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[programa ao vivo]
Jorge Escosteguy: Boa noite. Antes mesmo da realização do plebiscito de 21 de abril [plebiscito de 1993], a campanha sucessória à Presidência da República já está nas ruas, deflagrada por todos os candidatos mais visíveis. O presidente Itamar Franco, depois de um tiroteio verbal com esses candidatos, busca agora se não um clima de entendimento, pelo menos [um clima] menos hostil para que ele possa governar. No Roda Viva, que começa agora pela TV Cultura de São Paulo, nós vamos discutir a política brasileira e também diplomacia. No centro da roda está sentado o ministro das Relações Exteriores, Fernando Henrique Cardoso. Carioca, 61 anos, sociólogo, professor, foi aposentado compulsoriamente da USP pela ditadura militar em 1969. Fundou o Cebrap, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento; eleito suplente de senador em 78, assumiu o mandato em 83; foi reeleito pelo PMDB em 86. Fundador do PSDB, ocupou a liderança do partido entre 88 e 92. Interlocutor privilegiado de Itamar Franco durante o processo do impeachment [impeachment de Collor], acabou sendo convidado para ser seu ministro das Relações Exteriores. Numa das primeiras entrevistas que deu como ministro, Fernando Henrique disse: “Acabou o espetáculo, agora é a normalidade”, referindo-se ao governo Itamar e ao marketing que regia antes o governo Fernando Collor. Lembramos que o Roda Viva também é transmitido ao vivo pela TVE da Bahia, TVE do Ceará, TVE do Piauí, TVE de Porto Alegre, TVE do Espírito Santo, TVE do Mato Grosso do Sul e TV Minas Cultural e Educativa. Para entrevistar Fernando Henrique esta noite no Roda Viva, nós convidamos: Ricardo Setti, diretor editorial adjunto da editora Abril; Mac Margolis, correspondente da revista Newsweek no Brasil; Ricardo Noblat, diretor da sucursal da revista IstoÉ em Brasília; Pedro Cafardo, editor-chefe do jornal O Estado de S. Paulo; Heródoto Barbeiro, editor do programa Opinião Nacional da TV Cultura de São Paulo; Marcelo Beraba, secretário de redação da Folha de S.Paulo; Tonico Ferreira, repórter especial do Telejornal Brasil do SBT; e Milton Coelho da Graça, jornalista da TVE do Rio de Janeiro. Você que está em casa e quiser fazer perguntas por telefone, pode chamar 252-6525. Boa noite, ministro.
Fernando Henrique Cardoso: Boa noite.
Jorge Escosteguy: Como é que o senhor vê, como político, como sociólogo, esse tiroteio já desencadeado em torno da sucessão presidencial, que é óbvia, por todos esses candidatos mais notáveis ou mais considerados, e a tentativa agora do presidente Itamar Franco de buscar um clima de menos hostilidade ou de mais tranqüilidade para que ele possa governar? O senhor acha que é possível interromper esse processo dessa forma para que se tenha um plebiscito, se tenha reforma da Constituição e o governo possa governar com mais tranqüilidade?
Fernando Henrique Cardoso: Eu tenho a impressão de que o Brasil ficou um país excitado. Quando há uma semana calma, as pessoas ficam logo buscando alguma razão para que a semana seguinte não seja calma.
Jorge Escosteguy: Ficam excitadas com a calma?
Fernando Henrique Cardoso: Excitadas com a calma. Então, depois também de tantas transformações bruscas como aconteceu no ano passado, com o impeachment, com tantos zigue-zagues na nossa política, é compreensível isso. Agora, eu acho que em primeiro lugar é uma imprudência o lançamento de candidatura a não sei quanto, a vinte meses das eleições, não sei quanto tempo tem daqui até lá, até outubro, é muito cedo para isso. Isso é ruim. É ruim para o Brasil, porque fica discutindo o futuro, quando nós temos que resolver o presente, já está retardando. Aqui no Brasil nós estamos sempre postergando, não estamos enfrentando as questões importantes do cotidiano do povo, estamos pensamos sempre numa ilusão futura, e é ruim para os candidatos, porque ficam na chuva esse tempo todo. Acho que isso é uma coisa que não se sustenta.
Jorge Escosteguy: Mas parece que eles estão com vontade de se molhar mesmo. Estão na chuva para ver quem se molha primeiro.
Fernando Henrique Cardoso: Pois é, mas se olhassem a história eleitoral iam ver que não é assim, quer dizer, quem ganha não é necessariamente quem sai na frente. Até pelo contrário: a tradição tem sido outra, e acho que é uma precipitação. É verdade que eu não posso nem dizer que os candidatos estão fazendo isso, é a chamada opinião pública que está carente de ter alguma fixação em alguém. Então, eu acho que eu não poderia dizer...
Jorge Escosteguy: [interrompendo] Mas o senhor acha, por exemplo, que o governador [do Rio de Janeiro] Leonel Brizola, quando vai no programa do presidencialismo, por exemplo, ele vai ali apenas como político que vai defender o presidencialismo?
Fernando Henrique Cardoso: Não, ele vai para enraizar-se mais no povo. Isso eu não nego que seja assim. Acho que é uma precipitação, acho que é difícil manter esse clima de excitação até as eleições. Pode ser que se mantenha. Agora, há prejuízos, porque você mencionou alguns fatos muito importantes. Além do plebiscito, vamos ter uma revisão constitucional. Neste ano corrente, o que nós teríamos que fazer, do ponto de vista político, me parece, pensando nos problemas do Brasil, seria primeiro decidir o plebiscito – tudo bem, estamos às portas disso –, mas em seguida pensar que Brasil vai ser esse na revisão constitucional. É claro que isso não vai impedir que haja pretensões, que a pessoa se lance, mas tem que ser com certa moderação. E, por outro lado, nós temos problemas muito graves que estão aí no dia-a-dia. A inflação é uma questão que atormenta há décadas. Bom, isso tem que ser enfrentado. Por outro lado, a reorganização do aparelho estatal; a finança pública, que está num estado realmente lastimável; um país que se acostumou ao sofrimento; o emprego... Agora há sinais de recuperação da economia, aqui, ali, ainda são sinais que não são muito consistentes ainda, mas são de esperança. Mesmo assim nós temos uma população empobrecida, que vem se empobrecendo há muito tempo. Essas questões deviam ter precedentes sobre as demais. Então, isso provoca depois essa cisão enorme entre a expectativa do povo e a expectativa dos que fazem a política, porque fica desconectado. Os que fazem a política só discutem como é que se distribui o poder, num clube fechado, e o povo quer outras coisas: quer emprego, quer casa própria, quer melhor transporte, enfim.
Pedro Cafardo: Mas as críticas dos candidatos, ministro, são exatamente nesse sentido, dos problemas econômicos. Eles falam sobre a inflação, a questão da recessão, do desemprego.
Fernando Henrique Cardoso: Todo candidato fala disso, não é?
Pedro Cafardo: Alguns estão falando sobre isso, sim.
Fernando Henrique Cardoso: Todo candidato fala disso, é normal.
Pedro Cafardo: Pois é, mas qual é o mal de eles levantarem essas coisas? Eles têm que levantar sempre.
Fernando Henrique Cardoso: Essas coisas, tudo bem. Você levanta também, eu levanto, todo mundo levanta. Não é disso que se trata. O que se trata é: se levanta com propósito de realmente encaminhar ou se levanta simplesmente para marcar uma posição eleitoral...
Jorge Escosteguy: Como se dizia antigamente, com objetivo eleiçoeiro.
Fernando Henrique Cardoso: Eleiçoeiro, essa que é a diferença. Claro que todo mundo tem que se preocupar com essas questões.
Pedro Cafardo: Não acha também que o presidente se irritou demais, desnecessariamente? Ele não precisava ficar tão bravo; deixe as pessoas falarem.
Fernando Henrique Cardoso: Cada um tem um temperamento; você sabe, o tiroteio é forte, as pessoas também têm que se defender.
Ricardo Noblat: Ministro, eu proporia uma outra questão, aliás, um derivativo dessa questão. O senhor não acha que isso se deve pela fraqueza do governo, na medida em que nós temos um governo que foi interino ali até dezembro, em dezembro o presidente assumiu de fato com o afastamento do presidente Collor e, desde lá, nós tivemos três ministros da Fazenda, nós temos o ministro Eliseu Resende [engenheiro; foi ministro dos Transportes de 1979 a 1982 e ocupou postos de comando em empresas públicas desde então], já há mais de trinta dias no cargo, sem ter ainda apresentado alguma proposta mais concreta de combate à inflação, quer dizer, não é a falta de governo ou de aparência de governo que permite esse vazio?
Fernando Henrique Cardoso: Você usou uma expressão correta: “aparência de”, é simbólico.
Ricardo Noblat: “Aparência” aí foi mais generosidade minha, ministro.
Fernando Henrique Cardoso: Não, eu acho que é correto, é simbólico, por quê? Porque... na verdade, é até uma coisa muito curiosa. No passado todo mundo reclamava dos pacotes, agora todo mundo pede, sob outro nome, um pacote. Ora, eu acho que hoje o diagnóstico do Brasil está feito, e está feito por qualquer um de nós que se reúna, [que] vai dizer, com alguma diferençazinha, vai dizer o mesmo diagnóstico. Eu acho a inflação – que você mencionou – um problema sério, seríssimo. Bem, nós temos uma longa experiência de país com economia inflacionária. Por que essa inflação persiste? Bom, como eu não sou economista e nem você, vamos arriscar. Eu acho que, no fundo, essa inflação é o reflexo de uma grande desordem nacional, não é outra coisa. Não é porque a base monetária se expandiu ou porque o salário... todo mundo dizia que precisa controlar o orçamento, [mas] o orçamento é equilibrado, orçamento público; cortar gastos, [mas] gasto não tem mais, só nas estatais. No fundo, todo mundo sabe que você tem hoje uma situação no Brasil – que vem de muito tempo – de grande desordem. A dívida interna no Brasil é brutal, não em termos gerais - comparando com a Itália, com qualquer outro país, não é tão grande em proporção do PIB - mas ela é gerada no dia a dia, semana a semana, a famosa ciranda. De onde vem essa dívida? Bom, a externa nós sabemos, está negociada, falta um pouquinho para negociar. O que ainda falta são 44 bilhões de dólares para os bancos privados, e dentro de um mês ou dois está resolvido, tem carência, trinta anos de prazo. A [dívida] interna, não. De onde vem a dívida interna? O principal fator são os estados e municípios, que devem mais ou menos quarenta bilhões à União, quase a mesma coisa que o Brasil deve aos bancos estrangeiros. Depois você tem a dívida do setor energético, vinte bilhões; depois o FGTS; depois do Fundo de Habitação. Essas questões não se resolvem do dia para noite. O governo atual, o que fez? A questão da dívida dos estados e municípios, o Congresso aprovou uma lei disciplinando, impedindo que os bancos dos estados comprassem, ou que os governos emitissem títulos. Parou, freou, se reorganizou o setor energético, não é isso? Não há milagre nessa matéria, não há plano que salve. Você tem que fazer, leva um certo tempo. Enquanto nós não resolvermos essas questões, não há como você ter estavelmente uma inflação que caia, nem uma taxa de juros que se mantenha baixa, porque o governo tem que lançar títulos para poder financiar a rolagem da dívida. Essas são as questões do Brasil.
Milton Coelho da Graça: Mas, ministro, o senhor não acha que o governo devia apresentar pelo menos uma perspectiva de quando esses problemas vão ser... porque eu acho que há um pouco de susto no país, porque os problemas são todos esses que o senhor enumerou, mas nenhum ministro nem o próprio presidente da República até hoje vieram a público para dizer: olha, os problemas [são esses], como o senhor está anunciando aqui agora, a solução é essa e eu vou fazer isso em 1998, 1996...
Fernando Henrique Cardoso: Eu acho que o ministro Eliseu disse, e aí provocou uma certa reação. Eu acho até que ele tem uma política correta: é melhor o ministro da Fazenda não dizer muito, não dizer quase nada, porque senão se especula em torno. Eu acho – como não sou ministro da Fazenda, posso dizer –, eu acho que na verdade esses são os problemas, são os contenciosos do Brasil, não são de conjunturas, são mais profundos, é uma grande desordem que foi se fazendo no tempo. Deixe-me dar um elemento, já que ele me provocou como sociólogo, vou dar um elemento aqui adicional. Como o Brasil é um país que tem 26 estados e quase cinco mil municípios, cada um desses estados tem orçamento próprio, impostos próprios, tribunal de contas próprio, governo eleito. Os municípios também. Isso é uma confusão, não vou [usar] essa palavra, uma complexidade muito grande. Você não tem isso em muitos países, eu não conheço, aliás, nenhum outro que tenha tantos níveis político-administrativos. O ministro da Fazenda responde lá fora e perante à sociedade pelo conjunto, mas ele não manda no conjunto. A desordem que se produziu no Brasil foi em função dessa enorme, digamos, autonomia, que acabou sendo uma autonomia falsa, porque os estados não tinham condição efetivamente de bancar aquilo que estavam fazendo e despejaram em cima de Brasília. É um problema, portanto, mais complicado.
Milton Coelho da Graça: O senhor mesmo fez a seguinte declaração numa entrevista, aliás, otimista, muito interessante, uma entrevista que talvez esteja faltando de outros membros do governo. Vou literalmente ao que o senhor disse: “O Brasil tem condições de ser um país decente em vinte anos...”. O senhor deu um prazo que ninguém deu até agora. “...se a elite brasileira não for cega e entender de pagar impostos e investir”. O senhor mesmo colocou uma condicional, quer dizer, não adianta o governo fazer nada se... pelo que eu estou lendo, é isso?
