive, do ponto de vista político formal – né? -, da política formal, que não tem mesmo; nós vivemos num país caótico. No entretanto, um país emocionante sob muitos aspectos: eu acho o brasileiro sui generis, peculiar, uma pessoa rara, única, e é... Então, digamos que a minha ideologia é o brasileiro: eu me vejo nele, é ele que eu quero interpretar, é ele que eu quero representar. Não me interessa outra coisa que não seja representar a minha gente, o meu povo, da maneira que ele é, como ele é.

Walter George Durst: Perfeito, porque... Está certo, eu acho exatamente isso. Você tomou como ideologia e, no entanto, também pode ser substituído por visão de mundo.

Lima Duarte: É... e não é outra coisa, né?

Walter George Durst: E a sua é... E você é, de fato, possivelmente um dos únicos. Deve ter uns dez atores brasileiros mesmo [enfatiza], assim, no Brasil, e sem dúvida nenhuma você está entre eles.

Lima Duarte: O meu parâmetro é o Brasil. Olha, eu tendo... Eu tenho medo de ser demagógico com essas coisas - aliás, o nosso medo da demagogia é incrível [risos discretos] – né, Walter? -, então... e sendo assim, atuando como eu atuo, da maneira como eu faço as coisas, é muito... a gente fica mesmo a um passo da demagogia, e não quero ser isso. Quando mais não seja porque eu tenho... devo respeitar esse povo, essa gente que morre nos trens, que sofre no bonde, no ônibus, essa gente merece todo o nosso respeito, não é verdade?

Walter George Durst: Sim.

Lima Duarte: ... e não é sobre eles que eu quero fazer demagogia: eu quero, na verdade, interpretá-los, e como não tem escola para isso, não tem - e acho que no Brasil somos todos prato raso – né? -, não tem escola para ensinar a ler e a escrever, vai ter escola para ensinar a interpretar? Não tem, é tudo prato raso, a gente aprende é na rua. Então é a minha gente que eu quero interpretar, porque se eu fizer - isso também eu tenho dito - se eu fizer o Joãozinho Bem-Bem, eu tenho certeza [de] que Laurence Oliver [(1907-1989), famoso ator, produtor e diretor britânico] não faz melhor do que eu. Agora, no Hamlet eu acho que estou perdido, a não ser que eu faça o Hamlet brasileiro, e tudo o que eu quero fazer é o Joãozinho Bem-Bem que tem no Hamlet, que porventura tenha, que eu possa mostrar mais ou menos, entende? Eu tenho feito... fiz Molière, foi um fracasso terrível, fiz muito mal, meteram o pau em mim, acabaram comigo... [risos discretos]

Walter George Durst: Estou me lembrando de você fazendo Hamlet. Você citou, estou me lembrando de você fazendo Hamlet, ...

Lima Duarte: [Durante a fala de Walter George Durst] É, fiz Hamlet também...

Walter George Durst: ... mas depois [lembro-me de você] ir ao bar da esquina e dizer para mim: “Escuta, o que é esse Hamlet aí que ninguém sabe me dizer quem é?”. Eu falei: “também não sei.”. Por isso foi ao bar da esquina [faz gesto de quem bebe algo] e fez o Hamlet...

Lima Duarte: É... As traduções eram horrorosas, né?

Walter George Durst: ... maravilhosamente. [risos]

Lima Duarte: ... era difícil fazer.

[Sobreposição de vozes]

Rodolfo Gamberini: Gabriel.

[Há um forte barulho no estúdio - chamando a atenção das pessoas - mas que logo se interrompe]

Gabriel Priolli: Nessa sua missão de...

Rodolfo Gamberini: Pode seguir. A gente...

Gabriel Priolli: Nessa sua missão de representar o homem brasileiro, quer dizer... você sente esse homem, personagens para isso, pelo menos na televisão? Quer dizer, esse homem brasileiro é possível de ser representado? No seu caso eu acho que sim, você... Agora...

Lima Duarte: [Interrompendo] É onde ele mais vive, né? No teatro é muito difícil de encontrá-lo, na televisão tem mais. O [...]...

Gabriel Priolli: É mesmo? Você não acha que a maior parte dos personagens são um pouco estereotipados, um pouco universais demais e em muitos casos menos que  universais, são mais americanos ou americanizados e nada têm a ver com a realidade?

Lima Duarte: Mas eu acho que isso... isso... isso não é uma coisa dos atores, é uma coisa do veículo, sabe?

Gabriel Priolli: Não, eu estou falando dos personagens, dos personagens.

Lima Duarte: E do telespectador também: há um pacto, há um pacto entre o ator de televisão e o seu espectador - isso é uma coisa tácita. O Tarcísio Meira [(1935-), famoso ator brasileiro] tem um pacto com o seu público, e o seu público sabe quando ele está triste, quando ele está alegre, mesmo que ele faça ao contrário, entendeu? Olha, uma coisa muito, muito interessante: a minha mãe, os últimos anos da minha mãe foram terríveis, ela teve uma doença prolongada, tal. Eu me separei de uma das mulheres e meu irmão também, e fomos morar com a minha mãe. Assisti à morte dela lá e [procuramos] tornar tanto quanto possível melhorzinhos os últimos tempos dela, né? Então eu pude... eu já era um ator, assim, estava até dirigindo o Beto Rockfeller [e] eu ficava vendo a minha mãe assistir [à] televisão. Ela assistia televisão fazendo tricô, então ela ficava assim [com as mãos próximas, como se estivesse tricotando] e de repente tocava uma música lá, ela olhava: “Ah...”; é que mudou de ambiente, né? E aí continuava, e de repente entrava uma voz [e] ela: “Ah...”; era o bandido - ela falava mesmo, o bandido. Aí entrava outra [imitando ainda a ação de tricotar] voz: “Ah, o mocinho...”; então era rádio-teatro, sabe? Eu falei: “puxa vida, mas como é que é...?”. Estabeleceu-se o sistema, né? E o sistema se estabelece em qualquer lugar - não é verdade? – e é a própria necrose quando ele se estabelece, não é verdade? Então, a função do artista que eu penso, do artista de um modo geral [e] do ator também, é...  seria – né? - não a função principal, mas uma delas, introduzir ruídos onde quer que o sistema se estabeleça; você não acha legal?

Gabriel Priolli: Eu acho.

Lima Duarte: É uma boa idéia, né? Então eu falei assim: eu vou sacanear a minha mãe, aí. Aí o Jota Silvestre [(1922-2000), ator, escritor e apresentador de televisão brasileiro], que por essa altura tomou conta da TV Tupi, brigou comigo e quis me sacanear e falou: “Você vai fazer uma novela bíblica!”; a primeira e única novela bíblica da televisão, chamada O rouxinol da Galiléia. [risos gerais] Ia para o ar às seis horas da tarde, sabe?

[...]: Grande novela!

Lima Duarte: Eu falei: “ah é? O que é que eu faço?". [Ele respondeu]: “Você vai fazer Simeão [homem justo e temente a Deus que, segundo o Evangelho de Lucas, teria uma revelação do Espírito Santo, anunciando que não iria morrer sem antes ver o Cristo], o profeta.”. Eu falei: “é?”; então eu fui para casa e arranjei [falando com bastante grave] “louvado seja o Senhor”, uma voz de profeta. Eu falei: “faz o favor de me arranjar uma barba...” [para o pessoal que trabalha] na maquiagem. A [equipe de] maquiagem me arranjou uma barba, eu disse: “uma barba de profeta...”; tem um fez [também conhecido por tarbush, é um pequeno chapéu de feltro ou pano comumente usado com um turbante pelos muçulmanos, embora na religião islâmica não haja rigor nenhum quanto ao seu uso] assim, na cabeça, de profeta. Cheguei na cenografia [e pedi]: “faz um cajado aí para mim?”. O cara fez um cajado e eu disse: “o cajado do profeta.”; e ele disse: “Louvado seja o senhor, eis o profeta.”;  e então, quando eu entrei, eu disse [fala novamente com voz grave]: “louvado seja o senhor”, [e] minha mãe [olhando para cima]: “Ah, um velho profeta.”... [risos gerais] Então eu falava: “louvado seja o senhor.”. E de repente eu comecei: “louvado seja o senhor...  Ai, essas montanhas, o meu calo como dói, eu estou com uma dor nos calos e esse leite de cabra das montanhas está me fazendo um mal danado para o intestino...” [risos]. Aí a minha mãe olhou e falou: “Ô, ô, ô, o que é isso?”. Quando eu cheguei em casa ela falou: “Você ficou louco?”; eu falei: “por que, mãe?”; [e ela]: “Que negócio aquele velho profeta fica falando de calo, fica  falando mal do leite de cabra!”. Eu falei: “mas por que, mãe, não tem?”; aí a partir disso ela começou a levantar os olhos para ver cada dado de humanidade que eu emprestava ao personagem – né? - e deixou de ser aquele estereótipo, assim. Então eu acho que na televisão é um pouco assim: você, enquanto ator, estabelece uma certa cumplicidade com o seu espectador. Então, hoje, depois de uma vida profissional muito longa – né? -, hoje, se eu faço assim [chacoalha o braço, como o personagem Sinhozinho Malta], se diz: “Ah, esse cara já vem com malandragem!”, - entendeu? – porque já esperam isso de mim.

Gabriel Priolli: Mas esse caráter brasileiro que você dá aos personagens - que você dá habilmente, quer dizer - você acha que isso é muito mais um trabalho de ator em cima do personagem que [ele] recebe ou um trabalho de personagem? Quer dizer, a questão é a seguinte: existem personagens na dramaturgia - especialmente a televisiva - que tenham esse sabor brasileiro já pronto, ou isso é adicionado num trabalho de ator, que você faz bem, e que outros talvez não façam tão bem?

Lima Duarte: Não, eu acho que é pessoal. Eu acho que não, eu acho que é uma coisa do homem – né? -, é uma coisa , é o meu desidério, né? Eu me propus isso – né? -: eu quero ser brasileiro, eu quero representar o brasileiro e interpretá-lo, porque acho que é uma missão bem grande, assim, entendeu?

Gabriel Priolli: [Interrompendo] A gente vê muito personagem aí que parece que não vive no Brasil – entendeu? - que não tem nada a ver com a nossa realidade, que não tem nada a ver...

Lima Duarte: Ah, não... é, as novelas... Tem novela que se passa na Suécia, na Noruega, sei lá o quê, né? [discretos risos gerais] Tem novela que é inteiramente pasteurizada mesmo, personagens compatíveis com a novela, pasteurizadíssimos – né? -, a maioria.

Rodolfo Gamberini: Lima, o Mário César Carvalho, da Folha de S. Paulo, ele quer te fazer a próxima pergunta.

Mário César Carvalho: Eu queria discutir contigo um pouquinho essa idéia de homem brasileiro, que você parece buscar de forma bastante incisiva nos seus personagens...

Lima Duarte: [Interrompendo] Obstinada.

Mário César Carvalho: Obstinada até. Você não acha essa visão do homem brasileiro, que, pelo menos nos seus personagens, ele parece viver num habitat que é o meio rural, não é um pouco romântica dentro da realidade industrial que o Brasil está caminhando? Por exemplo, eu não consigo imaginar os mecanismos complexos de política que existem hoje em dia, os grupos de lobby de pressão que existem na Constituinte e um Sinhozinho Malta ao mesmo tempo. Eu acho que são meio excludentes as coisas, ...

Lima Duarte: Eu acho que não, eu acho que não...

Mário César Carvalho: ... eu acho que é uma coisa de... não é idealizar um passado romântico e se situar nele, o Brasil não mudou tanto que o Sinhozinho Malta já é, sei lá, uma figura mitológica do passado que não tem muita importância política?  Discutir, sabe, o mecanismo político desses personagens?

Lima Duarte: Mas eu acho que ele é tão importante politicamente – nossa! - mesmo a nível de política formal, assim, ele dava tanto golpe – né? - ele, tal, ele nem se colocava...

Mário César Carvalho: [Interrompendo] O que você acha que o Sinhozinho Malta acrescenta politicamente à consciência das pessoas?

Lima Duarte: Bom, mas isso também... você está querendo o quê do Sinhozinho Malta? Está querendo uma política [...]. [risos discretos]

Mário César Carvalho: Você acha que muda alguma coisa?

Lima Duarte: Eu acho que não.

Mário César Carvalho: Você acha que não? As pessoas tomam como mero entretenimento e...?

Lima Duarte: Eu... Não, não: eu acho que isso não. Não será tanto assim, né? Ele fica por ali, ele fica latente nas pessoas, no povo, de um modo geral, e eu acho que aí você pode estender mais e falar no Roque Santeiro [novela da TV Globo, exibida entre 1985 e 1986], né?

Mário César Carvalho: Tá...

Lima Duarte: Foi um fenômeno que vai ficar – né? - , que de alguma maneira ficou.

Mário César Carvalho: Pois é...

[...]: Olha, um minutinho só...

[Sobreposição de vozes durante a fala de Lima Duarte]

Lima Duarte: Tinha sessenta milhões de espectadores, [e] isso é um dado ponderado...

Rodolfo Gamberini: [Durante a fala de Lima Duarte] Deixa o Lima, deixa o Lima falar...

Lima Duarte: ... [...] transformou hábitos, mudou... alterou costumes.

Mário César Carvalho: Você acha que muda hábitos?

Lima Duarte: Ah, sem dúvida, sem dúvida.

Mário César Carvalho: Tá...

[...]: [Interrompendo] Um minutinho só...

Lima Duarte: E o que eu pretendo mesmo, no duro, assim, é mostrar a beleza da gente brasileira, a gente que faz da emoção a sua matéria prima. Eu acho... Você deve ser um sujeito viajado, você conhece outros povos, é claro, né? Eu estava... Posso contar uma outra piada? Eu acho que as piadas são bastante ilustrativas...

