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Memória Roda Viva

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Adib Jatene

22/8/1988

O grande cardiologista brasileiro explica as doenças do coração e como evitá-las e comenta os problemas sociais que dificultam o acesso aos médicos, aos medicamentos e aos transplantes

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Augusto Nunes: Boa noite! Começa aqui mais um Roda Viva pela TV Cultura de São Paulo. Este programa é transmitido ao vivo pela Rádio Cultura AM e pelas TVs educativas de Porto Alegre, Bahia e Piauí. É, ainda, retransmitido pelas TVs educativas de Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Espírito Santo. O programa Roda Viva é apresentado ao vivo; portanto, podemos receber perguntas formuladas pelos telespectadores através do número 252-6525. Repito: 252-6525. As perguntas serão anotadas pela Bernadete, pela Yara ou pela Lolita e, em seguida, encaminhadas ao nosso convidado desta noite, que é o doutor Adib Jatene. O doutor Adib Janete é médico e professor titular da disciplina de cirurgia toráxica da Faculdade de Medicina do Hospital das Clínicas e diretor do Instituto do Coração. O doutor Adib Janete foi, ainda, secretário da Saúde do governo de São Paulo e é, sem dúvida, um dos mais renomados e respeitados cardiologistas do Brasil. O doutor Adib Janete estará sentado ao centro de uma Roda Viva formada pelos seguintes entrevistadores: Isabela Assumpção, repórter da Rede Globo; Fábio Altman, editor-assistente da revista Veja; Ivan Ângelo, editor-chefe do Jornal da Tarde; Maria Cristina Duarte, jornalista da editora Abril e, no momento, responsável pelo projeto de uma nova revista semanal da editora; Paulo de Almeida, jornalista da editora Nova Cultural; Francisco Ornellas, chefe de reportagens do jornal O Estado de S. Paulo; Conceição Lemes, editora da revista Saúde; e Júlio Abramczyk, médico e redator médico do jornal Folha de S. Paulo. Também estará conosco, registrando alguns momentos deste programa, o cartunista Paulo Caruso. Agradecemos a presença, aqui na platéia, de alunos da Faculdade de Medicina da USP [Universidade de São Paulo] e convidados da produção, entre os quais o deputado [estadual] Fauze Carlos. Doutor Adib Janete, como é que vai o coração do brasileiro?

Adib Jatene:
Eu acho que o coração do brasileiro, de uma forma geral, vai bem. Nós temos progredido muito em vários aspectos. No estado de São Paulo, em particular, nós conseguimos solucionar, há muitos anos, um problema importante como a doença de Chagas. Já há, pelo menos, 15 anos que não há transmissão pelo barbeiro da doença de Chagas. Nós reduzimos significativamente a cardiopatia por reumatismo, as valvopatias [doenças relacionadas com as válvulas do coração]...

Francisco Ornellas: Por favor, Adib Jatene...

Adib Jatene: Pois não.

Francisco Ornellas: O senhor falou que não há transmissão pelo barbeiro. Ainda há casos de transmissão por transfusão sangüínea?

Adib Jatene: A transmissão por transfusão de sangue, ela é difícil de ser eliminada por uma razão muito simples: todo sangue coletado, ele é submetido a exame; então, faz-se a reação de Machado Guerreiro [teste para saber se o paciente é portador da doença de Chagas]. Mas não há nenhum exame no mundo, de nada, que dê 100%. Então, sempre existe a possibilidade eventual de que algum sangue passe. Eu diria que, em São Paulo, pelos dados que nós temos, o percentual de Machado Guerreiro positivo em banco de sangue é ao redor de 2%. Então, o risco de que a transmissão ocorra é pequeno - mas não se pode dizer que não exista. Agora, quando nós estávamos na secretaria, já naquela época fizemos um levantamento de crianças no primeiro ano do grupo escolar, entre as crianças de escolas rurais. Não havia nenhum caso de doença de Chagas nessas crianças naquela época. De maneira que eu acho que esse é um enorme avanço que nós já conseguimos. Outros estados ainda não chegaram a esse ponto, talvez porque...

Augusto Nunes: Eu gostaria que o senhor completasse a resposta; o senhor a interrompeu para fazer sobre o problema da transfusão.

Adib Jatene: Pois não. Em relação às cardiopatias congênitas, nós progredimos muito no diagnóstico. Ainda temos uma falha importante em relação às cardiopatias congênitas, que é a falta de relacionamento dos berçários e dos serviços de pediatria com os serviços de cardiologia e cirurgia cardíaca. Quanto à doença de coronária, nós estamos trabalhando muito nisso e já se nota alguma redução, mesmo em nosso meio. Países como os Estados Unidos, em que as medidas profiláticas já são muito mais entendidas e aceitas pela população, têm observado uma redução na incidência da doença coronária. No nosso meio, essa redução ainda não é absolutamente nítida, mas já se tem algum beneficio. De qualquer forma, ainda continua sendo a maior causa de mortalidade e a tendência é, em percentual, isso aumentar com o tempo. Porque, na medida em que se consegue controlar as doenças infecciosas, controlar a mortalidade infantil, nós vamos aumentando a perspectiva de vida; e, à medida que isso ocorre, as doenças do coração vão assumindo uma preponderância maior.

Augusto Nunes: Doutor Jatene, há pouco tempo, eu li uma entrevista - se não me engano concedida ao Jornal do Brasil - [em que] o senhor disse que o que atrapalha muito o coração do brasileiro - que pode matar, inclusive - é o mau humor. O senhor disse que as pessoas morrem de raiva, também. Está difícil manter o bom humor no Brasil, hoje?

Adib Jatene: Não; o que eu disse é que o trabalho não mata ninguém...

Augusto Nunes: Exatamente.

Adib Jatene: ...o que mata é a raiva. Mas a raiva entendida como tensão, raiva entendida como uma situação em que o indivíduo tem descarga de catecolaminas [hormônio secretados pelas supra-renais como resposta ao estresse] no sangue, em que ele sobe a pressão, tem vasoconstrição periférica, contribui para aumentar a hipertensão, nesse sentido. Não é que... Porque as tensões da vida moderna, ninguém pode evitar. Isso de o sujeito dizer: "O senhor precisa evitar o estresse"... Mas não vou evitar o estresse: o estresse está aí. O que eu posso é aprender a manejar situações de estresse para que não dê uma repercussão orgânica significativa.

Augusto Nunes: O senhor é um homem calmo, doutor Jatene?

Adib Jatene: Eu me fiz calmo. Eu...

Maria Cristina Duarte: Doutor Adib, para quem o senhor abriria o peito, se o senhor tivesse que abrir?

Adib Jatene: Se eu precisasse me operar? Ah, tem muita gente. Aqui...

Maria Cristina Duarte: Mas como é que é? Porque mulher, por exemplo, ia dizer assim: "Ah, o meu sonho é fazer plástica com o [Ivo] Pitangui!" [o mais conhecido cirurgião plástico do Brasil] O homem, a gente fala e o cara nem diz: "Toca para o Incor" [Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo], o cara diz: "Já toca para o Adib Jatene". Já é um mito. Então eu gostaria... Tem muito hipocondríaco, principalmente homem - o homem está ficando cada vez mais com medo, ele fica vendo esses programas aos domingos à noite, que sempre têm uma cura milagrosa, uma lecitina que reduz colesterol... Eles fazem qualquer coisa para não abrir - e, quando abrem, eles querem abrir com o melhor, não é? Então, como é que o senhor encaminharia a hipocondria masculina, já que a carga maior do coração é o homem? Como é que o senhor encaminharia, o que o senhor diria para ele, como é que a gente descobre que tem pessoas parecidas com o senhor aí? Quer dizer, quais são as características?

Adib Jatene: Olha, você colocou uma coisa interessante, porque você diz que quer o melhor. Eu sempre comento a atitude do brasileiro: o brasileiro é curioso, ele só quer o melhor. Se você vai disputar uma Copa do Mundo que tem 160 países e você tira o segundo lugar, perdeu. Então, eu sempre digo que não se deve procurar o melhor - o que é o melhor? Ninguém sabe o que é o melhor. O que se deve é ter gente...

[...]:
[interrompendo] Mas sabe o que é o pior.

Adib Jatene: OK, o pior, você pode saber. O importante é você ter vários bons...

[...]: A propósito...

Adib Jatene: Então, em medicina, o importante não é ter um ou dois. Um país que tem um ou dois ou três serviços bons, não tem nada...

Júlio Abramczyk: Doutor Adib...

Adib Jatene: ...porque isso não representa nada, em termos de população. Nós temos, felizmente, no Brasil, um grande número de serviços bons, e eu me deixaria operar por conta deles.

Júlio Abramczyk: Doutor Adib, quantos cirurgiões cardíacos nós temos no Brasil, atualmente?

Adib Jatene: Nós temos, hoje... esse é um programa já longo da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Há muitos anos atrás, em um congresso da Sociedade de Cardiologia, houve alguém que colocou que era mais fácil transportar o doente para São Paulo ou para outros estados do que montar serviços em várias regiões do país. Eu era formalmente contrário e continuo, e nós fizemos, na Sociedade de Cardiologia, um grande serviço, no sentido de que nós dotássemos as várias regiões do país com serviços bons. Porque grande número de pessoas - ou a maioria absoluta das pessoas que precisam de assistência médica - não pode viajar. Não consegue viajar. Então, quem consegue viajar, vai para onde queira, isso não tem problema; agora, o meu problema é com os que não podem viajar. Então, eles precisam ser tratados onde vivem. Medicina é assim: você só oferece assistência se essa assistência estiver onde as pessoas vivem. Nós temos, no Brasil, pelo menos 120 serviços de cirurgia cardíaca funcionando, de norte a sul e de leste a oeste. 

Francisco Ornellas: Por que em...

Augusto Nunes: Chico, só para completar; Fábio Altman.

Fábio Altman:
[...] mostrou que a questão das doenças cardíacas no Brasil é grave. Eu queria que o senhor me fizesse uma rápida comparação. São mais graves as doenças de coração ou a aids, por exemplo? Um problema de tratamento de uma doença como a aids, como o senhor o vê?

Adib Jatene: Olha, a aids tem uma particularidade diferente do coração: é que a aids é uma doença transmissível e é uma doença da qual você não tem, no momento, nenhuma terapêutica. Então, ela, realmente, assusta mais e ela tem ocupado muito a imprensa. Mas, se você for verificar em termos de número de pessoas acometidas, de riscos de incidência de mortalidade, nós perdemos no Brasil, por ano, mais de cem mil pessoas por doenças do coração. Só o estado de São Paulo perde mais de 25 ou 30 mil pessoas. E, se você verificar os dados da aids, os números de aidéticos representa 2 ou 3 mil casos. Então, em termos de prevalência, de incidência, não há comparação. O que ocorre...