Fernando Henrique Cardoso: É isso aí. Veja, por que eu disse isso, vinte anos e tal? Qualquer um de nós que conheça, muitos conhecem o que aconteceu na Espanha ou na França depois da guerra, viu que em vinte anos aquilo mudou, não é isso? Ou vocês pensam que a França era a prosperidade de hoje? Não era. Era uma França bastante empobrecida. A Espanha, nem se fala, a Espanha não foi por causa da guerra, ela até se beneficiou com a guerra, mas mudou em vinte anos. Um país como o Brasil pode... há pouco perguntavam a mim na televisão: “E o Brasil, o que o senhor acha do negócio do Primeiro Mundo?” Olha aqui, o Primeiro Mundo é aqui dentro, se você não tem Primeiro Mundo aqui dentro, não tem lá fora. O ministro do Exterior não pode fazer uma mágica boba: vou resolver que o Brasil vá ao Primeiro Mundo. Não vai. O que é o Primeiro Mundo? É você ter uma sociedade mais igualitária, em que todo mundo paga imposto, todos pagam, portanto, a taxa, a contribuição de cada um não precisa ser tão elevada, em que a elite não é simplesmente cega ao clamor da miséria, e em que você tem educação. Isso você faz em vinte anos, você tem que fazer.
Tonico Ferreira: Mas, ministro, o que nós estamos percebendo é que, compreendemos até as dificuldades que o governo enfrenta, mas isso dá uma idéia, a inflação há muito tempo é muito alta, há muito tempo, e isso dá uma certa idéia de que nós não podemos fazer nada, não iremos fazer nada e que as coisas vão ficar como estão...
Fernando Henrique Cardoso: Não é o que eu acho.
Tonico Ferreira: Não, mas a idéia, e é toda a sua argumentação, é nesse sentido.
Fernando Henrique Cardoso: Não, não é o que eu acho.
Tonico Ferreira: No sentido de que as coisas são muito difíceis, é difícil mudar, vinte anos. Agora, nós não podemos – o Brasil pode mudar em vinte anos –, mas não podemos ficar com uma inflação de 20%, 30% [ao mês] durante dois anos.
Fernando Henrique Cardoso: Não, eu não acho isso, não. Já que você tocou nesse ponto, eu vou repetir um argumento que eu tenho usado. Eu comecei minha vida universitária como assistente de história econômica da USP, e eu não sabia praticamente nada, eu tinha 20, 21 anos; comecei a ler, porque tinha que ler para poder dar aula, e um livro me impressionou muito, de um americano chamado Hamilton, que fala sobre história econômica. Ele era professor de história econômica, e ele tem um estudo sobre a inflação na Europa do século XVII. Na Europa no século XVII a inflação durou cem anos – não é para nós isso, não. Agora, o século XVII foi chamado de o século de ouro na Europa. Bom, eu não estou defendendo a inflação, eu estou dizendo que a inflação não é uma coisa, a inflação brasileira tem certas peculiaridades, primeiro que ela é antiga, e isso é ruim, é difícil combater. Segundo, que ela passou a ser uma inflação que permitiu, em certos momentos, o crescimento econômico. Terceiro, que para alguns é vantajosa. Quarto, que a inflação nossa hoje é a mais perversa de todas, por quê? Porque ela é estável ao nível...
Tonico Ferreira: [interrompendo] Mas é isso, ministro, essa atitude um pouco complacente, há uma atitude complacente...
Fernando Henrique Cardoso: Da sociedade.
Tonico Ferreira: E do governo também.
Fernando Henrique Cardoso: Ela é estável ao nível de 20%, 25% ao mês, há dois anos. Quando ela é estável, ela é previsível. Nós estamos discutindo hoje a inflação de maio, leiam os jornais, então as empresas estão ajustando os seus preços para maio. Quem é que perde com a inflação? O povo e o governo, não é isso?
Tonico Ferreira: O senhor sabe que a inflação enriquece os ricos e empobrece os pobres, e o IBGE está aí para...
Fernando Henrique Cardoso: É isso, a tragédia da inflação é essa; então, eu acho que nós devíamos combater profundamente a inflação, não só porque ela impede o crescimento, que ela desorganiza, [mas] porque neste momento, no ano passado todas as empresas multinacionais ganharam no Brasil, todas. Eu até tenho pedido aos representantes delas que venham falar comigo: por favor, informe aos seus governos que aqui houve uma crise, que nós temos inflação, mas informe que vocês ganharam, não é? Para explicar a coisa.
Jorge Escosteguy: Ministro, o Ricardo Setti tem uma pergunta para o senhor, depois o Heródoto.
Ricardo Setti: Ministro, de toda forma, isso tudo que o senhor está colocando são coisas razoáveis, mas há um fato da vida real que é o estouro da boiada da sucessão de 94, uma coisa já inexorável. Se os candidatos vão ficar mais na chuva, ou menos, realmente o fato é que eles estão saindo da toca. O que é possível fazer da parte do governo para evitar danos, para evitar, digamos, a chamada ingovernabilidade? O que se pode fazer?
Fernando Henrique Cardoso: Eu acho o seguinte: eu acho que o governo, tudo bem, você pode mostrar o país e pedir que os governadores... tudo isso está certo, agora o governo tem que seguir seu rumo. Eu acho que o governo tem sempre que seguir seu rumo, não tem que... os candidato têm que ter o rumo deles.
Ricardo Setti: Mas eu me refiro a o seguinte: na medida em que os candidatos vão saindo à luz do dia, as suas bases parlamentares vão se afastando do governo.
Fernando Henrique Cardoso: Mas até agora isso não aconteceu; por que nós vamos antecipar mais tragédia? Até agora não aconteceu isso, quer dizer, o governo conseguiu o que se dizia que era impossível, um certo tipo de reforma fiscal houve. O governo conseguiu passar essa lei que disciplina a relação das dívidas dos estados; fez o sistema energético, botou em ordem; e tudo com o Congresso funcionando. Então, por que nós vamos antecipar dificuldades que ainda não ocorreram? Eu acho que não, eu acho que eu sou otimista, na verdade, eu acho que com todas as dificuldades, se você tiver condição de falar claramente, dizer: “Olha, é isso”, você luta, você tem convicção, luta pela sua convicção, ganhou, perdeu, é democracia, temos o Congresso. Se o Congresso não apóia... mas por enquanto tem apoiado.
Ricardo Setti: Mas talvez não haja um deficit aí, ministro?
Marcelo Beraba: O ex-presidente Collor passou todos os projetos também, só ficou no final.
Fernando Henrique Cardoso: É, mas ele não caiu por causa disso.
Marcelo Beraba: Quer dizer, o Congresso não é a principal referência dessa governabilidade que ele está citando.
Fernando Henrique Cardoso: Não, mas o Congresso é um dado importante dessa governabilidade. Qual é o outro dado importante? Você não tem no Brasil hoje...
Marcelo Beraba: [interrompendo] A credibilidade dele.
Fernando Henrique Cardoso: Sim, mas do ponto de vista da sociedade, você não tem uma situação de greves, pelo contrário.
Marcelo Beraba: Não estamos tendo até esse momento, mas os indicadores é que começam...
Fernando Henrique Cardoso: Mas aí, para que prever tanta tragédia? Os indicadores econômicos que eu tenho lido, publicados por vocês, têm mostrado que houve recuperação. Outro dia eu estava lendo no seu jornal, no Estado, uma página inteira sobre recuperação, e no Jornal da Tarde também.
Pedro Cafardo: A recuperação é muito forte, em março foi muito forte, a indústria automobilística está puxando, setores de venda, de Páscoa, é claro isso.
Fernando Henrique Cardoso: A colheita vem boa, não é isso? Tem uma porção de dados positivos. Nós estamos realmente muito complacentes com a tragédia. Eu sei que tem, a tragédia que existe, real, que existe, não é essa, é realmente a distribuição de renda, é realmente a situação de vida do povão, aí sim. Aí sim nós temos que atuar mais.
Jorge Escosteguy: Ministro, o senhor falou duas vezes: “Por que antecipar dificuldades?”. E eu vou tentar antecipar uma. O senhor, como parlamentarista, acha que já está decidido o plebiscito?
Fernando Henrique Cardoso: Olhe a perguntinha dele [risos]. Voto, você só sabe no dia seguinte, quando apuram, até lá eu estou com o parlamentarismo e não abro.
Jorge Escosteguy: Mas como é que o senhor vê, vamos dizer assim, as tendências?
Fernando Henrique Cardoso: As pesquisas até hoje indicam isso, você não pode tapar o sol com a peneira, elas indicam isso. Pode haver virada? Pode, vamos lutar por isso. Agora, eu acho que a dificuldade maior na questão do presidencialismo é outra, é a seguinte: vamos supor que vença o presidencialismo, nós vamos ter a revisão constitucional. O regime atual nosso não é nem presidencialismo nem parlamentarista, é um congressualismo confuso, no qual o Congresso aumentou muito o seu poder para dizer não, para vetar, mas não aumentou a sua responsabilidade na decisão. Eu não acredito que, na reforma constitucional, o Congresso diminua seus poderes. Então, se por acaso houver um voto presidencialista, o que vai acontecer? Você vai ter realmente um impasse institucional, não necessariamente uma crise, mas uma dificuldade institucional, porque você não vai ter um Congresso disposto a realmente abrir mão dos seus poderes, nem no orçamento, nem na capacidade que tem de frear decisões do executivo, nem nada disso.
Milton Coelho da Graça: O senhor está prevendo medidas provisórias, então, na nova safra?
Fernando Henrique Cardoso: Se o presidente vier com muito ímpeto, como ele vai governar?
Pedro Cafardo: Aliás, ministro, sobre isso, tem uma coisa interessante: a emenda presidencialista, proposta pelos presidencialistas, prevê um primeiro-ministro, não prevê um primeiro-ministro?
Fernando Henrique Cardoso: Prevê um primeiro-ministro e, em certos momentos, discute até a possibilidade de voto de desconfiança [...]. Eu acho isso uma confusão sem tamanho.
Pedro Cafardo: Está previsto lá.
Fernando Henrique Cardoso: Eu sei, eu acho isso uma confusão sem tamanho, por quê? Porque havia a pressuposição de que a população seria mais favorável ao parlamentarismo...
Pedro Cafardo: Isso na época em que o parlamentarismo estava em alta nas pesquisas.
Fernando Henrique Cardoso: Era a pressuposição, então eu acho que, do ponto de vista institucional, nós vamos ter dificuldades aí se der o presidencialismo. Eu sou parlamentarista, e a razão principal pela qual eu me tornei parlamentarista, porque não era, é porque eu acho que nós precisamos de uma mudança mais radical no nosso sistema político.
Milton Coelho da Graça: Mesmo com o [deputado federal] Inocêncio [de Oliveira, presidente da Câmara dos Deputados entre 1993-1995] na cabeça?
Fernando Henrique Cardoso: Não tem importância, porque na verdade o Congresso sabe separar, sabe diferenciar. Eu acho o seguinte: se você não tiver um voto parlamentarista, não vai mudar nada. Não vai ter lei de partido nova, efetiva, você não vai ter sistema eleitoral diferente, a acomodação vai ser muito grande. Eu não sou doutrinário, nunca fui, eu não sou pessoa que se apaixona por coisas assim, doutrinas abstratas. Então, o problema é objetivo aqui no Brasil, não adianta comparar nem com a Espanha nem com os Estados Unidos, é aqui, na nossa situação, eu acho que um voto parlamentarista é um voto que leva à mudança.
Marcelo Beraba: Só uma coisa sobre o parlamentarismo. Como é que o senhor explica que tinha essa vantagem tão grande do parlamentarismo e, de repente, há essa virada? Em que falhou ou está falhando a frente parlamentarista na publicidade, o que está falhando?
Fernando Henrique Cardoso: Eu acho que é muito difícil você dizer que é a publicidade, porque a publicidade não faz mágica, não é? Em primeiro lugar, a idéia é muito complexa para ser posta nesses termos. Todo mundo sabe como é que nasceu essa idéia de plebiscito na Constituinte. Na verdade, essa matéria deveria ser matéria de referendum, eu escrevi isso há muitos anos, de referendum, não de plebiscito, por quê? Porque a complexidade do sistema político é de tal monta que você não pode transmitir e pedir uma decisão: sim ou não. Você vê o resultado dos últimos [...]: 52% do eleitorado diz que não sabe do que se trata.
Pedro Cafardo: Não sabe, até porque não foi definido pelas frentes; os próprios parlamentaristas não disseram como vai ser escolhido o primeiro-ministro.
Fernando Henrique Cardoso: Não, disseram sim. Está tudo dito...
Pedro Cafardo: Se ele é parlamentar ou não, se vai existir Senado, não está [dito], não.
Fernando Henrique Cardoso: Está dito lá, [sobre o] Senado talvez não, o resto está no compromisso da Frente e tentam transmitir na televisão, mas não basta, não basta. São idéias, são coisas muito abstratas, muito complexas.
Ricardo Setti: Ministro, não faltou presença dos líderes parlamentaristas na televisão? Quer dizer, agora que se tem mais ou menos a coisa definida, começaram a aparecer.
Fernando Henrique Cardoso: Quer minha opinião? Minha opinião é que sim.
Ricardo Setti: Pois é, porque ficou durante quase dois meses de campanha...
Pedro Cafardo: O senhor, por exemplo, não foi à televisão?
Fernando Henrique Cardoso: Eu fui, mas todo mundo vai, vai um pouquinho, então isso não fixa.
Pedro Cafardo: Não marca.
Fernando Henrique Cardoso: Mas não eu estou dizendo que seu fosse melhoraria...
Ricardo Setti: Porque a impressão que dá, ministro, é que nunca tanta gente de peso esteve do lado de uma idéia derrotada. Porque, veja bem, do [Luiz Inácio] Lula [da Silva] ao [Paulo] Maluf; do Jair Meneguelli ao [Luiz Antônio] Medeiros [ambos, líderes sindicais, mas de correntes opostas], todo mundo a favor do parlamentarismo, mas essa gente não foi à televisão; deixaram um ator da Globo e uma atriz falar e, no finzinho da campanha, começou a aparecer a fisionomia dos políticos.
