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Memória Roda Viva

Listar por: Entrevistas | Temas | Data

Roberto Campos

4/3/1991

O economista e deputado federal, um dos principais pensadores brasileiros do liberalismo, avalia medidas do governo Collor e políticas econômicas brasileiras do século XX

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[programa ao vivo]

Jorge Escosteguy: Boa noite. Estamos começando mais um Roda Viva pela TV Cultura de São Paulo. O nosso convidado desta noite foi um dos pais da recentemente falecida correção monetária [reajuste do valor de uma obrigação ou cláusula contratual, de modo a refletir a variação do poder aquisitivo da moeda]. Roberto Campos, hoje deputado federal pelo Rio de Janeiro, também foi ministro do Planejamento do governo Castelo Branco, embaixador em Londres e senador pelo Mato Grosso. Aos 74 anos, Roberto Campos tem criticado a excessiva intervenção do Estado na economia, e defende uma reforma urgente da Constituição. Para ele, a Constituição brasileira é intervencionista, dirigista e estatizante. Para entrevistar Roberto Campos esta noite no Roda Viva, nós convidamos Sérgio Rondino, âncora do Jornal do Meio-Dia da TV Bandeirantes; Armando Ourique, repórter especial da Folha de S.Paulo; Paulo Nogueira, redator-chefe da revista Exame; Stephen Kanitz, jornalista e professor da USP; Pedro Cafardo, editor de economia do jornal O Estado de S. Paulo; e Jayme Martins, jornalista da TV Cultura. Você que está em casa assistindo ao Roda Viva e quiser fazer perguntas por telefone, pode chamar 252-6525. Boa noite, ministro. O senhor tem dito que os planos do governo Collor não têm credibilidade. Por quê?

Roberto Campos: Primeiramente, gostaria de agradecer a oportunidade de estar aqui no Roda Viva e manifestar a esperança de que o Roda Viva não seja uma roda de fogo. É um pouco intimidante ver aqui esses grandes inquisidores; espero que nenhum tenha o ânimo de frei [Tomás de] Torquemada [1420-1498, inquisidor-geral dos reinos de Castela e Aragão], que queimava os fiéis para que aprendessem a amar a Deus.

Jorge Escosteguy: Aqui, a única coisa que pode queimar são os refletores, mas estão calmos hoje.

Roberto Campos: Eu acho que a falta de credibilidade provém, em primeiro lugar, da contradição entre o discurso liberalizante da campanha e a realidade intervencionista do primeiro plano. A segunda perda de credibilidade é oriunda do fato de que um instrumental usado para combater a inflação foi, em grande parte, uma repetição das medidas intervencionistas do Plano Cruzado, com um condimento adicional, que foi o confisco da poupança. Foi um “con-con”, uma mistura de congelamento e confisco. Todos nós gostaríamos de ver um cancã, uma exibição agradável de pernas bonitas. O “con-con” deixou um travo amargo. Na parte do congelamento, repetiu medidas que secularmente se provaram ineficazes. Na parte do confisco, foi um pouco uma brutalização da poupança. Não só se desencorajou o poupador, também se desorganizou a produção, particularmente da pequena e média empresa. O efeito da oferta foi, portanto, negativo. Conseguiu-se reduzir dramaticamente a procura, mas infelizmente também se reduziu a oferta; isso não é receita de combate à inflação.

Jorge Escosteguy: O senhor concorda com o fim da correção monetária?

Roberto Campos: Eu acho que a correção monetária, ou, como se diz normalmente, a indexação, deve morrer, porém não de morte matada, e sim de morte morrida.

Jorge Escosteguy: E como seria a morte morrida?

Roberto Campos: A morte morrida seria a cura da inflação ou, pelo menos, a percepção de seu declínio constante para níveis toleráveis. A correção monetária só foi instituída porque nós tínhamos uma inflação grave; aquele nível 100% parecia o limite máximo de resistência da sociedade. Doutor [Otávio Gouveia de] Bulhões [1906-1990, economista, foi ministro da Fazenda em 1954 e entre 1964-1967; e ministro da Indústria e Comércio em 1964] tinha uma regra: inflação de 100% derruba governo. Mal sabíamos nós que depois teríamos inflação de 200% e até de 1000%, sem cair o governo e sem sequer mudança de ministério. Mas a percepção da época é que isso era um nível explosivo e que, infelizmente, não seria possível reduzir esse nível a zero repentinamente, sendo necessário nesse intervalo preservar duas coisas: preservar o instinto da poupança, e preservá-lo antes, tratando-se até de criar um mercado voluntário para os títulos públicos. Nenhuma dessas duas coisas: recompensar o poupador, criar um mercado voluntário para títulos públicos e, incidentalmente, melhorar a receita do governo combatendo a sonegação, não havia outro remédio senão a correção monetária. Uma outra consideração importante àquela época era fazer com que as empresas tivessem uma contabilidade real, que não se tributassem núcleos inflacionários, por isso corrigia-se o ativo das empresas, isso era novamente uma utilização sábia da correção monetária. Apenas a correção monetária daquela época só se aplicava, no caso da poupança de instrumentos financeiros, a depósitos, empréstimos e títulos de mais de seis meses, de seis meses para cima; não se dava liquidez à correção monetária. Isso ficou mais ou menos assim até 1980. Depois, o período de carência para a aplicação da correção baixou para seis meses, depois para um mês de caderneta de poupança, e depois para o overnight [o overnight era corrigido diariamente e tinha alta liquidez]. Houve então uma distorção do instrumento.