Mário César Carvalho: Claro, sempre refresca.

Lima Duarte: São, né? Sempre refresca, que aqui está calor e é gostoso. Eu estava em Moscou, que eu fui acompanhando o filme Sargento Getúlio [filme baseado em livro de João Ubaldo Ribeiro] lá, né? É um outro personagem que eu pediria também que se atentasse para ele, não são todos tão levianos assim, né? O Sargento Getúlio...

Mário César Carvalho: [Interrompendo] Não, eu não acusei de leviano em hipótese alguma.

Lima Duarte: Não, é... Não, né? Pensou ele [apontando para um dos entrevistadores]... Mas o Sargento Getúlio não era um estereótipo, era um personagem muito profundo. Eu acho que o filme não resultou, não tinha dinheiro: claro, ninguém põe dinheiro num projeto daquele, era um filme miserável, passei 45 dias numa cidade que era sertão de Sergipe, sertão de Alagoas, e sertão da Bahia, e sem ter água para beber, fazendo aquele filme, mas por puro amor, por paixão, por compulsão por aquele personagem porque eu achava que ele era brasileiríssimo. Cara, ele era Sargento da Polícia Militar do estado de Sergipe em 1930. Ele pegava, prendia cangaceiro, e não tinha negócio de tirar impressão digital, não tinha; então ele cortava a cabeça e mandava a cabeça: “Vê se é esse?”. [Mário César ri] No museu Nina Rodrigues, da Bahia, a cabeça do Lampião [famoso cangaceiro nordestino das décadas de 1920-1930, que inspirou inúmeras histórias, músicas e filmes], da Maria Bonita [(1911-1938) tornou-se, em 1929, a mulher de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, conhecido como o "Rei do Cangaço", e a primeira mulher a participar de um grupo de cancaceiros], do Cravo Roxo [membro do grupo de cangaceiros liderado por Lampião], de todos eles, [suas cabeças] ficaram em exposição durante anos, decênios, e iam as criancinhas do colégio, iam lá para ver a cabeça, [e a professora pedia]: “Faz um trabalho sobre a cabeça do Lampião cortada.”, - né? - tinha isso [de] monte lá.

Mário César Carvalho: Que mórbido! [risos]

Lima Duarte: Então é uma tradição, né? Então... E ele era uma dessas feras, uma besta-fera. De repente um cara manda ele prender um sujeito que é político, ou seja, que é preso porque pensa, porque se coloca ideologicamente e tal. O que [é] que acontece? Ele enlouquece. É uma coisa fantástica. Começa o filme, ele olha para o sujeito e diz assim: “Você deve ter matado muita gente, seu  safado, roubou muito...”; e o sujeito diz: “Não, senhor, não matei ninguém; não roubo ninguém, eu sou um político.”. Ele olha e diz: “Tem ginásio, né? Tem ginásio, hein safado! Olha o que eu faço com quem tem ginásio!”, e “bummm” [como se fosse o som de uma pancada] dá um murro. E vai batendo no conhecimento, no que ele não alcança, de forma patética. Então eu achava esse personagem lindo, e só a paixão me fez chegar até o fim desse filme.

Mário César Carvalho: Com níveis dramatúrgicos e de interpretação diferentes, você não acha que o Renato Villar [personagem de Tarcísio Meira na novela Roda de Fogo (1987), de Lauro César Muniz e Marcílio Moraes, um ambicioso empresário], por exemplo, é tão brasileiro quanto o Sargento Getúlio ou o Sinhozinho Malta?

Lima Duarte: Não, eu não tenho visto a novela. Eu não...

Mário César Carvalho: Mas você não acha que é representativo de um...?

Lima Duarte: Sei lá, de um desses caras que ficam aí nos ministérios aí, dando golpe...

Mário César Carvalho: Você não acha que é tão brasileiro quanto o Sinhozinho Malta ou...?

Lima Duarte: Não, eu acho que esse aí tenta ser um [...]. Os brasileiros são mais do trem, - né? - do batedor de carteira, não é tão essa grandeza: isso aí que torna essa novela tão pasteurizada também, né?

Rodolfo Gamberini: [Interrompendo] Chico... Ô Lima...

Lima Duarte: Eu não vejo essa grandeza nesse personagem; nesse tipo de personagem.

Mario César Carvalho: É, eu não falando... eu não estou tratando tanto em termos de grandeza, estou tratando em termos de representatividade.

Lima Duarte: Será que é?

Mário César Carvalho: É a pergunta que eu estou fazendo.

Walter George Durst: Deixa eu dizer uma coisinha só.

Chico de Assis: Não pode ter, não pode ter um aparte?

Rodolfo Gamberini: Pode...

[Sobreposição de vozes]

Chico de Assis: Um aparte, é o seguinte...

Walter George Durst: O negócio é o seguinte...

Rodolfo Gamberini: Espera um pouquinho, espera um pouquinho, Chico, deixa o Walter...

[Sobreposição de vozes]

Chico de Assis: Perdão... Perdão... Ele colocou um ponto assim que é muito importante esclarecer...

Walter George Durst: Mas eu quero pegar no ponto dele...

Chico de Assis:  Se você não esclarecer, por favor, me deixe falar em seguida.

Walter George Durst: Eu vou dar a deixa para você.

Chico de Assis: Vamos jogar, vamos jogar... A primeira coisa é a seguinte: eu acho que a realidade romântica é a realidade industrial.

[...]: Mas a realidade industrial é a que está aí...

Chico de Assis: Um minutinho. Eu acho que o Lima Duarte representa na televisão um dos poucos atores que reduzem o homem brasileiro naquilo que ele tem de melhor ou de pior – entende? - mas dentro de uma verdade. Da verdade... Qual é a grande verdade do Brasil? É essa que nós estamos vivendo agora: é essa da moratória. Então o homem industrial, esse sim é romântico. O Renato [Villar], o personagem que faz o Tarcísio Meira na novela, aquele é um homem romântico; o Sinhozinho Malta eu encontrei várias vezes no meu caminho no Sul, no Centro e no Norte [fala, realizando a contagem dos lugares nos dedos]. O Zeca Diabo eu encontrei vários vezes no meu caminho. Agora, esses personagens eu nunca vi. Então o romântico industrial, ele não é só romântico na televisão, ele é romântico na realidade, vide Plano Cruzado.

[Sobreposição de vozes]

[...]: Me dá licença de um aparte. Eu acho que o Renato Villar... Eu acho que o Renato Villar...

Rodolfo Gamberini: [Interrompendo] Lima, você percebeu que  agora você está falando pouco. [risos] Vamos fazer ele falar... [risos]

Luiz Fernando Ramos: [...] que ele acabou de falar uma coisa que vai justamente... Você falou da sua experiência de teatro, e você fez o Teatro de Arena e eu lembro que eu, assistindo [a]o Roque Santeiro, [a]o Sinhozinho Malta, eu pensava assim: pôxa, olha só que engraçado, o Teatro de Arena, que aliás formou a maior parte desses atores que agora estão aqui na televisão...

Lima Duarte: A maior parte. É, existe uma linha de atores do Arena...

Luiz Fernando Ramos:... e que tinha uma estética nacional, popular - não é? - do nacional e do popular, está aqui – agora - na televisão, escrito pelo Dias Gomes [(1922-1999), dramaturgo e autor de novelas. Ver entrevista com Dias Gomes no Roda Viva], que era o autor, um dos autores do TBC [Teatro Brasileiro de Comédia] representado pelo Lima Duarte, que foi um dos atores do Arena etc e tal; e isso... não que... eu achava: pô, veja só como se deu um salto, quer dizer, na época, quando você fazia o Teatro de Arena, existia uma ideologia, a dificuldade de chegar ao público, a dificuldade de... uma das crises do Arena era não ter... quer dizer, era ter um público de classe média; então de repente o Arena estava realizado, quer dizer, inclusive com todo o distanciamento brechtiano [relativo a Bertolt Brecht] com a... quer dizer, com todos os requintes do melhor teatro, tá? Eu estou colocando isso porque a pergunta que eu quero fazer é a seguinte – então você concorda comigo - né? -...

Lima Duarte: Claro...

Luiz Fernando Ramos: ... nessa visão.

Lima Duarte: Bom, a sua visão do Teatro de Arena está um pouco... né?

Luiz Fernando Ramos: Não, não, tudo bem, o importante... nós não vamos discutir Teatro de Arena. O que eu queria discutir é outra coisa, só para a gente dar esse espaço. Quer dizer, com esse processo de a televisão ter ficado mais importante, as novelas ficaram melhores, os atores do Arena, os atores, os bons atores do teatro foram para a televisão, começaram... as novelas ficaram melhores – está certo? – [e] o teatro foi se enfraquecendo, quer dizer, não por culpa da televisão, talvez por culpa própria...

Lima Duarte: [Interrompendo] Foi se enfraquecendo, o teatro?

Luiz Fernando Ramos: De uma certa maneira, como... eu diria assim, a nível da sua própria linguagem, quer dizer, o teatro foi se distanciando de uma linguagem voltada para si próprio, quer dizer, onde ele buscava os seus próprios caminhos, e, de uma certa maneira, mesmo para efeitos comerciais, na medida [em] que aos produtores interessa montar uma peça com um ator da televisão, interessa montar um texto parecido com a novela, interessa montar pecinhas naturalistas, realistas, onde a realidade - como na novela – aparece; os diálogos são parecidos com a novela, está certo?

Lima Duarte: É mesmo?

Luiz Fernando Ramos: Então eu queria que você comentasse: você concorda com isso? Quer dizer, eu acho que se você pegar entre vinte das peças que estão em cartaz, a maioria delas tem a estética da televisão muito forte, a estética da novela  influenciando-as, nem que seja totalmente – né? -, ainda há alguma coisa de teatro. Como você disse no começo também que você tinha... não fazia muito teatro, que você preferia fazer televisão – né? - e você fez televisão muito bem...

Lima Duarte: Não, a minha sensibilidade funciona melhor na TV...

Luiz Fernando Ramos: Não, tudo bem. Eu queria que você comentasse um pouco esse processo: [se] você concorda que esse fenômeno aconteceu e como é que você - que foi um cara que começou no Arena - vê isso e vê o Roque Santeiro – não é o próprio Arena, quer dizer, para oitenta milhões?

Lima Duarte: Eu não sei... [Lima sorri] Ah, eu acho que não... Eu acho que o Arena era maior, assim, né?

Luiz Fernando Ramos: Será?

Lima Duarte: Era... O Roque Santeiro foi recusado pelo Arena. Eu me lembro [de] que no seminário de dramaturgia que teve lá, leu lá o Roque Santeiro e nós não fizemos: Boal, o Guarnieri [Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), ator e dramaturgo nascido na Itália, com obra marcada pela densidade dramática e pela temática ligada aos problemas sociopolíticos brasileiros - ver entrevista com Guarnieri no Roda Viva], eu...

Luiz Fernando Ramos: [Interrompendo] Mas passou.

Lima Duarte: Não, não.

[...]: Por quê? Por quê?

Lima Duarte: Nós não achamos que seria interessante.

Luiz Fernando Ramos: Se chamava O Bem Amado?

Lima Duarte:  É... Não, era o Roque Santeiro mesmo.

[...]: Era o Roque Santeiro mesmo.

Lima Duarte: Era. E aí a gente recusou: “não, não serve - para a gente fazer não dá.”. Não se inseria, não era o que nós queríamos dizer naquela ocasião, né? Mas eu acho que teve esses vinte anos negros, essa noite imensa que se abateu sobre todos nós, e tinha quatrocentas peças proibidas: quatrocentas é toda uma dramaturgia, é uma loucura quatrocentas peças, e ficaram engavetadas, né? Então não se podia fazer nada, falar nada. Eu atravessei essa década trabalhando no Teatro de Arena, e você pode imaginar, né? Toda noite ia alguém lá para matar a gente, apanhava mesmo e tal, era difícil ser ator naquela época porque você tinha que ser ator e ficar olhando de onde vinha tiro. No Teatro de Arena podia vir de todo lado, toda noite – né? – [risos gerais]: “opa!”, e olhava – “aquele ali tem cara de CCC [Comando de Caça aos Comunistas, organização anticomunista brasileira, composta por estudantes e intelectuais, que, durante o regime militar no Brasil, denunciavam ações e pessoas contrárias ao governo], aquele não tem, aquele é do Mackenzie...”,  então, aquelas coisas, né? Bem, a década de 1960 todinha foi vivida aí. E foi sumindo, foi sumindo. A gente aprendeu a mentir, a gente fazia Molière para falar do Médici [Emílio Garrastazu Médici foi presidente do Brasil de 1969 a 1974, período de forte repressão policial aos movimentos estudantil e sindical,  em que se deram muitos desaparecimentos políticos e práticas de tortura nos DOI-CODIs, órgãos governamentais de repressão política] ou do Ademar [(1901-1969), aviador, médico, empresário e político brasileiro. Concorreu à presidência da República do Brasil em 1955 e em 1960, ficando em terceiro lugar nas duas vezes], desses grandes papas da revolução aí. Então... Bom, de repente acabou a revolução, vamos partir para outra, e o que é que acontece? Você não resgata vinte anos em três, quatro dias, em um ano, dois, dez, vinte; é difícil! Então esses vinte anos – e não se produziu nada mesmo – [...] toda produção intelectual era praticamente vedada e proibida, a gente ficou mentindo - né? - fazendo Molière para estabelecer paralelo, fazendo musical do Zumbi [que estreou em 1965, contando a saga dos quilombolas, escravos fugitivos que se refugiavam nos quilombos e fala de uma revolução, vislumbrando a possibilidade da construção de uma realidade mais justa e mais humana], outro do Tiradentes [Arena conta Tiradentes (1967) enfoca a Inconfidência Mineira e a luta contra a opressão]: “mas tem sambinha, deixa fazer, vai, que toca só musiquinha, a gente fala do Brasil e tal.”. Agora, quando já se pode fazer coisas, todo mundo começou a fazer, o teatro ficou muito experimental. Você só tem teatro experimental no Brasil, né?