Fernando Henrique Cardoso: Se você quiser saber minha opinião, o erro vem da legislação nossa lá, porque nós deveríamos ter feito uma legislação que levasse ao debate e não à propaganda. O Brasil se acostumou a fazer propaganda, e tem muita gente muito competente, comunicólogos muito competentes, mas aí é um problema complicadíssimo. Uma coisa é você vender emoção de um candidato, outra coisa é uma idéia, e aqui se trata de uma idéia, não se trata de um candidato.
[...]: Emoção de candidato já é discutível.
Fernando Henrique Cardoso: Já é discutível. Como é que você faz um comício pelo presidencialismo ou pelo parlamentarismo? Eu já fui a comício pelo parlamentarismo. É um pouco uma coisa desengonçada, é desengonçada, porque não provoca esse tipo de emoção. Eu acho que houve um erro de apreciação nosso.
Heródoto Barbeiro: Vou fazer uma pergunta agora para o ministro das Relações Exteriores.
Fernand Henrique Cardoso: Vamos lá, eu estava com saudades disso [risos].
Heródoto Barbeiro: Ministro, inicialmente o senhor falou da inflação de cem anos do século XVII, mas ela foi uma inflação de prosperidade na Europa, não é verdade? Outra coisa que eu gostaria de colocar é o seguinte: em relação ainda à situação do Brasil, eu não sei se o senhor viu a capa da revista IstoÉ que mostra o mapa do continente latino-americano com todo mundo na prosperidade e o Brasil afundando.
Fernando Henrique Cardoso: Não é verdade isso, não é?
Heródoto Barbeiro: Pois é, mas só para eu completar minha pergunta, o senhor disse outro dia, inclusive aqui na própria TV Cultura, aqui no programa Opinião Nacional...
Fernando Henrique Cardoso: Isso não vale, você me pergunta lá, agora me pega aqui [risos].
Heródoto Barbeiro: Exatamente, o senhor disse que nós não estamos mais naquela época do alinhamento automático aos Estados Unidos. Então, minha pergunta é a seguinte: o senhor já sabe quem é o novo embaixador dos Estados Unidos no Brasil? É verdade que ele não vai ter a mesma importância, o mesmo status do atual embaixador? E que esse novo embaixador seria um brasilianista, um embaixador que não teria a importância que o governo Clinton aparentemente pretende dar para o Brasil?
Fernando Henrique Cardoso: Eu vi isso no jornal e não tenho nenhuma informação sobre isso. Se for a pessoa referida no jornal, é um homem eminente nos Estados Unidos. Provavelmente... eu não quero fazer nenhum juízo de valor sobre o embaixador, o que não me corresponde, mas quando veio para cá [em 1989] o embaixador [Richard H.] Melton, que foi um embaixador competente, correto, ninguém conhecia. Então, eu acho que essa é o tipo da avaliação subjetiva. Eu li no jornal, se se trata... – não sei se é verdade, não sei quem vai ser o embaixador –, o embaixador que tinha sido designado para cá, que era o Watson, hoje é secretário de Estado assistente para Assuntos Latino-Americanos. Ele tinha sido designado pelo governo anterior, não chegou a tomar posse e passou a uma função melhor. Viveu na Bahia muitos anos, tem muito conhecimento do Brasil, é secretário de Estado adjunto. Eu acho que os Estados Unidos não enviariam para o Brasil um embaixador sem competência, porque seria um erro deles, para eles próprios. O nome mencionado no jornal é um nome muito respeitado, não tenho nada a opor.
Marcelo Beraba: Mas, pegando uma carona, qual é o prestigio do país hoje?
Fernando Henrique Cardoso: Como é que se mede o prestígio de um país? Por muitas dimensões; uma delas, na valorização do mundo de hoje, é a democracia, outra é o respeito aos direitos humanos, outra é a capacidade de governar, a questão de desenvolvimento econômico. O Brasil tem dimensões contraditórias nisso e pouco conhecidas. Nós não temos, na verdade, no Brasil, uma política consistente de imagem. Imagem, nós estávamos falando sobre a campanha, mas é a mesma coisa sobre o país: você não pode inventar uma imagem. Não pode inventar porque, no dia seguinte, vem um fato e esse fato destrói a imagem. Nós temos alguns fatos aqui que são muito perturbadores de uma imagem positiva: matança de criança de rua, o que vai dizer o ministro lá fora? Vai dizer que é contra, ou vai mentir [e] vai dizer que não há isso? Tem que dizer que é contra. Agora, isso é uma imagem negativa? É negativa.
Mac Margolis: [Lá fora] fala-se muito sobre isso?
Fernando Henrique Cardoso: Certamente. Eu estive em Londres recentemente; aliás, eu pedi para conversar com o pessoal da Anistia Internacional e com grupos que discutem meninos de ruas. Estive na Câmara dos Comuns, na Câmara dos Lordes, levantaram essa questão. Ora, o que o ministro pode fazer senão dizer a verdade? Isso é um fato que não ajuda, é uma dimensão negativa. Por outro lado, nós não temos talvez valorizado suficientemente o que há de positivo. O fato de nós termos conseguido essa alteração política tão grande dentro da democracia [refere-se ao impeachment de Collor], com manifestações de massa, sem violência, é um fato positivo que deve ser ressaltado. Hoje o Brasil mudou muito quanto a certas políticas; por exemplo, na questão ecológica, que no passado era uma dor de cabeça permanente para o Brasil, hoje não é. Conseguimos recolocar a posição. É a mesma coisa no que diz respeito às questões da energia nuclear, corrida armamentista, são questões que o Brasil disciplinou. Na verdade, a gente tem que ver tudo isso com um pouco de calma. Hoje, nos Estados Unidos, se você for ver a imprensa, a América Latina o que é? Haiti e Cuba. Cuba até menos, [é mais] Haiti e um pouco o México, é claro, que é vizinho ali. Haiti, por quê? Porque o Haiti é vizinho, porque tem uma situação trágica e ameaça a imigração para lá. Então, o Haiti preocupa mais do que o Brasil. Isso não me preocupa, porque isso significa simplesmente que não está havendo nenhum problema aqui no Brasil que chame a atenção. Isso também não é uma coisa particular para com o Brasil. Veja, agora mesmo em Los Angeles, a questão do massacre lá de policiais, de negros, aquela coisa toda, o mundo todo julgou, pela imagem dos Estados Unidos, como um país terrível, o que também não é verdadeiro [em 1992, a absolvição de quatro policiais brancos que haviam espancado Rodney King, um afro-americano, provocou uma onda de distúrbios raciais nos Estados Unidos]. Os Estados Unidos não podiam ser resumidos a Los Angeles, mas é normal que no mundo moderno a comunicação se faça por fatos marcantes. Quando o Brasil tem fatos marcantes negativos, não há o que fazer. Agora, quando tem positivos, aí nós podemos ressaltar, até mesmo o [piloto brasileiro] Ayrton Senna [1960-1994] ganhando a corrida ajuda.
Milton Coelho da Graça: Mas, ministro, o senhor falou muito da desigualdade de renda como um fator preponderante da crise brasileira, e quando falou de dívida externa, o senhor passou ali, botou seus paninhos quentes dizendo que está tudo sob controle, está tudo muito bem etc. E o senhor sabe que a dívida externa é um dos fatores da nossa inflação também e, ao mesmo tempo, está chegando aqui sexta-feira um conhecido analista da situação brasileira e de outros países, que é o Jeffrey Sachs, e ele já disse que o Brasil só tem que fazer duas coisas para resolver sua crise: tem que resolver a questão da desigualdade de renda e tem de resolver a questão da dívida externa com uma moratória unilateral. Por que o senhor diverge do Sachs assim, concorda numa coisa e diverge na outra?
Jorge Escosteguy: Ministro, por favor. Essa pergunta sobre a moratória da dívida é feita também pelo telespectador Jonas de Oliveira, aqui de São Paulo.
Fernando Henrique Cardoso: Veja, o Sachs [Jeffrey Sachs, economista estadunidense. Foi assessor econômico da Bolívia em meados dos anos 1980] tem essa idéia, ele lidou com a Bolívia por algum tempo e também com a Rússia.
Milton Coelho da Graça: E são as mesmas idéias do [..] e do [..], dois grandes banqueiros.
Fernando Henrique Cardoso: Eu vou dizer uma coisa: eu não gosto muito desse tipo de diagnóstico de alguém que vem de pára-quedas e [diz]: é assim. Eu acho isso um pouco precipitado, eu acho que, do ponto de vista científico, as pessoas deviam ser mais humildes. Eu fui à Rússia em abril do ano passado juntamente com alguns sociólogos e economistas, o [sociólogo francês] Alain Touraine, [o sociólogo espanhol] Manuel Castells e dois economistas americanos. E fomos lá, era [o governo de Boris] Yeltsin [presidente da Rússia entre 1991-1999], era o [primeiro-ministro Yegor] Gaidar, e passamos três ou quatro dias fechados lá naquelas casas que tem em Moscou, antigas datchas dos notáveis de lá. E eles queriam que nós fizéssemos uma apreciação sobre a situação russa. Bom, é uma coisa muito delicada. Fizemos uma apreciação dizendo: olha, [para] isso aqui nós não podemos dar receitas, e isso contrastava justamente com alguns economistas americanos que estavam dando receitas lá: “Tem que fazer isso, tem que fazer aquilo, economia de mercado, fecha não sei o quê”. Eu acho que tem que ser mais humilde nessas coisas. Como é que eu vou dizer o que é que a Rússia deve fazer? Sei lá, isso é um processo histórico complicado, tem gente na Rússia que sabe daquilo; nós podemos ver um pouco de longe, podemos dar opinião, mesma coisa do Sachs. Ele é um homem muito inteligente, uma vez conversei com ele sobre a dívida brasileira, em Washington, quando eu fui pelo Senado para discutir a dívida. Agora, essas idéias são idéias que não têm base de apoio no real. Como é que faz a moratória hoje, em que o economistas absolutamente...?
Milton Coelho da Graça: [interrompendo] Não sei, o senhor que é ministro...
Fernando Henrique Cardoso: Pois é, mas ele que está opinando assim, isso é área econômica. O que eu posso dizer é como eu faço as relações [internacionais] depois que fizerem a moratória [risos]. Mas a moratória hoje, [em um período] em que o Brasil é um país que está se inserindo na economia internacional, em que você não tem ninguém pensando nesses termos, o que você faz? Uma vez o presidente Sarney decretou a moratória; eu era líder do PMDB no Senado. Eu fui de manhã tomar café com ele, juntamente com o líder do governo, que era o Carlos Santana. Ele me disse: “Vamos decretar a moratória”. Está bom, vão decretar, você está convencido disso, tal? “Estou convencido”. Conversei... Por que decretou a moratória? Porque nós já tínhamos quebrado, as reservas estavam lá embaixo, não tinha jeito. Hoje o Brasil tem de 20 bilhões a 25 bilhões de dólares de reserva. A moratória hoje não é uma coisa...
Milton Coelho da Graça: [interrompendo] Mas os entendidos dizem que essa hora que é a hora da moratória, é a hora que tem reserva, não a hora que está quebrado.
Fernando Henrique Cardoso: Mas quem fez isso?
Milton Coelho da Graça: Mas eu digo os entendidos, os economistas dizem que essa que é a hora boa.
Fernando Henrique Cardoso: Nenhum país fez isso. Depois, a pergunta sobre o peso da dívida externa. Bom, melhor seria não ter esse peso, obviamente. Melhor seria não ter esse peso, porque dívida é sempre desagradável. O que eu disse é outra coisa: é que essa dívida hoje é da ordem de 110, 115 bilhões de dólares. O Brasil tem um produto entre 400 e 450 bilhões de dólares, portanto é uma dívida, do ponto de vista econômico, moderada para o peso do Produto [Interno Bruto, PIB]. A dificuldade das dívidas, como para a dívida privada também, é quando ela é cobrada imediatamente e com taxa de juros alta, aí você não agüenta. Qual é a negociação que está sendo feita? É ganhar prazo, ganhar prazo de carência e baixar a taxa de juros. Hoje a taxa de juros internacional é de 4,5%, essa é a média dos juros, [mas] chegou a 21%. Ela nos sufocou quando chegou a 21%. Era melhor não ter, mas você tem a dívida, vamos tratar de pagá-la em condições razoáveis. Como eu disse aqui, 44 bilhões são para bancos privados, o resto não, o resto é para bancos como o BID, Banco Mundial, com taxa de juros pequena e longo prazo, ou dívidas de governo, de Eximbanks [bancos de fomento à exportação e importação], que se chama, do Clube de Paris. Então, realmente é mais fácil lidar com a dívida externa hoje do que com a interna.
Ricardo Noblat: Ministro, o senhor se sentiria mais à vontade na cadeira do ministro da Fazenda ou não?
Fernando Henrique Cardoso: Você acha que alguém pode se sentir à vontade nessa cadeira? [risos]
Ricardo Noblat: Mas pelo menos o senhor se sentiria mais confortável ou não?
Milton Coelho da Graça: E na de presidente como candidato do PSDB?
Ricardo Noblat: Digo isso porque se especulou recentemente uma possível reforma do ministério, e o senhor poderia ter ido para o Ministério da Fazenda. Volta-se a especular que pode, com essa sucessão presidencial...
Fernando Henrique Cardoso: Imagine o que a [revista] IstoÉ diria no dia seguinte [risos].
Pedro Cafardo: Mas o senhor uma vez foi convidado para ser ministro. Conte essa história.
Fernando Henrique Cardoso: Não, isso é conversa, isso é coisa da imprensa.
Ricardo Noblat: Mas, ministro, fala-se agora, o deputado Roberto Freire mesmo defende que, com a vitória previsível do presidencialismo, possa ocorrer uma rearticulação de forças políticas, de apoio à base parlamentar do governo, que possa ser modificada, e isso implique talvez numa reforma ministerial. O senhor acha que isso pode ocorrer? Ou senhor vê isso...