Jorge Escosteguy: Agora, o senhor disse que o governo Collor não tem credibilidade. Ao mesmo tempo, a nossa Constituição é intervencionista, dirigista e estatizante, ou seja, o senhor critica os dois. Agora, o governo Collor foi eleito e a Constituição foi escrita por representantes eleitos pelo povo. Na sua opinião, o povo mais uma vez errou? Ou é assim que o país tem que caminhar?

Roberto Campos: Não, eu acho que os representantes do povo erraram. Não sei se interpretaram a vontade popular corretamente, mas mesmo que tenham interpretado a vontade popular corretamente, e eu disso duvido, há sempre o direito de errar. Agora, errar uma só vez, não repetir o erro. O problema que temos hoje, com o segundo Plano Collor [Plano Collor I e II], não é um erro original, é a repetição do erro. Ou como dizia o Barão de Itararé: “O problema não é a falta de persistência do governo, o problema é a persistência na falta”.

Armando Ourique: Deputado, o senhor se opõe à intervenção do governo na economia. O governo, pelo menos no último trimestre do ano passado, permitiu um grande grau de liberdade na economia. Os preços estavam quase todos livres e tudo mais. No entanto, nas últimas semanas de janeiro, os preços começaram a disparar. Como uma situação de exceção, o senhor não justifica o governo tomar medidas de exceção, ou seja, de congelar? O senhor acha que o governo deveria ficar assistindo à inflação ir para 50% e tudo mais? Também o governo não estava mais conseguindo colocar títulos, ele não teria que criar um mercado para esses títulos, também para impedir uma aceleração enorme, uma desorganização maior do sistema financeiro? A medida de congelamento como medida da exceção não se justificava?

Roberto Campos: Não, ou antes, o governo devia congelar alguma coisa. Devia, por exemplo, congelar a expansão da moeda e que, qual a um espetáculo a que assistimos, o governo se propôs a admitir uma expansão monetária de 9%, em torno de 9% no segundo semestre. Só em dezembro, a base monetária se expandiu 58%, então o governo se descongelou; tendo-se descongelado, não pode esperar que o congelamento de preços surta efeito. Você disse que foi feita uma experiência de liberalização de preços. Sim, liberalização vigiada, liberdade vigiada, relutante e contraditória. Por exemplo, dizer-se: a negociação salarial é livre, desde que não haja repasse para os preços e desde que não haja abono. Isso é a receita para se antagonizar o trabalhador que quer o abono e o empresário que quer repasses. Liberdade salarial implica em confiar-se nas forças do mercado. O mercado tem que ser disciplinado através da disciplina monetária e fiscal, e não através de controles diretos. Os controles diretos são uma ilusão. Imagina-se que eles representem comandos que são obedecidos pelo mercado. Nada disso, o mercado não lhes obedece. E é por isso que os planos fracassam após dois ou três meses de lua-de-mel. Eles são custos, custos e impostos a empresa, custos tríplices. A empresa sujeita a controles, sejam eles de preço, de salário, de aluguéis, o que seja, tem o custo da burocracia; tem o custo da espera da decisão, que pode tornar um projeto inviável e acrescer custos financeiros; e, finalmente, o custo da corrupção, para conseguir driblar os controles e ter um mínimo de previsibilidade no negócio. Então, controles não são comandos obedecidos pelo mercado, são custos impostos ao mercado. Longe de ajudar no combate à inflação, eles aumentam os custos e, portanto, os preços. Ora, se o governo estava sem possibilidade de vender títulos, bem-feito, pois o governo começou fazendo o quê? Reduzindo enormemente o encargo da dívida pública. Imagina-se: o governo resolveu o problema, porque conseguiu um prazo de 18 meses para o resgate de títulos e fixou a taxa de juros em 6%. Isso daria uma enorme margem de manobra para fazer política monetária. Mas isso teve um custo: provocou uma desconfiança no poupador. Se o governo pode alterar as condições do negócio de títulos governamentais, títulos governamentais são algo perigoso. O governo ainda conseguiu vender alguma coisa a custa de juros elevados em novembro, [mas] em dezembro praticamente não vendia nada. Qual seria a solução? Fazer uma nova intervenção no mercado financeiro, fazendo agora uma reserva de mercado e dizendo ao mercado financeiro: “Vocês, safados, não querem mais comprar títulos voluntariamente, pois agora têm que comprar compulsoriamente”. Esse é o melhor meio de nunca termos um mercado de títulos de governo, que significa nunca fazer política monetária, porque ninguém diz o que a política monetária trouxe. [Dizem] “Vamos recuperar os instrumentos de política monetária”, [mas] política monetária é poder vender títulos que o mercado absorve voluntariamente. Se você cria condições que impeçam o mercado de absorver títulos voluntariamente, você simplesmente não tem resgate de instrumentos de política monetária.

Armando Ourique: Mas o que o senhor teria feito? O senhor ficaria numa situação já deteriorada como estava janeiro? O senhor assistiria à inflação subir?