Luiz Fernando Ramos: [Interrompendo] Será?

Lima Duarte: Só conjunto... Mas todo mundo experimenta, todos os pequenos conjuntos, todos. E quando o sujeito experimenta, ele tem que ser axiomático, ele não pode ter dúvidas, não é verdade? Quando eu experimento, eu estou certo [de] que a verdade está do meu lado, e tudo o que foi feito antes é besteira, é mentira. Toda experiência, todo teatro vivido anteriormente não vale mais nada, começa comigo o teatro. Aí é uma proposta muito grande para esses garotos. Não sei, será que eu estou ficando velho demais também?

Luiz Fernando Ramos: Mas você acha [...]? Perdão, Lima, mas você não acha...? Se você pega no jornal, quer dizer, [se] você pegar hoje, em qualquer jornal, o número de peças, a maioria das peças são historinhas de casais, meio pornográficas...

Lima Duarte: Não.

Luiz Fernando Ramos: É sim, vamos ser sinceros...

Lima Duarte: Não é muito, não.

Luiz Fernando Ramos: ... experimental, tem duas ou três peças na cidade.

Lima Duarte: Esse é o teatro mais comercial. Isso é o teatro mais “comercialzão”.

Luiz Fernando Ramos: Sim, mas é [d]esse que eu estou falando.

Lima Duarte: O que tem de teatro alternativo por aí, né? Agora, precisa saber se eles são bons, se a verdade está do lado deles mesmo, né? Se a experiência que eles estão fazendo é válida ou não é.

[...]: [Interrompendo] Por exemplo, Lima.

Lima Duarte: Eu não sei, porque se você não tem parâmetros... Uma vez eu estava fazendo, meteram o pau em mim porque eu estava fazendo o Orgon [personagem da peça O Tartufo] do Molière muito mal, não sei que lá, e dizia o crítico: “Não é assim que se faz Molière.”. Ora, então tem um jeito de fazer Molière? Quem é que sabe se alguém sabe? Está codificado, está escrito? Se alguém sabe venha me dizer...

Dionísio de Azevedo: E por falar nisso...

Lima Duarte: ... porque esse público que está aqui não sabe, o público que veio me ver não sabe, é para ele que eu quero falar e é com ele que eu falo. Fui... me entendeu? Não...

Luiz Fernando Ramos: Sim, mas a...

Dionísio de Azevedo: Por falar nisso, Lima Duarte... Bom, me dá licença?

Lima Duarte: Eu falo muito mesmo.

Dionísio de Azevedo: Tem um espetáculo maravilhoso chamado Meu tio, o Iaueretê [espetáculo baseado na poética de Guimarães Rosa, estreou em São Paulo em agosto de 1986], fora isso aí...

Lima Duarte: Uma adaptação do meu amigo aí [Walter George Durst]. Eu adoro!

Dionísio de Azevedo: Fora isso aí, eu acho uma lástima você não ter feito Guimarães Rosa no teatro até hoje. Você fez Meu Sertão, não é?

Lima Duarte: Fizemos um monte de Guimarães Rosa na televisão, Dionísio.

Dionísio de Azevedo: Fizemos na televisão, na televisão, mas eu me refiro ao teatro. Você podia fazer, por exemplo, Corpo Fechado [conto de Sagarana (1946), de João Guimarães Rosa] no teatro.

Lima Duarte: Podia. Não, eu fiz um recital com o Rolando Boldrin [cantor, compositor e ator (1936-)] que chamava Ser tão... aliás atenção, eu adoro esse título, chamava: Ser tão sertão [espetáculo em que textos de Guimarães Rosa eram recitados por Lima Duarte, entremeados por canções de Rolando Boldrin].

Dionísio de Azevedo: Ser tão sertão, pois é, mas não era...

Lima Duarte: [Durante a fala de Dionísio de Azevedo] Ser tão sertão, tão sertão, que é a geografia [...]...

Dionísio de Azevedo: ... como mesmo você colocou, era uma coisa mais literária.

Lima Duarte: Não, é: eu dizia o texto e ele fazia umas músicas, lá.

Dionísio de Azevedo: Era muito bonito, eu vi. Agora eu acho que você devia fazer, porque poucos atores como você têm a percepção do Guimarães Rosa.

Lima Duarte: É, eu adoro ele.

Dionísio de Azevedo: Então, eu acho que você está em falta com o teatro não interpretando o Guimarães Rosa no teatro.

Lima Duarte: Pois é, inclusive cheguei a falar com o Durst: eu ia fazer o Meu tio, o Iaueretê também, porque é uma obra... é o ponto síntese mesmo do Guimarães Rosa, que começou como ficcionista e terminou como lingüista, né? Aquilo ali é mesmo uma síntese, ele inventa na palavra, ali é maravilhoso, né? Eu gostaria, um dia eu vou fazer, te prometo.

Luiz Fernando Ramos: Pode ser que vocês matem em duas palavras, mas você não falou ainda, se você tem alguma coisa a falar sobre isso, sobre essa influência da televisão sobre o teatro, quer dizer, se você acha que não existe [essa influência].

Lima Duarte: Bom, mas uma coisa comercial você não pode chamar de influência. É uma questão de ordem comercial querer montar uma pecinha aí... escolhe mais ou menos...

Luiz Fernando Ramos: Então não existe teatro?

[Sobreposição de vozes]

Dionísio de Azevedo: Tem muita gente fazendo teatro de forma completamente diferente aqui no Brasil. Então, esse esqueminha comercial, essa colocação que você faz é realmente muito rara, e é exceção; não é o teatro que se faz no Brasil.

Chico de Assis: Aliás, devia ter mais, até para dar mais emprego.

[...]: É, a maioria... pode ser que a gente não consiga...

Chico de Assis: [N]O tempo [em] que não tinha teatro, no tempo em que o teatro era todo sério, a gente dizia que havia falta... [que] faltava no Brasil um teatro comercial aonde ele pudesse se desenvolver e dar emprego para os atores, para os atores poderem viver do teatro e fazer também aquelas coisas boas que nós sabíamos tudo que custava e o quanto custava fazer. Então, hoje em dia nós temos um teatro de vanguarda, como diz o Lima, um teatro de cultura, e temos um teatro comercial. E é bom que seja assim.

Lima Duarte: Eu também acho que deve ser. Eu acho que isso está ocorrendo no Brasil. Agora, você não pode chamar isso de uma influência. Existe o teatro comercial - isso existe - como existe nas boates, nos shows, no Scala [casa de shows fundada em 1983 como a maior da América Latina, famosa por seus bailes de carnaval, com destaque para o baile GLS Gala Gay, que acontece todo ano], não sei o que lá... e tem o público para isso; e eu também não acho que seja mal isso.

Rodolfo Gamberini: Lima, o José Amâncio quer fazer...

Lima Duarte: [Interrompendo] Até na Rússia. A Rússia está lamentando que não tem um bom teatro comercial. Desculpe...

Rodolfo Gamberini: Você ia contar a piada da União Soviética.

Lima Duarte: Pois é, rapaz. Eu estive acompanhando o Sargento Getúlio, desculpe. É aquele negócio do brasileiro e tal... Eu estive acompanhando o Sargento Getúlio no festival de Moscou, dois anos atrás, passei lá um mês, e é uma coisa... a Rússia, assim, é uma coisa... então, a turma pergunta: "Como [é] que é a Rússia? Como é a Rússia?", então eu tenho várias historinhas que eu gosto delas para contar. Eu tinha um amigo lá, que era o meu intérprete, porque russo ninguém fala, então [esse amigo] andava comigo... sei lá se era da KGB [sigla de Komitet Gosudarstvenno Bezopasnosti (Comitê de Segurança do Estado). Criada em 1954, era a principal agência de inteligência e segurança da extinta União Soviética], eu sei que ele chamava Popov, o que é simpático e bebia mais do que eu, o que é muito simpático [risos]. E ele dizia assim: "A minha mulher é linda, parece uma ocidental.".

[Risos]

Lima Duarte: E eu falava: "você é um pequeno canalha; você é um calhorda. O que é isso? Olha estes valores aqui.". Mas ele dava... e a gente sempre conversava muito sobre isso. Fomos a Leningrado [nome da cidade federal russa de São Petesburgo entre 1924 e 1991], fomos ao L'ermitage [Museu Hermitage, um dos maiores museus de arte do mundo, localizado em São Petesburgo, na Rússia], que tem cinco Da Vinci. Cinco Da Vinci, rapaz! Você entrar num museu que tem cinco Da Vinci, para um mucufo como eu, é uma coisa! E eu não só limpei os pés como limpei a alma, a cabeça, os olhos; botei colírio, tudo... Cinco Da Vinci frente à frente, assim, essa máquina humana! Mas o L'ermitage, não sei se vocês conhecem, mas é muito bonito o prédio, muito bonito, uma coisa lá da dinastia Romanov, sei lá o quê, deles lá, mas é muito bonito e quem toma conta dessas coisas são as "babuscas", que são as velhinhas, as vovozinhas que tomam conta dos banheiros, dos mictórios, dos museus e tudo [o que é] coisa pública lá. E o sol incidia até sobre o quadro. Você sabe que o [museu do] Louvre [localizado em Paris e com um acervo extremamente rico]... eles fizeram um prédio em volta do Louvre e conservaram o prédio... mas fizeram outro em volta com temperatura de 16 graus para conservar a pintura, a pigmentação, aquela coisa. Então eu perguntei para uma babusca: “mas escuta uma coisa: o sol incidindo assim desse jeito, será que não estraga os quadros?”. Ela me disse assim: “É que o prédio é tão importante quanto o seu acervo.”. E eu achei legal aquilo. Esse sentimento ecológico é que é importante naquele povo, dos seus valores, da historicidade mesmo desse seu povo, achei muito bonito. Então, depois, no fim, conversando com o Popov, que é essa coisa de povo, que eu gosto de testar sempre, eu cheguei... eu ia me embora amanhã [no dia seguinte], nós ficamos trinta dias juntos e sempre vivendo grandes momentos de crise, muitos momentos, e Popov: "Você vai embora amanhã?". Falei: "vou.". [E Popov disse:] "Deixa este tênis aí para mim.".

[Risos]

Lima Duarte: Porque a tecnologia soviética não chega ao cotidiano, e duvidar dela é ledo engano, só um idiota que duvida da tecnologia soviética. Ela chega aos mísseis, aos troços aí, mas não chega ao tênis, ao relógio de pulso; é tudo muito feio. Então eu falei assim: "eu deixo o tênis, mas vê lá como fala!". Ah! Entre parênteses: ele falava português assim como eu estou falando [fluentemente] e conhecia muito mais do que eu, porque ele teve que estudar; eu aprendi português para comer - "Me dá comida..." -, namorar e tal. Ele não. Ele estudou. Então ele conhecia muito. Ele disse para mim: "Não, me deixa este tênis aí. Não está bom, não está correto, mas está ok.". Eu falei: "não, rapaz, não é o português, é o jeito.". E ele: "Ãh, jeito?". Aí eu falei: "opa, estamos no limiar de um momento definitivo."; aí, ele falou: "É, jeito?" [E eu respondi:] "é, jeito. Se você conhece tanto do Brasil, você deve saber que nós somos um povo muito ritualístico: então tem o ritual de quem pede e o ritual de quem dá. Cumpra a sua parte que eu cumpro a minha. Pede.". Ele disse: "Mas, como? Eu não sei como é.". Eu falei: "cara, você tem que chegar para mim e falar: 'Porra, será que dá para você deixar?'".

[Risos]

Lima Duarte: [E Popov disse:] "Ah, mas isso é uma herança católico-escravagista!". E aí entramos em crise definitivamente, e ele foi ficando cada vez mais russo e eu cada vez mais brasileiro, e ele disse: "Não, não. Devo me humilhar um pouquinho?". Eu falei: "não, não é isso; é que é o jeito.". [E Popov:] "Não, mas, do jeito que você falou, devo me humilhar. É uma herança escravagista.". E eu falei assim: "olha, rapaz, toma esta merda aqui.". [faz o gesto de tirar o tênis e jogar]

[Risos]

Lima Duarte: Tirei [meu par de tênis]. Joguei o tênis. E nós estávamos na Praça Vermelha [famosa praça de Moscou, capital russa] e ele: "Não anda descalço na Praça Vermelha! Não anda descalço!". [Eu disse:] "e eu vou lá no mausoléu do Lênin [(1870-1924), revolucionário, em 1917, e dirigente da União Soviética até sua morte], vou cuspir!". [Popov respondeu:] "Não! Isso eu não ouvi, isso eu não posso ouvir!". Então é assim. É legal você surpeender a alma do povo assim e mostrar também. Eu acho que é isso que eu penso de povo, mais ou menos, e da Rússia.

Rodolfo Gamberini: Lima, o Pedro Augusto [Costa], aliás, foi para quem você tinha prometido contar a piada... [você] contou e agora [ele] tem outra pergunta para fazer na rodada.

Lima Duarte: Espero que tenha valido a expectativa.

Pedro Costa: Eu fui ver a sua peça Bonifácio Bulhões...

Lima Duarte: [Interrompendo] Bilhões [peça de teatro encenada em 1976].

Pedro Costa: Bilhões? Não é Bulhões?

Lima Duarte: Bulhões é aquele [...] que também seria interessante [risos].

Pedro Costa: Eu estava conversando com o [Armando] Bogus, depois, e ele falou que vocês estavam fazendo a peça há mais de 12 anos, e tem uma história...