Fernando Henrique Cardoso: Pode, pode ocorrer. Muita gente tem perguntado muito isso; naturalmente eu converso com o presidente da República, [que] foi meu colega no Senado, eu gosto dele, é um homem que eu respeito, um homem que procura acertar e tudo mais. Nunca me falou desse assunto, realmente nunca me falou desse assunto de que haveria uma reforma de ministério, talvez porque seja eu um dos degolados [risos]. Mas, de qualquer maneira, nunca conversou nesse sentido. É obvio [que] se a base congressual mudar, é claro que as reformas têm que vir, porque isso aí é da lógica da política. Eu não creio que haja um plano na cabeça do presidente, mas ele vai ter que reagir à situação política. Então, se isso acontecer, essa mudança em função mesmo das candidaturas, é possível que isso tenha efeito sobre a própria composição do governo.
Ricardo Noblat: Mas o senhor acha que está se desenhando esse quadro que poderá implicar numa reforma ministerial?
Fernando Henrique Cardoso: Para ser sincero, eu acho que se continuar na linha que vai, sim.
Heródoto Barbeiro: Agora, o PSDB, nesse caso, continua fazendo parte do governo?
Fernando Henrique Cardoso: O PSDB, eu tenho conversado muito com as lideranças do PSDB, com a base do PSDB, e não existe nenhum movimento do PSDB para agir diferentemente. Acho que o PSDB sentiu que foi para o governo em função de uma decisão do próprio PSDB e dos demais partidos que têm uma certa responsabilidade para com o país. E o governo é um governo que quer acertar, nós não temos por que não dar colaboração ao governo. E mais, o PSDB tem se mantido no governo sem ficar tisnado dessas coisas tão comuns de fisiologia, de roubalheira. O país todo vê com tranqüilidade o que nós do PSDB estamos fazendo.
Heródoto Barbeiro: Por isso mesmo que isso tem um bônus para o ano que vem, na eleição de 1994?
Fernando Henrique Cardoso: Será que tem? Aí depende, isso você não precisa ter a bola de cristal para saber. Veja uma coisa, o presidente Sarney, quando saiu do governo, era aquela coisa. Hoje, em termos de pesquisa, é o segundo, é presidenciável, foi eleito senador e ficou no governo até o fim. Quantos do que estavam no governo Sarney se reelegeram bem?
Milton Coelho da Graça: Mas, ministro, deixe-me voltar à outra pergunta anterior. O senhor disse assim: “Se continuar nessa linha que vai eu acho que vai haver uma reforma ministerial”. O que quer dizer “se continuar como vai”?
Fernando Henrique Cardoso: Eu direi: se continuar existindo no Congresso – a pergunta foi a respeito do líder Roberto Freire –, se o líder perceber, na Câmara e no Senado, que há setores que se opõem ao governo e que estão no governo, ou bem as pessoas que estão no governo saem dos seus partidos, que eu não acho razoável, ou então saem do governo.
Milton Coelho da Graça: Seria o caso do senador Maurício Corrêa [senador de 1987 a 1994. Em 1994 foi indicado ao Supremo Tribunal Federal], por exemplo?
Fernando Henrique Cardoso: O senador Maurício Corrêa, eu não quero pessoalizar...
Milton Coelho da Graça: [interrompendo] Um exemplo.
Fernando Henrique Cardoso: ...foi o Brizola quem pediu a ele. Eu não sei qual vai ser... pelo que eu ouvi, ele disse que devia lealdade ao presidente. Se ele disse isso, ele já fez a escolha.
Tonico Ferreira: E o caso do PT?
Fernando Henrique Cardoso: O caso do PT também, os ministros fizeram uma escolha, a ministra [Luiza Erundina], porque o [ministro do Trabalho Walter] Barelli não é do PT, embora tenha sido sugerido pelo Lula realmente.
Milton Coelho da Graça: Mas o governo pode ser formado por dissidentes de seus partidos? Quer dizer, a Erundina, dissidente do PT; o Maurício Corrêa, dissidente do PDT; vai ver que, daqui a pouco, o senhor acaba dissidente do PSDB?
Fernando Henrique Cardoso: Não, eu já fui [dissidente] do PMDB, chega. Não, eu acho que não é bem assim; agora eu acho que às vezes a dissidência está sintonizada com a sociedade. No caso da Erundina, quando ela tomou a decisão difícil que ela tomou, me parece que a sociedade respaldou-a.
Milton Coelho das Graças: Mas isso dá voto no Congresso?
Fernando Henrique Cardoso: Mas dá paralisação de certos setores do Congresso, que respeitam a sociedade.
Ricardo Noblat: Ministro, a executiva do PSDB, se não me engano, ela se reúne amanhã ou depois de amanhã em Brasília.
Fernando Henrique Cardoso: Quarta ou quinta-feira.
Ricardo Noblat: Quarta ou quinta-feira. E entre outros assuntos vai discutir não só a postura diante do governo, de continuar solidária e participando do governo, como também a questão presidencial, embora talvez não para colocar nenhum andor precipitadamente na rua. Mas nessa questão da sucessão presidencial, eu percebo que há duas correntes dentro do partido, não sei qual a majoritária, em torno de uma aliança possível ou não com o PT em torno da possível candidatura do Lula à Presidência da República. Me parece que essa tese já foi uma tese que teve um número maior de defensores dentro do partido. O senhor como vê essa possibilidade de uma coligação com o PT?
Fernando Henrique Cardoso: Na verdade, é o seguinte: se o sistema for parlamentarista, é uma coisa; se for presidencialista, é outra bastante diferente. É da índole do sistema presidencialista a formação de chefes, de líderes. O PSDB não tem como deixar de lançar candidaturas, as mais fortes possíveis, se o sistema for presidencialista, porque seria ele renunciar à possibilidade de ser um pólo de atração. Então, não é uma questão subjetiva do PSDB, isso é da lógica do sistema. Ponto dois: o PT já saiu com o Lula. Ora, fazer uma aliança quando você diz: vai casar, desde que seja com a Maria, é complicado, é muito difícil. Eu acho que é uma tática política um pouco equivocada, um pouco - como vou dizer? – soberba.
Milton Coelho da Graça: Mas a Erundina está disponível; Maria não está, mas Erundina está.
Fernando Henrique Cardoso: Eu a vejo com muita simpatia.
Tonico Ferreira: E uma possibilidade de aliança com o PMDB? É mais provável?
Fernando Henrique Cardoso: Olha, depende do [dia] 30 de maio.
Tonico Ferreira: Da eleição do presidente do partido?
Fernando Henrique Cardoso: É claro, depende da definição do próprio partido.
Jorge Escosteguy: Depende do quê?
Fernando Henrique Cardoso: Porque em 30 de maio o PMDB elege...
Jorge Escosteguy: Eu sei, mas depende...?
Fernando Henrique Cardoso: Você sabe que o PMDB tem duas correntes, eu não sei qual vai ganhar.
[...]: Com Quércia ou sem Quércia [Orestes Quércia].
[...]: Se ganhar o Quércia não tem acordo?
Fernando Henrique Cardoso: É pouco provável, é difícil. No caso de São Paulo...
Ricardo Noblat: [interrompendo] Se depender do senhor, não terá?
Fernando Henrique Cardoso: Eu não sou de fazer essas afirmações, acho que depende do sentimento do partido, mas eu vejo que o PSDB não estaria... É difícil, acho que para o próprio PMDB é difícil [...].
Tonico Ferreira: Ministro, e sem Quércia, o PMDB sem Quércia, que possibilidades há de uma aliança?
Fernando Henrique Cardoso: Eu diria a você que o PSDB, hoje, a posição foi a que eu respondi para o Noblat, eu acredito que nós tenhamos que lançar candidatos, os mais fortes possíveis, e no segundo turno ver-se-á quem ficou de pé. E aí depende sempre de quem é o adversário.
Milton Coelho da Graça: Quem é o mais forte possível dentro do PSDB hoje? Só assim por hipótese...
Fernando Henrique Cardoso: Eu acho que o PSDB tem algumas pessoas que são candidatos bons. Acho que o Tasso [Jereissati] é um bom candidato, o Ciro [Gomes] é um bom candidato, o Mário [Covas] é bom candidato...
Milton Coelho da Graça: Mesmo sendo do Ceará, depois de...?
Fernando Henrique Cardoso: Eu não tenho preconceito nenhum.
Ricardo Noblat: É mais ou menos nesta ordem, senador, em sua opinião? O Tasso, o Ciro, o Covas?
Fernando Henrique Cardoso: Não, a ordem... esse negócio é complicado aqui [risos]. Eu acho que isso depende muito não só da disposição anímica, quer dizer, a pessoa tem que estar com vontade de ser candidato, [porque] candidato que não tem vontade não dá certo, como também da capacidade de atrair.
Ricardo Noblat: O senhor tem vontade de ser candidato a presidente da República?
Heródoto Barbeiro: Ou a governador do estado?
Jorge Escosteguy: Aliás, complementando, dois telespectadores, o Milton tinha tocado no assunto, Luiz Eduardo Cardia, aqui de São Paulo, e Tarcisio Miranda, também de São Paulo, perguntam justamente quais são os seus planos políticos e se o senhor gostaria de ser candidato.
[...]: Pela ordem, primeiro a Presidência, depois o governo do estado...
Fernando Henrique Cardoso: Mas qual é o político que, podendo, não quer ser candidato a presidente? A questão não é de querer, é de poder, e eu sou uma pessoa realista, eu tenho o pé no chão, eu acho que a gente não deve se precipitar nunca, e as uvas estão muito verdes. Se eu estou criticando os outros que estão se lançando agora com partidos que já têm de alguma maneira uma definição prévia a favor deles, como é que eu vou falar de candidatura? [...]
Ricardo Noblat: Não, não é o senhor falar, mas se o partido o convoca a ser candidato, então docemente constrangido o senhor aceita?
Fernando Henrique Cardoso: Sem nenhum constrangimento. Nenhum líder político, a não ser que seja uma coisa falsa, pode dizer não, não vou aceitar, se o meu partido e as condições permitirem, porque então não é líder político, porque na hora H tem medo. Eu já fui candidato em situações muito mais difíceis, quando eu não queria muito, e fui.
[...]: O senhor está achando fácil agora?
Fernando Henrique Cardoso: Não, não acho fácil; foi difícil para mim, porque eu não queria e fui. Então, eu não acho isso não, eu disse aqui o que eu penso, acho que os candidatos mais prováveis do PSDB são os que eu mencionei, qualquer um deles terá um [...] tranqüilo.
Marcelo Beraba: Só para completar, e o governo do estado? Vale isso tudo para o governo do estado?
Jorge Escosteguy: [brincando] O governo do estado não, porque o Tasso é cearense [risos].
Marcelo Beraba: Não, [estou perguntando sobre o estado] dele [risos].
Fernando Henrique Cardoso: Vejam o seguinte: muitos de vocês me conhecem, eu não sou personalista, nunca fui, não vou ser, ninguém muda de personalidade de repente. Eu acho que a gente tem que ter... e isso é até ruim, porque às vezes é melhor você ser personalista, resolver, vai a ferro e fogo, [mas] não é meu estilo. A mesma coisa que eu disse para presidente da República vale para o governo do estado, e é claro que o partido vai ter que fazer uma avaliação, quem tem mais chance, quem tem mais disposição e vai. Eu serei candidato a uma posição majoritária. Qual, não sei, vou ver, depende do jogo político. Tem três possibilidades, [na verdade] tem mais, além das já mencionadas, tem [uma eventual candidatura a] senador. E eu vou ser candidato a uma dessas, porque nós queremos fazer um partido, nós temos um partido, nós temos um estilo de fazer política, porque o PSDB tem um estilo, que não foi fácil formar um estilo. Nós temos um estilo, e aqueles que representam esse partido... tem [cerca de] vinte pessoas que podem encarnar esse estilo com maior projeção, mas tem obrigação de se lançar a candidato. O que eu acho que não deve é atropelar uns aos outros nem aos fatos que vão ocorrer, e é muito cedo. As uvas estão verdíssimas.
Jorge Escosteguy: Ministro, o Mac Margolis tem uma pergunta para o senhor, por favor.
Mac Margolis: Ministro, uma pergunta para o chanceler.
Fernando Henrique Cardoso: De vez em quando é bom.
Mac Margolis: Voltando à pergunta anterior sobre a imagem do Brasil e as relações exteriores, esta semana o Congresso aprecia e talvez vote a lei das patentes, que vai ser uma peça chave para definir futuras e possíveis reações, retaliações nos Estados Unidos. Tem duas propostas, uma do governo, tida como mais branda, e outra do Ney Lopes, mais forte. Tanto o deputado Ney Lopes quanto, se não me engano, o governo dos Estados Unidos acham que a proposta do governo é branda em termos de proteção para propriedade intelectual. Como o senhor define a proposta?
Jorge Escosteguy: Ministro, o telespectador Dagoberto Sales, aqui de São Paulo, faz a mesma pergunta sobre a questão das patentes.