Fábio Altman:
[...] controle...

Adib Jatene: Ah, em termo de controle, sim. Quer dizer, então, o receio sobre uma doença como a aids é a falta do controle, é você não saber como evitar que isso progrida e até a onde isso vai chegar.

Ivan Ângelo: Doutor Jatene...

Augusto Nunes: Ivan Ângelo.

Ivan Ângelo: O senhor falou, há pouco, da necessidade de se estender pelo Brasil inteiro uma assistência cardiológica maior e melhor. Então, eu queria lembrar aqui, por exemplo, a eficiência e a função social extraordinária que cumpre, por exemplo, o Instituto do Coração, que é, em todos os aspectos, um hospital-modelo na América do Sul - até no mundo inteiro. Cumpre, inclusive, a sua função social fazendo convênios, INPS [Instituto Nacional de Previdência Social, que existiu até 1990], os pobres consultam lá e tudo. Agora, como conseguir, como foi feito aqui - não digo nem no mesmo nível, mas em um bom nível -, como conseguir a eficiência que tem, por exemplo, o Instituto do Coração?

Adib Jatene: Olha...

Júlio Abramczyk:
Doutor Adib, eu poderia acrescentar, à pergunta do Ivan, uma outra perguntinha que muitas pessoas também perguntam? Ele disse que o Inamps [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, extinto em 1993], inclusive, paga o atendimento aos pacientes no Incor. Quem paga as despesas das autoridades e dos políticos que são atendidos no Incor? Depois da dele, por favor.

Adib Jatene: Depois ou antes?

Júlio Abramczyk:
Depois da dele.

[risos]

Adib Jatene:
Bem, a sua pergunta?

Ivan Ângelo: Era sobre o Instituto do Coração: como conseguir essa eficiência?

Adib Jatene: Sobre o Instituto do Coração. Bem, veja, o Instituto do Coração é um hospital público; quer dizer, é um hospital governamental. Hospital governamental, no Brasil, é um hospital suportado pelo orçamento público. Então, todos os hospitais públicos governamentais recebem um orçamento que é preparado no ano anterior com uma estimativa de inflação sempre, absolutamente irreal. Tanto que, para o orçamento deste ano, a estimativa de inflação era de 120% [a inflação de 1988 foi de 933,62%, pelo Índice de Preços ao Consumidor]. Então, geralmente, os hospitais públicos consomem o seu recurso muito precocemente e ficam dependendo de suplementações, que nem sempre são conseguidas na medida do atendimento e da necessidade. Vem daí, de repente... um hospital público falta isso, falta aquilo - não porque o administrador seja incapaz, mas simplesmente porque ele não tem, primeiro, um orçamento adequado; segundo, esse orçamento não lhe dá agilidade. Então, o que foi feito no Instituto do Coração? Não foi eu que fiz, porque, quando eu cheguei lá - eu fui para o Instituto do Coração em 1983 -, isso já estava feito. Isso é uma proposta que foi feita pelo professor [Euryclides de Jesus] Zerbini [(1912-1993), realizou o primeiro transplante de coração no Brasil, em 1968, seis meses após o primeiro do mundo], pelo professor [Luiz Venere] Décourt [1911-2007], professor Fúlvio Pillegi [presidente do Conselho Diretor do Incor de 1982 a 1997] etc. A idéia foi, realmente, muito simples: se o governo concorda que ele não tem condições de oferecer o orçamento que um hospital desse nível precisa, ele permite que o hospital capte recursos do atendimento que faz e que esse recurso não vá para o orçamento do Estado, [mas que] fique na instituição, vinculado à instituição, para ser aplicado na instituição. Desta forma, você consegue suplementar salários, corrigir distorções, contratar agudamente as coisas que você precisa e manter o nível do hospital naquele desejado para que ele possa cumprir a sua função.

Ivan Ângelo: Essa experiência pode ser transplantada para outros estados?

Adib Jatene: Essa experiência, eu acredito que os hospitais universitários têm mais. E criar, também - e isso é uma coisa fundamental, na minha opinião -, criar, também, um determinado número de leitos pequenos para doentes que possam pagar, para doentes particulares. Porque, senão, nós vamos fazer uma discriminação ao contrário - quer dizer, nós vamos discriminar contra os que podem pagar - e o que pode pagar, num hospital público, ele é importantíssimo. Por uma razão. Quem deve fazer a avaliação de um hospital? É o doente.

Ivan Ângelo: O doente.

Adib Jatene:
É o doente. Ora, se o meu hospital só tem doentes sem recursos, doentes pobres que vivem em condições desfavoráveis, qualquer hospital, para eles, é muito bom e melhor do que a casa deles. Agora, se eu ponho alguém que está pagando, esse alguém começa a exigir - e, dessa exigência, vem o aprimoramento que se vai levar a todos os doentes. Então, é uma forma interessante de se fazer com que a coisa funcione.

Augusto Nunes: Conceição.

Júlio Abramczyk: Desculpe: e a minha pergunta?

Augusto Nunes: Como?

Adib Jatene: A pergunta do Júlio.

Conceição Lemes: Depois eu faço.

Augusto Nunes: Depois, a Conceição.

Adib Jatene: As autoridades, elas não estão soltas no espaço; elas sempre têm alguma instituição que as suporte: têm o serviço de saúde do Senado, têm o serviço de saúde da Câmara dos Deputados - e o Incor tem convênio com esses serviços -, têm outros sistemas de Previdência e mesmo a própria Previdência Social, que atende essas pessoas. Geralmente, todas essas pessoas têm a cobertura da sua própria previdência.

Fábio Altman: Doutor Jatene, só uma coisinha dentro dessa questão. Augusto, só...

Augusto Nunes: Está bem; em seguida, vamos completar. Agora, Fábio Altman.

Fábio Altman: A gente sabe a excelência científica do Incor. Agora, nessa questão do atendimento a pessoas de poder, a autoridades, eu queria colocar uma questão para o senhor. Recentemente - parece-me que há cerca de um ano atrás -, o ex-ministro [do Planejamento] João Sayad [ministro de 1985 a 1987] foi acometido de uma meningite. Naturalmente, as pessoas de meningite são, em São Paulo, internadas no hospital Emílio Ribas, que trata de doenças infecciosas. O que fez que o ex-ministro João Sayad com meningite fosse internado no Incor, que é um hospital que trata do coração? Eu sei que ele foi internado no oitavo andar, que é um andar particular, em que as pessoas pagam para ser internados. Eu queria que o senhor me falasse um pouco da relação do Incor com o poder, no caso da...

Adib Jatene: Não, não é do Incor com o poder; quer dizer, o médico do ministro Sayad é médico do Incor, por acaso.

Fábio Altman: Mas uma meningite lá dentro...

Adib Jatene: Mas ele não tinha diagnóstico de meningite antes de internar, foi feito depois. De maneira que, se foi feito, foi datado...

Fábio Altman: Mas, uma vez diagnosticado...

Augusto Nunes:
Por favor, Fábio, só complete para eu poder... diga...

Fábio Altman: Mas, uma vez diagnosticado, ele permaneceu no Incor?

Adib Jatene: Foi uma coisa benigna, simples de tratar com facilidade. Meningite não é sempre uma coisa grave; tem muita meningite que é altamente benigna e trata-se facilmente em qualquer hospital geral. Aliás, todo hospital geral deveria tratar doenças infecciosas. Essa é uma reivindicação dos infectologistas: todo hospital deveria ter um setor para tratar os doentes com doenças infecciosas e não todos eles serem transportados para um hospital de doenças infecciosas. Há uma idéia de que todos os hospitais têm que ter um controle de infecção, têm que ter a sua comissão de infecção e têm que ter os seus especialistas em infecção e a área para tratar os doentes infectados. De maneira que o tratamento da infecção, é absolutamente normal que se faça em qualquer hospital.

Augusto Nunes: Doutor Júlio, em seguida o senhor vai poder falar; eu só quero completar essa roda com a Conceição, a Isabela e o Paulo. Conceição.

Conceição Lemes: Professor, no governo [do presidente João] Figueiredo [(1918-1999), presidente de 1979 a 1985] era moda, entre políticos e empresários, ir para os Estados Unidos - mais precisamente, para Cleveland - fazer tratamento de coração. Esse fluxo para os Estados Unidos, ele diminuiu de dois, três anos para cá. O que aconteceu, professor? A mentalidade das pessoas mudou ou foi a medicina brasileira que evoluiu?

Adib Jatene: Olha, eu não saberia dizer a você se esse fluxo diminuiu, aumentou ou o que aconteceu. A verdade é que eu nunca me preocupei muito com esse fluxo, porque ele representa um número muito pequeno de pessoas - e, como eu disse atrás, as pessoas que podem viajar, que têm recursos, elas têm direito de escolher, podem ir para onde quiserem. Eu não me preocupo muito com esse grupo, porque é um grupo relativamente pequeno. O que eu me preocupo - e sempre nós nos preocupamos, aqui no Brasil - é em oferecer aos que não podem viajar um nível de assistência equivalente. Se começar a haver a idéia de que as pessoas que têm recursos têm a obrigação e têm compromisso em melhorar os nossos hospitais, nós vamos progredir. O que está acontecendo é que as pessoas que realmente podem ajudar, ao invés de ajudar, criticam e, ao invés de contribuir para melhorar, elas se afastam e vão buscar esse recurso fora. Eu diria a você assim, muito secamente: quando o indivíduo vai se operar nos Estados Unidos, ele não tem nenhuma preocupação em gastar 30 ou 40 mil dólares; mas, quando ele vai se internar aqui, ele primeiro vê se ele pode operar pelo Inamps para não gastar nada.