Lima Duarte: [Interrompendo] Isso aí é aquela coisa que ele falou: nós estamos fazendo a peça... nós fizemos a peça quando eu estava fazendo uma novela. Vamos ver as peças pelas novelas, né? Eu estava fazendo uma novela que chamava Pecado capital, que era uma novela de muito sucesso na ocasião, da Janete Clair [(1925-1983) teledramaturga brasileira, considerada mestre do gênero], Francisco Cuoco [(1933-), famoso ator brasileiro] e eu, com a Betty Faria [(1941-), atriz brasileira que atuou com papéis marcantes na televisão e no cinema]. Então o João Bittencourt [autor e diretor], que faz essas peças aí, chegou e falou: "Eu tenho uma peça pra você.". E eu disse: "que legal, vou fazer.". Não é que eu queira safar a onça, mas tenho história também para isso aí, para tudo eu tenho história. Eu tinha ensaiado durante três meses o Abajur lilás [(1969), peça cujo texto foi proibido em 1970 e liberado somente em 1975], do Plínio Marcos, e no dia da estréia ela foi proibida. Eu gravei 26 capítulos da novela Roque Santeiro; no dia da estréia ela foi proibida. Então - que fase! - eu falei: "nossa, vou perder o meu ano, não faço nada.". Um ano [perdido] na vida do profissional é duro. Tudo proibiram na hora. [Então decidi:] "agora eu vou fazer o que pintar.". Pintou a novela da Janete Clair. É isso aí. "Dá aqui.". Fiz essa. E qual é a peça? [Uma peça do] João Bittencourt. "Dá aqui.". Mesmo porque eu precisava trabalhar, precisava de dinheiro, tinha passado um ano duro - é difícil -, aí fui fazer uma novela da Janete e uma peça do João Bittencourt. E, felizmente, as duas fizeram muito sucesso: a novela fez muito sucesso e a peça [também] fez. Então, nós fomos contratados para ir a Portugal; fizemos a peça em Portugal e depois esquecemos. Eu me meti num projeto aí, o Bem Amado, fiquei cinco, seis anos fazendo o Bem Amado, a série... a novela e a série, e o Bogus foi fazer outras coisas. Quando nos encontramos no Roque Santeiro, conversando lá no camarim ali: "pô, podíamos dar um estirinho com essa pecinha.". "É mesmo. Vamos?" "vamos arrematar essa peça, vamos dar um estirinho aí, faturar um pouquinho.". E fizemos para viajar. Mas foi muito bem e aqui em São Paulo fizemos uma temporada de muito sucesso, tivemos cinqüenta mil espectadores.

Rodolfo Gamberini: Lima, eu queria pedir a sua licença e também a do Pedro Augusto [Costa]... [breve interrupção do áudio]

Lima Duarte: Aliás, vamos fazer no Rio de Janeiro, viu?

Rodolfo Gamberini: Já está fazendo o comercial.

Lima Duarte: Com certeza.

Rodolfo Gamberini: Eu queria pedir a sua licença para a gente fazer um intervalo. A gente continua com a entrevista logo em seguida.

Lima Duarte: Pode fazer.

Rodolfo Gamberini: Até já.

[intervalo]

Roldolfo Gamberini: Voltamos então com o Roda Viva, esta noite entrevistando o ator Lima Duarte. E quando eu pedi que fosse mostrado o intervalo, o Pedro Augusto Costa, jornalista do Caderno 2, do [jornal] O Estado de S.Paulo tinha feito uma pergunta, considerou que o Lima ainda não tinha respondido. Então, eu peço ao Pedro que repita. Você não tinha feito a pergunta? Então faça.

Pedro Costa: Você, com tantos afazeres, [trabalhos na] Rede Globo e outros afazeres aí, você não deixa o teatro, você continua ainda fazendo o Bonifácio Bulhões ainda, [corrigindo-se] Bilhões. [risos]

Lima Duarte: É, o Bonifácio... Agora eu já me envolvi tanto que está difícil parar. Eu gostaria. Eu ando meio cansado, tenho um restaurante também chamado Sátira. Então, eu gostaria de - sei lá - descansar um pouco. Eu estou cheio. Se bem que o Bonifácio não é uma peça acabada, é um roteiro. E eu pego e invento todo dia. Agora, um cara jornalista... Sabe o que eu estou falando agora? "Eu li dois artigos que saíram seus. Um saiu no Jornal do Brasil e chama..."... porque o cara, eu peço um dinheiro pra ele e ele não dá. "Eu não vou dar dinheiro pra você. Vagabundo!". Eu digo: "não, isso fica muito bem para um homem que disse o que o senhor disse nos artigos.". "E o que é que foi que eu disse?". "Eu li dois artigos seus antes de vir aqui falar com o senhor. Tem um artigo que saiu no Jornal do Brasil e que se chama Distribuição Injusta da Riqueza na América Latina. O outro saiu agora no Estadão e chama Moratória, 130 milhões de Caloteiros. [risos] Então, quer dizer, todo dia tem uma coisa nova lá. Eu não me encho muito.

[...]: E muita goiabada também.

Lima Duarte: Sim, já comi uns cinqüenta quilos de goiabada. [risos]

Rodolfo Gamberini: Lima, a próxima pergunta... eu passo a palavra para o Walter Jorge Durst.

Walter Jorge Durst: Lima, eu queria com você e tentar esclarecer uma coisa aqui que me pareceu um pouco importante, assim, que o Mário fez uma pergunta muito inteligente, colocou bem o dedo na ferida. Eu acho que isso aí devia ser bem esclarecido. Então me desculpe, é um pouco assim, é o seguinte: nós estamos falando assim de ator brasileiro e realmente - e todo nosso grande respeito por você exatamente parte disso - e de repente parece que nós estamos aqui com uma xenofobia. Então, eu queria dizer o seguinte, esclarecer para o Mário, da Folha Ilustrada [caderno da Folha de S.Paulo], e ver se você concorda comigo, ou terá muito mais coisa a acrescentar. Não é bem uma questão de ser brasileiro ou não brasileiro. Você é loiro, eu já fui loiro também, e também somos brasileiros. O Walter Foster é, tanto quanto eu, alemão. Nós dois somos quase alemães inteiros. Então... e todos nós somos brasileiros, e o Renato Vilar não é absolutamente um romântico e é tão brasileiro quanto o Malta. Agora, o Malta... nenhum dos dois é romântico. Isso aí que eu acho um absurdo mesmo. Nenhum. Absolutamente. Poxa, se o Renato Vilar, um sujeito esperto daquele, fosse romântico ou o coronel fosse um romântico, o Brasil seria diferente. Não tem nada de romantismo. São duas visões perfeitas. O que acontece aí - aí, falando do brasileiro para você, eu estou tentando enquadrar no seu devido lugar - é o seguinte: é que nós - eu, rato paulistano; você, não sei de onde vem, catarinense, qualquer coisa assim...

Mário César Carvalho: Interior de São Paulo.

Walter Jorge Durst: ...- o nosso lado tem tido muito mais oportunidade na televisão, onde o seu próprio jornal diz hoje, passando uma frase do [...] que é o maior... quer dizer, não existe nada comparável ao espaço que um ator amado pelo público tem na televisão, nem cantor de rock, não tem nada. O grande espaço, o maior do mundo quem tem é o ator de televisão, que é amado pelo público, o seu caso. Então, o que acontece, meu amigo, é só o seguinte: é que, por coisas que não são para a gente analisar aqui, acontece o seguinte, para cada vinte ou cinqüenta "Renatos Vilares", que aparece nesse espaço colossal, aparece um com a raiz dele, com o personagem do tipo [...]...

Lima Duarte: [Interrompendo] Você me permite uma coisa?

Walter Jorge Durst: Só um segundinho, só para terminar o meu raciocínio, porque eu sou gago e...

[Risos]

Lima Duarte: E eu sou delirante.

Walter Jorge Durst: Então, veja bem, aparece um só. Então, por isso é que nós gostamos tanto e é muito raro a raiz dele, o som dele, que ele puxa para nós, remete ao Brasil mesmo, aquele primeiro Brasil que, evidentemente, não é maior e nem desigual ao do Renato Vilar, ou ao meu, de alemão, ou ao teu. São todos brasileiros, mas é que o dele é raro. Eu insisto, o Raul Cortez [(1932-2006), ator brasileiro de vasto currículo] é um ator maravilhoso, grande ator, mas claro que é um maestro, claro que a figura dele, pode botar um diretor de banco, pode botar o que quiser. Não, mas botam também para fazer Augusto Matraga. Ou seja, para fazer um personagem onde ali está errado. Ali é o setor dele. Então, em resumo, tudo fica numa questão de preferências, não de um ser mais importante do que o outro. Mas de preferências e do que tem, da possibilidade. Eu vejo esse espaço do Lima tão raro na televisão, em qualquer lugar, embora estejamos no Brasil... e ele represente de certa maneira, pelo menos cronologicamente, a raiz... tão raro que eu me encanto por este espaço, eu acho então que esses dez atores realmente ditos brasileiros, Lima Duarte, Jofre Soares [(1918-1996), ator brasileiro de destaque, com atuações em mais de cem filmes], José Dumont [(1950-), ator brasileiro nascido na Paraíba, que fez Olímpico de Jesus no filme A hora da estrela (1985)], pouquíssimos, essa Marcélia Cartaxo [(1963-), atriz brasileira que fez o papel da nordestina Macabea no filme A hora da estrela]... são realmente... a forma como eles, como o Lima sabe usar esse espaço é que nos faz ter toda essa admiração por ele, sem esquecer... não entra nessa questão Tarcísio [Meira], tudo bem. Tarcísio, ótimo, não tem xenofobia. Então, de repente, me pareceu que nós estávamos aqui defendendo uma coisa antiga e babaca, num jornal tão bacana como o dele.

Lima Duarte: [Interrompendo] Eu penso assim: o coração do povo, se me permite a expressão, se você chegar ao coração do povo através dos passos de dança do Fred Astair [(1899-1987), ator e dançarino norte-americano que atuou em parceria com a atriz, dançarina e cantora Ginger Rogers] é uma coisa. Agora, você chegar ao coração do povo através de todos os seus defeitos, os seus vícios, a sua maneira de ser, a sua maneira de sentir e interpretar as coisas, eu acho que é mais próprio, mais pertinente e mais bonito, tem mais grandeza. Veja você o Sinhozinho Malta, que eu queria falar, o Sinhozinho Malta, vê se você não acha que isso não é romântico. Por exemplo, ele era um grande canalha, [tinha] cinqüenta mil cabeças de boi... Atravessada, roubava...

Walter Jorge Durst: Não romântico, canalha.

Lima Duarte: Martirizou a filha, estuporou a vida da filha, fez de uma menina basicamente boa sua amante, a mulher que ele queria, tirou ela da zona, a Porcina, tirou ela da zona e botou as roupas em cima dela, encheu ela de penduricalho, estabeleceu para ela uma psicologia também para ela ser a gueixa dele, tudo isso ele fez. Mas, se eu mostrar que um homem que faz tudo isso está aqui é uma coisa. Agora, se eu mostrar que esse homem está próximo de você, é até você, é igual a você, existe, não é romântico, e eu acho que é muito mais forte. Era isso que o Sinhozinho tinha. Ele tinha traços de grande humanidade. Por quê? Quem faz isso é gente, não é bicho, não é animal. E ele está perto de você, e você pode identificá-lo. Esse, em última instância, é o recado. E eu não acho que seja uma coisa romântica assim. Pode ser romântica de minha parte, mas não o personagem.

Mário César Carvalho: O que eu estava colocando para você não é nem o romantismo do personagem, seria da concepção.

Lima Duarte: Exato, exato.

Mário César Carvalho: A coisa de conceber o Brasil só rural, muito arcaico.

Lima Duarte: Eu não acho que tem essa visão. Eu não acho... e essa idéia que eu estou falando do Sinhozinho Malta não é uma coisa de um Brasil só rural, é um homem, pode ser qualquer um. A coisa do rural, eu insisto, eu sou o único ator brasileiro assim, de certa projeção, que tem formação rural.

Gabriel Priolli: Você fez personagem urbano.

Lima Duarte: E é mais difícil para mim. Não tem sido mais fácil, tem sido muito mais difícil. Eu tenho que vencer obstáculos muito mais terríveis.

Gabriel Priolli: Mas o Salviano Lisboa...

Lima Duarte: Que não tinha nada a ver.

Gabriel Priolli: ... também teve um sucesso comparável. Não tão grande.

Lima Duarte: Era muito para a ocasião, para a época. Ele era um capitão de indústria, uma espécie de Renato Vilar.

Rodolfo Gamberini: O José Amâncio quer falar?

Walter Forster: O Renato Vilar, na minha opinião, é o Sinhozinho Malta da avenida Paulista.

Lima Duarte: É, talvez.

Walter Forster: O comportamento dele [...]. É mais ou menos a mesma coisa.

Lima Duarte: Eu não tenho visto.

Walter Forster: Só que um está lá longe e outro está na avenida Paulista. Eles agem da mesma forma.

Lima Duarte: Aliás, o Lauro é um ator muito brasileiro.

Walter Forster: Tem relação íntima entre eles.

Mário César Carvalho: Só faltou criar uma fundação.

José Amâncio Pereira: A gente falou do Lima ator e eu queria mudar um pouco agora, [para] o Lima diretor. O Lima agora dirigiu algumas das principais novelas brasileiras. E eu dizia uma coisa durante o Roque Santeiro, eu gostava de falar: o Brasil dá Ibope [Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística; costuma-se dizer que "dá Ibope" o que tem boa popularidade], e me parece que poucas novelas deram tanto Ibope quanto Roque Santeiro. Eu acho que poucas ainda vão dar. Na sua visão de diretor agora, o que falta na televisão brasileira? O que falta de Brasil na televisão brasileira? O que você acha que poderia voltar a entusiasmar na televisão para você, agora, trabalhar atrás das câmeras e não na frente?

Lima Duarte: Falta isso que ele acha que tem demais: Brasil mesmo.