Fernando Henrique Cardoso: A questão não é de ser branda ou de ser forte. Tem que fazer uma lei de patente; eu sempre me manifestei favorável para que haja uma lei de patente, até porque no Brasil há muita criatividade já... senão é uma atitude colonial: pensar que patente é só para quem cria, e só quem cria são os de lá [do exterior]. Não é verdade: vai lá na Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] que você vai ver que tem muita criatividade, vai na Embraer [Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A.], tem muita criatividade. Você tem que ter uma lei de patente. Nós temos, nós respeitamos, há uma lei que nós assinamos, temos um código de patente, mas tem que, digamos, reestruturar, reformar essa lei para ficar mais contemporânea, então sou favorável a que haja uma lei de patente. Acho que deve ser respeitado o direito de autor. Eu sou autor de livro, tenho direito autoral, eu acho que um processo criativo tem que ser respeitado e tem que ser registrado. Qual é a diferença essencial, por que tanta onda assim? Alguns setores aqui queriam que essa lei só fosse ter vigência daqui a dez anos. Basicamente dizem que são setores de indústrias farmacêuticas americanas, multinacionais e nacionais. Bem, uma lei para daqui a dez anos é melhor não ter, não tem eficácia nenhuma. Você vai dizer: bom, se não tiver, se você der mais dez anos de liberdade para copiar, vão copiar, [mas] não copiam: faz vinte, trinta anos que não houve progresso significativo em função de não existir lei de patente. Acho que não é razoável, acho que é mais razoável o que está proposto pelo governo, que é dentro do prazo de um ano, que é um prazo praticamente administrativo, que a lei tenha vigência. Ninguém vai brigar por causa de um ano, nem lá nem cá. Os que queriam dez anos são os que não querem lei de patente. Esse é um ponto, não acho que a diferença seja tão grande assim entre o que o Ney Lopes, que quer que aplique imediatamente, e o governo, que quer daqui a um ano, acho que é razoável a do governo. Ponto dois: é um assunto muito delicado a questão do chamado patenteamento de seres vivos, aí há muita confusão. A proposta do governo diz o seguinte: “Não é permitido o patenteamento de seres vivos”. Ninguém pode patentear um animal, uma espécie de vegetal, não pode. E diz: “É possível patentear introduções ocorridas em microorganismos”. E o ministro de Ciência e Tecnologia fez uma nova definição, que ainda não foi incorporada à lei, que precisa o que é microorganismo. Bom, não se trata de patentear seres vivos, trata-se de patentear alterações havidas nos microorganismos. Eu acho razoável. Por quê? Porque houve investimento, houve uma transformação; a partir daí você realmente pode ter efeitos muito positivos a partir das técnicas desenvolvidas. Acho razoável, então como está a lei do governo é suficiente.
Mac Margolis: Parece que a Igreja não [acha razoável].
Fernando Henrique Cardoso: A Igreja [não acha] porque não discutiu ainda a definição de microorganismo. A Igreja se opõe ao patenteamento de seres vivos, mas ninguém está pensando em patentear ser vivo. Agora, microorganismo não tem alma, dá para patentear [risos].
Jorge Escosteguy: Ministro, por favor, nós vamos fazer um rápido intervalo. O Roda Viva volta daqui a pouco entrevistando hoje o ministro das Relações Exteriores, Fernando Henrique Cardoso. Até já.
[intervalo]
Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva, que hoje está entrevistando o ministro das Relações Exteriores, Fernando Henrique Cardoso. Você que está em casa e quiser fazer perguntas por telefone, pode chamar 252-6525. Ministro, o senhor sempre gosta quando se fala em diplomacia, então vou continuar um pouquinho na diplomacia, depois a gente volta para a política.
Fernando Henrique Cardoso: Mas eu vou terminar [a resposta sobre] as patentes.
Jorge Escosteguy: Ah, o senhor quer terminar?
Fernando Henrique Cardoso: Vou terminar, falta um argumento para não deixar em brancas nuvens.
Jorge Escoteguy: Por favor, então termine o argumento e, em seguida, eu pergunto.
Fernando Henrique Cardoso: Há um outro problema, que é o chamado pipeline. Como ninguém sabe o que é pipeline , todo mundo [diz]: eu sou a favor, eu sou contra o pipeline.
[...]: O que é o pipeline?
Fernando Henrique Cardoso: Você tem uma série de processos já em curso que não estão patenteados ainda. E para muitos desses já existe literatura a respeito de qual é esse processo, então o que você faz? Você vai reconhecer o direito de patentear um processo que, de que alguma maneira, já é sabido, porque a literatura transmitiu, ou não? O projeto do governo diz o seguinte... em tese, isso era tabu para certos setores aqui, então em tese é preciso reconhecer que existe um investimento. Agora, pode ter havido aqui também no Brasil. Se houver investimento efetivo, real, aqui no Brasil, nesse caso nós vamos reconhecer o investimento havido aqui. Essa idéia é diferente, porque aí você garante aquilo que é fundamental em uma lei de patente, que é a criatividade. A lei de patente não pode ser para impedir a criatividade, tem que ser para resguardar a criatividade, a deles e a nossa também. Então nós garantimos a nossa. Essas são as diferenças fundamentais. Eu às vezes vejo aí opiniões para cá e para lá, eu falo com muita gente, muita gente me procurou a respeito dessa matéria. Eu não acho que, uma vez aprovada a lei do governo, as sugestões do governo tais como estão lá – e o Congresso vai discutir, vai ter uma margem de liberdade grande aí, não sei qual vai ser o desenho final disso –, aí eu acho que dá para você discutir com vantagem no foro internacional. O Gatt [Acordo Geral de Tarifas e Comércio, a partir de 1994 dá origem à Organização Mundial do Comércio], que é o organismo multilateral que está entrando nessa matéria, tem uma proposta do senhor [Arthur] Dunkel, que é o diretor-geral do Gatt. A [proposta] do governo é muito próxima do que propôs o Dunkel. Agora, você sabe que, nos Estados Unidos, eles têm a Super 301, é a lei do comércio americano. Veja bem como é bom ser um país forte e rico: ela autoriza o presidente, às vezes até clama... uma vez que haja uma reclamação de uma indústria americana, dizendo que há práticas desleais de comércio em outros países – e entre práticas desleais, inclui a inexistência de lei de patente –, ela leva o governo a retaliar o país, quer dizer, por que se chama retaliar? Aumentar os impostos, por exemplo, sobre os calçados, sobre o suco de laranja. [Para] o suco de laranja, hoje, o Brasil já paga 492 dólares adicionais por tonelada nos Estados Unidos, e disseram que é o item onde a alfândega de Nova Iorque faz a maior arrecadação, o suco de laranja brasileiro. Ainda assim nós exportamos, no ano passado, cerca de dois bilhões de dólares para os Estados Unidos em suco de laranja. Então, lá eles podem, eles têm essa capacidade de retaliar: se não faz o que eu quero, eu posso retaliar. Bom, eles podem, já fizeram. Já fizeram com relação ao Brasil por causa da indústria farmacêutica. Outro dia, eu vi no jornal que eu teria dito que não importa, e eu não disse que não importava, isso foi num depoimento lá na Câmara, eu não disse isso porque não sou irresponsável, claro que importa e claro que o ministro das Relações Exteriores tem que estar atento a isso. Até pelo contrário, há muito tempo que eu tenho chamado a atenção do Congresso para a necessidade de o Brasil ter uma lei de patente, que eu acho que isso é importante, e a retaliação é ruim, é melhor evitá-la. Eu acho que se for aprovada uma lei do jeito que o governo enviou há condições de uma negociação que impeça a retaliação. Isso é uma avaliação minha, a retaliação é independente, os americanos podem fazer como quiserem, mas nós vamos tentar evitar isso.
Jorge Escoteguy: Ministro, vários telespectadores telefonaram levantando a questão do tratamento dos brasileiros quando querem ir para fora, e alguns em relação aos estrangeiros que vêm ao Brasil. O Vinicius Donola, por exemplo, de Campinas, telefonou dizendo que é formado na Escola de Jornalismo do Porto [Portugal], pode trabalhar em 12 países da Comunidade Européia [Comunidade Econômica Européia], “menos no Brasil, meu país de origem, porque o Ministério da Educação e Cultura, desrespeitando inclusive o acordo entre Brasil e Portugal, não valida o diploma”. A Teresa de Moraes simplesmente acha que o Brasil tem que restringir a entrada de portugueses no Brasil, talvez pensando nos incidentes que ocorreram em Portugal. Marcio Antunes quer saber também como está a questão das relações entre Brasil e Portugal, por causa daqueles incidentes. Ronaldo Santos e Marcio Antunes, de São Paulo, basicamente perguntam o que devem fazer quando têm a sua entrada restrita num país estrangeiro quando vão fazer algum curso. Os dois não conseguiram entrar para fazer cursos. E o Vicente Bianchi está preocupado com o tratamento dos brasileiros fora do país.
Fernando Henrique Cardoso: Vamos lá, a questão é genérica. Primeiro, qual é o grande problema que o Brasil tem enfrentado nos últimos tempos em função dessas recusas de brasileiros entrarem? É que o Brasil sempre foi um país de imigração, vinha gente de fora para cá. Agora o Brasil é um país que também tem emigração. Há brasileiros que vão trabalhar lá fora. Só no Japão há pelos menos 150 mil brasileiros trabalhando, 150 mil.
Jorge Escosteguy: É até tem o Tsu Marsao, aqui de São Paulo, que pergunta quando será aberto o consulado do Brasil em Nagoya, no Japão
Fernando Henrique Cardoso: Vai ser aberto, já foi criado o consulado do Brasil em Nagoya, e eu vou ao Japão, em maio, e eu vou visitar uns filhos de brasileiros que estão trabalhando lá, porque eu acho que a função hoje do ministro do Exterior é também essa, cuidar de um brasileiro que está lá fora como mão-de-obra. Muito bem, nós temos mandado gente para os Estados Unidos, tem muita gente lá, mais do que no Japão, [mas] não se tem números exatos. Para a Europa também. Então, começa a haver uma certa restrição. Antes não, porque brasileiro só ia lá para ser turista. Então, tudo bem, ia lá para deixar o dinheiro lá, agora vai para disputar o mercado de trabalho.
Jorge Escosteguy: Buscar o dinheiro.
Fernando Henrique Cardoso: Buscar o dinheiro. Então é aí entra em choque, está certo? A Europa está se fechando razoavelmente quanto a migrações. Portugal aderiu à Comunidade Européia, então Portugal assinou um acordo que o leva a ser mais restritivo na entrada de brasileiros, de estrangeiros em geral, por quê? Uma vez entrado em Portugal tem entrada para toda Europa, pelos acordos comunitários, então está mais restritivo nessa entrada. O Brasil entendia que como havia um tratado de amizade entre Portugal e Brasil, que nós não deveríamos estar submetidos às mesmas regras dos demais estrangeiros.
Jorge Escosteguy: A amizade não tinha limites?
Fernando Henrique Cardoso: É. Então, nós achávamos o seguinte: se a pessoa vai como turista e lá resolve trabalhar, e pode, como os portugueses faziam, vinham para cá como turista, chega aqui, resolveu trabalhar, pede ao Ministério de Justiça e muda de status. Os portugueses não aceitam isso, então o que nós fizemos? Reciprocidade: de agora por diante, português que queira vir trabalhar no Brasil tem que pedir primeiro licença ao consulado brasileiro em Portugal, como também os brasileiros que quiserem ir trabalhar em Portugal.
Heródoto Barbeiro: Mas isso não é desigual, ministro?
Fernando Henrique Cardoso: Por que desigual?
Heródoto Barbeiro: É desigual porque os portugueses vieram para cá e se estabeleceram...
Fernando Henrique Cardoso: No passado?
Heródoto Barbeiro: É, no passado, [mas] agora que a coisa virou para o nosso lado eles proíbem?
Fernando Henrique Cardoso: Eu também acho, tanto que nós protestamos.
Tonico Ferreira: O senhor acha que Portugal fez a opção correta?
Fernando Henrique Cardoso: Primeiro, eu não sou português; segundo, eu acho que Portugal achou que os interesses melhores deles eram orientados pela Europa. E a Europa sabe que a entrada [portuguesa] no mercado comum levou subsídios fortes a Portugal, para poder reestruturar a economia, então eles tiveram algumas vantagens. Muitos portugueses acham o que nós estamos achando, que com relação ao Brasil, dado que o Brasil sempre atendeu os portugueses, não só migrantes por razões econômicas, mas políticos também - e de todas as cores, porque aqui nunca se pediu carteirinha - que deveriam ter uma reciprocidade. Outro dia eu estive com uma senhora portuguesa, que veio me visitar para hipotecar solidariedade ao Brasil, porque ela sabe disso, e tem até lá em Portugal muitos movimentos a favor dos brasileiros que [reivindicam] um tratamento diferenciado para os brasileiros. Eu prefiro isso também, mas a decisão não é nossa. Ora, quando o brasileiro está no outro país ele está submetido às leis daquele país, não tem jeito, como qualquer estrangeiro que venha para cá está submetido. Mais ainda, nós temos o direito de dizer: não, você não entra. Nós temos esse direito, qualquer país tem esse direito, está certo? Há tratados, e na questão de turismo também, você tem acordos que permitem que o sujeito vá sem visto e tudo mais. Não é só Portugal que faz isso; aliás, em Portugal, no ano passado, entraram cem mil brasileiros, eles recusaram [só] cem. Outros países europeus, me abstenho de citá-los, recusaram sete vezes mais que Portugal, com muito menos brasileiros indo para lá.
Ricardo Noblat: O senhor se abstém por quê? Para não criar confusão?
Fernando Henrique Cardoso: Para não criar mais confusão.
Jorge Escosteguy: Por questão diplomática?
Fernando Henrique Cardoso: Nós temos tido dificuldades com vários países, então o que nós temos que fazer? Primeiro, uma atividade consular mais intensa, porque o que nós temos que exigir é um tratamento correto. Mesmo que o outro país diga: você não entra, você é contrabandista - e eu não sei se é ou não é - não pode maltratar. Nós reclamamos muito, porque havia reclamação de que os portugueses estavam maltratando brasileiros. Segundo, uma dose de arbitrariedade muito grande. O sujeito diz: “Eu não vim trabalhar”; [mas retrucam] “Veio”. Daí é complicado.