Roberto Campos: Bom, a inflação subiria de qualquer maneira, em função da expansão monetária. Você diria: “Não, o governo tem que fazer alguma coisa”. Eu me lembro de um escritor inglês, o Anthony Trollope [1815-1882], ele dizia: “O perigo dos políticos é quererem fazer uma coisa, alguma coisa”. Qual é a coisa que o governo tinha que fazer? Tinha que examinar as causas da expansão monetária, não prestar tanta atenção nos preços porque os preços são o resultado. Não adianta você lidar com resultados, você tem que lidar com a causa. Qual é a causa? É a expansão monetária. Mas existe uma causa causada, como dizem os escolásticos. Precisa-se ir então à causa causante. Qual foi a causa causante da causa causada, que é a expansão monetária? E aí você tinha um elenco de elementos analíticos. Parte disso foi seguramente o deboche dos governos estaduais, que se endividaram, recorreram aos seus bancos, os bancos recorreram ao redesconto, o redesconto ao Banco Central, emissão de papel-moeda. Não por causa do governo federal, que até estava praticando uma razoável austeridade nos seus [...], mas ele estava sendo vítima de uma chantagem de governos estaduais, doidos para fazer obras em períodos eleitorais. E alguns governadores descobriram tecnologias novas, por exemplo, São Paulo teve um grande programa de investimentos. Quando você vai analisar, esse programa resultou de uma metamorfose de calote em investimentos. Houve quatro calotes passados por São Paulo: o calote da dívida externa; o calote da dívida para com a União; o calote para com as empreiteiras; e, por último, o calote para com o funcionalismo. Então esse [foi] um dos elementos de expansão. Segundo elemento: a própria política cambial do governo. Ele declarou a liberdade da taxa de câmbio, mas prendeu os cambistas, quer dizer, aqueles que vão comprar câmbio. Os importadores ficaram sem capital de giro; o governo não pagava a dívida; as empresas estrangeiras não faziam remessas. Então, o cruzeiro se valorizou excessivamente, e com isso estrangularam as exportações. Em setembro, o governo entrou em pânico e passou a comprar no mercado para elevar a taxa e ressuscitar as exportações, por dois motivos: porque sem exportação, aí é que a nossa insolvência cambial se torna óbvia, manifesta e irrevogável. E segundo, porque as exportações são criadoras de emprego. Começou-se a perceber, então, o sentido importante da exportação. Um dos sentidos importantes, [porque] há três: um é melhorar a eficiência [...] da economia, outro é criar empregos e outro é gerar divisas. Aí o governo desvalorizou aceleradamente, tinha que entrar no mercado comprando divisas. Houve alguns outros efeitos: a crise do Golfo [crise no Golfo Pérsico], que criou um empuxe de preços e de despesas; a crise agrícola, que em parte [foi] resultante da excitação do governo em dar o crédito agrícola no tempo devido, mas que exerceu seus efeitos, assim por diante. Então, o que o governo tinha que fazer? É em janeiro, é uma auto-análise das causas da inflação, causas causadas e causas causantes, e não incorrer apressadamente para reviver receitas do passado, que nós sabemos que atacam efeitos da inflação e não causas.

[...]: Deputado.

Jorge Escosteguy: Só um minutinho, pela ordem. Sérgio Rondino, Pedro Cafardo e Paulo Nogueira, por favor, depois o Jayme.

Sérgio Rondino: Para pegar o gancho, por falar em receitas passadas, o senhor se referiu aí a essa questão das relações entre o Tesouro da União e os tesouros dos governos estaduais, que têm sido acusados de causar inflação, de criar moedas paralelas etc e tal. Qual seria a solução, no seu modo de ver, para esse problema? Porque é uma coisa que se arrasta desde os tempos dos governos aos quais o senhor pertenceu. Se eu não estou enganado, o início da queda do governador Ademar de Barros [Ademar Pereira de Barros (1901-1969) foi interventor federal de São Paulo entre 1938-1941; governador de São Paulo entre 1947-1951 e entre 1963-1966; e prefeito de São Paulo entre 1957-1961] foi uma tentativa de soltar papéis, emitir papéis que não eram permitidos. A centralização veio durante o regime autoritário ao qual o senhor pertenceu. Depois as coisas se abriram e agora criam-se problemas. Qual seria a solução?