Isabela Assumpção: Doutor Jatene, o senhor já explicou que os políticos pagam quando se internam no Incor. Agora, eu me lembro - todos nós já fizemos vários plantões na porta do Incor por conta das várias internações dos vários políticos - e eu me lembro - não no episódio Tancredo Neves [(1910-1985), presidente eleito do Brasil em 1985 e que faleceu antes de tomar posse; quando esteve doente, antes do falecimento, permaneceu 26 dias internado no Incor, enquanto o país passava por grande comoção], que era excepcional no seu todo, mas em uma outra internação de um outro político - que pessoas que se dirigiam ao ambulatório, ali na parte de baixo do Incor, ou pessoas que tinham parentes internados lá dentro, se queixavam de que o hospital tinha mudado todo o tratamento - cirurgias tinham sido desmarcadas, o ambulatório não estava dando o mesmo atendimento - porque o hospital todo tinha se voltado para aquele grande paciente internado no momento. O que acontece no Incor quando um Ulysses Guimarães [(1916-1992), deputado e presidente da Assembléia Constituinte de 1987-1988] se interna lá, ou um [senador] Mário Covas [(1930-2001), governador de São Paulo de 1995 a 2001] se interna lá, o que acontece dentro daquele hospital?

Adib Jatene: Essa idéia com que você ficou, foi bom que tenha colocado, porque não é verdadeira. Eu posso dizer a você e, se você quiser, eu pego os dados: na época em que o presidente Tancredo esteve internado no Incor, o volume de cirurgias praticamente não foi alterado e o atendimento no ambulatório, também não. É que, normalmente, no Incor, nós temos uma fila de espera grande, tanto para o ambulatório quanto para internação; então, o indivíduo vê: "Bom, o presidente está aí, eu vou ter que esperar não sei quanto tempo; isso é por causa do presidente, senão eu já estaria operado." Não é verdade. A verdade é que nós temos falta de leitos em São Paulo, como de resto no Brasil inteiro, para atender os doentes todos. Você conhece muito bem o problema do pronto-socorro do Hospital das Clínicas. O problema do pronto-socorro do Hospital das Clínicas é uma tragédia nacional! Isso, desde 1951 e não se resolve. Por que não se resolve? Porque tem que haver... A solução dos problemas no Hospital das Clínicas não está dentro do Hospital das Clínicas: está na organização do restante.

Isabela Assumpção: Mas, na hora em que o senhor tem um ministro com meningite, ele está ocupando um leito de uma pessoa que precisaria de uma coisa cardíaca...

Adib Jatene: Não, ele ocupou um leito no oitavo andar, que tem 10% do número de leitos do Incor e que é destinado para esses doentes que, realmente, podem ter condições de arcar com as despesas - que não são pequenas. De maneira que isso não perturba o atendimento dos doentes cardíacos. E a prioridade que nós temos na internação dos doentes não é por condição social, não é por nada: é por gravidade da doença. Tanto que os residentes se queixam de que, no Incor, o número de doentes mais graves, mais complicados é muito grande e chega a perturbar o treinamento deles. É o que nos levou a fazer serviços associados; temos um, agora, com o [hospital] Matarazzo [fechado em 1993], e temos um outro que vai ser começado no [hospital] Sepaco, para que os casos mais simples possam ser agilizados.

Augusto Nunes: Paulo.

Paulo de Almeida: Doutor Jatene, queria fazer uma pergunta. Quer dizer, eu queria contar um caso e dele extrair uma pergunta. No início do mês, um amigo meu apresentou sintomas: ele tinha dores nos braços com formigamento. Ele foi levado a um pronto-socorro particular e lá, depois do exame sumário, o médico concluiu que era um problema de coluna, deu um analgésico potente e disse que ele fosse para casa e repousasse. Ele ficou nessas condições, mas não foi feita mais nenhuma pergunta. Ele é uma pessoa de cinqüenta e poucos anos, fumava dois ou mais maços de cigarros por dia, pessoa de hábito sedentário. Ele estava, realmente, com angina; estava a ponto de ter um infarto. Dali a dois dias, ele teve mesmo um infarto: ele estava na rua e caiu desacordado. Por sorte, ele foi socorrido. Aí, foi levado a um grande hospital, onde foi diagnosticado que ele estava com... falaram que ele teve parada cardíaca dentro do hospital. Enfim, ele foi salvo assim, sendo levado para esse grande hospital. Só que, lá, ele, em dois dias de UTI [unidade de terapia intensiva], gastou um milhão de cruzados [moeda do Brasil de 1986 a 1989]. Então, eu queria perguntar se não deveria ser procedimento padrão dos prontos-socorros fazer uma anamnese [entrevista do médico com o paciente para conhecer os fatos relacionados à sua doença], um inquérito mais detalhado da vida do paciente quando dá entrada. E, por outro lado, se isso, na rede particular, no atendimento de uma pessoa enfartada, realmente deveria custar tanto dinheiro.

Adib Jatene: Esse...

Paulo de Almeida: Depois que ele foi parar no Incor, onde ele... [faz gesto de "ficou tudo bem"]

Adib Jatene: Esse ponto em que você tocou é realmente um ponto crucial, que está preocupando muito todos aqueles que estão envolvidos com o ensino médico, com o exercício da profissão etc. É mais ou menos preocupante a incorporação da tecnologia na medicina. Quer dizer, no momento em que a tecnologia foi incorporada na medicina - e essa incorporação vem sendo crescente -, há uma tendência de se valorizar mais os exames do que a anamnese. Então, esse é um desvio da profissão que precisa ser corrigido. Nós temos discutido muito isso. Inclusive, eu tenho uma palestra que eu já fiz umas duas, três vezes, sobre o impacto da incorporação da tecnologia na medicina e as distorções que ela criou em conseqüência disso...

Augusto Nunes: Doutor Adib, muitos telespectadores estão telefonando para fazer algumas perguntas. O senhor completou a resposta?

Adib Jatene: Não...

Augusto Nunes: Por favor.

Adib Jatene: ...eu só queria completar: então, essa situação não é, absolutamente, fora de propósito. Entretanto, tem algumas coisas que precisam, também, ser admitidas. É que o diagnóstico de doença coronária nem sempre é simples, nem sempre é fácil e pelo menos 40% dos doentes que morrem por infarto do miocárdio são surpreendidos pelo infarto.

Paulo de Almeida: Mas, em um caso desses, o senhor não acha que o médico deveria considerar que havia uma possibilidade muito grande...

Adib Jatene: Claro, não tem dúvida que isso deveria ser considerado e pode ter sido uma falha que é lamentável e que deve se evitar. Agora, quanto ao custo, realmente, o custo da assistência nos hospitais privados é muito elevada. E ela é muito elevada por várias razões que, talvez, não caiba aqui analisar. Este é um dos fatores por que instituições tipo Incor ou instituições beneficentes precisam ser realmente apoiadas: porque elas podem oferecer o mesmo tipo de atendimento para o que pode pagar e para o que não pode pagar. É sempre aquela discussão, o professor Fúlvio Pillegi diz sempre isso: daqui a pouco, o doente da classe média não pode se internar em um hospital privado. Então, nós vamos caminhar - todos os países avançados caminharam - para um tipo de seguro que o indivíduo vai ter que fazer.

Augusto Nunes: Senhor Adib, como eu dizia, muitos telespectadores estão ligando; eu queria fazer, agora, duas perguntas ao senhor.

Adib Jatene: Pois não.

Augusto Nunes: Em seguida, fala o doutor Júlio.

Júlio Abramczyk: Eu queria falar antes, para aproveitar essa deixa aí...

Augusto Nunes: Sim, mas a gente vai voltar ao assunto sem problema. Nós podemos tratar de assuntos que já foram abordados com todo o desembaraço depois. É que eu não quero deixar de fazer algumas perguntas que, como todos vemos, são muitas, é muito grande a curiosidade dos espectadores. Mas, em seguida, o senhor vai falar. Mercedes Gonzalez, de Campinas, telefonou muito emocionada para dizer, simplesmente, que quer agradecer ao senhor porque ela tem um filho que, aos 14 anos, foi operado pelo senhor e, hoje, tem 41 anos e goza de muito boa saúde. Telefonou, também, a Alexandrina Maria da Rosa, de Diadema, e ela quer, basicamente, saber se vale a pena implantar a ponte de safena, na medida em que, segundo a dona Alexandrina, 50% dos casos por ela conhecidos apresentaram obstrução na ponte de safena alguns anos depois - e ela observa, ela comenta que o marido dela, que se chamava Rodolfo Carlos Ferreira, foi operado pelo senhor há 24 anos para desobstrução e troca da válvula mitral e faleceu dez anos depois. Então, o senhor tem o caso de um paciente que o senhor salvou e o caso de um paciente que o senhor não pôde salvar ou, pelo menos, o senhor garantiu a sobrevida...

[risos]

Augusto Nunes:
Como é que é, para um médico, conviver o tempo todo com essa presença da morte? Como é que o senhor consegue, apesar de tudo, ser um homem calmo?

Adib Jatene: Eu agradeço a dona Mercedes, muito obrigado. Quanto a esse aspecto que você coloca: primeiro - isso é uma correção -, não é verdade que 50% das pontes se obstruem. O que acontece - e isso é fácil de entender - é: a doença coronária que se opera, ela continua. O que a cirurgia faz é evitar as conseqüências da obstrução. Quer dizer, quando uma artéria coronária se oclui, o músculo que é irrigado por essa artéria fica sob risco e pode morrer: esse é o infarto.

Augusto Nunes: Perfeito.

Adib Jatene: Então, quando se faz uma ponte de safena, coloca-se sangue depois da obstrução. Se a obstrução se completar, não acontece nada, porque já tem sangue nas porções distais. Mas a doença, a ateriosclerose coronária, a cirurgia não faz nada com ela. E essa é uma doença muito caprichosa, porque nós não conhecemos exatamente a causa. [Suponhamos que] você, por exemplo, tenha poliomielite. Poliomielite é um vírus. Você tem uma vacina. Então, você aplica a vacina e as pessoas não têm poliomielite - porque eu sei a causa e sei evitar. Agora, a aterosclerose coronária, eu não sei a causa. Então, eu não sei evitar. Mas eu sei que tem fatores que influem: o fumo influi, hipertensão influi, o aumento das gorduras no sangue por colesterol influi, o excesso de peso influi, a falta de exercício influi, o diabetes influi...

Maria Cristina Duarte: Então, um candidato à presidência, se ele for safenado, seria um desastre? [ainda era recente o episódio de Tancredo Neves, primeiro presidente civil eleito após o fim da ditadura militar, mas que morreu de infecção hospitalar antes de tomar posse, em 1985]

Adib Jatene: Eu chego lá. [risos] A vida sedentária, como eu dizia, influi, as tensões influem. Então, as pessoas se operam muitas vezes, mas não cuidam dos fatores de risco: continuam fumando, não fazem exercícios, têm excesso de peso, não controlam as gorduras etc...

Maria Cristina Duarte: O que acontece com elas?