Pedro Cafardo: É isso aí, ministro. Eu queria adicionar uma coisinha nesta conversa. Parece, pelas informações que a gente tem, que os brasileiros estão sendo vítimas de uma discriminação muito intensa, específica contra os brasileiros. Teve, por exemplo, o caso desse padre, na Ilha da Madeira, que foi condenado, teve até uma reportagem interessante do Mário Prata no Estadão sobre isso. Foi condenado e, segundo o padre, ele se diz inocente, tudo indica que ele é inocente, ele se diz vítima de um preconceito por ser homossexual e por ser brasileiro, quer dizer, o senhor não acha que está sendo necessária principalmente uma ação mais dura da diplomacia brasileira?
Fernando Henrique Cardoso: O que nós fizemos com o padre? Mandamos advogado, eu pessoalmente falei com o embaixador, pedi que houvesse uma atenção especial ao padre, foi dada atenção. Agora, ele é submetido a um tribunal; o tribunal julgou, você vai fazer o quê? Pode-se dizer que está baseado num preconceito; nós queríamos que não fosse assim, mas eu não posso dizer se ele matou, ele é acusado de ter matado uma pessoa.
Pedro Cafardo: Pergunto se não é o caso de uma ação mais dura da diplomacia brasileira.
Fernando Henrique Cardoso: Qual é a reação mais dura? Qual é o passo seguinte? Romper relações? Retaliar? Condenar um português que está aqui? Não pode, quer dizer, nós temos que dar uma assistência completa ao brasileiro.
Milton Coelho da Graça: Ministro, no caso do Japão, por exemplo, que é um caso que eu acho até mais grave que o do português, eu não sei todos os detalhes da legislação japonesa, mas eu conheço casos de cidadãos japoneses que vieram para o Brasil vinte anos atrás e que agora, por causa da crise, lutam para ter um contrato de trabalho, e mesmo eles sendo de origem japonesa, só têm direito a ficar dois anos no Japão. O Japão “repatria”, entre aspas, para o Brasil após o contrato. Nasceram no Japão, eu conheço japoneses, dois casos japoneses...
Fernando Henrique Cardoso: Mas se ele é japonês e não perdeu a naturalidade, ele não pode ser repatriado.
Milton Coelho da Graça: Mas lá existe, ele está aqui porque ele se naturalizou aqui.
Fernando Henrique Cardoso: Ah, sim, aí é verdade.
Milton Coelho da Graça: Mas ele é de origem japonesa. O que eu quero dizer é o seguinte: como é que nós podemos ter reciprocidade por esse tipo...
Fernando Henrique Cardoso: Mas é inviável, porque nós queremos estrangeiro aqui. A situação é diferente, nós queremos o trabalhador aqui. Quando nós não quisermos, ou quando nós não queremos, fazemos a mesma coisa. É que, na situação brasileira, nós queremos.
[...]: Que trabalhador [nós queremos]?
Fernando Henrique Cardoso: Então, se nós não queremos todos, vocês estão propondo que se faça uma política de migração, é isso?
Pedro Cafardo: Talvez.
Fernando Henrique Cardoso: Bom, uma política de migração é uma política que depende da situação econômica e do país querer ou não querer. Nós, por enquanto, no Brasil, temos facilitado a entrada.
Milton Coelho da Graça: Mesmo com a alta taxa de desemprego?
Fernando Henrique Cardoso: Temos facilitado a entrada por causa do tipo de profissão, técnicos que vêm, nós temos facilitado. Os brasileiros têm hoje saído bastante daqui, isso é lastimável. Não é responsabilidade dos estrangeiros, é nossa, de não criar condições para que eles trabalhem aqui. Então, eu disse aqui, tem 150 mil no Japão, tem dezenas de milhares no Paraguai, tem nas Guianas, há uma diáspora brasileira aqui. Isso é um problema sócio-econômico brasileiro, tem que ser olhado por aí.
Mac Margolis: É brasileiro [esse problema sócio-econômico]?
Fernando Henrique Cardoso: Não, é internacional. Em certos casos, há profissões que se internacionalizam. Então, há migrações que não são propriamente migrações como no tempo antigo, são profissões que se internacionalizam e não há, muitas vezes, regras claras da aceitação disso. É a questão dos diplomas que foi mencionada aí, é uma questão muito intrincada, muito intrincada. Mas há profissões que se internacionalizam, e é normal...
[...]: Por exemplo.
Fernando Henrique Cardoso: Técnicos de televisão. Você pode ser técnico de televisão aqui ou na China, independentemente do idioma. Certos tipos de técnico em computador, cientistas em geral, são profissões em que você tem hoje uma mobilidade que não necessariamente significa algo negativo.
Mac Margolis: Pois é, analistas de sistemas indianos já são uma figura mundial. Isso então não é um desafio novo para a diplomacia? Porque não só o Brasil, mas vários países são exportadores de mão-de-obra e outros são importadores, os países que precisam, como o Japão, que tem uma força de trabalho envelhecendo, estável e que também não se renova. Então, qual é a resposta apropriada para...?
Fernando Henrique Cardoso: Eu acho que a resposta apropriada, do ângulo do Itamaraty, do Ministério, é a seguinte: nós temos que cuidar mais em termos consulares e prestar assistência legal, e de todo tipo que seja, ao brasileiro que está fora. Eventualmente, nós vamos precisar contratar advogados, como já temos feito, contratar advogados, porque há situações de direito do trabalho. Outro dia eu conversei com o ministro Barelli sobre essa matéria, porque nós vamos ter problemas nessa área que são tipicamente trabalhistas; diplomata não necessariamente conhece, tem que ser advogado às vezes local. Então, nós temos que nos adaptar melhor a isso. Como, no tempo passado, o consulado italiano tinha em São Paulo toda uma assistência ao migrante italiano que vinha para cá.
Jorge Escosteguy: Ministro, o Setti tem uma pergunta. Antes dele fazer a pergunta, só para não sair do assunto, o Odair Francieira, de São José do Rio Preto, e a Mariângela Contreras, aqui de São Caetano, perguntam: “O que o governo pode fazer com aquela velha questão dos carros brasileiros roubados que estão no Paraguai?”
Fernando Henrique Cardoso: Por acaso, hoje eu conversei com um candidato à Presidência do Paraguai que foi lá me ver. É o segundo que vem aqui para conversar, e isso foi mencionado. Quer dizer, é uma coisa que nós brasileiros temos que prestar um pouquinho mais de atenção. Nós temos uma enorme fronteira terrestre seca. Essa fronteira é uma fronteira desguarnecida. Nós não temos no Brasil nenhum problema com os nossos vizinhos: a questão de limites, desde o Barão do Rio Branco está resolvida, tem tratados, tem tudo. Mas você sabe que os marcos das fronteiras às vezes ficam a cinquenta quilômetros um do outro. Agora mesmo teve um incidente com a Venezuela; já tivemos com a Colômbia. Ninguém sabe se está pisando em território brasileiro, colombiano ou venezuelano; não há controle de fronteira. O contrabando, o roubo, a fuga de criminosos daqui para lá, isso se discutiu hoje com o senhor do Paraguai que veio aqui, são muito grandes. Então nós precisamos aí também ativar mais as nossas relações de fronteiras e ter uma vigilância maior de parte a parte. Não é vigilância contra o outro país, é junto com o outro país, porque tem o tráfico de drogas, tem uma porção de questões novas. Assim como tem o trabalhador migrante brasileiro, também a diplomacia passa a lidar com esse tipo de questão que é novo. O que você faz com acordos ou não acordos entre as polícias por causa [...] traficantes? Vai fazer extradição ou não? A tradição do Brasil é de não dar extradição política, mas e agora em que o crime se organiza, em que você tem troca de automóvel por droga? Vamos ter que mexer nisso.
Ricardo Setti: Esse telespectador parece que adivinhou, eu ia exatamente falar sobre o Paraguai, ia me dirigir ao chanceler para falar sobre o Paraguai. Claro que essas questões são óbvias, é questão de criminosos, é questão das fronteiras, mas existe um problema que me parece uma longa história de hipocrisias envolvendo o Brasil e o Paraguai, que talvez esteja relacionada com a má consciência do Brasil em relação a ter oprimido o Paraguai no passado, a ter explorado, questão de Itaipu ou coisa que o valha. Há coisas notórias que são feitas pelo governo do Paraguai e que o Brasil finge que não está acontecendo. Existem no Paraguai duzentos mil automóveis brasileiros roubados, legalizados pelo governo do Paraguai. Existe todo tipo de maracutaia, de trampolinagem feita com a conivência da legislação do Paraguai, da autoridade do Paraguai, e o governo brasileiro nunca falou nada sobre isso. Quer dizer, não é questão dos criminosos que atravessam a fronteira, do roubo, isso tudo são coisas que existem entre quaisquer países que tenham vizinhança. Mas existe uma visível e histórica cumplicidade do governo do Paraguai com a criminalidade, e o governo brasileiro finge que não acontece nada.
Fernando Henrique Cardoso: Só que o Paraguai passou por uma modificação grande e essa modificação continua, vai ter eleição agora. Então eu acho que esses processos todos vão ser revistos.
Ricardo Setti: É verdade, é verdade...
Fernando Henrique Cardoso: Está na hora de uma revisão. E mais ainda, ninguém tocou no assunto, mas eu toco: nós estamos em um processo de integração com o Paraguai, com o Uruguai e com a Argentina, o Mercosul [Mercado Comum do Sul], que vai colocar problemas novos, profundos, que são problemas muito importantes. E talvez o brasileiro não tenha ainda percebido o significado do que está acontecendo, do que já está acontecendo na questão do Mercosul. Houve um avanço muito grande não só de trocas comerciais, mas de mentalidade também nesses países todos. E isso vale para o Paraguai também. Eu acho que o que havia no passado é inaceitável, o que você mencionou é inaceitável, mas o Paraguai passa por uma transformação democrática. Então eu acho que o que nós temos que fazer é torcer para que essa transformação vá adiante e para que ela alcance esses aspectos.
Ricardo Setti: Mas me parece que o Brasil não exerce freqüentemente o peso que poderia exercer na sua relação com o Paraguai no sentido de ir nessa direção.
Fernando Henrique Cardoso: Os paraguaios se queixam de que nós exercemos um peso demasiado grande [risos].
Tonico Ferreira: Mas eles não mudaram tanto assim no Paraguai: continua a pressão contra colonos, continua a prisão de brasileiros em Ponta Porã [MS], em Juan Caballero [cidade paraguaia]. Eu entrevistei brasileiros na prisão, [que foram] presos a cinco passos da fronteira.
Fernando Henrique Cardoso: Em Ciudad del Este [cidade paraguaia] há mais de cem brasileiros presos neste momento. Também com o ministro Barelli e com o ministro da Indústria e Comércio eu conversei sobre uma [possível]...
Tonico Ferreira: Eu vi até menores de idade presos do lado de...
Fernando Henrique Cardoso: ...visita nossa ao Paraguai para ver o que está acontecendo. Enfim, não estou negando, estou dizendo o seguinte: isso aí, digamos assim, ultrapassa de longe minha própria alçada, mas eu tenho que atuar.
Jorge Escosteguy: Ministro, o que os candidatos paraguaios vêm conversar com o senhor?
Ricardo Noblat: Eu também tenho uma pergunta sobre isso.
Fernando Henrique Cardoso: Veio primeiro um senhor chamado [Guillermo] Caballero Vargas, que é candidato de um partido paraguaio; hoje veio o senhor [Juan Carlos] Wasmosy, candidato de outro partido. Basicamente eles vêm discutir as questões de relação entre Brasil e Paraguai.
Ricardo Noblat: Qual dos dois está liderando as pesquisas? É o primeiro?
Fernando Henrique Cardoso: É o primeiro, neste momento.
Ricardo Noblat: É porque o governador [do Paraná] Requião contou que o senhor telefonou para ele pedindo um apoio efetivo, porém discreto, a esse candidato que lidera as pesquisas.
Fernando Henrique Cardoso: Não, não pedi apoio a ninguém. Apoio, eu vou pedir ao Requião para uma candidatura minha se eu for candidato no Paraná [risos].
Marcelo Beraba: Ministro, por favor, nós estamos pegando questões pontuais da diplomacia. Em termos mais gerais, o governo Itamar tem uma política externa?
Fernando Henrique Cardoso: Não é o governo Itamar, o Brasil tem uma política externa.
Marcelo Beraba: Sim, mas há uma mudança de Collor para Itamar, há isso?
Fernando Henrique Cardoso: De ênfase. Eu não acho que a gente possa considerar política externa nessa perspectiva, de um governo para outro governo, porque existe uma certa tradição na política externa, e você não pode fazê-la no prazo imediato. Você tem alguns interesses que são mais ou menos estáveis. Qual é a ênfase que nós estamos dando na política externa, tirando o tradicional? Qual é o tradicional? O Brasil é um país que quer a paz – isso é muito importante –, porque nós vivemos num continente, num pedaço de continente de paz, e isso tem que ser valorizado de todos os pontos de vista. O Brasil é um país que quer a paz, o Brasil é um país que aprendeu a lidar com seus vizinhos, temos dez vizinhos imediatos com os quais não temos problemas, sejam eles grandes ou pequenos. O Brasil é um país que tem um certo peso, pelo seu relacionamento, digamos, mais universal. O que nós queremos hoje? Uma atitude mais ativa na ONU – e o Brasil entrou para o Conselho de Segurança agora em janeiro [como membro eleito, não-permanente] –, e isso é importante, porque o Brasil é um dos países que decidem. Agora, decide o quê? A nova ordem internacional está em curso, não está definida. Acabou a polarizaçãos Estados Unidos e União Soviética, mas não está claro ainda como os negócios mundiais vão ser geridos. O Brasil quer participar dessas definições. Não adianta querer, você tem que participar. Como é que o Brasil pode participar dessas definições? Primeiro, tendo uma retaguarda sólida. Qual é a nossa retaguarda? É a América do Sul e, no caso concreto, o Mercosul, mas não só. Eu fui ao Chile recentemente, que não pertence ao Mercosul. E lá no Chile conseguimos algumas coisas, algumas com o tempo se dirá, mas outras já se disseram, a respeito da inflexão da política chilena, conversei com o presidente da República chileno, conversei com os ministros do Chile, um deles virá aqui, ou dois deles, da Economia, e eles, que estavam com uma atitude assim um pouco orientada mais para o Nafta [Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, que entrou em vigor no início de 1994, envolvendo Canadá, México e Estados Unidos numa atmosfera de livre comércio, com custo reduzido para troca de mercadorias entre os três países], passaram a considerar que é importante manter relações fortes com o Brasil e com a América do Sul. Nós achamos isso importante, Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai, Chile... Eu vou receber esta semana a chanceler da Colômbia, na outra semana eu vou ao Equador, enfim, nós estamos tendo uma política muito ativa em termo de América do Sul. Por quê? Porque essa é nossa situação geográfica imediata, quer dizer, em termos mais antigos, geopolítica. Nós estamos aqui, [mas] isso não basta. Nós temos que ter uma atitude mais ampla em todo mundo. O Brasil tem uma tradição de certa presença na África. Eu tenho visto muita coisa a respeito do que eu penso sobre a África completamente deslocada do que eu jamais disse. Eu acho que essa presença é importante, especialmente na África Austral. Temos Angola, onde o Brasil tem tido uma atitude bastante ativa na negociação do reconhecimento das eleições de Angola; eu conversei duas vezes com o chanceler de Angola; ele me escreveu uma carta formal agradecendo as gestões que fizemos; fizemos gestões nos Estados Unidos, na Inglaterra, com a África do Sul.