Roberto Campos: Bom, a solução seria exigir dos estados maior disciplina fiscal. Como? Dificultando, controlando o acesso dos bancos ao redesconto. Esse é um primeiro elemento disciplinador. Um segundo elemento disciplinador é aplicar ao governo, se não me engano, o artigo 60 da Constituição, que faculta ao governo reter fundos de estados que sejam inadimplentes. Existem, portanto, dois tipos de disciplina para coibir essa devassidão ao nível estadual. Você lembra, e com razão, o episódio das “ademaretas”. O professor Bulhões e eu estávamos num esforço danado de saneamento financeiro e de criação de um mercado voluntário de títulos públicos, e o Ademar de Barros queria lançar as “ademaretas”, uma enorme enxurrada de papéis estaduais, [que] só poderiam ser vendidas a taxas extorsivas de juros. Nós apresentamos o problema ao presidente Castelo Branco [Humberto de Alencar Castelo Branco], que, por outros motivos também, problemas de corrupção, desídia administrativa, procedeu ao expurgo, naquele tempo do Ademar de Barros, criatura sob vários aspectos encantadora, mas totalmente desafinada com a idéia da austeridade pública. Você fala que nós então passamos a centralizar. Em termos: o Código Tributário votado em 1967 era muito bem balanceado, e temo-lo abandonado só nos tem causado dissabores. Longe de ser loucamente centralizante, era um código participativo. Centralizava-se a coleta de dois impostos, renda e consumo, mas dava-se participação aos estados, foi o fundo de participação. Então barateava-se a coleta, porque ela era centralizada, mas a receita era dividida aos estados. Tínhamos o Imposto Único sobre combustíveis, que era entregue aos estados e municípios na proporção de 40%; 60 % ficavam com a União. Depois se alterou para 40% para a União e 60% para estados e municípios. Havia o imposto sobre minérios, imposto sobre eletricidade, todos com conceito de partilha. Que fizemos recentemente na Constituição? Nós abolimos esses impostos únicos. O resultado é que os estados passaram a absorver a receita, mas não são os estados que constroem centrais de eletricidade; não são os estados que constroem rodovias-tronco; e agora estamos aí, desesperados como baratas tontas à procura de uma fonte de financiamento para a reconstrução das rodovias federais e para novos investimentos. Foi uma desmontagem atabalhoada e apressada.

Jorge Escosteguy: Professor.

Roberto Campos: E o imposto sobre minério foi a mesma coisa. Uma das idéias era impedir que os estados, com autonomia tributária, passassem a tributar exportações de minérios, porque ninguém tributa, ninguém exporta impostos, tributa-se importações. Não pode exportar impostos. E o que está sucedendo hoje, com a eliminação do imposto único sobre minérios, é que os estados passaram a tributar exportações, esforço baldado que só resulta em perda de competitividade no mercado mundial.

Jorge Escosteguy: Pedro Cafardo, por favor.

Pedro Cafardo: Professor Roberto Campos, eu gostaria de voltar a dois pontos em que eu até tentei interromper na hora, mas não consegui: a questão da correção monetária, que o senhor disse que ela deve morrer de morte morrida e não de norte matada. O senhor disse que essa morte ocorreria após a queda constante da inflação durante um certo período. Agora, a maioria dos economistas argumenta que é a correção monetária, ou seja, é a indexação que realimenta a inflação, e depois que a indexação foi criada, nunca mais houve uma queda constante da inflação, como o senhor... Então essa é uma pergunta. A segunda, me parece que não ficou bem claro o que o senhor faria nesse 31 de janeiro, quando o governo fez o Plano Collor II?

Roberto Campos: Eu acho que eu expliquei bem, mas vamos à primeira pergunta.

Pedro Cafardo: Quais as coisas práticas que o senhor faria? O senhor falou das causas causadas e das causas [causantes], mas o senhor não disse especificamente. O senhor disse: o governo deveria fazer uma reanálise, mas após a análise – o senhor já fez, provavelmente –, o que é que se faria?

Roberto Campos: Reanálise e correção, mas vamos à primeira pergunta.

Pedro Cafardo: Pois não.

Roberto Campos: Não é verdade que, após a implantação da correção monetária, não se tenha tido nenhum período de inflação declinante. Pelo contrário: entre 1964 e 1973, quando se ampliou a faixa, o leque da correção monetária, a inflação desceu de 100% para cerca de 15%, o que indica que a inflação não é causada pela indexação e que a desinflação não é impossibilitada pela indexação. Há até um economista, o [norte-americano] Milton Friedman [1912-2006, teórico do liberalismo econômico, defensor do livre mercado], que acha que a correção monetária facilita o combate à inflação, contrariamente ao que diz aí a sabedoria convencional dos nossos economistas. E por quê? – diz ele. Porque na sociedade com longa tradição inflacionária, se não houver correção monetária, os assalariados, para se proteger, querem hoje um salário que lhes dê proteção contra o amanhã, e ao pleitear salários não só para atender a situação corrente, mas para prever uma inflação futura, pois que não haveria correção monetária, eles tendem a exagerar suas reivindicações salariais, levando portanto a um incremento de custos. E diz ele: também os contratistas de serviços e obras públicas a prazo procurarão majorar os preços de hoje para se proteger contra a inflação futura. Se você tiver a correção monetária, o que acontece? Você cobra o preço compatível com a conjuntura presente, não se preocupa tanto em incorporar no preço presente uma proteção contra a inflação futura, porque ela virá através da correção monetária.

Cafardo: Essa era a tese dos anos 70 e dos anos 60, só que...

Roberto Campos: [interrompendo] Isso é tese de Milton Friedman agora.

Pedro Cafardo:...a partir de hoje... Os brasileiros a defendiam, eram criticados no mundo inteiro, mas se defendiam com essa teoria. Agora, hoje, parece que todo mundo pensa diferente.