Mário César Carvalho: Eu não acho que tem demais. Eu estava perguntando apenas. Eu não emiti juízo de valor nenhum. Estava colocando em discussão se o personagem urbano e o industrial não seriam tão Brasil quanto o personagem rural, um coronel para mostrar isso para o povo.

Lima Duarte: Tem que mostrar isso aí também, eu acho que falta. Novela não pode mais se passar na Noruega como acontece, na Finlândia. Elas têm que ser brasileiras. Agora, ser brasileira não é uma questão também só de cenário, é de psicologia mesmo.

[...]: Aqui em São Paulo, por exemplo, 80% da população tem raízes urbanas, interioranas, que vêm do interior. Então, é muito grande esse processo, sem contar que 80% do país ainda não está ocupado culturalmente.

Chico de Assis: O mais importante disso tudo: se as pessoas não aprenderem a ver isso, não vão aprender a ver mais. A nossa história está demonstrando [que] este ano é o ano da maior safra da história do Brasil. Isso é a realidade rural. Você vai lá em Mato Grosso está todo mundo comprando carro com ágio. Você vai lá no interior, está todo mundo se aprontando, não sabe nem como escoar essa safra e está todo mundo preocupado - entende? - com os destinos industriais do Brasil. Quando eu falei que era romântico, eu estou falando, romântica é a realidade industrial do Brasil. A realidade rural do Brasil é aquela mais próxima de uma verdade que nós temos agora, com essa moratória, quando nós temos que nos reduzir, nos reduzirmos ao nível de realidade, que seja: somos um país produtor de alimentos.

Lima Duarte: Deixa eu te falar uma coisa assim. Eu tenho uma visão de ator também da questão cultural brasileira, e é engraçada - né? - uma visão de ator nessa questão aí, que é... por exemplo, eu acho que, quando o garoto está mascando chiclete, ele não está satisfazendo nenhum tipo de necessidade; ao contrário, ele está emitindo um dado cultural, ele está dizendo aos seus pares na sociedade: "Eu sou igual a você.", e é até gráfico o sinal que ele está emitindo [imita alguém mascando chiclete] e vai se identificando. Agora, consome aquela porcaria. Então, eu penso, ao contrário dos marxistas ortodoxos, que o econômico é que está cavaleiro do cultural e não o contrário, o cultural que está cavaleiro do econômico. Entendeu? Então, eu retificaria até o Pascal [confunde Blaise Pascal (1623-1662) com René Descartes (1596-1650), autor da frase "Penso, logo existo."]: penso, logo consumo; entendeu? E, ao emitir o dado cultural, o garoto que masca o chiclete está sendo uma vítima do imperialismo cultural, não é verdade? E aquilo tem gosto de pneu. Então, eu acho que o... não está estabelecendo nenhuma necessidade. Eu acho que o importante no Brasil, entre todos esses ministérios, deveria ser o da Cultura, que devia estar inclusive sobre o da agricultura e o da indústria, e tudo mais, e dizer [...]... Lembra no tempo do Médici, que tinha que vender soja, porque o Brasil precisava vender soja, então tentaram nos vender soja como uma grande panacéia, como uma grande coisa e não pegou, ninguém tomou conhecimento, porque ninguém acredita no leite. Podem vir os maiores cientistas do mundo dizer para o caboclo que o leite de soja é muito bom, mas ele não acredita, não sai da teta da vaca, como saía da avó dele, da mãe dele, como atavicamente ele ligou. Então, o cultural é que é o grande. E esse Ministério da Cultura é que devia ser o grande ministério brasileiro. Quando nomearam o Celso Furtado - aliás uma pessoa brilhante, não sei se um ministro tão brilhante quanto uma pessoa - eu pensei: é isso o que vai acontecer. Os outros vão dizer para ele: "Vamos dirigir a cultura brasileira de maneira que ela seja compatível com a sua gente, com seu povo. Vai plantar o que ele ama, o que ele acredita, o que ele quer, o que ele gosta.".

Rodolfo Gamberini: Lima, nessa sua resposta aí você já deixou implícito o comentário de que o Celso Furtado não está sendo tão bom ministro quanto ele é como pessoa? O que você acha?

Lima Duarte: Não sei. Eu esperava mais. Eu esperava mais. Eu esperava, assim, uma coisa com mais impacto. Eu esperava um grande ministério, um grande ministro, não uma sala numa coisa. Eu esperava um ministério que se espraiasse sobre todos nós. Puxa, é isso que eu esperava.

Rodolfo Gamberini: Isso é um defeito, na sua opinião? É uma coisa do Celso Furtado?

Lima Duarte: Eu acho que é dele, afinal de contas, ele é um homem de gabinete, um homem de gabinete, um homem que pensa, um professor. É duro estabelecer uma política educacional, cultural para o Brasil. É difícil.

Mário César Carvalho: Você acha que ele não tem as mãos no grande ministério? Porque, no fundo, o país atravessa uma crise econômica e não tem dinheiro para ser aplicado naquele ministério, quer dizer, é uma questão de prioridade, se estabelecer prioridade. Mas me parece que há uma questão econômica por trás também.

Lima Duarte: Sempre por trás tem uma idéia econômica.

Jéfferson Del Rios: O que ele não soube aproveitar, aquilo que não foi bem assim.

[Sobreposição de vozes]

Rodolfo Gamberini: Lima, o Jéfferson Del Rio é o próximo.

Lima Duarte: Mas essa idéia de cultura, espero que vocês tenham concordado comigo, que é uma coisa alucinante.

Jéfferson Del Rios: Lima, tem um tipo de ator, de artista, que ele se dá mal com a realidade, fora do mundo do teatro, do palco, da música, ele vive mal no cotidiano; ele mesmo admite isso. Rubens Correia, que eu acho extraordinário, recentemente aqui, deu uma entrevista, confessa que ele não... ele é desajeitado para viver...

Lima Duarte: O cotidiano incomoda.

Jéfferson Del Rios: São pessoas até meio estranhas e meio banais. É difícil tratar com elas fora do palco. Agora, com você não. Eu sinto você solo, plantadão, dentro e fora. Então, eu queria saber o que você faz fora daqui. O que o Lima Duarte faz aqui, na rua, na casa dele? [...]

[...]: É são-paulino.

Lima Duarte: Me visto na média. Me divirto na média. Como na média. Bebo na média. Namoro na média. Tudo...

Rodolfo Gamberini: Por que você não vê a novela? Porque você faz coisa mais importante ou porque você não gosta?

Lima Duarte: Bom, eu estou fazendo teatro agora. Normalmente eu fico fazendo teatro assim, mas eu não gosto.

Rodolfo Gamberini: Não gosta de novela?

Lima Duarte: Não gosto. Realmente elas são muito necrosadas demais, eu sei tudo porque eu conheço todos eles. Eu sei tudo como é que ele vai fazer e, na primeira fala, eu já sei para onde ele vai conduzir o personagem dele. E fico lá: "me surpreenda! Me surpreenda!". E eu quero que alguém me surpreenda.

Rodolfo Gamberini: Mas se aparecer um bom papel para você, para fazer na novela na Globo, um sucesso das oito horas da noite, você não vai fazer? Você vai fazer?

Lima Duarte: Bom, eu tenho um contrato com a Globo. Se eu vou fazer uma novela?

Rodolfo Gamberini: E essa contradição, como é que você administra isso?

Lima Duarte: Ah, bom, eles ficam me chamando.

Rodolfo Gamberini: Você faz uma coisa [de] que você não gosta? Como é que é isso?

Lima Duarte: Eles me chamam bastante.

Rodolfo Gamberini: Como você consegue fazer tão bem uma coisa que você não gosta de fazer?

Lima Duarte: Eles me chamam bastante lá.

Rodolfo Gamberini: Como é que você consegue fazer tão bem uma coisa que você não gosta?

Lima Duarte: Não, mas eu, primeiro, aprendo a gostar, para depois fazer bem.

Rodolfo Gamberini: Quer dizer, o ator...

Lima Duarte: Eu não gosto da novela veículo, entendeu? Da novela, do acontecimento. Dessas novelas que passam por aí eu não gosto. Porque não me surpreende - né? - aquela mesmice, assim. Eu gosto da televisão enquanto ela é documental. Eu gosto dos jornais. Mas quando vai na rua é que é gostoso, quando eles falam. Outro dia entrevistaram um tenente aí e perguntaram: "Para o que serve este lança-chamas?". Ele fala: "É para queimar material e pessoal.".

[Risos]

Lima Duarte: Grande espetáculo também esse triste ser humano, deputado [Conte Lopes] que matou os japoneses lá, essa triste pessoa. É um grande espetáculo ficar olhando ele assim. Dessas coisas eu gosto, do ser humano mesmo. E futebol, adoro.

Rodolfo Gamberini: Eu queria te conhecer melhor como pessoa. O triste espetáculo de ver esse coronel, que é o Conte Lopes [capitão Roberval Conte Lopes Lima, policial militar e deputado estadual], que é deputado do PDS, que foi lá e matou os dois japoneses [os estudantes do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), Eiji Ishisake e Pascoal Katsumi Ishii, que feriram um bebê a facadas numa tentativa de seqüestro em Mogi das Cruzes (SP)], o que você pensa quando vê esse homem?

Lima Duarte: Que ele é um pequeno animal. Disse que matou duzentos já. Como é que uma pessoa pode atirar no outro assim, seja por que razão for? Ele falou: "Atirei no pescoço de um e na cabeça do outro.". O Sinhozinho [Malta] também atirava por muito menos, por causa de uma criança de dois meses.

Rodolfo Gamberini: Lima, o Gabriel Priolli está na ordem.

Gabriel Priolli: Eu queria falar um pouquinho da questão artística. Aquela idéia... queria que você fizesse uma avaliação de como você vê a televisão do ponto de vista de diretor. E, especificamente, considerando a sua história, você dirigiu o Beto Rockfeller, que é uma novela considerada um momento de virada na história da telenovela brasileira.

Lima Duarte: Antes dirigi [a novela] O direito de nascer.

Gabriel Priolli: Quer dizer, que é considerada uma novela moderna, a primeira novela moderna brasileira. Eu queria saber se você se considera ex-pioneiro, um iniciador da novela moderna brasileira, um inovador, o grande inovador da linguagem da telenovela no Brasil, e como é que você avalia a linguagem televisiva, de modo geral, e, particularmente, a dramática.

Lima Duarte: Olha, "mar" comparando, "mar" comparando... O Beethoven, quando fazia a nona [sinfonia], ele não sabia que estava fazendo a nona. Se ele soubesse que estava fazendo a nona de Beethoven, ele não fazia, era muita responsabilidade. [risos] Então, nós estávamos fazendo aquela novelinha, porque o Cassiano [(1927-1993) radialista, profissional de televisão e autor de novelas. Comandou a TV Tupi e passou por outras emissoras de TV, até chegar à Globo, onde escreveu várias novelas de sucesso entre os anos 70 e início da década de 90]  mandou, porque estava na hora. Agora, reconheço que foi um momento que gerou aquela novela. A gente vinha de uma série de programas experimentais, que era Móbile, Poder Jovem, Colagem, que a gente fazia de madrugada, e eu tinha recém vindo do [Teatro] Arena também, e tinha mesmo uma coisa muito de cinema na cabeça, que o Durst, o Dionísio também, a gente transava muito essa coisa de cinema.

Gabriel Priolli: É verdade aquela história de que estava numa situação péssima na [TV] Tupi e qualquer coisa que fizesse... podia experimentar, tudo que o que fizesse valia?

[...]: Vale tudo.

Lima Duarte: Só no caos se cria, não é verdade? Tupi era isso. Tupi vivia o caos. Então, o Cassiano criou uma novela para o cunhado dele, que era o Tatá [Luis Gustavo (1940-), ator], e chamou o Bráulio [Pedroso], e falou: "Bráulio, escreve uma novela. E o [Antônio] Abumjanra também falou: "Me chama o Bráulio, porque o Bráulio é bom.". Então, o Bráulio estava precisando... ele, além dos problemas físicos, tinha sofrido um acidente... "Dá uma novelinha para ele escrever aí. Lima, esse cara está encostado.". Eu sempre fui meio "elefante branco", porque, por exemplo, me recuso a fazer novela, não quero fazer novela, e tem uma hora que eu devo ficar chato para as emissoras. "O que vamos fazer com esse troço aí? Põe no [programa] Som Brasil. Deixa ele lá no canto, lá. Então, Lima, dirige. Lima, dirige.". Eu falei: "dirijo.". E me pareceu gostosa a idéia de dirigir o Tatá, que é uma coisa que... eu gosto do Tatá, o Luis Gustavo, do jeito dele [de] fazer as coisas. Então, eu falava: "vamos aproveitar esse jeito dele, que tem o maior charme, que é encantador." Então, a idéia inicial da novela era boa, guardadas as devidas proporções no tempo. Era uma novela que se passava... a história de um homem que nasceu... Vocês conhecem a rua Teodoro Sampaio e a Augusta [ruas da cidade de São Paulo]; são paralelas, mas são definitivas de outra classe. Uma é da baixa classe média e a outra é da alta. Então, era a história de um homem que nasceu na Teodoro Sampaio, ou seja, na baixa classe média, e tenta fazer a vida na Augusta, da alta classe média, quando a Augusta era a Augusta. E era uma augusta rua. Então vamos fazer. Essa idéia eu achei legal e, no fim, tinha a incrível história de um bicão. O bicão ainda era [...]. O Tatá faz muito bem esse tipo de coisa, com extremo charme. Então eu falei: "poxa, Tatá, vamos fazer isso aí.". O cara falava assim: "Faltam cinco minutos ainda para o capítulo, eu falava: Tatá , fala do homem que foi para o foguete." Aí abria a câmera. "O cara foi para o foguete e eu sei qual era o combustível. O componente do combustível era o guaraná!". Aí eu ficava com o relógio assim e falava: "chega!", e encerrava o capítulo. [risos]

Pedro Augusto Costa: O direito de nascer você também dirigiu?