Adib Jatene: Acontece que a doença progride. E progride tanto nas artérias que ele tem como nas veias. Mas é que não é surpreendente isso, não é surpreendente.

Júlio Abramczyk: Mas, então...

Adib Jatene: Então, o que se precisa é que as pessoas que se operam...

Maria Cristina Duarte: E não dá para ir fazendo pontes e pontes e pontes.

Adib Jatene: Não, podem reoperar: tem doente que já foi operado duas, três vezes e o risco não é significativamente maior. O que é necessário é que as pessoas tenham a consciência de que a operação não atingiu a doença: a operação evitou as conseqüências da obstrução...

Júlio Abramczyk: Mas, então, em resumo... 

Adib Jatene: Espere aí, deixa eu responder para ela!

[risos]

Júlio Abramczyk:
Não, só para aproveitar isso... A ponte de safena, ela melhora apenas a qualidade de vida ou permite uma sobrevida maior?

Adib Jatene: Bom, ela... já existem muitos dados na literatura que permitem dizer que ela não só melhora a qualidade de vida - porque ela é uma coisa que, realmente, é eficiente contra o sintoma -, mas prolonga a vida. [Sobre] isso não há muito o que se discutir mais; já existem inúmeros... uma cirurgia que está sendo feita há mais de vinte anos - há mais de vinte anos -, ela tem que ser eficaz, porque os procedimentos que não são eficazes não duram.

Júlio Abramczyk: Mas a angioplastia está entrando agora.

Adib Jatene: A angioplastia é um procedimento eficaz.

Júlio Abramczyk: E ela vai afastar a ponte de safena, vai acabar com a ponte?

Adib Jatene: Não, porque as indicações não são coincidentes. Há casos que poderiam ser operados que nós, cirurgiões, mandamos para a angioplastia, porque nós sempre defendemos o procedimento mais simples e de menos risco para o doente.

Francisco Ornellas: Mas o senhor votaria num safenado?

Adib Jatene: Deixa eu responder...

Augusto Nunes: Antes de responder à Cristina: o senhor falou em angioplastia. A Liamar tem um marido que vai fazer uma angioplastia amanhã no Incor; ela queria que o senhor explicasse o que é, exatamente, uma angioplastia...

Adib Jatene: Eu explico já; mas, primeiro, eu vou responder para ela.

Maria Cristina Duarte: É bom repetir [a pergunta]: um safenado no poder é um desastre, num país mal-humorado?

Adib Jatene: Não, não é. Eu acabei de dizer que os doentes precisam controlar os fatores de risco. E tem safenado que fumava três, quatro maços de cigarros e que não fuma mais nenhum cigarro, que controla o peso, que acerta as coisas. Este, provavelmente, está melhor do que um que não sabe se tem a doença. Quer dizer, se você pega alguém, você vai votar em alguém que não foi operado, que não tem a doença, eu não sei se ele tem ou não tem a doença. De repente, ele pode ter problema...

Júlio Abramczyk: ...mas não sabe de nada.

Adib Jatene: Agora, este que tem e que se cuida, que está bem orientado etc, talvez seja até mais seguro.

[risos]

Maria Cristina Duarte:
Obrigada.

Augusto Nunes: [O que é] uma angioplastia?

Adib Jatene: Em relação à angioplastia. A angioplastia é o seguinte. Esse foi um avanço extraordinário feito por um suíço; chama-se doutor [Andreas] Gruentzig [1939-1985]. Esse homem trabalhava na Suíça e, na Suíça - como, de resto, nos outros países da Europa -, não existem grandes serviços: os serviços são mais limitados, a coisa é mais ligada com determinado conjunto populacional etc - diferente dos Estados Unidos. Então, o doutor Grunzik foi trazido para Atlanta, nos Estados Unidos. E ele estava fazendo um serviço fantástico em Atlanta. Todo o pessoal nosso que faz angioplastia aqui foi treinado pelo doutor Grunzik. Aliás, nós temos gente que foi treinada e participou do grupo inicial de avaliação do procedimento. O doutor Grunzik, ele tinha um avião, um jato particular dele, e ele pilotava. E ele sofreu um acidente em uma tempestade e morreu no ano passado. De maneira que foi uma perda enorme. Mas, voltando à angioplastia. A angioplastia é o seguinte. Você tem uma artéria - artéria é um tubo, conduto de sangue -, e ali se forma, no interior, uma placa de ateroma [formação gordurosa na parede das artérias que pode estreitar a passagem do sangue] que reduz, diminui a luz [espaço interno de órgãos tubulosos] da artéria. Então, o que o Grunzik imaginou foi o seguinte: eu vou pegar um cateter especial fininho que tenha um balão na ponta e eu entro com esse balão desinsuflado, e vou com esse cateter e coloco na obstrução. E, aí, eu insuflo o cateter. Então, eu esmago essa placa contra as paredes da artéria e seguro esse cateter insuflado por algum tempo. Quando eu tiro, essa obstrução desapareceu. Então, isso é uma coisa que realmente funciona. Só que existem alguns problemas. E o problema é que há um percentual de recidiva [reincidência], que, em seis meses, é ao redor de 25%, 30%. Mas todo doente que faz o procedimento, ele sabe dessa possibilidade, ele vai ser acompanhado e ele poderá fazer uma outra angioplastia. A vantagem da angioplastia sobre a cirurgia é que é um simples cateterismo - não abre o tórax, não faz nada. Dois dias depois, o sujeito volta para a sua atividade. Então, o método é mais simples. Tem alguns inconvenientes, porque o índice de recidiva é mais alto, mas pode ser repetido. Então, na verdade, o que nós temos são dois procedimentos para se tratar: um, que é a angioplastia, e o outro, que é a cirurgia.

Augusto Nunes: Doutor Adib, só faltou o senhor responder aquela primeira pergunta: como é que o senhor faz, lidando permanentemente com casos dramáticos, para manter a serenidade e para ser um homem calmo?

Adib Jatene: Olha, o que você faz é muito simples. Quando você tem a consciência de que você fez o melhor que você pôde... porque eu costumo dizer que o médico - especialmente o cirurgião -, ele aprende [com ênfase] duramente as limitações que ele tem. E ele tem que aceitar as limitações. As pessoas que são mais pretensiosas, elas pensam que podem tudo, que são capazes de tudo. Não são. O médico sabe que ele não é, porque, por melhor que ele faça, ele perde doente, ele sofre com a família. Então, você tem que aceitar a sua limitação. Ninguém é onipotente para não ter insucessos e os insucessos existem, e o indivíduo tem que ter humildade para aceitar o insucesso. Só que ele tem que ter a consciência de que ele fez o melhor. Eu digo aos estudantes e digo aos residentes: você sabe que você tratou bem um doente quando você perder o doente e você puder ir ao velório.

Isabela Assumpção: Doutor Adib, o senhor participou, na semana passada, de um fato raro nesse lado do mundo, na medicina, que foi aquele transplante múltiplo, de um doador para vários receptores. Há uma questão ainda um pouco polêmica em relação a esse transplante, pois a mãe da doadora questiona a forma como a doação acabou sendo feita. A gente se lembra, ainda, daquele episódio de Taubaté, onde a reputação de vários médicos foi maculada com questionamentos, também, sobre como os órgãos foram obtidos. E a gente sabe, também, que existem muitos doentes morrendo por falta de doação de órgãos. Entretanto, parece que a nossa nova Constituição [que seria promulgada em 5 de outubro, quase três meses após esta entrevista] não vai ajudar nada: nem a quem possa doar, nem a quem tem a receber. O que aconteceu? O que se esperava, o que os médicos esperavam que se avançasse em termos de legislação não aconteceu?

Adib Jatene: Olha, você tocou em um assunto muito interessante e eu acho que isso precisa ser esclarecido. Nesse caso dessa moça, a imprensa divulgou em televisão e jornal que houve uma pressão exagerada sobre a família e que se teria dito que os órgãos seriam usados com ou sem autorização. Aqui, cabe uma explicação que é muito importante, porque não foi isso, exatamente. Eu não tinha apurado nada quando me perguntaram da primeira vez, mas eu já tenho absoluta certeza de que não foi assim. O que acontece é o seguinte. O que se informa à família é que esses casos que são conseqüência de atropelamento, enfim, tiro ou coisa que o valha; são casos policiais. E, nos casos policiais, obrigatoriamente - quer se tenha autorização, quer não se tenha -, faz-se a autópsia e tira-se os órgãos na autópsia. Não para usar, lógico, porque, se pudesse tirar sem autorização, não iria pedir autorização, não tem sentido. Então, na verdade, a informação que se dá à família... porque em muitas famílias - aliás, eu acho que em todas -, o receio que eles têm é que se vá violar o cadáver, mutilar o cadáver, que se vá abrir o cadáver etc. Então, o que se explica, o que se informa a família, é isso: o cadáver vai ser aberto de qualquer jeito porque vai fazer autópsia, quer se dê autorização, quer não se dê. Só que, se for autópsia no Gabinete Médico Legal, os órgãos não vão servir para ninguém; e, se for dada a autorização e isso for feito em uma sala de cirurgia, os órgãos podem servir. Então, essa é a coisa que [pode levar] a família, às vezes, naquela emoção, naquela coisa, a confundir a informação. Mas isso, honestamente, é uma informação que tem que ser transferida para a família. E, no caso, o pai reconhece que ele entendeu e doou etc. A mãe, coitada...

Isabela Assumpção: Agora, para gente simples em um momento de dor...

Adib Jatene: Claro.

Isabela Assumpção: ...explicar tudo isso para determinadas pessoas é muito complicado.

Adib Jatene: É difícil, é difícil.

Isabela Assumpção: Se a legislação fosse diferente, não seria mais fácil?

Adib Jatene: Olha, há países em que a legislação é diferente: na França e na Itália é assim. Quer dizer, se, em vida, o indivíduo não se manifestou contra a doação, então o órgão pode ser retirado. Mas eu acho que isso agride um pouco o brasileiro. O brasileiro é um povo sentimental. Eu, pessoalmente, me considero um sentimental. Eu não gostaria que, com alguém de minha família, acontecesse isso. Eu gostaria de ser consultado.

[sobreposição de vozes]

Augusto Nunes:
A Conceição vai fazer a última pergunta da primeira parte do programa. Conceição.

Conceição Lemes: Professor, neste momento, no Brasil, várias pessoas com indicação de ponte de safena estão optando pela quelação. Pelo que o senhor sabe, que riscos essas pessoas estão correndo ao deixarem de fazer o tratamento convencional para a doença?