Roberto Campos: Não é que todo mundo pensa diferente. A regra, mais ou menos grosseira... se você tem uma inflação de até 6%, que é convencionalmente um nível de juros decente numa sociedade bem comportada, não é preciso você se preocupar com correção monetária coisa nenhuma, é uma complicação inútil. Agora, se a inflação convencional é de 10%, 12%, 15%, aí, se você não tiver correção monetária, um grande número de coisas más acontecem. Por exemplo: as empresas ficam descapitalizadas, porque parte do lucro que elas acusam é lucro inflacionário, passa a ser tributado e entra em função desse mecanismo de profecia do futuro. O sujeito pensa num salário presente e também num salário extra para se proteger do futuro, e os preços são reajustados como precaução contra uma inflação futura desconhecida.

Stephen Kanitz: Mas vamos colocar uns números nessa discussão? A rigor, a correção monetária no Brasil foi um engodo. Um dinheiro colocado, cem cruzeiros em 1967, com a correção monetária, só valeria hoje dez cruzeiros, ou seja, a correção monetária, ao contrário do nome, não corrigiu a inflação do período, ela só corrigiu 10% no período por causa das várias manipulações da conta de correção monetária. Então, no Brasil, não houve de fato correção monetária.

Roberto Campos: Você tem razão, houve correção parcial. Mas correção parcial é melhor do que a correção zero.

Stephen Kanitz: Não, com licença, 90% foram roubados.

Roberto Campos: Correção parcial é melhor do que incorreção. Agora, houve vários estágios na correção monetária. No período em que eu servi de vigia do barco, o critério adotado foi o critério do IPA, o Índice de Preços por Atacado da Fundação Getúlio Vargas, índice que ninguém acusou de manipulação. Já no segundo período, segundo governo militar, passou-se a adotar o Índice de Preços ao Consumidor, com uma idéia falsa. É que se receava que o Índice de Preços por Atacado registrasse muito depressa a inflação, ao passo que o Índice de Preços ao Consumidor registrava-a retardadamente. É uma ilusão, porque os impactos se acumulam, eu fui contra isso. Depois nós marchamos, usando o Índice de Preços ao Consumidor, até mais ou menos 1976. Devíamos, por ocasião da primeira crise do petróleo [em 1973], ter expurgado do índice aquele que correspondia ao imposto de petróleo, perda de renda real, a ser transferido aos árabes, [mas] isso não foi feito. Mas em 1976, o Simonsen inventou o coeficiente de acidentalidade e tornou a correção parcial: 80% segundo os índices, 20% segundo a inflação programada de 15%. Era uma mutilação da correção monetária. Em 1980, o [economista e político Antônio] Delfim [Netto, ministro da Fazenda entre 1967-1974; ministro da Agricultura em 1979; e ministro do Planejamento entre 1979-1985] estabeleceu um teto para a correção monetária, 50%, quando a inflação foi a 90%. Datam daí essas distorções. Sobre esse aspecto você tem razão, a correção monetária tem sido mutilada e parcial com grande desincentivo e injustiça para o poupador. Mas isso não tem a ver com a concepção original de correção monetária.

Jorge Escosteguy: Professor.

Roberto Campos: Isso é um defeito de implementação.

Jorge Escosteguy: Por favor, o Paulo Nogueira tem uma pergunta para o senhor.

Paulo Nogueira: Deputado, ao ouvir arrazoados brilhantes como os do senhor, o cidadão comum tem mais uma vez a oportunidade de perceber como é fácil explicar os problemas brasileiros. Eu pergunto: por que é tão difícil resolvê-los?

Roberto Campos: É difícil resolver porque há um desequilíbrio básico nas sociedades subdesenvolvidas entre o nível de aspirações da sociedade, que reflete, inclusive, imitativamente os hábitos de consumo e o padrão de vida que se observam no exterior e a capacidade dessa comunidade de dar satisfações. É essa perpétua tensão. Aspira-se a mais do que aquilo que a economia pode produzir. Um meio de solução dessa tensão é exatamente a ilusão inflacionária. A ilusão inflacionária é um meio grosseiro, no fundo inútil e cruel, mas aparentemente fácil de se resolver o conflito distributivo.

Jorge Escosteguy: Professor.

Jayme Martins: Deputado.

Jorge Escosteguy: Só um minutinho, por favor, Jayme. Eu queria registrar, antes, a presença de mais um convidado, o jornalista Luís Nassif, da agência Dinheiro Vivo, que acabou de chegar. O Jayme Martins tem uma pergunta.

Roberto Campos: [interrompendo] Estamos falando de dinheiro morto e você é do dinheiro vivo [risos].

Jayme Martins: Deputado, sem pretender transformar esta roda viva numa roda de fogo, mas apenas pretendendo me antecipar aos telefonemas que devem estar chegando dos telespectadores de Campinas, como é que se explica aquela afirmativa: “Ou o Brasil acaba com a Unicamp ou a Unicamp acaba com o Brasil”? [risos]