Ricardo Noblat: Mas, ministro, me permita: no caso específico de Angola, além do discurso favorável, além de algumas tratativas no âmbito da ONU, o que efetivamente o governo brasileiro fez ou faz para ajudar esse país que há mais de trinta anos está conflagrada...?
Fernando Henrique Cardoso: [interrompendo] Você conhece Angola mais do que eu.
Ricardo Noblat: Justamente por isso é que eu estou lhe perguntando.
Fernando Henrique Cardoso: O que o governo brasileiro faz concretamente? Em primeiro lugar...
Ricardo Noblat: [interrompendo] Me permita, houve uma eleição, a eleição foi reconhecida como limpa pela ONU e desrespeitada, no momento seguinte, pela parte que perdeu a eleição. Só ficar no plano da retórica...
Fernando Henrique Cardoso: [interrompendo] Não é retórica...
Ricardo Noblat: ...e não dar algum tipo de ajuda econômica, vale?, é suficiente?
Jorge Escosteguy: Ministro, o Jorge Costa, um telespectador de São Paulo, também pergunta sobre a questão das relações com a África.
Fernando Henrique Cardoso: Não é ficar só nisso, você sabe que o Brasil tem presença econômica em Angola.
Ricardo Noblat: Exatamente, tem interesses lá.
Fernando Henrique Cardoso: Continua tendo, continua tendo. Você sabe que nós resgatamos 1600 brasileiros sem incidentes. Nós continuamos interessados nisso, nós continuamos na ajuda humanitária no que podemos; a um país que está como o nosso fica difícil você dar ajudas muito substantivas. Nós temos tropa, observadores nossos; os angolanos queriam que o chefe fosse brasileiro, o comandante, [mas] não pôde. Falei pessoalmente com o [...] sobre isso; falei pelo telefone outro dia com ele; designou um general brasileiro para comandar Moçambique e nós temos atuado naquilo que é essencial. O essencial hoje é fazer com que todos os países obriguem o respeito às eleições. Os americanos tinham uma atitude muito cética, [mas] mudaram; o Brasil está muito ativo nessa mudança, muito ativo. Isso tem conseqüência – você sabe – imediata.
Ricardo Noblat: Mas em termos de ajuda humanitária, não é o caso, não é possível, nós não temos possibilidade de ampliar essa ajuda?
Fernando Henrique Cardoso: Moderadamente, porque você imediatamente vai ter a seca do Nordeste, você vai ter a favela não sei onde, e fica difícil mexer nisso. Nós não temos recursos para isso.
Marcelo Beraba: Ministro, e nossa política em relação aos grandes blocos: Estados Unidos, Europa, Ásia?
Fernando Henrique Cardoso: Eu estava respondendo e parei, eu estava dizendo que o Brasil, nessa questão da África, continua sendo uma coisa importante para o Brasil, vai continuar sendo e tudo o mais. Agora, acho que há que acrescentar uma forte dimensão, eu diria em três direções. Uma, a Ásia. Por que a Ásia? Porque a Ásia realmente é um continente que deu um salto enorme. E Ásia para mim é China; a China cresceu 12% o ano passado; a China tem um bilhão e pouco de habitantes; a China é um peso na situação mundial. O ministro do exterior da China esteve aqui conosco, passou um dia lá em Brasília discutindo conosco; fizemos acordos, fizemos um acordo importante sobre um satélite que estamos fazendo em conjunto com a China, por causa do desenvolvimento tecnológico que nos interessa; fizemos vários acordos com a China; não é de agora, nós temos uma tradição com isso. Japão, pela razão já dita aqui, porque o Japão tem um forte desenvolvimento também tecnológico, e porque nós podemos, China, Brasil, Japão, são países que têm certo peso, é desigual o peso, mas nós pertencemos – [também a] Índia –, nós pertencemos a esse tipo de país que pode jogar no plano internacional. Bom, depois eu volto a esse tema. Então eu acho que China, Japão, Coréia – Coréia é um país que tem muita viabilidade de relacionamento com o Brasil, sem falar nos Tigres [Tigres Asiáticos, refere-se a Hong Kong, Taiwan, Coréia do Sul e Cingapura], que é o mais comum. Nós temos ainda um longo caminho a percorrer em todo sudeste da Ásia e também na Malásia e também na Indonésia. Agora, nós temos que escolher, nós não temos muitas fichas a jogar, então eu acho que o fundamental é o Japão, China, Coréia e depois, se possível, lá para baixo. O que vai ser o século que vem? Quem vai ter peso no século que vem? A diplomacia tem que pensar a longo prazo. Vão ser os países de grandes conjuntos populacionais com desenvolvimento tecnológico, capazes de permitir um estilo de vida razoável para suas populações. Quem fornece isso? Como é que o Brasil pode ter esse entrosamento? Você tem os Estados Unidos, volto já a ele, você tem o Japão e a Alemanha. Nós não podemos descuidar do Japão e da Alemanha, nem da China e da Índia, por essa razão que eu estou dizendo aqui. Isso significa que o Brasil se afaste dos Estados Unidos? Não, essa é a maneira pela qual o Brasil pode ter uma boa relação com os Estados Unidos, que é o que nós queremos. Uma boa relação tem que ser feita a partir de você ter condições de ter uma presença, não é para você dizer “não”. Como que mudou a relação do Brasil com Estados Unidos? Qual é o nosso contencioso hoje? É muito pequeno, em termos políticos, é muito pequeno. Por que direitos humanos..., meu Deus, dizem que os democratas vão fazer pressão pelos direitos humanos, o governo [Jimmy] Carter [presidente dos Estados Unidos entre 1977-1981]. Mas no governo Carter eu estava com o Carter, não com as ditaduras brasileiras, que estavam torturando aqui, não é verdade? Então mudou. Ecologia, já mencionei; a questão atômica, nós fizemos com a Argentina um acordo importantíssimo, está dependendo do Congresso aprovar, que é muito importante.
Milton Coelho da Graça: Aço?
Fernando Henrique Cardoso: Aí é que está, o nosso contencioso é nessa matéria. É um contencioso de um país que cresceu. É o aço, é o suco de laranja, não é isso? São as retaliações que o Japão também tem, que a Europa também tem. O tipo de problemas que nós temos já é um problema de outra índole, e nós não podemos confundir as coisas. Temos que lutar nesse plano, nesse plano temos que brigar e tal, e não fazer que um problema num plano contamine o resto das relações.
Heródoto Barbeiro: Ministro, só um aparte para ver se eu entendi bem. Quer dizer, em relação a Portugal, nós rompemos com aqueles tratados que existiam até então e passamos agora a considerar Portugal como sendo um membro da Comunidade Européia e não mais aquele parceiro que nós elegemos num passado recente?
Fernando Henrique Cardoso: Eles romperam, não fomos nós. Eles entraram na Comunidade Européia e passaram a aplicar um certo tipo de tratamento. Nós queremos manter com Portugal, por razões de comunidade lingüística... Nesse momento, o embaixador José Aparecido está na África discutindo a questão do Instituto Internacional da Língua Portuguesa, que é uma coisa importante.
Heródoto Barbeiro: Quer dizer que vai ser mantida unilateralmente essa...?
Fernando Henrique Cardoso: Aí não há unilateralidade, é sempre “dá cá, toma lá”, quer dizer, tem sempre a reciprocidade, foi o que nós fizemos aqui, baixamos uma lei igualando. Agora, nós queremos ter com Portugal uma relação muito boa no sentido cultural, no sentido de um país que sempre foi formador nosso, mas nós não podemos ter ilusões, eles fizeram uma opção européia.
Jorge Escosteguy: Ministro, o senhor mencionou rapidamente a questão das drogas quando se discutia a questão com o Paraguai. O telespectador Evaldo Rocha, aqui de São Paulo, telefonou perguntando: “Que atitude o Brasil está tomando ou deve tomar em relação aos países que usam o Brasil como rota do tráfico de drogas?”
Fernando Henrique Cardoso: Não são os países que usam, são pessoas. Os governos e os povos daqueles países são tão vítimas quanto nós, querem combater. Uma, eu já disse aqui, nós vamos ter que ter atenção com a questão da fronteira. Nossa fronteira é absolutamente devassada. Então realmente isso vai criar complicação no caso das drogas. E a luta contra a droga não tem sido vitoriosa.
Ricardo Noblat: Seria o caso de empregar maiores contingentes das Forças Armadas para essa...?
Fernando Henrique Cardoso: Para controle de fronteiras, certamente. Agora mesmo nós estamos propondo, no orçamento do Itamaraty, que estava minguado – este ano o Congresso acabou de votar, por isso que ainda há uma certa restrição, ouvi notícias nos jornais que não correspondem à verdade –, nós estamos de novo tendo atrasados lá fora, não, os atrasados são os antigos, o Congresso, no orçamento atual, prevê recursos para pagar. Como o orçamento foi votado agora, só agora vamos ter esse recurso para pagar, mas não está havendo descuido nessa matéria.
Heródoto Barbeiro: Quer dizer, nossas contas não estão atrasadas? Contas de luz...?
Fernando Henrique Cardoso: Estão, [mas] não as de luz, estas nós pagamos, luz, água, telefone, estão pagas. O que está devendo é mais vexaminoso ainda, está devendo à OEA, ONU, Unesco, devemos ainda 91 e 92. Espero pagar este ano. Bom, o que eu dizia é que no orçamento do Itamaraty nós reforçamos a verba relativa à fronteira, limites. Isso é uma operação complicada, que implica comissões mistas, do país de lá, do de cá, inspeção na fronteira. No ano passado a Aeronáutica não tinha dinheiro para voar na fronteira. Como é que faz?
Tonico Ferreira: Ministro, o senhor evidentemente está informado de que os Estados Unidos, o governo dos Estados Unidos, através do DEA [Departamento de Combate às Drogas dos Estados Unidos], estaria disposto a jogar aqui a quantidade de dinheiro que fosse necessária para fazer o combate ao tráfico de drogas dentro do Brasil. É claro que para isso existem restrições, a autonomia do país etc. Quais são os limites do dinheiro que os Estados Unidos poderiam jogar aqui dentro, se a gente quisesse?
Fernando Henrique Cardoso: O que aconteceu com o dinheiro que jogaram lá na Colômbia? Na Bolívia? Não resolve, não resolve. Eu acho que um país como o Brasil devia ter assistência técnica, tudo bem. Você sabe que em outros países acabou vindo tropa, isso é complicado, nós não podemos aceitar isso.
[...]: Na Bolívia, tinha tropa [norte-americana].
Fernando Henrique Cardoso: Nós não podemos aceitar isso.
Tonico Ferreira: Então, até que ponto a gente pode receber essa ajuda?
Fernando Henrique Cardoso: Eu acho que ajuda técnica, de informação e troca de informação dentro dos limites dos tratados assinados. Agora, mais do que isso envolve problemas de soberania, é complicado. Mas isso não nos exime de nós nos aparelharmos melhor. A Polícia Federal não tinha um helicóptero, isso me disse o presidente da República, um helicóptero.
[...]: E já tem algum?
Fernando Henrique Cardoso: Parece que agora tem, com a privatização...
[...]: O [...] tem uma porção.
Fernando Henrique Cardoso: Para você ver como é uma luta desigual [risos].
Mac Margolis: Ministro, o senhor afirma a idéia que se tem lido ultimamente de que o Brasil realmente está sendo mais alvo, mais rota de passagem?
Fernando Henrique Cardoso: Eu não tenho informação para dizer se aumentou ou diminuiu; as informações que eu tenho são de jornal nessa matéria, que se reiteram. E você vê que a toda hora se descobre carregamento de droga. Agora, o que me parece preocupante – eu estive na Bolívia recentemente, este ano fui duas vezes à Bolívia, fizemos o tratado do gás, e eu fui na semana retrasada, porque eu devo ir à Dinamarca [para tratar de] uma questão das relações entre a Comunidade Européia e o Mercosul, ou melhor, o Grupo dos Dez [Fundado em 1962, reunia as dez economias mais desenvolvidas do mundo. A Suíça foi incorporada em 1964], o Grupo do Rio [Criado em 1986, reúne os principais paíse da América Latina e Caribe], e nós tivemos uma reunião com os chanceleres na Bolívia a um par de dias aí. Bem, o que se vê é que o efeito do controle, da luta contra a produção de droga é muito pequeno. Enquanto você não tiver um combate do consumo da droga, dos países consumidores lá, você não tem êxito nisso. Segundo lugar, o preço da droga não é alterado pelo combate na fonte emissora da droga, porque eles devem ter estoques muito grandes. Então você vê que é uma coisa complicadíssima, e hoje, pelos cálculos que dizem qual é a quantidade de bilhões de dólares envolvidos com a droga no mundo, vê-se que esse é um problema macro, dificílimo. Acho que o Brasil está ficando para trás em tomar consciência disso e ter um mecanismo de controle mais eficaz.