Lima Duarte: É, mas aquilo era novelão, novelão bruto.

Pedro Augusto Costa: Você foi convidado no mesmo processo?

Lima Duarte: Não, aí porque eu tinha que trabalhar mesmo. Eu não me lembro...

[...]: E você, na ultima novela...

Lima Duarte: Eu tinha feito antes uma novela chamada... Eu vi uma coisa estarrecedora nessa novela, chamada A gata [1964], eu fazia Monsieur Barrabal. É de uma extrema sutileza chamar o bandido de Barrabal, e ele bebia só no gargalo, escorria aquela groselha, que eu dizia que era vinho. Ele morava com outro mulato numa ilha e o mulato chamava-se Delacroix [personagem de Eduardo Abbas]. Sabe-se que as pessoas chamadas Delacroix não têm pai nem mãe, são filhos da cruz [em francês, de la croix quer dizer "da cruz"; lê-se "delacroá"]. Essas coisas de novela.

[Risos]

Lima Duarte: Então, sabe o que eu tinha? Sabe o que o personagem tinha? Era ex-proprietário de um navio negreiro. Vai ser bandido assim... [Risos] Então, eu andava com o chicote, passava perto dos negros e... [faz gesto de chicotear], sem quê nem pra quê, e saía chicoteando a negrada toda. Tinha muito negro na novela. E eu bebia, e o Delacroix [dizia]: "Você bebe muito, meu patrão.". "Eu quero me embriagar para agüentar esse monte de negros. Quando o navio ficar pronto eu vou buscar mais negro." e não sei o que lá. E era bravo toda vida, o Monsieur Barrabal. Um dia a novela começou a cair de audiência. Era patrocinada pela Anacol, Colgate, Colgate-Palmolive. Aí numa reunião, reunião de elenco, com todo mundo, veio um americano. O americano sentou assim - e eu raramente via um americano assim na frente, um americano, que coisa linda! - [e ele disse:] [Lima fala imitando o sotaque de um norte-americano] “A novela está indo mal. Está agora caindo a audiência e precisamos consertar.”. Eu falei: "vai sobrar para mim.". “Tenho aqui os dados, porque a novela vai caindo mal: mocinha muito canastrona.". Era uma atriz que só fez aquela novela - coitada -, nem vou falar o nome [Marisa Woodward]. Ela sumiu. "Tem muito preto na novela..." - terrível, né? - "...e o bandido é muito bandido, demais porcalhão.”. E como é que vamos consertar? “A mocinha morre e vem a irmã dela da França, é uma atriz melhor. [Rita Cléos] Dá uma epidemia na senzala e mata essa negrada toda aí...

[Risos]

Lima Duarte: ... e o mocinho vai para a França e volta com hábitos melhores. Um curso de francês melhora a ética, melhora a moral.”. E dito e feito!

Rodolfo Gamberini: [Interrompendo] Lima, voltando a coisa, rapidamente.

Lima Duarte: Mas eu tinha que participar dessas experiências todas. Eu nunca concluo tudo. Participar dessas experiências todas... aí depois me chamaram, depois dessa experiência tão, assim, deu certo... vai dirigir O direito de nascer. Eu escalei, dirigi, a bem da verdade, uns trinta capítulos primeiros, que são os piores: tem escala, escolhe cenário, botei Elisa Albuquerque, a Nathália Timberg [(1929-), renomada atriz brasileira], para fazer a irmã não sei o que lá, porque eu tinha feito no rádio também.

[...]: Mamãe Dolores?

Lima Duarte: Não, Nathália Timberg fez a irmã Teresa. Mamãe Dolores é uma moça que não fez carreira. E depois eu tive que sair para fazer uma outra novela, do meu querido amigo Walter Durst, chamada Gutierrito, lindissíma novela; ninguém tomou muito conhecimento, mas era muito bonita.

Walter Jorge Durst: Aquela era boa.

Lima Duarte: Depois dessas coisas todas pintou o Beto Rockfeller. Eu falei: "bom, está na hora de surpreender, né?". Aquele negócio que eu pedi para os meus companheiros que fazem novela: surpresa, surpresa!

Rodolfo Gamberini: Como é que era essa coisa da surpresa? Como é que você identificava o que era surpresa? Como é que você... ?

Lima Duarte: Romper com o estabelecido, com o sistema e com a ditadura do stablishment, do estabelecido. Por exemplo, quando eu fui trabalhar na Globo, eu tinha feito Beto Rockfeller e a Globo não se perdoa nunca não ter feito Beto Rockfeller, porque ela surgiu com o começo da Globo, ela é concomitante com a quebra da Tupi e o alvorecer da Rede Globo. E então me chamaram lá, e contrataram o Bráulio Pedroso, para a gente restabelecer um milagre, fazer outra vez um fenômeno, o que é um absurdo, isso não se repete, tem uma série de coisas que determinam isso: momento social, circunstâncias... Não dá, mas eu, idiota, embarquei nessa. Chegaram lá, veio aqui para fazer uma revolução aqui, eu falei: "opa!". Sem saber que tinha uma coisa chamada sistema Globo. E se você rompe com ele, ele desaba em cima de você, ele se nutre. É a vida dele.

Rodolfo Gamberini: No que consiste isso?

Lima Duarte: O sistema, o estabelecido, o certo, o herói, a mocinha, o tipo de enquadramento, o tipo de iluminação, o tipo de música, o tipo de maquiagem, tudo certinho.

Rodolfo Gamberini: Quer dizer, você não podia fazer o Beto Rockfeller?

Lima Duarte: Como? O sistema desabou em cima de mim. É, quando eu tentei fazer, eu falava para o Jardel [Jardel Filho (1927-1983)], grande ator, eu falava: "Jardel... "...

Rodolfo Gamberini: [Interrompendo] O bofe [1973, novela escrita por Bráulio Pedroso e Lauro César Muniz]?

Lima Duarte: É, O bofe. Você era um funileiro lá no Paraná, e vem para o Rio de Janeiro. Você está deslumbrado com isso aqui. Então olha assim... então, quando você conhece uma mulher... eu me lembro que ele dizia isso bem, é uma coisa que ele não entendeu, e era uma coisa legal, parecia uma boa idéia para ele conduzir bem o personagem. Eu dizia assim: "Jardel, você conhece bem essa mulher, se apaixona por ela, acha que ela pertence a uma categoria social superior à sua. Então, esse complexo de inferioridade o faz querer ser uma pessoa que não é você, é outra. Agora, como é que você quer fazer uma outra pessoa, para causar uma boa impressão? Que noção você tem de bom? De certo? De correto? Tem de, através de representações circenses... você é pobre... de representações circenses, de maus filmes. Então faz diferente. Então, quando você vai falar com ela, você fala assim: "Boa tarde, como vai a senhora? Eu gosto muito da senhora, tenho uma verdadeira paixão pela senhora.". Faz isso, porque eu acho que isso tem charme, você vai fazer bem, vai ficar bonito, porque você é uma pessoa bonita e querendo fazer um sujeito do bem, um sujeito bom, um sujeito nobre. Vai ficar muito interessante. Essa idéia que me parecia básica para conduzir a novela, ele não entendeu nunca. Então não passou. Ficou uma coisa canhestra. Então, eu tropecei nisso, em outra coisa, em outra coisa... e eu, que cheguei lá como fazedor de revoluções, o redentor, tinha dia que os diretores passavam por mim e faziam assim: “Ah, vai...”... [risos]

Chico de Assis: Um aparte, um pequeno aparte.

Rodolfo Gamberini: Deixa o Walter Forster... Você está inscrito em seguida, Chico.

Chico de Assis: Um pequeno aparte. Você falou agora da Globo. Quem levou você para a Globo foi o Boni [José Bonifácio de Oliviera], que você conheceu...

Lima Duarte: Ele leva todo mundo.

Chico de Assis: ... na TV Tupi, não é verdade?

Lima Duarte: Tira todo mundo. É ele que manda lá.

Chico de Assis: Você, antes de ser do Boni, você, antes de ser Sinhozinho do Boni, você é Sinhozinho Chateaubriand, e você foi talvez muito mais dele do que outro qualquer, porque o momento da sua vida, quando o Chateaubriand não podia mais falar, você foi a voz do Chateaubriand.

Lima Duarte: É, ele me pôs um apelido brilhante. Ele me chamava de Hismaster Voice, ou seja, a voz do dono. [risos]

Chico de Assis: Lima, essa experiência entre o Chateaubriand, a liberdade, aquela da Tupi, de criar Beto Rockfeller, e depois toda essa coisa do Boni, entre esses dois cidadãos Kane [referência ao personagem que deu nome ao filme Cidadão Kane (1941), primeiro longa metragem dirigido por Orson Welles. Charles Foster Kane era um menino pobre que se tornou um dos homens mais ricos do mundo], com qual você fica, assim, como o grande contribuidor?

Lima Duarte: Eu acho o Boni uma pessoa da maior importância, trabalhador incansável, um homem que conhece o seu metiê profundamente. Eu tenho pouquíssima relação pessoal com ele, assim, não chego até ele, mesmo porque não me dou bem com o poder. Eu não transo o poder, eu transo o delírio. É onde o poder, onde quer que ele se estabeleça, me incomoda. E ficou poderosa uma pessoa... Eu não digo que ele seja uma pessoa que ame o poder, mas ele é poderoso. Então, não tem muito... Eu acho que ele perdeu um pouco de humanidade assim, sei lá, não consigo imaginá-lo, sei lá, comendo sanduíche, essas coisas assim. Então, não tenho muito contato com ele, mas tive mais contato antes na Tupi, quando a gente trabalhava. Ele também foi produtor da Tupi, a gente era mais... Mas eu acho uma pessoa super competente e muito sincera assim... É, é. Não é, não é. Ele resolve as coisas com bastante eficiência mesmo. Agora, o Chateubriant era um delírio. Chateaubriand era uma loucura. Ele me chamou lá porque ele não falava e eu falava por ele. Ele teve aqueles derrames e ficou assim. Só Dostoievisk [Fiodor Dostoievisk (1821-1881), escritor russo, autor de Crime e castigo e O idiota, entre outros, escreveu com intensidade sobre a angústia humana] para descrever o Chateubriant também. Basta dizer que um dia a televisão estava no ar e ele chegou lá de tarde, assim, seis horas da tarde, e tinha um programa assim, desses de mulher; ele falou: "Pára, pára, pára! Liga em mim, põe a câmera em mim!.". Ele, um velhinho assim. Puseram a câmera nele, ele chegou e fez assim: "Esse aqui é o Miller [...] nas gordas tetas as quais eu acabei de mamar duzentos e cinqüenta contos para o museu. Até logo.". "Desliga, desliga!". E acabou o programa. Ele era uma pessoa assim. E ficou doente, mas tudo parou: pararam os olhos, parou a língua, parou tudo, tudo. E só funcionava o cérebro, que a gente via através dos olhos, dois olhinhos muito brilhantes, espertíssimos. Ele olhava para mim e a gente estabelecia uma certa cumplicidade, porque eu fui lá para ler, no primeiro dia, eu fui ler [...] e ele tinha uma máquina alemã com os elásticos assim, e o dedo caía ali na letra que ele queria ou na circunvizinhança, de maneira que a palavra saía caótica, e era um discurso enorme, com citações inclusive em russo, do embaixador [soviético] Andrei Fomim, que ele hasteou a bandeira soviética na Casa Amarela [residência com muitos jardins que pertenceu ao empresário Assis Chateaubriand, localizada no bairro paulistano de Jardim Europa]. Isso em 1954, no auge, há cinqüenta metros da residência do general comandante do segundo exército. Hasteou a bandeira da União Soviética para receber Andrei Formim, um velho louco, e eu fui lá ler as citações em russo: “pode falar?"; "Pode.”. Mas eu comecei a ler e não havia... e ele me xingou. Ele era um homem reduzido a três palavras que formam, compostas, um palavrão. “Vai para...”. E eu comecei a ler, e [ele] me xingou. E eu disse, eu falei: "o que o senhor está pensando que eu sou? Eu sou um ator, não estou aqui para ser o seu palhaço. Se eu tiver que ser o bobo do rei eu quero ser o rei dos bobos. Não é só para você. Vamos embora e tal.”. E ele: “Ba, ba, ba...”... Aí eu comecei a inventar um pouco o que eu entendia, e o que eu não entendia eu inventava. "O que de onde que eu sou? Eu sou é com Minas Gerais. Você é da Paraíba e eu sou de Minas Gerais." E comecei a fazer um diálogo. Eu mesmo falava e eu mesmo respondia. E ele adorou. Ele embarcou nessa. E a gente ficou grandes amigos. Então, eu lia os discursos dele. Eu lia os discursos e eu, por exemplo, falava com o ministro Sambaqui [Julio Furquim Sambaqui (1906-1982), foi o último ministro da Educação no governo João Goulart]. O Chateubriant estava aqui e eu falava olhando para ele, e o ministro estava aqui, e eu falava: "o Dr. Júlio Sambaqui acha que a política do Ministério da Educação tem que ser anuidade... ?". "Espera aí, ministro. Está dando qualquer coisa aqui, está dando interferência no aparelho aqui.". Porque o olho dele... [Lima faz um ruído com a boca] Não é assim? Mas para o outro o senhor falou assim: "Agora não é mais, ministro.". E ele era muito engraçado. Muito divertido mesmo. E foram... vivemos momentos muito divertidos com ele. Ele me deu a televisão um dia, eu não quis. "Dá a Tupi para ele!". "Eu não quero essa porcaria!". Quem quis se deu bem, viu?

Rodolfo Gamberini: O Walter Forster vai te fazer...

Walter Forster: Lima, depois de onze anos de Teatro de Arena, depois de vinte e tanto anos...