Roberto Campos: Em primeiro lugar, isso não foi uma sentença, isso era uma piada, e a piada foi mal transcrita. Eu nunca disse isso, o que eu disse foi o seguinte: “Ou o Brasil acaba com os economistas da Unicamp ou os economistas da Unicamp acabam com o Brasil” [risos]. A minha quizília é com os economistas da Unicamp, não com os físicos, os matemáticos, os biólogos, os condutores das ciências sociais em geral da Unicamp. É uma quizília com economistas da Unicamp, porque eu acho que eles foram os inspiradores intelectuais, os criminosos intelectuais da concepção do Plano Cruzado. O Plano Cruzado criou uma cultura especial, a cultura do cruzado, que, a meu ver, induzirá toda uma geração brasileira a uma falsa concepção do problema inflacionário e do problema do desenvolvimento. A cultura do cruzado encerra três subculturas: a subcultura antiempresarial, a subcultura do calote e a subcultura do dirigismo. Se me perguntarem por que a subcultura antiempresarial, é perceptível no Plano Cruzado, com aquelas punições a empresários, põe na cadeia quem pratica preços desalinhados, essa mentalidade antiempresarial deriva de uma definição errônea da inflação. O cruzado treinou a população brasileira para acreditar que inflação é a alta de preços, não é. Alta de preços é o resultado. Inflação é expansão monetária. Você me diz: e daí? E daí muitas conseqüências grandes surgem. Se inflação é alta de preços, então o culpado é o empresário que faz a alta de preços; mas se inflação é expansão monetária, então o culpado é o governo. Veja que a mudança da definição cria uma cultura antiempresarial. Hoje existe no Brasil uma cultura antiempresarial. Eu acho isso gravíssimo, porque dos vários “-ários” que temos por aí, o operário, o funcionário, o missionário, o realmente importante é o empresário. Operários, todos podemos ser; funcionários, todos queremos ser; missionários são úteis, mas eles falam na vida do além-túmulo, e nós queremos a vida corrente. O dínamo da sociedade é o empresário, isso é um recurso natural raríssimo.

Jayme Martins: Isso tem a ver com a tese do [filósofo alemão Karl] Marx [1818-1883], da lei da correspondência obrigatória entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção?

Roberto Campos: Claro, eu acho que sim. Você falou aí em Marx. Eu estou lendo agora um livro muito interessante sobre a saída do socialismo. Numa das angústias, os pobres dos poloneses é que querem privatizar, mas não encontram empresários, não há empresários lá, só há funcionários. Então, alguém teve essa brilhante idéia: bom, vamos então fazer um concurso para empresários. Criaram uma banca examinadora [risos], três camaradas designados pelos sindicatos, um designado pela comunidade e um designado pelo Ministério Público, a examinar [candidatos a] empresários. Veja que idéia ingênua, a capacidade empresarial é uma coisa nativa, ela pode ser aperfeiçoada aqui, ali, por escolas de administração de negócios, mas basicamente é uma coisa nativa, é um instinto que deve ser respeitado...

Jayme Martins: É uma cultura, não é?

Roberto Campos: Por exemplo, imaginem num concurso o [empresário] Sebastião Camargo [1909-1994], da [construtora] Camargo Corrêa; o [banqueiro] Amador Aguiar [1904-1991], que acabou de nos deixar, e eu. Ora, eu daria uma surra nessa gente em um concurso. Eu falaria latim, um pouco de grego, citaria Aristóteles, recitaria Shakespeare. Ganharia do Amador Aguiar e do Sebastião Camargo nesse concurso, facilmente. Agora, quando chegássemos ao mercado, eles saberiam como ganhar dinheiro, e eu não. Uma vez, eu estava conversando com o Sebastião Camargo, que é um empresário nato, como o Amador Aguiar, são gêmeos, nativos. Ele me disse: “Roberto, eu não tenho tempo para perder dinheiro”. Eu disse: “Sebastião, eu não tenho tempo para ganhar dinheiro” [risos].

Sérgio Rondino: Dá para ser empresário moderno no Brasil?

Roberto Campos: Não dá. Não dá porque, que horizonte de planejamento tem você? Você estava aí planejando instalar uma fabriqueta. Vêm aí os rapazes da economia e dizem: “Os preços estão congelados”.

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Os rapazes e a moça da economia [refere-se à ministra Zélia Cardoso de Mello].

Roberto Campos: É, os jovens, os jovens. Eu, que sou velho, tenho inveja deles, e repito sempre a frase do [escritor irlandês] Bernard Shaw [1856-1950]: “A juventude é uma coisa maravilhosa, por que desperdiçá-la nos jovens?” [risos]. Então, não dá, você não tem horizonte de planejamento. Por isso que muitos empresários brasileiros, a contragosto, estão buscando investimentos na Europa, investimentos na Irlanda, que são países que dão muitos favores, Portugal, aliás, que dá muitos favores, Espanha, Estados Unidos.

Luís Nassif: Deputado.