Adib Jatene: Olha, eu já... esse problema da quelação precisa ser tratado de uma forma muito clara. Veja, eu não ponho em dúvida a honestidade profissional dos que fazem quelação. Não ponho em dúvida. O que eu não consegui ver ainda é... porque o método científico, ele tem uma metodologia que não foi inventada por acaso. Quer dizer, todo procedimento novo - e esse é um conflito permanente entre medicina e imprensa -, todo procedimento novo, ele é olhado com alguma reserva. Por quê? Porque já houve [com ênfase] inúmeros episódios na literatura em que um medicamento ou um procedimento que parecia excelente, que parecia capaz de oferecer bons resultados, com o tempo se mostrou ou ineficaz ou capaz de provocar malefícios. Então, [para] todo procedimento, tem que se demonstrar a inocuidade e a eficácia. Olha, para você demonstrar a eficácia, não é tão simples quanto à primeira vista parece. Porque você fazer em um determinado grupo de pessoas e dizer "o resultado foi bom", isso não satisfaz. Você precisa de grupos-controle. E como é que você faria, nesse caso, um grupo-controle? Você tem que tomar um grupo de doentes em que você faz a cinecoronariografia [ou cineangiocoronariografia, técnica para se fazer imagens das artérias e veias do músculo do coração]; demonstra as lesões e vê como elas são, como estão; coloca esses indivíduos diante do problema de que eles estão participando de uma experimentação clínica e [pergunta] se eles autorizam tratamentos alternativos; sorteia - faz com um grupo, um tratamento; com o outro grupo, outro tratamento -; e vê o resultado a longo prazo. Isso, até onde eu estou informado, não foi feito. Então, por isso, eu não posso opinar...

Conceição Lemes: Por enquanto, professor...

Augusto Nunes: Conceição, desculpe, nós podemos até voltar ao assunto depois, mas eu preciso interromper agora a nossa conversa para um ligeiro intervalo. O Roda Viva com o doutor Adib Jatene volta já, já.  

[intervalo]

Augusto Nunes:
Retomamos aqui a nossa conversa com o doutor Adib Jatene que, realmente, dispensa apresentações. E eu digo isso muito raramente neste programa. Conceição Lemes - eu tinha interrompido a Conceição quando ela estava no meio de uma conversa com o doutor Adib Jatene. Conceição.

Conceição Lemes: Professor, diante disso que o senhor expôs, o que o senhor aconselharia a uma pessoa que tem a indicação de ponte de safena e está pensando em fazer a quelação?

Adib Jatene: Bem, veja...

Júlio Abramczyk: O Conselho Regional não proibiu o emprego da quelação?  

[...]: Precisa explicar o que é quelação também, muitos não sabem.

Júlio Abramczyk: Também, exatamente.

Adib Jatene: A quelação é um procedimento em que se faz a injeção de uma solução que contém vários elementos. O principal é um medicamento que se usa para o sangue não coagular. Quando você tira sangue do doador, usa um anticoagulante nesse frasco, para que o sangue não coagule e fique lá. Porque esse medicamento, ele tira o cálcio do sangue e, sem cálcio, o sangue não coagula. Então, inicialmente, a idéia é de que a quelação funcionava retirando cálcio. Ficou demonstrado que, na verdade, não é um mecanismo adequado. Mas tem outros mecanismos, principalmente sobre os radicais ácidos etc, os radicais livres [substâncias produzidas pelo metabolismo, constituídas de fragmentos de moléculas, que têm capacidade muito grande de reagir quimicamente com as substâncias ao seu redor]. E parece que pode, eventualmente, ter algum efeito e muitos doentes se sentem bem. Agora, o problema é que, quando existe uma placa de ateroma que já atingiu um grau determinado, até onde eu tenho conhecimento, esse método não reduz a importância dessa placa. E eu já tive oportunidade de operar vários doentes que fizeram o procedimento e, inclusive, atendendo a eles, que tiveram infarto, quem fez a quelação diz... eu já atendi muitos doentes que fizeram ponte de safena. Mas nós estamos dizendo que a ponte de safena, ela realmente pode [fazer] progredir a doença, desde que não se tome os cuidados necessários. E, às vezes, mesmo tomando todos os cuidados, de maneira que é uma coisa...

Maria Cristina Duarte: Doutor Adib, mulher não tem coração?

Adib Jatene: Eu já te respondo deixa eu só terminar. Eu diria o seguinte: o conselho que eu dou é que o doente deve ter o seu médico de confiança e ele deve seguir a prescrição do seu médico de confiança. Essa é a melhor coisa a fazer, porque cada doente tem um psiquismo, tem um problema, enfim. E só o médico que conhece bem o doente pode orientá-lo. Por isso é que nós defendemos... somos contra e ficamos altamente preocupados com o sistema de saúde, que leva à ruptura do vínculo entre o médico e o paciente. Um dia ele vai em um médico, outro dia ele vai no outro.

Maria Cristina Duarte: Doutor Adib, eu estou preocupada com esse problema, que é o seguinte.

Adib Jatene: Deixa eu responder essa...

Maria Cristina Duarte: Parece que mulher não tem coração. Sempre que eu ouço falar de coração, fala-se sempre no masculino. Como é que está o coração da mulher? Eu ouvi dizer que prolapso da válvula mitral  é o que mais ela tem. É verdade ou não? É um nome legal, bonito...

Adib Jatene: É bonito...

Augusto Nunes: Aliás, há muitas perguntas [dos espectadores] relacionadas com isso, querendo ouvir o senhor sobre essa questão.

Adib Jatene: Mulher tem coração, evidentemente. O problema...

[risos]

Adib Jatene:
...o problema é que o perfil hormonal... Essas doenças - por exemplo, a ateriosclerose coronária, ela é menos freqüente na mulher. Entretanto, está aumentando, porque a mulher está mudando o seu comportamento: ela está entrando, vamos dizer, no mesmo tipo de vida do homem; ela está fumando mais que os homens; ela freqüentemente usa pílula anticoncepcional - e a associação da pílula com o fumo é excelente para criar problemas vasculares. Então, está aumentando a incidência na mulher. Então, um privilégio que ela tinha no passado, está perdendo. Agora, há outras doenças, como...

Maria Cristina Duarte: Mas ela explode: quer dizer, não é porque ela resolva o mau humor com lágrima... quer dizer, não é essa coisa mística de dizer [em tom debochado] "é porque ela chora, porque ela grita, bate o pé, esperneia." Não é uma coisa... não é por aí.

Adib Jatene: Eu acho que não é por aí. Talvez, não sei. Isso é uma coisa que eu não saberia te responder.

Francisco Ornellas: Doutor Adib, já se disse - e o senhor, com outras palavras, já se referiu a isso ainda há pouco - que o médico é o profissional da vida, mesmo porque, quando ele não tem mais nada a fazer, passa para o outro lado, o lado "padre". Como profissional da vida, o que o senhor diz do aborto - como uma questão também de saúde pública?

Adib Jatene: Eu, pessoalmente, sou totalmente contra o aborto. Eu tenho uma questão, assim, de ordem pessoal. Quando a minha mãe estava me esperando, ela teve uns problemas e houve um médico que quis fazer o aborto...

Francisco Ornellas: Mas o senhor foi secretário da Saúde do estado [de São Paulo] e enfrentou o problema do aborto como problema de saúde pública?

Adib Jatene: Sim, é um problema realmente importante, o problema do aborto. Eu me posiciono muito mais em direção à posição da Igreja do que em sentido contrário. Eu acho que o planejamento familiar deve ser feito, nós temos que conscientizar as famílias, nós temos vários recursos para utilizar. Mas sou contra, uma vez feita a concepção, que você interrompa, a não ser que existam razões importantes: que seja conseqüência de estupro, que seja em uma situação de uma mulher que tem, por exemplo, uma cardiopatia grave que não possa suportar a gravidez. Quer dizer, há razões médicas para se fazer o aborto.

Francisco Ornellas: O médico que chegou a receitar o aborto à senhora sua mãe, por acaso, teve algum problema de coração?

Adib Jatene: Esse não, que eu saiba. [risos]

Júlio Abramczyk: Doutor Adib, o senhor falou na relação médico-paciente e disse que cada paciente deve ter o seu médico. E isso é impraticável para a população brasileira. O senhor foi, uma vez, a Cuba e ficou entusiasmado com o atendimento médico à população. O senhor vê alguma possibilidade de aproveitar essa experiência aqui no Brasil?

Adib Jatene: Não, eu não acho que seja impossível, viu, Júlio. Esse é um problema de se colocar a coisa do seguinte jeito. Veja, cada profissão tem suas características, que devem ser respeitadas. A medicina está sendo muito confundida dentro da grande área da saúde e eu digo sempre que as ações de saúde são diferentes das ações [contra] doença. As ações de saúde... "saúde" é um termo muito genérico; a Organização Mundial de Saúde criou um slogan, "Saúde para todos", [para] o ano 2000 e, quando criou esse slogan, deu uma ênfase muito grande, na Conferência de Alma Ata [realizada em 1978 no Cazaquistão, então território da antiga União Soviética], à atenção primeira de saúde ou serviços básicos de saúde. Então, saúde, [como] definida pela Organização Mundial de Saúde, é um estado de bem-estar físico, psíquico e social. Outro dia, o [médico] Pedro Kassab [1930-2009] disse que isso não é definição de saúde, isso é definição de felicidade. Quer dizer, o sujeito que tem o bem-estar físico, psíquico e social é um sujeito feliz. Mas esse termo ficou tão abrangente que complicou um pouco a doença. Então, eu digo: saúde é água, esgoto, habitação, alimentação, controle de endemias, imunização, controle de qualidade de alimentos, qualidade de medicamento, esporte, lazer, transporte, salário - quer dizer, saúde é um grande... e doença? Então, quando você chega na doença, aí, então, a coisa complica, porque, para atender essas coisas de saúde, tem muitos profissionais e muitos tipos de atividades: não é o médico que vai fazer um serviço de água encanada e tratada, não é o médico que vai cuidar do abastecimento de alimentos, não é o médico que vai combater a endemia, não é o médico que vai até fazer a vacinação - porque, para botar a gotinha na língua, não é o médico que faz, são pessoas que você treina. Bem, quando você entra na parte da doença, aí é o médico. Porque a prevenção que o médico faz não é da doença: geralmente, quando a pessoa chega no médico, ela já está com a doença. A prevenção que o médico faz, como ele chamou muito bem a atenção, é da complicação da doença. Quer dizer, ele tem obrigação de fazer o diagnóstico para evitar que apareçam as complicações - esse é o papel do médico. Agora, para que ele possa fazer isso com eficiência, ele realmente tem que ter um vínculo com o paciente. Porque você atender... você é médico, atendeu o doente [só] uma vez, [aí] fica difícil você saber todo o perfil desse doente, da sua família, das suas condições...