Lima Duarte: Só uma coisinha. Eu sou um falastrão, mas agora é rápido. Esses onze anos valem por 110, porque foram os melhores anos da humanidade. Eu entrei no Teatro de Arena em 1960 e saí em 1971, a década dos Beatles, dos beatniks [grupo de poetas estadunidenses que atuou principalmente na década de 1950 e início da de 1960], do Kerouac [autor do romance On the road ("Na estrada"), Jack Kerouac viu sua obra entrar para a história como uma das fundadoras do movimento beatnik, na década de 1970, dando origem à mítica beat generation (geração batida, que havia sobrevivido à guerra). Ao lado de escritores e poetas como Allen Ginsberg, William Burroughs e Neal Cassady, Kerouac tornou-se símbolo dessa geração constestadora que contribuiu para as importantes mudanças culturais inciadas na época], a década da revolução. O Brasil teve duas revoluções: a de 1964 e [a de] 1968. A década definitiva da história humana eu vivi dentro do Teatro de Arena.

Walter Forster: Essa observação até acrescenta alguma coisa à minha pergunta. Então, depois de 110 anos de Teatro de Arena e vinte e tantos anos de Tupi, depois de ter representado Molière, Dostoievisk, Sheaskspeare, Guimarães Rosa, como foi para você receber no Rio o prêmio, depois de tudo isso, o prêmio de ator revelação do ano?

Lima Duarte: Sabe o que aconteceu? O Sílvio Santos [(1935-) apresentador de televisão e empresário brasileiro, dono do Grupo Silvio Santos (que inclui inúmeros negócios, como o Baú da Felicidade e o Banco Panamericano) e do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT)] foi particularmente infeliz naquela premiação, naquele dia. A Regina Duarte [(1947-), uma das mais requisitadas atrizes da TV brasileira] ganhou o prêmio de melhor atriz, quando a melhor atriz tinha sido evidentemente a Eva Wilma [(1933-), famosa atriz brasileira]. E a Regina Duarte foi muito bonita, chegou e disse assim: "Eu agradeço esse prêmio, mas transfiro a Eva Wilma, que foi de fato a melhor atriz do ano.". O Sílvio balançou. Aí eles sorteavam um [carro] Mercedes [Mercedes Benz, marca alemã de automóveis e outros veículos, cujos carros se destacam pela alta qualidade e preços elevados], aquele negócio de sortear Mercedes entre dos premiados, eu nunca vi nenhum, participei de vários troféus. Aí sempre tinha um Mercedes, eu nunca vi, mas em todo caso disse que tinha um Mercedes para sortear entre os ganhadores. O Chico Anysio [(1931-) humorista, ator, escritor, compositor e pintor brasileiro. Veja entrevistas com Chico Anysio no Roda Viva] chegou para ele e disse: "Olha, eu tenho a gravação de um programa. Será que você pode fazer o meu sorteio antes?". "Não, não posso.". "Então você fica com o seu Mercedes que eu vou com o meu Mercedes para casa." E depois chegou para mim na hora de entregar o prêmio: “Olha, eu vou acabar com esse negócio de prêmio revelação...” - o Silvio Santos - “... o prêmio revelação, troféu revelação, porque não fica bem.”. E eu disse: "que pena. Eu queria ganhar de revelação infantil no ano que vem. Ou de revelação feminina.”. Mas é uma coisa que... o Rio de Janeiro é uma caixa de ressonância lá. O Caetano diz maravilhosamente bem: "O Rio é a capital cultural do Brasil, porque é a sede da Rede Globo.". Mas a sede do [banco] Bradesco é São Paulo. Então, eu poderia dizer também que o centro cultural do Brasil é São Paulo.

[...]: É a mesma fonte.

Rodolfo Gamberini: Luiz Fernando vai falar.

Luiz Fernando Ramos: A pergunta que eu ia fazer já foi meio respondida, porque tinha a ver com o prazer que você tinha quando você era ator no teatro de vanguarda da Tupi, e o prazer que você talvez tivesse em fazer novela na Globo. Aí você estava falando do padrão global que é contra a surpresa, é contra a invenção, ao delírio. Eu acredito que você deve encontrar... Aí eu reformulei a minha pergunta, porque aí pensei assim: será que na Globo, por todas essas injunções, não se faz nada com prazer? Você acha, por exemplo, Armação ilimitada [seriado brasileiro de grande sucesso exibido pela Rede Globo voltado entre 1985 e 1988, voltado para o público adolescente. Seus personagens principais eram Juba (Kadu Moliterno), Lula (André de Biasi), Zelda Scott (Andréa Beltrão) e Bacana (Jonas Torres)]... você gosta? Você conhece?

Lima Duarte: Eu acho muito técnico, é muito assim, não tem muito nada a ver.

Luiz Fernando Ramos: Você acha que não tem nada na Globo que seja feito com esse... ?

Lima Duarte: Eu não acho isso. Eu não sei. Eu não vejo tanto assim. Eu não vejo tanto a Globo também.

Luiz Fernando Ramos: Você tem prazer fazendo alguma coisa?

Lima Duarte: Eu tenho, mas a nível pessoal. A coisa do ator é uma coisa muito estranha. Às vezes fica até meio fascista, porque eu posso estar numa estrutura toda viciada, toda ruim, mas safar a minha onça. Eu posso executar bem o meu personagem, fazer até com paixão. Eu posso... eu, parafraseando Fernando Pessoa [(1888-1935) poeta e escritor português modernista, considerado um dos mais importantes do século XX], o ator é um fingidor, e às vezes finge tão perfeitamente que finge que é dor, a dor que deveras sente [a frase de Fernando Pessoa a que Lima se refere são os versos da primeira estrofe de seu poema Autopsicografia: "O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente]. Não é verdade? Eu estou aqui fingindo essa dor, mentindo esse amor, coisa e tal. E, na verdade, estou com tudo isso. Eu posso me refugiar dentro de mim mesmo ou dos meus personagens. Eu posso encontrar prazer e posso ser feliz, e tenho sido no Zeca Diabo, no Sinhozinho Malta, todos eles. Eu tenho sido o Zé Bigorna, tenho sido... Mas aí fica uma coisa que, diria, é um pouco fascista, porque não me importa a estrutura. Eu não sei o que está acontecendo, eu não sei qual é o resultado final, eu safei a minha onça e isso pode ocorrer. Então, como ator, é difícil para mim fazer esse tipo de análise. Se tem algum... alguém tem algum prazer fazendo alguma coisa. Eu acho que sim.

Luiz Fernando Ramos: Quer dizer, você acha que na Globo, por exemplo, dá para acontecer, a nível de desenvolvimento de linguagem na dramaturgia, na televisão, como aconteceu na Tupi com o teatro de vanguarda? Você acha que tem espaço para isso?

Lima Duarte: Nos poucos encontros que eu tive com o Boni, eu pedi isso a ele. Eu falei com ele no corredor: "Boni..."... No corredor. Eu trabalho lá há 17 anos, encontrei-me com ele umas três vezes. Em umas dessas vezes ele veio elogiar o meu trabalho, eu falei: "Boni, você precisa abrir um horário experimental para a gente, um horário de pesquisa, como a General Motors tem. Isso aqui é uma indústria, ok? É uma indústria, mas o produto final dessa indústria não é exatamente um sabão, é uma abstração, é sutileza, é graça, é beleza, é inteligência. Qual é o produto final de uma fábrica chamada televisão? Entendeu? É uma abstração. Então, você precisa... mas você precisa abrir campo para a gente pesquisar. Um programa às duas horas da manhã, às três horas, onde eu possa fazer o Meu tio, o Iaueretê, onde o Durst possa adaptar o Ibsen que ele quer, sei lá, a loucura que ele quer. Abre esse horário para a gente, para a gente pesquisar, e o que for aprovado põe à disposição do consumo, põe na novela das oito. Assim a gente rompe um pouco com o estabelecido, tira um pouco esse necrosado da novela.".

[...]: O que ele disse?

Lima Duarte: [Ele disse:] "Não, não tem espaço. Não tem espaço físico. A gente está fechado aqui, não tem horário, não tem lugar para vocês fazerem isso. Mas, assim que tiver novos estúdios, eu vou abrir horários e vou dar para vocês fazerem as bobagens que vocês quiserem. Quem sabe a gente faz alguma coisa.".

Luiz Fernando Ramos: [O programa] Armação [ilimitada] eu sei que é o orçamento mais caro da Globo hoje, e é um programa absolutamente experimental.

Lima Duarte: É experimental?

Luiz Fernando Ramos: Você pode não gostar, mas...

Lima Duarte: Não é que eu [...], não. Não é aí uma questão de gostar ou não gostar.

Luiz Fernando Ramos: Mas eu digo assim...

Lima Duarte: Não é experimental, porque ele só experimenta na forma. E isso não tem muita seriedade. Eu acho que experimentar...

Luiz Fernando Ramos: [Interrompendo] Tudo bem, mas tem alguma coisa de experimentação.

Lima Duarte: Qu é isso? Experimentação, os clipes estão aí, mil clipes. Passam clipes dia e noite. Os clipes são mais, experimentam mais.

Rodolfo Gamberini: Lima, você - todo mundo sabe - é um excelente ator e tal, e todo mundo conhece também o seu lado de contador de causos. O Marcos [...], que é o autor do nosso cenário aqui, conversou comigo e me contou uma história sua que é muito engraçada, e eu queria que você contasse, que é a história, quando vocês viajaram para Andradina e você falou que o poeta é fingidor. Você falou que o ator... você parafraseou Fernando Pessoa, que é fingido. Eu sei dessa história pelo Marcos, que você fez um discurso de saudação para o prefeito de Andradina, num almoço, tinha alguém que devia fazer um discurso e você fez o discurso. O que foi?

Lima Duarte: A primeira fez que foi um elenco profissional em Andradina fomos nós, no Teatro de Arena. A gente pegou um ônibus, eram 16 horas de viagem naquele tempo. Saímos daqui à noite, viajamos de ônibus a noite inteira, [os atores] Dina Sfat, Paulo José, Guarnieri, e chegamos lá eram seis horas da manhã, mais ou menos, e estava uma porção de gente com cartazinhos assim: "Andradina saúda o elenco do Arena.". E depois eu cheguei para eles e disse: "tão de manhã, o senhor veio com o cartaz?." "Eu trabalho no cemitério. O prefeito mandou eu vir.". [risos] Pegaram o coveiro e mandaram. O prefeito mandou ele lá com o cartazinho. Mas eu falei: "então nós já vamos logo embora e o senhor vai para casa descansar.". Ele falou: "Está bom, muito obrigado.". [risos] Aí chegou e foi correndo. Nós tínhamos sono, a noite foi terrível, viajando de ônibus, e chegou lá os coveiros com cartaz saudando o Arena. Aí veio o prefeito, o deputado da região, na hora do almoço, a gente louco para dormir, porque de noite tem o espetáculo. Antes tivemos que dar uma volta na cidade em carro aberto, para mostrar que nós estávamos lá mesmo, que não era mentira, e os caras falavam: "Vamos lá, para mostrar que vocês estão aí mesmo.". Então vamos lá. Então, nós fazíamos assim para o público, e o público... Aí chegou a hora do almoço, alguém tem que falar, aí o deputado fez a saudação lá, e [disse:] "Se alguns dos senhores quiser fazer uso da palavra...". Aí o Guarnieri olhou para mim, eu olhei para o Paulo José. Aí o Guarnieri disse assim: "O nosso companheiro Lima Duarte vai dirigir umas palavras de saudação à cidade de Andradina.". Eu levantei e fiz assim: "pelo muito que tenho de poeta, pelo muito que tenho de louco, devo dizer que Andradina é uma pérola na testa do sertão.". [Lima ri e bate palma] Foi um tal de... a macarronada...

Rodolfo Gamberini: E a história... ?

Lima Duarte: De tanto mal gosto assim...

Rodolfo Gamberini: No intervalo você mesmo contou a história de quando vocês chegaram a Pelotas com o Arena. Conta essa história que o telespectador tem que ficar sabendo.

Lima Duarte: O Arena tinha assim como básica... que viajava muito. Ele era andejo mesmo. Basta dizer que no último espetáculo o Teatro de Arena acabou no lugar onde acabam as coisas que sabem acabar. Acabou em Marselha [na França], o último espetáculo do teatro de Arena foi em Marselha. Nós viemos do festival de Nancy... Tínhamos trabalhado em Toulouse, Lyon. [Em] Marsellha nós fizemos o espetáculo e, quando o Boal estava aqui preso e muitos de nós não podíamos mais voltar ao Brasil, então representamos assim, e quando terminou o espetáculo em Marselha, o Antônio Pedro, Bibi Voguel, olharam um para a cara do outro: "E agora?". "Eu vou voltar para Toulouse. Tenho um amigo lá.". "Eu vou para Paris.". Eu falei: "ué, acabou, gente! Acabou Arena. Eu vou voltar para São Paulo, fazer uma novela do Geraldo Vietri.", que era A fábrica. Eu disse: "Nossa Senhora, pegar um avião de Marselha.". Bem, mas viajava muito. A gente desfraldou a bandeira do Arena por aí: Roma, Venezuela, Nova Iorque, Broadway.... Trabalhamos na Broadway com estréia e tudo, direito a [...] na platéia e tudo, e ele disse uma coisa que não fica de todo mal para nós. No Time [o jornal norte-americano The New York Times], em quatro colunas, saiu: "A company of fire passion, noble commitment and enormous skill" [“Uma companhia de flamante paixão, de nobre cometimento e de enorme habilidade profissional", em inglês] Nesse "enormous skill" eu me coloco, se vocês me permitem. Muito obrigado. [risos] Com fotografia e tudo. Então, a gente trabalhou no Brasil inteiro durante nove anos. Fizemos Zumbi [o espetáculo Arena conta Zumbi] por aí e tudo. Então, nós estávamos em Porto Alegre e vendemos um espetáculo para Pelotas. Também dos primeiros elencos que iam lá. O elenco foi na frente, eu estava de carro e fui de carro, cheguei atrás. Quando eu cheguei, tinha um carro com auto-falante em cima, anunciando: "Hoje, no Teatro Gonzaga, Colégio Gonzaga, o Arena contra Zumbi, o Arena contra Zumbi.". Eu cheguei e falei: "peraí! Não é contra Zumbi.". "Não? Contra quem?".