Roberto Campos: Você veja que ironia: nós votamos agora no Congresso um dispositivo que veda o acesso das empresas brasileiras de capital estrangeiro ao tal de fundão. As empresas brasileiras de capital estrangeiro, as multinacionais, não iriam de qualquer maneira ao fundão, porque lá é BNDES, e o BNDES é tripulado por xiitas. Então seria um calvário de derrotas uma multinacional apresentar lá um projeto, de modo que não há conseqüência prática nisso, mas a sinalização é um desastre. Você está sinalizando que o Brasil não só está na contramão da história, está fora da história, porque hoje todo mundo briga para atrair multinacionais, para dar-lhes favores, para dar-lhes subsídios. Irlanda e Portugal dão vultosos subsídios. Rússia, Polônia, China, todas querem capitais estrangeiros. Capital hoje é um bem escasso. Esses bestalhões acham que fazem nacionalismo desencorajando e mesmo insultando capitais [...]. Nacionalismo é criar empregos, não é nada mais. Enquanto não nos... nacionalismo não é fazer discurso de palanque, nacionalismo é criar empregos. Qualquer capital é bom, venha do céu, do inferno, do purgatório, extraterrestre, sujo, limpo, seja lá o que for, desde que crie empregos. Essa é a filosofia mundial. Capital é um bem escasso. Hoje nós temos a Cortina de Ferro que quer se transformar para o capitalismo; nós temos a idade da alta tecnologia, que é voraz em matéria de capitais; nós temos o sudeste asiático explodindo de crescimento e atraindo capitais; e agora ainda temos o conflito no Golfo, e esses nossos bestalhões acham que podem esnobar capital estrangeiro.

Jorge Escosteguy: Professor, por favor, o Luís Nassif tem uma pergunta para o senhor.

Luís Nassif: Deputado, eu queria tentar entender um pouquinho, através da sua análise, por que se chegou a esse quadro hoje e qual foi o papel do empresário nacional, ou da falta de um projeto do empresário nacional para se chegar a esse quadro. Nós tivemos, depois de 64, aquele processo de racionalização das contas públicas, aquela reforma implementada pelo senhor e pelo doutor Bulhões; nos anos 70, toda prioridade de desenvolvimento era concentrada no seguinte: vamos concentrar todos os esforços no empresário, [porque] concentrando no empresário, o empresário cresce, gera emprego e o emprego gera justiça social e gera um desenvolvimento. O que nós vimos durante os anos 70 foi o desperdício de muitos recursos, aqueles fundos que jogaram dinheiro fora; foi o aparecimento de um protecionismo também. O meio empresarial, enquanto em outras partes do mundo havia um aprimoramento muito grande das relações trabalhistas, os trabalhadores sendo chamados como parceiros, sendo imbuídos dessa mentalidade empresarial, aqui [havia] um processo estagnado. Será que o empresário brasileiro também não é culpado da falta de um projeto nacional para o empresário brasileiro?

Roberto Campos: É, eu acho que sim. Os empresários brasileiros se habituaram a ter reservas de mercado, fazendo um curioso pacto com o governo. Eles apoiavam o governo em troca de reservas de mercado, das quais o exemplo mais crítico, porque significou um enorme atraso para o Brasil, é a reserva de mercado da informática, contra a qual eu lutei...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Professor, desculpe interrompê-lo um minutinho.

Roberto Campos:...e que resultou de uma estranha aliança entre empresários cartoriais, militares da direita, do SNI [Serviço Nacional de Informações], e políticos de esquerda. Agora, por que essa distorção da mentalidade empresarial? É parte da patologia cultural brasileira. Nós sofremos de uma doença que eu chamo de a doença dos “-ismos”. São cinco “-ismos”: o nacionalismo, o estruturalismo, o populismo e duas doenças graves que debilitaram, desfibraram o empresariado nacional, que são o protecionismo exagerado e o estatismo incontrolado. E disso é que resultou a perversão da mentalidade empresarial brasileira.

Luís Nassif: Mas como se explica que isso tenha surgido no bojo de reformas, no bojo de uma reforma política autoritária e no bojo de uma reforma econômica liberal, onde praticamente, digamos, todos os grandes valores do liberalismo estavam presentes nessa reforma econômica? Como se compreende que... é o autoritarismo em si que leva a esse processo de deturpação das relações econômicas, da competição, da livre competição?

Roberto Campos: Eu diria que não; não há conexão necessária entre essa distorção e autoritarismo. Por exemplo, o Chile foi até recentemente um país autoritário, e que se moveu cada vez mais no sentido da economia de mercado do capitalismo competitivo. Taiwan e Coréia foram até recentemente – estão em processo de democratização – países autoritários em que se praticou um capitalismo competitivo. Não há, portanto, relação entre o desfibramento empresarial e o autoritarismo em si. O autoritarismo tem que ser julgado por suas desvantagens de outra natureza, não por isso. No caso brasileiro, eu diria que houve um acidente de percurso. Esse acidente de percurso foi a primeira crise de petróleo. Quando houve o impacto da crise de petróleo, nós tínhamos que importar 80% do combustível consumido, a Petrobras já tinha quase vinte anos de vida e não tinha descoberto ainda praticamente nada – a descoberta maior foi a bacia de Campos, em 1974, vinte anos depois de estabelecida a Petrobras –, num momento de pânico, nós tomamos que direção? A direção coreana de enfatizar exportações e indústrias orientadas para exportação? Não. Nós nos orientamos para uma maciça substituição de importações, por via de quê? Ou de empresas estatais ou de grandes grupos cooptados pelo Estado e financiados por subsídios, por taxas cambias favorecidas e por taxas de juros negativos. Aí é que começou a distorção; dela não mais saímos.

Jorge Escosteguy: Professor, eu queria pegar uma carona, quando o senhor falou em protecionismo, que o telespectador Torsten Poilesen, aqui de São Paulo...

Roberto Campos: [interrompendo] Carona em dia de chuva é permissivo.