Augusto Nunes: Doutor Adib...

Adib Jatene: ...mas, se esse for um doente que você atende freqüentemente, você se orienta muito melhor. Agora, você diz "impossível". Desculpe, Augusto, deixa eu só terminar.

Augusto Nunes: Por favor.

Júlio Abramczyk: E quanto aos médicos de Cuba?

Adib Jatene: Você diz "impossível". Bem, depende. Porque todo mundo diz que o médico precisa ser interiorizado. Interiorizado onde? No interior do país? Ou no seio da população? A população que menos tem acesso a médico é a população da área periférica de São Paulo, porque o médico vai lá, fica duas horas no centro de saúde, no fim de semana não está, de noite não está... Então, você tem que levar o médico aonde vive a população. Isso, em Cuba foi feito. E lá é fácil fazer. Na Inglaterra, foi feito; lá, também é fácil fazer. Eu digo na Inglaterra, aonde o médico for - médico ou médica, para não fazer discriminação -, a família aceita ir, porque as condições de vida são boas em qualquer lugar. Em Cuba, aonde ele for, a família tem que ir, porque só tem um empregador, ele não tem escolha. Agora, aqui, que somos um país democrático, em que o indivíduo tem liberdade de ir e vir, o médico, ele geralmente não mora em determinadas áreas da cidade, ele mora em outra área da cidade. Nós temos uma setorização das nossas cidades. Os urbanistas tinham que ver isso aí. Por que nós temos que ter essa setorização? Então, nós temos que resolver esse problema e temos que pôr o médico onde mora a população e onde estão os seus clientes. Esse é um desafio que precisa ser...

Augusto Nunes: Doutor Adib, nós queremos lhe informar que o governo anunciou, agora à noite, o aumento do combustível, que começa a vigorar já, a partir de meia-noite. A gasolina passa a custar 162 cruzados, o álcool vai a 102 cruzados e o óleo diesel, a 80 cruzados o litro. Mais informações sobre os aumentos daqui a pouco, no Jornal da Cultura.

Adib Jatene: E como ficar calmo...

Augusto Nunes: Como o senhor vê, o brasileiro convive com o sucessivos sobressaltos.

Adib Jatene: Mas isso, eles já esperavam...!

[risos]

Augusto Nunes:
Doutor Adib, um minutinho. É que muitos telespectadores estão telefonando para saber mais coisas relacionadas com a doação de órgãos. O Vagner Lanfrei, por exemplo, do Paraíso, queria que o senhor dissesse como deve proceder a pessoa interessada em fazer a doação de algum órgão. E a Isabela Assumpção também tem perguntas ligadas a esse mesmo assunto. Você quer fazer agora, Isabela? Aí, o senhor responderia isso. Por favor.

Isabela Assumpção: Uma coisa que me preocupa: o Hospital das Clínicas... No caso de transplante de coração, especificamente, o Incor se serve de doadores obtidos a partir do atendimento do Hospital das Clínicas.

Adib Jatene: Não só.

Isabela Assumpção: Mas em grande parte, certo?...

Adib Jatene: Não diria...

Isabela Assumpção: Não se socorre tanto, por exemplo, do SPTx [serviço de coleta e informação sobre órgãos disponíveis para transplante], que é aquele serviço de coleta...

Adib Jatene: Sim, o Incor faz parte do SPTx. O [cardiologista] doutor [Alfredo Inácio] Fiorelli, que você conhece, faz parte do SPTX...

Isabela Assunção: Mas, normalmente, os transplantes feitos no Incor são feitos a partir de doadores que vieram a falecer no Hospital das Clínicas.

Adib Jatene: Não. Eu diria a você que mais da metade dos casos vieram de outros lugares.

Isabela Assumpção: A queixa que eu ouço de outros médicos, outros cirurgiões é que o Incor tem mais facilidade em fazer transplante de coração do que outros hospitais, que outros hospitais lutam com dificuldade para conseguir doadores - uma coisa que não acontece tanto no Incor. E que, muitas vezes, um paciente de outro hospital pode ser preterido, um paciente até terminal pode ser preterido em benefício de um que esteja no Incor, porque, lá, a fila anda mais rápido. Isso é verdade, não é?

Adib Jatene: Eu não diria isso. Não diria. Há um esforço no sentido de se conseguir doador, realmente, e se procura... Mas veja, este ano, nós fizemos, até aqui, oito transplantes.

Isabela Assumpção: Mas, por exemplo, o Hospital do Coração...

Adib Jatene: No ano passado, nós fizemos 17.

Júlio Abramczyk: A fila de espera, hoje, de quanto é?

Isabela Assunção: O Hospital do Coração, onde o senhor também opera, ficou cinco meses sem poder fazer nenhum transplante por falta de doador, Não teve nenhum. E muito gente morreu nesse período, na fila...

Adib Jatene: Mas nós chegamos a ficar dois meses, quase três meses sem ter nenhum doador...

Francisco Ornellas: Quantos pacientes estão a esperar um doador hoje, professor Jatene?

Adib Jatene: Você não coloca... Hoje deve ter uns 26 doentes na fila de espera, no total, em São Paulo.

[alguns falam simultaneamente]

Adib Jatene:
Não. Você não coloca muita gente na fila de espera propositalmente. Primeiro, porque você tem que... o doente, para ser candidato a transplante, não basta que ele tenha uma insuficiência cardíaca terminal: é preciso que ele tenha um perfil psicológico, uma condição psicossocial que permita, primeiro, que ele entenda o procedimento ao qual ele vai se submeter - e grande número de pessoas não conseguem entender, eles pensam que a coisa vai operar, está resolvido e não tem mais problema e tal. Ele tem que fazer, no primeiro mês, biópsia semanal. Depois, nos primeiros três meses, ele tem que fazer biópsia quinzenal. Biópsia é um procedimento complicado porque entra-se pela veia jugular, vai com uma pinça dentro do coração, tira um fragmento para fazer exame. Ele tem que tomar medicamento [com ênfase] rigorosamente, ele não pode falhar. E nem sempre você tem esse perfil, porque, muitas vezes, o doente é um alcoólatra, o doente tem condições de ambiente em que ele está mais sucetível a infecções. Então, tudo isso precisa ser administrado com muito cuidado. E, também, você não pode, tendo tão pouco doador, levantar uma expectativa em um número muito grande de pessoas que, depois, não se cumpre.

Francisco Ornellas: Doutor Jatene, qual o estado atual de saúde dos sete pacientes de transplante da semana passada no Incor?

Adib Jatene: São seis e não sete.

Francisco Ornellas: Seis e houve um sétimo, houve um transplante de coração na terça-feira.

Adib Jatene: É, os seis pacientes que usaram os órgãos daquela moça estão todos bem. O outro, que foi operado no dia seguinte, esse teve vários problemas. Inclusive, ele faleceu de sexta para sábado.

Fábio Altman: Doutor Adib, na Holanda, assim que uma pessoa morre, os órgãos dessa pessoa passam a ser de propriedade do Estado. O que, de alguma forma, facilita, obviamente, as doações. O senhor acha que esse seria o caminho no Brasil - na [Assembléia] Constituinte [que culminaria com a promulgação da nova Constituição do Brasil, dois meses após esta entrevista, em 5 de outubro de 1988], por exemplo?

Adib Jatene: É isso que eu já estava falando com a Isabela. Quer dizer, é um caminho. Não sei se aqui, no Brasil, seria a coisa mais aconselhável.

[sobreposição momentânea de vozes]

Adib Jatene:
Na Suécia, por exemplo, você veja... depende. Cada país tem um perfil...

Fábio Altman: Tem a mentalidade...

Adib Jatene: Cada país tem um perfil. Na Suécia, por exemplo, não se tira coração para transplante. Porque na Suécia eles não aceitam, ainda, sob o ponto de vista legal, a morte cerebral. Eles estão em processo de introduzir isso. Porque é cultural, é o povo que não aceita...

Maria Cristina Duarte: Mas com tanta morte...

Adib Jatene: Mas eles fazem o transplante na Suécia, porque eles vão buscar na Holanda, na Bélgica, na Noruega...

Maria Cristina Duarte: Mas, doutor Adib, com tanta morte, como o senhor aferiu - e, até, o senhor fez uma conta que deu maior do que a morte por aids -, por que não...

Adib Jatene: Não, maior não: [com ênfase] incomparavelmente maior.

Maria Cristina Duarte: Então, incomparavelmente maior. Então, havendo uma coisa incomparável e incurável, por que não tem uma campanha? O senhor mesmo disse que o senhor era sentimental. Por que não fazer uma campanha para se "dessentimentalizar" um pouco a população e motivá-la, já que o coração tem mais a ver com o amor - ainda tem desse apelo - e fazer uma campanha para essa doação...

Adib Jatene: Sabe...

Maria Cristina Duarte: ...ao invés, de só centralizar na peste? Por que não para a vida; por que na peste?

Adib Jatene: Isso! O que nós estamos fazendo...

Maria Cristina Duarte: Porque essa morbidez?

Adib Jatene: O que nós estamos fazendo aqui hoje é isso. Quer dizer, o que nós estamos tentando fazer é um processo de conscientização. Eu acredito sinceramente que a lei - o Brasil é um país que tem muita lei não cumprida -, que a lei será cumprida na medida em que ela for a consolidação de uma consciência...

[...]: Mas a lei não poderia agilizar essa consciência mais...

Adib Jatene: Quer dizer, o nosso processo é de conscientização e de educação. Nós estamos na TV Educativa...

Ivan Ângelo: Doutor Jatene...

Adib Jatene: ...discutindo o assunto, tentando conscientizar. A imprensa tem ajudado, tem feito esse processo. Mas isso é lento...

Ivan Ângelo: Professor.

Adib Jatene: Nós não podemos querer impor de repente uma coisa que violenta as pessoas.

Augusto Nunes: Ivan Ângelo.

Adib Jatene: As pessoas têm que ser respeitadas na sua maneira de ser, especialmente em um momento desses. Então, eu acho que nós vamos conseguir. Agora, eu estou absolutamente convencido de que não é a autorização da família o maior entrave que nós temos. O maior entrave que nós temos é a falta de organização dos serviços de emergência.