[Risos]

Rodolfo Gamberini: O Jéfferson Del Rios quer fazer uma pergunta.

Jéfferson Del Rios: Lima, você falou com tanta paixão... você falou do Teatro de Arena, que foi a década decisiva. Eu queria que você falasse mais desses dez anos, porque você contou algumas anedotas. É uma coisa tão forte. É evidente que você gosta mais do teatro do que da televisão. Pelo menos eu senti essa coisa, eu fiquei com essa impressão. Você se dá bem, tem uma espécie de coisa compulsiva com o instrumento que é a televisão, mas a paixão me parece que ficou com o teatro.

Lima Duarte: Aquele teatro, naquela ocasião, naquela época.

[...]: Paixão veio pelo Teatro de Arena.

Lima Duarte: De Arena. Na década de 1960.

[...]: Você tem uma história engraçada de censura?

Lima Duarte: Censura? Mil. Quem não tem história engraçada? A própria censura é uma história engraçada, senão trágica. Nesses programas experimentais, eu fazia um quadrinho com o [diretor] Fernando Faro, e um dia, sobre um texto do Saint Exupéry [Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), aviador e escritor francês cujo livro mais conhecido é O pequeno príncipe, clássico da literatura infanto-juvenil que se tornou o livro francês mais vendido no mundo e o terceiro mais traduzido. Desapareceu enquanto pilotava seu avião e seu corpo nunca foi encontrado], que é da Terra dos homens, um texto muito bonito sobre uma criança no colo com o mineiro, que ela fala isso aí amparado, protegido... pode ser Mozart [Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), compositor austríaco de prodigiosa habilidade desde criança, começou a compor aos 5 anos e se tornou referência na música clássica, além de importante influência de Beethoven] criança, tal, era um bonito texto, e para essa imagem, para ilustrar esse texto, que a gente pouco invertia o processo: não um texto para ilustrar uma imagem, mas, ao contrário, uma imagem para ilustrar um texto. A gente queria dizer o texto do Saint Exupéry, e, para arranjar a imagem, o Fernando Faro bolou uma lesma. Você sabe lesma? Se você jogar um pouquinho de sal, ela vira água. Mas antes é terrível o que acontece com ela. E é uma imagem fortíssima, uma coisa assim. A gente não tinha truque, a televisão era movida a carbureto naquele tempo, a querosene. Então tinha uma chapa de vidro assim, pôs a lesma assim e a câmera pegava por baixo, e uma mãozinha jogava o sal. E, enquanto ela se contorcia e se transformava em água, aquela coisa nojenta, eu dizia o texto de Saint Exupéry. E era exatamente isso. Aí a censura me chamou lá. O cara me chamou lá e disse: “O que você quis dizer com isso?". "O que eu disse. Só o que eu disse. Aliás, nem é meu, é de Saint Exupéry, Terra dos homens, tradução do Rubem Braga.". "A mim não me engana.". "Então, o que eu quis dizer? "A lesma é o povo. O sal é o poder.”.

[Risos]

Lima Duarte: Eu falei: "mas que idéia do cacete! Muito obrigado.". Aí eu comecei a rir. “Olha, o senhor respeita a autoridade.". "Deixa de ser idiota, eu vou ter uma idéia imbecil dessa?!”.

Chico de Assis: Eu quero ser intérprete, agora, de uma pergunta que é da equipe chefiada pelo Ditinho. Lima sempre teve muita intimidade com o pessoal da técnica, porque, não sei se você sabe, o Lima começou na parte técnica como operador de mesa lá na Rádio Difusora, Rádio Tupi. Então, os camera-men estão querendo perguntar para você através de mim três coisas.

Lima Duarte: Camera-man não tem direito de perguntar. Nunca vi camera-man perguntar.

Chico de Assis: Também nunca vi.

Lima Duarte: Camera–man "camera" [como conjugando o verbo "camerar"].

Chico de Assis: É, o Ditinho quer saber se você ainda pára nas marginais para assistir [a] jogo de futebol de time sem nome, com camisa e sem camisa, e ele quer saber também se você ficou rico trabalhando no teatro, na televisão, ou como? E pergunta se você está pagando café. Eu já disse para ele que é uma fábula esse negócio que contam do Lima, de que Lima é mão fechada, é mentira. Ele me vendeu um cachorro que custa vinte mil paus. O Zé Amancio aqui é testemunha. Em compensação, outro dia ele tirou da carteira... ele me mostrou inteiro e vivo os cem merréis que o pai dele deu para ele vir para São Paulo de Uberlândia.

[Risos]

Lima Duarte: Essa foi uma homenagem ao meu velho, não foi pão durice, rapaz! O que é isso?!

Chico de Assis: Então, o Ditinho quer saber, primeiro, se você ainda pára na marginal para assistir [a] jogo de graça. Segundo, se você ainda vai à Padaria Real, passa a noite toda e não bebe nada.

Lima Duarte: Deturpam, tudo, né? [risos]

Chico de Assis: Pode responder. É uma pergunta da equipe através de mim.

Lima Duarte: Eu comecei mesmo como operador de som, por isso que transo legal com eles aí, porque eu queria fazer rádio-teatro, mas não dava, porque sempre tinha esse negócio aí que eu tinha voz de sovaco.

[...]: Você já foi a voz do Manda-Chuva [gato líder de um bando, de tipo malandro e espertalhão, mas generoso e jovial, Manda-Chuva é um personagem do desenho animado A turma do Manda-Chuva, de Hanna Barbera, produzido em 1961 e muito famoso nos anos 1980].

Lima Duarte: Fui. Sou dublador também, ainda sou, do Wally Gator [personagem da trilogia Wally, Lippy & Touché, produzida por Hanna-Barbera em 1962, um  simpático jacaré que vive preso num zoológico mas sonha com a vida na selva, que o leva a inúmeras tentativas de fuga] também.

Rodolfo Gamberini: Imita um pouquinho, imita aí.

Lima Duarte: O Wally Gator: [Imitando o personagem] "Oh, [...], aí vou eu! Não volto mais à vida nesta prisão." O Manda-Chuva... O Dum Dum  [personagem da série de desenhos animados lançada por Hanna-Barbera em 1962, Dum Dum é um cachorro, fiel companheiro da valente tartaruga Touché] é que é legal. Eu sou o Dum Dum. [risos]: [Imitando o personagem] "Oh Touché, você é o maior herói do mundo!".

[Risos]

Lima Duarte: Eu estava morrendo de fome, rapaz, não tinha nada, nada. Então me arranjaram para dublar e eu fui dublar. Dublei. Esses caras passam até hoje, olha, até hoje! Meus netos já assistem! Os meus netos já assistem [a] isso e falam: "Vovô, você que é o Manda-Chuva?". "Sou.". E não me pagam nenhum tostão, rapaz. O direito autoral neste país é um faroeste mesmo. Eles não pagam um real.

[...]: Deixa ele responder, para ver se ele é tão pão-duro assim.

Lima Duarte: O Manda-Chuva fala assim: [Imitando o personagem] "Pô, Guarda Belo, cuidado! Precisamos sair! Batatiiiinha [nome de outro personagem do desenho animado]!".

[Risos]

Lima Duarte: Então, eu paro na marginal para assistir joguinho de várzea, porque eu gosto. Depois, eu gosto de tomar uma cachaça. E o que mais que eu faço? Vou à Padaria Real. Eu vou, porque é lá que está um pouco de mim mesmo, dos meus grandes amigos, dos que fizeram comigo a televisão que vocês estão assistindo. Fomos nós que, em 1950, estabelecemos todos os parâmetros ainda vigentes: Walter Durst, Dionísio de Azevedo, Walter Forster... Fomos nós que ali, pateticamente, fizemos essa televisão, que é essa máquina que nos sufoca a todos hoje. Mas a gente não pensava nisso naquele tempo. A gente fez bem intencionado, mas inclusive a nomenclatura - diretor de tevê, diretor de estúdio - fomos nós que estabelecemos naquele momento. Eu não posso me apartar dessas coisas.

[...]: Estou lembrando do Lau. O barbeiro.

Lima Duarte: Lau Barbeiro, grande amigo meu, e eu gostava de ficar o dia inteiro sentado na barbearia. Mas isso é uma coisa lá de Minas.

Rodolfo Gamberini: Lima, você agora há pouco disse que não gosta de poder, se afasta das pessoas poderosas. Quando você veio menino pobre para cá e você tinha que lutar muito pela sobrevivência, qual era o seu sonho na cidade grande? Era continuar pobre ou era enriquecer? O que você sonhava?

Lima Duarte: Comer no dia seguinte, né?

[Risos]

Rodolfo Gamberini: Você devia ter certamente algum sonho maior.

Lima Duarte: Eu cheguei aqui em São Paulo, foi pouco depois da guerra, eu cheguei com 16 anos, em 1946, e era um momento particular na história da humanidade. A gente acreditava que tinha mesmo conquistado a paz, que haveríamos de fazer um novo mundo, e mal sabíamos... e isso estava latente nas pessoas, mal sabíamos que no dia seguinte começou uma outra guerra e agora mais feroz ainda. A Guerra Fria mais terrível. Então, eu chego a São Paulo num momento... São Paulo tinha o que em 1946? [Tinha] 1,5 milhão habitantes. Era uma cidadezinha muito bonitinha, adorável. Tinha árvores lindas na avenida Paulista, e a cidade acabava na Consolação, ali no Hospital das Clínicas. O bonde fazia uma volta e voltava para o centro ali. E dali, do Hospital das Clínicas, até a Tupi - né, Walter? - era uma picada, a gente vinha a pé, assim, era uma picada, tinha árvores, era um bairro bonito, e o Chateaubriand já louco... tinha Portinari [referência aos quadros de Cândido Portinari] em um auditório de rádio, tinha [o quadro] Os retirantes, do Portinari à volta.

[...]: Cidade do rádio.

Lima Duarte: Cidade do rádio. Tinha... até me lembro que um dia foram pintar lá. Os pintores tiraram os quadros para pintar, botaram os quadros outra vez. Dez anos depois, o Chateubriant foi lá e teve um ataque. Estava tudo de cabeça para baixo.

[Risos]

Lima Duarte: Mas então eu cheguei nessa cidade assim, com 16 anos, vindo lá do interior, e, sabe, a minha mãe era atriz e eu também. O psicológico do ator que eu sou está aí, se formou com a minha mãe. Claro que eu via ela interpretar. Tem um lance até muito interessante: a minha mãe estava trabalhando em Bebedouro, uma cidadezinha no interior, naquele tempo ainda era bem pequenininha mesmo, e eu acompanhava a minha mãe, ficava na coxia, né? E ela estava trabalhando, e ela como toda... como toda [...] assim, tinha um grande domínio sobre o público. Ela estava fazendo Maria Cachucha [(1937)], de Joracy Camargo [(1898-1973), jornalista, cronista, professor e dramaturgo brasileiro]. Ela estava fazendo aquela peça e, de repente, o público começou a dispersar: conversa, levanta um, sai... Ela se perdeu um pouco, veio vindo, se encostou na coxia... E eu tinha o quê? [Tinha] 12 anos, e ela chegou e falou assim: "Vai ver o que está acontecendo, menino.". Eu era um sapo mesmo, um reles mortal, e ela era uma atriz. "Vai ver o que está acontecendo, menino.". Eu saí, dei a volta lá, tinha acabado a guerra. Tinha acabado a guerra. Eu cheguei [e disse:] "acabou a guerra!". Eu cheguei: "mãe, mãe!" - e ela trabalhando - "Acabou a guerra!". Ela fez assim, no meio da peça: "Ouviram do Ipiranga, às margens plácidas, de um povo heróico o brado retumbante..." [primeiros versos do hino nacional brasileiro]. E estabeleceu um dos momentos de teatro mais puros, bonitos e perfeitos que eu vi na minha vida, porque ela começou a declamar e a guerra não tinha acabado para ela, tinha acabado para todos na platéia. Então, ela aproveitou aquele momento com uma propriedade, com uma grandeza, ficou muito bonito. "De um povo heróico o brado..."... até beleza e dignidade, e tudo ela emprestou ao hino. "De um povo heróico o brado... e o sol da liberdade...", e o público começou a repetir com ela. Foi de uma beleza, rapaz. Esses momentos me trouxeram a São Paulo. Com eles eu tentei... tentava ser ator, mas não conseguia, tinha voz de sovaco. Fui ser operador de rádio e pequenino marginal, trabalhar nesses trabalhos de marginais. Mas a humanidade era melhor. E São Paulo era muito melhor.

Rodolfo Gamberini: Lima, infelizmente - este "infelizmente" é muito sincero - nós temos que terminar o programa aqui. Este programa está sendo gravado com uma certa antecedência. A nossa fita está acabando, não tem mais jeito de continuar conversando com você.

Lima Duarte: Eu falo tanto que sempre ouço isso: "A fita está no fim! A fita está no fim!" [Risos]

Rodolfo Gamberini: Hoje você não ouviu, mas eu sei que está. A gente tem que, infelizmente, terminar o Roda Viva aqui. Agradeço muito a todos vocês que participaram, e agradeço a você imensamente pela graça toda com que você respondeu a nossas perguntas. Muito obrigado, e o Roda Viva volta segunda-feira que vem, às 9h20 da noite. Até lá e obrigado.
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