Milton Coelho da Graça: Ministro, deixe-me voltar para a questão menos complicada, que é a questão dos imigrantes. O senhor disse que uma das coisas que o Itamaraty está fazendo é aumentando a ação consular, mas vou pegar um caso que eu conheço bem, que é o caso da Inglaterra. O que se faz em Londres, no aeroporto de Londres? O cidadão brasileiro chega no aeroporto de Londres, aí o oficial de imigração olha para ele, não acredita que ele seja turista, pergunta quanto dinheiro ele tem no bolso. Mas independentemente do que este cidadão brasileiro diga, e independentemente do que ele possa dizer ou fazer, o oficial de imigração tem poder para deportá-lo imediatamente, e eu sei, foi o consulado brasileiro em Londres que me disse, que há dezenas ou centenas de casos de brasileiros que são imediatamente presos no aeroporto de Londres e deportados, sem que o consulado saiba, nem sequer o direito de telefonar para o consulado eles dão ao cidadão que é preso no aeroporto. Eu pergunto: nesses casos o Itamaraty já fez algum protesto contra o governo inglês, de sua majestade, por causa disso?
Fernando Henrique Cardoso: Fez, não sei se protesto, mas ação sim. E eu sei diretamente também, porque eu fui professor em Cambridge, e uma vez eu estava lá em Cambridge e me telefonaram da polícia da aduana dizendo que fulano de tal estava lá e referindo-se que ia para minha casa em Cambridge. Acontece que eu conhecia muito a pessoa, que é um jornalista hoje, amigo dos meus amigos, dos meus filhos, mas eu não sabia o nome dele, só sabia o apelido. Eu disse: “Não, eu não conheço”. Daí a uma hora ou duas, ele telefonou: “Como é que você não me conhece? Querem me deportar”. Era esse amigo meu, filho de um professor universitário aqui e tal, e a Inglaterra fazendo esse tipo de violência, isso se faz.
Milton Coelho da Graça: Isso é pior do que em Portugal.
Fernando Henrique Cardoso: É pior. Isso se faz. Na Inglaterra, quanto eu saiba, existe uma hospedaria que eles utilizam lá, eles têm um hotel de passagem, e eles dão à pessoa um tradutor juramentado e seguem um certo procedimento, não é arbitrário, tem um certo procedimento. Agora, não há força na legislação internacional que obrigue um país a receber um cidadão. A polícia brasileira pode implicar com alguém e dizer: “Aqui não entra”. É errado, mas não tem como, a noção de soberania é essa.
Pedro Cafardo: Seria melhor que passassem a exigir o visto, aí fica mais tranqüilo.
Fernando Henrique Cardoso: Ah, bom, aí é que está. É como nos Estados Unidos. Por que não há problema desse tipo nos Estados Unidos? Porque tem problema aqui. Você vai ao consulado americano, tem uma [...] que reclama muito, então tem problema aqui. Agora, veja, aí é uma dúvida, digamos, pragmática. Pegue Portugal, são cem mil que foram para lá, cem que foram incomodados; se eu disser: bom, eu quero ter visto, cem mil vão ter que pedir visto, é complicada a decisão, vamos dizer, não tem o melhor, porque se o Brasil disser: bom, a cada inglês que entra aqui eu quero visto, eles vão dizer a mesma coisa lá. Agora, na verdade são milhares de brasileiros que entram na Inglaterra e centenas que são barrados. Então você tem que pesar isso de uma maneira...
Milton Coelho da Graça: Mas nós não podíamos barrar uns ingleses de vez em quando, da mesma maneira? Devolver uns ingleses só para retaliar, uma cota de ingleses? Volta um inglês no [aeroporto do] Galeão [risos].
Fernando Henrique Cardoso: Pode, eu não sei se isso não ocorre.
Milton Coelho da Graça: Nunca se ouviu falar disso.
Fernando Henrique Cardoso: Mas como há preconceitos, o embaixador da Nigéria me disse que os nigerianos que chegavam aqui eram todos filmados, o que eu acho uma indignidade. Nós estamos tomando as providências... parece que aqui em São Paulo não.
Ricardo Noblat: Agora eles são só fotografados [risos].
Fernando Henrique Cardoso: De modo que aqui também deve haver... Eu mesmo já atendi mais de um caso de professor, até estrangeiro, que chega aqui e esqueceu o visto, e aí é barrado, essas coisas acontecem. Ao mesmo tempo em que nós temos que estar atentos, dar assistência necessária, nós não podemos também exagerar nessa matéria. Quer dizer, qual é o limite disso? Nós não podemos transformar numa guerra entre países por causa desses incidentes, nós temos que protestar.
Ricardo Noblat: Ministro, essa ministra colombiana que está vindo aí é aquela que encantou o presidente Itamar?
Fernando Henrique Cardoso: Parece que ela encantou muita gente, porque ela é uma pessoa muito interessante, inteligente e tem uma presença muito forte na diplomacia latino-americana. Ela vem aqui na semana que vem. Vamos dar, acho, amanhã um jantar no Itamaraty. Se você quiser, de black tie, vá lá se encantar [risos].
Tonico Ferreira: Ministro, quando eu perguntei ao senhor se Portugal fez a opção certa, acho que não ficou bem clara qual era a questão que eu estava levantando. É que hoje a base de toda política, no mundo da política externa, é a inserção, principalmente dos países da periferia, inserção na economia do Primeiro Mundo etc. Agora, o Primeiro Mundo passa por uma crise que, a meu ver, é crônica, não tem muita solução à vista. Então o senhor, como sociólogo e acadêmico, e não como ministro, estando ministro nesse momento, não vê alternativas a essa aproximação a um mundo que está em crise?
Fernando Henrique Cardoso: É que todos os mundos estão em crise.
Tonico Ferreira: Sim, mas nós, na nossa crise, estamos tentando, fazendo um esforço para ir para um país que está numa crise maior ainda?
Fernando Henrique Cardoso: Não, eu disse Primeiro Mundo nós temos que fazer aqui, minha posição é essa. Agora, para fazer o Primeiro Mundo aqui nós temos que ter contato com os países produtores de tecnologia, que têm um mercado, que têm gente, que têm cultura. Tem que haver uma ligação permanente com esses países. Bom, a situação pior é dos países que estão à margem de tudo isso.
Tonico Ferreira: A África.
Fernando Henrique Cardoso: A África e pedaços da América Latina, e pedaços nossos também. Aqui dentro tem pedaços que estão à margem de tudo [...] nosso próprio desenvolvimento. Bom, esses estão na pior. Eu acho que, no caso de Portugal, houve uma grande discussão em Portugal, em décadas passadas, a respeito de qual é a vocação portuguesa, é uma vocação mais de cabeça de um Terceiro Mundo na Europa, o pé da África e da América na Europa ou um país europeu? Eles optaram por ser um país europeu. A Espanha também. A Espanha também, inclusive eu estava assistindo na Espanha ao plebiscito sobre a questão de entrar ou não na Nato [Organização do Tratado do Atlântico Norte, Otan], quer dizer, esses países fizeram uma opção européia, por quê? Porque você hoje precisa de espaço mais amplo para poder ter um progresso continuado, por causa da produção em massa, por causa da mobilidade de recursos necessários, então faz as opções. Nós fizemos também algumas. Na verdade, quando estamos discutindo o Mercosul, é uma opção que nós tivemos. Há vinte anos a Argentina e o Brasil não tinham esse tipo de relacionamento; há dez anos não tinham esse tipo de relacionamento. Falava-se até em se fazer bomba atômica lá e cá, hoje temos inspeção recíproca. Você vai na fronteira, eu fui agora, fui a Santa Rosa, no Rio Grande do Sul, recentemente discutir a questão do Mercosul. O que eles querem lá? Uma ponte, porque do outro lado é a Argentina, Misiones, e tem muito brasileiro lá. Precisam de uma ponte, quer dizer, só no Rio Grande tem a ponte de São Borja, já estamos arranjando algum financiamento para essa; tem aí várias pontes, todo mundo pede ponte, todo mundo está querendo o entrosamento. Por que não tinha ponte? As estradas paravam, o asfalto, eram de terra, porque se imaginava uma eventual invasão. Isso acabou, mudou, e mudou para o bem. Então nós também fizemos a nossa opção aqui por um espaço um pouco maior. Muita gente me pergunta: e a Iniciativa Bush? [Discurso feito em junho de 1990, quando embaixadores latino-americanos foram chamados. Sinalizou inclinação dos EUA ao multilateralismo] Mas a Iniciativa Bush foi um discurso de um ex-presidente, como é que eu vou [...] de uma Iniciativa Bush? Ou então: e o Nafta? Mas, mas meu Deus, o Nafta não está constituído ainda, é uma relação entre Canadá, Estados Unidos e México, não somos nós. Não temos a porta do Nafta. Imagine se os nossos produtores de aço não iam querer entrar lá nos Estados Unidos sem pagar imposto? Mas os americanos é que não querem [isso].
Jorge Escosteguy: Ministro, nós estamos chegando no final, queria lhe fazer uma última pergunta...
Fernando Henrique Cardoso: Passou rápido, vamos repetir [a entrevista].
Jorge Escosteguy: ...mais da ordem política. O senhor é um intelectual, professor que veio para a política, ganhou eleições, perdeu eleições etc e passou por algumas experiências. Eu lhe faço a pergunta inclusive porque o Erasmo de Carvalho, aqui de São Paulo, lembra esse fato, ou seja, quando o senhor foi candidato a prefeito de São Paulo, questões que aparentemente o derrotaram ou ajudaram a derrotá-lo, que são: [se] acredita em Deus; a questão da maconha e, depois, aquela coisa de sentar na cadeira do prefeito antes de as urnas serem abertas. O senhor, analisando hoje, o senhor é uma figura importante, um político importante do PSDB, certamente vai ser candidato a algum cargo no ano que vem, o senhor, olhando para trás essa experiência, o senhor diria que aprendeu e hoje é mais malandro, no bom sentido, para não repetir aquelas coisas? O Ernani inclusive pergunta, por exemplo: o senhor ainda não acredita em Deus?
Fernando Henrique Cardoso: Veja você como a versão vale na política. Primeiro, isso foi em 85, depois eu ganhei uma eleição em 86. Tudo isso foi [...] em 86. A última vez em que eu vim a este programa aqui, me fizeram essas mesmas perguntas.
[...]: O senhor não vai se livrar disso [risos].
Fernando Henrique Cardoso: Não, eu acho até divertido.
Jorge Escosteguy: Não, eu lhe faço mais no sentido de se o senhor acha que... com a experiência...
Fernando Henrique Cardoso: Respondo a você com toda a tranqüilidade enquanto eu possa ter objetividade. Em primeiro lugar, isso tudo são meias verdades: [a questão da] maconha era uma infâmia, e aliás, quem falou disso foi para cadeia, e o outro, que não foi para a cadeia, é porque pediu sursis, porque eu protestei, ele foi para cadeia. Era uma infâmia, não tinha nada a ver. Com relação a Deus, basta ler o que está publicado na Folha, que transcreve o que eu disse. Eu nunca disse o que dizem que eu disse, nunca, está na Folha publicado; nunca disse, não fiz nenhuma afirmação desse tipo. E não acho que isso tenha sido decisivo, acho que, na verdade, houve muitos outros fatores naquela... eu poderia dar uma resposta mais malandra, como você disse, [mas] não é meu jeito.
Tonico Ferreira: Na questão da cadeira, o senhor aceitou um pedido de um fotógrafo?
Fernando Henrique Cardoso: Da cadeira, sim. Eu combinei com a Veja, eu combinei com a Veja de fazer para, no caso de ter ganho a eleição, sair a matéria da Veja.
Jorge Escosteguy: Já ter a foto pronta.
Fernando Henrique Cardoso: É isso. Aí entrou um outro fotógrafo, da Folha, e bateu a fotografia. Então, não foi que eu sentei na cadeira antes de ganhar. Agora o que adianta eu dizer isso? Não adianta nada, há sempre uma tentativa de mostrar...
Jorge Escosteguy: O senhor repetiu, repetiu, mas o Ernani de Carvalho perguntou se ainda o senhor não acredita em Deus. Vamos encerrar.
Fernando Henrique Cardoso: Por que ele acha que eu não acredito?
Jorge Escosteguy: Porque tem todas essas coisas que falaram.
Fernando Henrique Cardoso: A resposta que eu dei, eu repito, olha aqui: isso é uma questão de foro íntimo. O que se deve perguntar a um candidato não é se acredita nisso ou naquilo, é se ele respeita as religiões, se ele respeita a crença, e eu dei provas soberbas de que respeito. Agora, se perguntar, eu já respondi isso um milhão de vezes: sou batizado, casado na Santa Madre Igreja, fiz a primeira comunhão. Outro dia fui batizar meus netos e só quem sabia o rito do batismo éramos minha mulher e eu. Então, por que ficam insistindo nisso? Eu sou treinado na Igreja Católica e muito ligado aos cardeais e aos padres também.
Jorge Escosteguy: Agradecemos então a presença esta noite, aqui no Roda Viva, do ministro das Relações Exteriores, Fernando Henrique Cardoso. Agradecemos os companheiros jornalistas e os telespectadores, lembrando que as perguntas que não puderam ser feitas ao vivo serão entregues ao ministro após o programa. O Roda Viva fica por aqui e volta na próxima segunda-feira às nove e meia da noite. Até lá, uma boa noite e uma boa semana a todos.