Maria Cristina Duarte: Sim.

Adib Jatene: Eu chamei a atenção sobre o problema da emergência do Hospital das Clínicas. Vá você hoje no pronto-socorro do Hospital das Clínicas e vá ver quantos doentes estão em maca no corredor! Isso não é de hoje. Em 1951, o doutor Jânio Quadros era governador do estado [de São Paulo; na verdade, foi-o de 1955 a 1959, e prefeito da cidade de São Paulo de 1953 a 1954] e eu era estudante. Eu o assisti chegar no pronto-socorro do Hospital das Clínicas e criar um grande problema e demitir o diretor do Hospital das Clínicas, porque o pronto-socorro estava com macas no corredor. Vá hoje no pronto-socorro do Hospital das Clínicas: as macas continuam no corredor e os municípios da Grande São Paulo não resolveram o seu problema de emergência, põem em uma ambulância e levam para o Hospital das Clínicas.

Augusto Nunes: Doutor Adib...

Adib Jatene: E os serviços de emergência periféricos não estão suficientemente suportando...

Augusto Nunes: Doutor Adib...

Adib Jatene: Então, eu acho que isso poderia nos dar um grande avanço: se os serviços de emergência fossem realmente organizados e [estar] realmente em condições de dar o atendimento máximo para os doentes.

Augusto Nunes: Doutor Adib, antes da pergunta...

Adib Jatene: Mais do que a família. Não é a família: tem muita família que telefona oferecendo.

Maria Cristina Duarte: Sei.

Augusto Nunes: Doutor Adib, antes da pergunta do Ivan Ângelo, eu lembro que muitos telespectadores estão observando que alguém interrompeu o senhor quando o senhor estava falando sobre a incidência do prolapso cardíaco na mulher...

Adib Jatene: Ah, o prolapso...

Maria Cristina Duarte: É, prolapso da válvula mitral, que eu achei que era...

Adib Jatene: Desculpe...

Augusto Nunes: Em seguida, [falará] Ivan Ângelo.

Adib Jatene: Essa é uma coisa realmente importante. Veja, até alguns anos atrás, ninguém falava em prolapso. Depois se descobriu que existia um ruído especial que correspondia ao prolapso, chamava-se um click...

[...]: O que é prolapso?

Adib Jatene: Eu já chego lá. E, depois, introduziu-se o ecocardiograma. Então, quando você faz um ecocardiograma, a válvula - eu tenho que voltar um pouco na anatomia - a válvula... o coração é um músculo que tem quatro cavidades: átrio direito, ventrículo direito, átrio esquerdo e ventrículo esquerdo. Do ventrículo esquerdo, sai a aorta; e, do ventrículo direito, sai a artéria pulmonar. Então, o sangue chega ao corpo inteiro, vai para o coração direito, vai para o pulmão, no pulmão ele se oxigena, volta para o coração esquerdo e vai para o corpo inteiro. Então, essas válvulas - especialmente a mitral - elas têm uma forma que eu poderia - talvez a câmera possa mostrar aqui, a minha mão -, seria um orifício e tem o folheto que faz isso: ele abre e fecha, abre e fecha. Essa é a válvula. Então, essa válvula são folhetos finos, flexíveis, delicados. Há pessoas que têm folhetos, vamos dizer, grandes, então, como eles são grandes, eles ultrapassam uma determinada linha [que] a maioria não ultrapassa. Então, eles fazem uma protusão: eles se salientam quando o ventrículo se contrai no lado do átrio. Eles fazem um prolapso: quer dizer, eles são grandes. Isso é detectável no ecocardiograma, mais ou menos...

Maria Cristina Duarte: Mas foi dito que a gente pode ter sem saber... a hipocondríaca aqui já quer saber...

Adib Jatene: Espere.

Maria Cristina Duarte: Como é que a gente sabe que a gente tem?

Adib Jatene: Espere, minha filha; não procure saber se não houver necessidade...

[risos]

Júlio Abramczyk:
E parece que dá mais em mulheres não é?

Adib Jatene: Mais ou menos 15...

Maria Cristina Duarte: É em mulher, mesmo!

Adib Jatene: Mais ou menos 15% da população tem essa válvula um pouco maior.

Maria Cristina Duarte: Hm.

Adib Jatene: Agora, acontece que, em alguns poucos casos... você imagina, 15% da população de São Paulo dá o quê? Dá mais de dois milhões de pessoas que têm prolapso. Se isso fosse um problema sério, meu Deus!, nós estaríamos em uma situação, aqui, desesperadora...

[risos]

Maria Cristina Duarte:
Eu imagino...!

Adib Jatene: Porque, se nós, com dois mil casos de aids, estamos criando um problema seriíssimo...

Maria Cristina Duarte: Não, mas...

Adib Jatene: Imagine com dois milhões de prolapsos. Se fosse importante... É que, na verdade, tem muito pouca importância. E aqueles poucos casos que têm sintomas, eles podem ser convenientemente tratados sem nenhum problema...

Maria Cristina Duarte: Sei, mas é melhor nem se alarmar com os sintomas, não é?

Adib Jatene: Não, de jeito nenhum.

Ivan Ângelo: Professor nós falamos, aqui, muito de transplantes e sabemos que o transplante é uma técnica para casos muito determinados. Mas o senhor tem trabalhado com sucesso em uma nova técnica cirúrgica. Parece que é um fortalecimento do músculo cardíaco que substituiria ou haveria, com o desenvolvimento, a substituir essa...

[...]: Cardiomioplastia.

Adib Jatene: É, esse é um outro procedimento. Exatamente porque, como eu respondi a ele, [como] muitos casos que seriam candidatos a transplante não têm condições psicológicas, emocionais etc para suportar o problema do transplante, nós nos interessamos por esse novo procedimento. Esse é um procedimento muito interessante que foi feito pela primeira vez em Paris pelo [francês] doutor [Alain] Carpentier [em 1985]. Hoje, nós fazemos parte de um grupo que está avaliando esse procedimento. Esse ainda não é o que nós chamamos de um "procedimento terapêutico", é aquilo que eu dizia a ela: você, quando vai fazer um procedimento novo, você primeiro precisa avaliar com muito cuidado. Então, esse procedimento é o seguinte. Existe um músculo nas costas que se chama "grande dorsal". Ele é um grande músculo nas costas; se nós liberarmos esse músculo inteiro e deixarmos as artérias e os nervos e passarmos esse músculo para dentro do tórax, ele é suficiente para envolver todo o coração. Ele envolve o coração. E, nesse músculo, nós colocamos eletrodos [pequenos terminais que disparam fracos impulsos elétricos] para estimular o músculo. Então, cada vez que vai o estímulo, ele contrai. E nós colocamos eletrodos no coração. E os eletrodos do coração e do músculo são ligados em um aparelho que é um marca-passo especial que é implantado no doente. Depois de 15 dias, quando as aderências já se formaram, quando a cicatrização já se completou, nós começamos a estimular esse músculo sincronizadamente com o coração. Inicialmente, para cada três batimentos cardíacos, um do músculo; depois cada dois, cada um, até que ele "pega". E esse músculo, que é assim estimulado, ele muda as características e passa a ter características muito semelhantes às do coração. E, como ele se contrai junto com a contração do coração, ele ajuda o coração.

Ivan Ângelo: Isso é um futuro?

Adib Jatene: Esse é um futuro. Nós precisamos ver, primeiro, se isso se repete, se o resultado é uniforme. Segundo, se, com o tempo, esse músculo não se altera, não se fibrosa, não perde a capacidade. Terceiro, se não surgem problemas dessa compressão. Ou seja, esse é um procedimento em avaliação...

Paulo de Almeida: Agora, isso é uma esperança para os portadores de mal de Chagas?  

Adib Jatene: Essa é uma esperança, talvez, para os portadores de mal de Chagas, porque a maioria deles não tem condições psicológicas e emocionais para fazer o transplante.

Paulo de Almeida: [...] No início, o senhor falou que, pela profilaxia, diminuíram os casos. Mas, de qualquer forma, são muitos com a doença.

Adib Jatene: São numerosas, nós ainda temos...

Ivan Ângelo: A rejeição ainda é um problema sério no transplante?

Adib Jatene: Rejeição é um problema controlável. Quer dizer, hoje... A rejeição sempre existe, porque, se o organismo aceita coisas que não são dele passivamente, nós estaríamos em uma situação muito difícil. Porque as infecções, os problemas, está aí a síndrome de imunodepressão ou aids, que coloca os doentes em uma situação muito difícil. Então, o organismo precisa reconhecer que não é dele, e está sempre querendo rejeitar.

Augusto Nunes: Doutor Jatene...

Adib Jatene: E você controla essa reação para que o órgão possa ser aceito.

Augusto Nunes: Doutor Jatene, eu queria introduzir um assunto que merece a curiosidade de muitos espectadores - como o senhor vê, também -, que é o seguinte: a experiência política que o senhor teve. Depois, voltaremos, em seguida, à medicina. Vários telespectadores querem saber, basicamente, o seguinte: o que o senhor pensou da sua experiência político-administrativa como secretário de Saúde do governo Paulo Maluf? [no estado de São Paulo, de 1979 a 1982] Alguns perguntam se o senhor pretende apoiar a candidatura do Maluf à prefeitura de São Paulo. E um telespectador, o Robson Gil Gazola, pergunta: "O senhor acha que a candidatura Maluf aumenta a incidência de infarto na cidade de São Paulo?"

[risos]

Augusto Nunes:
Então, por favor.

Adib Jatene: Olha, o doutor Paulo Maluf, quando me convidou para ser secretário, eu, praticamente, não o conhecia. Eu não tinha, assim, amizade pessoal e não tinha grandes relações com ele. E, durante os 38 meses em que eu fui secretário, eu não tive nenhum queixa do doutor Paulo Maluf. Ele sempre me tratou com muita distinção e sempre apoiou as propostas que eu fiz. Tanto que os recursos que instrumentaram o Plano Metropolitano de Saúde - porque mudou de nome, nós tínhamos... era a expansão do serviço metropolitano, do serviço de saúde na área metropolitana, mas, depois que mudou o governo, criaram o Plano Metropolitano de Saúde, que foi uma adaptação do que nós tínhamos feito, que já estava em andamento. Aliás, eu já chamei a atenção para que o grande problema na política brasileira é a falta de continuidade dos programas e dos projetos. Nós pegamos um projeto que vinha do professor [Walter] Leser [(1909-2004), antecessor de Jatene na Secretaria de Saúde do estado de São Paulo], ampliamos esse projeto, demos uma dimensão muito grande a ele trabalhando com a população, na periferia; deixamos um projeto em andamento, fizemos uma parte, negociamos o financiamento - nós negociamos com o Banco Mundial, foi o primeiro financiamento para a saúde em área metropolitana. Foi trabalho do nosso período com o doutor Paulo; o doutor Paulo teve uma influência grande nisso. E esses recursos que nós negociamos, nós sabíamos que não iam sair no nosso governo. E saíram no governo do doutor [André Franco] Montoro [(1916-1999), governador de São Paulo de 1983 a 1987]. Boa parte do plano que foi instrumentado no governo Montoro foi elaborado no governo do doutor Paulo e o recurso foi negociado no governo do doutor Paulo. Mas é que eu não tenho, assim, sobre esse aspecto, nenhuma restrição a fazer ao doutor Paulo. Eu acho ele um bom administrador. Agora, quanto a minha experiência pessoal, foi extraordinariamente gratificante. Eu realmente tive um contato - a Isabela chegou a ver mais de uma vez, na periferia -, um contato com a população muito direto. A população ia na secretaria - e eu recebia, porque eu tenho uma idéia de que... eu digo sempre que o grande problema do pobre não é ele ser pobre: é o amigo dele ser pobre. Então, ele não tem amigo que fala com quem decide, ele não tem amigo que o ajuda; ele precisa alugar um negócio, não tem quem seja fiador. Então, é um problema. E, se você não recebe para primeiro ouvir e depois poder, eventualmente, começar a atender essas reivindicações, você deixa uma parcela enorme da população suscetível a equívocos por omissão. Eu sempre disse que, se há alguém que maneja a insatisfação, é porque quem está responsável em resolver os problemas está permitindo que se perpetuem os problemas - porque, senão, não haveria ninguém manejando a insatisfação. E é sempre mais fácil manejar a insatisfação do que atender as necessidades. O diabo é que, em um país democrático, quem maneja a insatisfação corre o risco de virar governo. E, no momento em que ele vira governo, ele vai ter que atender as necessidades. E, aí, ele vê que a coisa é complicada. Então, você adquirir uma visão global disso tudo é, realmente, muito gratificante. Eu fiquei muito satisfeito com a minha experiência.

Francisco Ornellas: Doutor Jatene, eu vi o senhor dando uma aula de como era a válvula e reparei em suas mãos. Elas têm um volume de mão de boxeador, com dedos alongados de um pianista. Como é administrar isso aí dentro de uma cavidade abdominal?

Adib Jatene: Olha, [risos] você não enfia a mão dentro da cavidade, você trabalha com instrumentos. Em relação a isso aí, eu sempre mexi muito com mecânica e, uma vez, eu estava no Instituto de Cardiologia do Estado, [atualmente Instituto] Dante Pazzanese [de Cardiologia], e eu ia mexer muito lá na oficina. E eu trabalhava nas máquinas, no torno etc e minha mão sempre estava meio arrebentada. E veio nos visitar um professor ilustre e a senhora dele veio junto. E nós tínhamos um pequeno restaurante lá no instituto e eu, então, convidei-os para tomarem um lanche ali comigo. E ela começou a falar sobre as mãos do cirurgião - porque o marido dela era cirurgião - e eu comecei a esconder as minhas mãos...

[risos]

Adib Jatene:
Então, eu acho que eu nunca tive, assim, cuidado especial com a mão. Eu mexo em máquina, eu me machuco e não acontece nada.

Júlio Abramczyk: Doutor Adib, o senhor falou, em relação àquela oficina lá do Instituto de Cardiologia... por volta de 1960 ou 1961 iniciou-se um projeto com marca-passo cardíaco, esse mesmo estimulador elétrico. E esse projeto, parece que não foi muito para a frente. Como é que nós estamos, hoje, em termos de tecnologia própria em relação a esses estimuladores e outras coisas?

Adib Jatene: O projeto foi para frente, Júlio. O problema é o seguinte? nos Estados Unidos...

Júlio Abramczyk: Nós temos marca-passo nacional?

Adib Jatene: Nos Estados Unidos, quando o indivíduo vai fazer um marca-passo, ele não desenvolve os componentes; ele tem quem forneça os componentes e ele monta. Está certo? Aqui, nós não temos os componentes; então, nós precisamos importar os componentes. E nem sempre era fácil importar componentes, principalmente os componentes com especificação militar, essa coisa. Então, eu dizia que, se, nos Estados Unidos, o indivíduo tem os fornecedores todos fáceis, aqui nós temos uma enorme dificuldade de obter componentes. Mas, apesar disso, nós fizemos, na época - e eu me lembro de que era o governo Abreu Sodré [(1917-1999), governador de São Paulo de 1967 a 1971] -, nós fizemos um empréstimo no Banco do Estado que o governador autorizou e nós pagamos o empréstimo. Porque...

Francisco Ornellas: [corrigindo] Alguém pagou.

Adib Jatene: Não, nós pagamos.

Francisco Ornellas: Alguém paga empréstimo, então!

Adib Jatene: Ah, isso surpreendeu o governador Sodré...!

[risos]

Adib Jatene:
Até hoje, quando ele me encontra, ele diz: "Esse aqui pagou o empréstimo que ele tinha comigo."

[...]: Doutor Adib...

Adib Jatene: Só para completar. Então, veja, o desenvolvimento tecnológico na área de marca-passo foi muito rápido. Na época que fizeram o Laboratório de Microeletrônica na Universidade [de São Paulo; o laboratório foi montado em 1970], eu tentei ver se nós conseguíamos fazer um circuito integrado. Porque, na época, não era circuito integrado, na época se montavam os componentes. Mas acharam que aquilo não era interessante. Hoje, todos os marca-passos são feitos com circuito integrado e essa tecnologia avançou muito. Então, o que nós fizemos foi o seguinte. Eu discuti muito com essas firmas de marca-passos, Medtronic, CPI [Cardiac Pacemakers Inc.], essas coisas, que a nós não interessava importar marca-passo e ter um representante importando marca-passo; a nós interessava que eles viessem aqui e montassem a fábrica. Então, nós temos hoje, aqui no Brasil, pelo menos quatro fábricas de marca-passo. Tem fábrica que é exclusivamente nacional e tem fábricas que são multinacionais, mas os marca-passos são todos montados aqui - inclusive, marca-passos que são vendidos para a Argentina e para outros países, são fabricados aqui, no Brasil. Nós estamos cobertos com a produção e com um pessoal que se habilitou e se capacitou a fazer isso...

Conceição Lemes: Professor, com a inflação [em agosto de 1988, mês desta entrevista, a inflação mensal pelo Índice de Preços ao Consumidor foi de 20,66%], o preço dos remédios está subindo assustadoramente. E a essa regra não foge o preço dos remédios para a hipertensão, coração. Conseqüentemente, a população está deixando de se tratar. O senhor tocou na questão do pobre. O pobre, em função disso, ele pode estar condenado à morte?

Adib Jatene: Não, eu acho que não. Veja, nessa parte de medicamentos, criou-se a Central de Medicamentos. A Central de Medicamentos teve, no passado, algumas distorções. Quando eu era secretário, eu me lembro de que eu fui solicitado à secretaria para utilizar um grande volume de um medicamento caro que já estava com o prazo vencendo. Por que compraram, eu não saberia responder. A verdade é que essas distorções estão sendo corrigidas e eu acho que a distribuição de medicamentos pela Central de Medicamentos está progredindo. E, no próprio Instituto, nós estamos procurando fazer uma política de dar o medicamento.

[vários chamam Adib Jatene]

Adib Jatene:
Porque não adianta você atender sem dar o medicamento.

Augusto Nunes: Por favor, o Fábio Altman vai fazer a última pergunta do programa.

Fábio Altman: Doutor Adib, voltando a essa questão da importação de tecnologia para se fazer, no caso, o marca-passo, uma coisa que veio muito à tona nesses últimos dias foi a questão dos medicamentos. Inclusive, os Estados Unidos decidiram uma série de retaliações, em virtude da... [hesita]

Adib Jatene: Patentes.

Fábio Altman: ...da ausência de uma lei de patente. Queria saber do senhor duas coisas. Existe a dificuldade de importar; do outro lado, existe uma dificuldade tecnológica, já que se copia no Brasil - na verdade, há uma pirataria de remédios. As pesquisas não avançam. Como o senhor vê, o senhor acha que é um bem para o país, essa ausência de uma lei de patentes, ou deveria se criar, agora, uma lei de...?

Adib Jatene: Olha, essa história de copiar, nós não temos nenhuma originalidade nisso. Porque o Japão fez todo o seu desenvolvimento em cima das cópias.

Fábio Altman: É, mas são milhões de dólares...

Adib Jatene: A Itália...

Augusto Nunes: Fábio, por favor, só para encerrar.

Adib Jatene: A Itália, até há pouco tempo, não tinha proteção de patente de medicamentos. E eu acho que o problema é que nós estamos progredindo muito nesse setor. Talvez, a maioria das pessoas não saiba, mas hoje nós produzimos uma quantidade enorme de fármacos e uma boa parte desses fármacos [é] para a exportação. E a nossa indústria farmacêutica, hoje, é um negócio que representa alguma coisa da ordem de dois bilhões de dólares. Dois bilhões de dólares. De maneira que é um negócio significativo. Então, o problema é que, para você avançar nesse campo, leva tempo. Leva tempo.

Augusto Nunes: Doutor Adib...

Adib Jatene: Sim.

Augusto Nunes: Infelizmente, eu vou ter que pedir ao senhor que conclua; eu vou ter que encerrar o programa.

Adib Jatene: Eu concluo. Eu sou pró esperar mais tempo para reconhecer esse problema de patentes. Mesmo porque os países que estão desenvolvendo esses medicamentos, eles já levaram muita coisa daqui. Eles têm que nos dar o troco.

Augusto Nunes: Encerramos aqui a nossa entrevista com o doutor Adib Jatene, convidado do Roda Viva desta noite. Muito obrigado, doutor Adib, pela clareza e pela paciência com que respondeu às nossas perguntas. Nossos agradecimentos aos entrevistadores, aos convidados da produção - deputado Fauze Carlos, alunos da Faculdade de Medicina da USP. Agradecemos, também, aos telespectadores que nos telefonaram. Doutor Adib vai receber cópias de todas as perguntas formuladas pelos senhores. O programa Roda Viva volta na próxima segunda-feira, às 9:25. Boa noite!

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