Jorge Escosteguy: ...ele pergunta se o senhor não acha que esse “desprotecionismo” da informática está indo muito depressa, e com essa velocidade é capaz de não dar certo.

Roberto Campos: Meu Deus, é o contrário, está indo lento demais. É que a informática não se mede por anos, mede-se por minutos. Você, a cada seis meses, tem um novo produto substancial em matéria de informática. Se você não liberalizar rapidamente, aí sim é que você condena toda a indústria à obsolescência. O que hoje nós temos é um parque arqueológico de computadores. Eu recebo muitos PhDs americanos, gente fazendo teses, são chatos, vêm aqui, me amolam, querem fazer pesquisas e não sei que, tal. Eu já estou vendo a hora em que você, inundado de pedidos de PhDs americanos, fazendo tese sobre a história primitiva da informática, a arqueologia da informática, e o maior museu de peças obsoletas é aqui no Brasil. Vão vir a mim pedindo para orientá-los como caminhar nesse museu obsoleto [risos].

Jorge Escosteguy: Como o senhor caminharia nesse museu? O senhor não tem computador ou o senhor tem um computador importado?

Roberto Campos: Não, eu acabaria com esse museu. Eu diria: a importação de equipamento é permitida; a indústria nacional tem que ser competitiva. O máximo que o governo pode fazer é dizer àquelas empresas que tiverem maioria nacional, não precisa ser inteiramente nacional, [àquelas] que tiverem maioria nacional, eu dou preferência nas minhas encomendas. Agora, o público em geral pode obter o equipamento que julga mais adequado a sua produtividade. É o princípio japonês, a gente pensa aqui que o Japão protegeu e tal, [mas] o que o Japão fez foi o seguinte: “Eu, governo japonês, orientarei minhas encomendas, não as do público, minhas encomendas para aquelas indústrias que têm maioria de capital japonês e induzirei sutilmente os bancos a darem preferência no financiamento a essas indústrias. Agora, quem quiser importar, pode importar; indústrias estrangeiras que queiram se implantar, podem se implantar”. Então, esse seria o limite da ação governamental.

Jorge Escosteguy: Induzir sutilmente seria o quê, professor?

Roberto Campos: Você sabe que, na Inglaterra, eles têm o chá das cinco. O Banco da Inglaterra não produz essa batelada de resoluções, de instruções, não sei o quê; convidam-se os banqueiros para o chá das cinco e aí, ao pé do ouvido, se sussurra o que se deseja que seja a orientação governamental. Os japoneses tinham um outro negócio que se chama orientação administrativa. É também uma coisa muito informal, é a manifestação de uma preferência não coercitiva do governo. Nós deveríamos aprendem mais a técnica do chá das cinco [risos].

[sobreposição de vozes]

Jorge Escosteguy: Nós vamos precisar fazer um rápido intervalo. O Roda Viva volta daqui a pouco, entrevistando o deputado e ex-ministro Roberto Campos. Até já.

[intervalo]

Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva, que hoje está entrevistando o professor Roberto Campos, ex-ministro do Planejamento e atual deputado federal pelo Rio de Janeiro. Professor, o senhor falou um pouco no primeiro bloco sobre excesso de dinheiro no mercado etc. Acho que, aqui, eu e a maioria das pessoas que aqui estão, e muitas pessoas que estão em casa, estão de olho no mês de setembro, ou seja, acham que no mês de setembro vai começar a chover dinheiro na horta de todo mundo com a devolução dos cruzados novos. O senhor acha que é viável, é possível a devolução desse dinheiro sem nenhum trauma na economia?

Roberto Campos: Bom, em primeiro lugar, o governo não tem escolha. Ele não só se comprometeu...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] O governo sempre tem escolha, não é, professor?

Roberto Campos:...a descongelar esses cruzeiros como esse compromisso foi reafirmado por ocasião da aprovação da medida provisória 294. Então, o governo vai ter que liberar cruzados. A coisa inteligente teria sido transformar o que foi um erro estratégico, quer dizer, o confisco, o seqüestro inicial, numa vitória tática. Como? Desde o primeiro mês ou segundo mês, liberar-se o uso de cruzados bloqueados para compra de propriedades, quaisquer bens do governo e para compra de ações; fazê-lo logo no início, porque assim dar-se-ia um certo consolo ao poupador, que viu seus cruzeiros bloqueados, e diminuiria essa massa do dia do juízo a explodir em setembro. Agora o governo está fazendo isso. Já se permitiu a utilização de cruzados para várias coisas e vai se permitir a utilização de cruzados para a privatização. Mas quanto mais nós nos aproximamos do dia fatal, menor o interesse da população em se desfazer de cruzados. O ideal teria sido fazer isso logo no início. Então, eu acho que esse erro estratégico, em termos de investimento e poupança, que foi o bloqueio de cruzados, ter-se-ia transformado num acerto tático, permitindo o mais rápido programa de desestatização, de privatização do mundo, que todo mundo correria para livrar-se dos cruzados.

Jorge Escosteguy: Mas não foi assim. O professor [Luiz Gonzaga] Belluzzo, por exemplo, que não chega a ser um crítico, ou a estar em desacordo com a atual equipe econômica, ele diz que é praticamente impossível, que não se pode devolver esse dinheiro para o mercado.

Roberto Campos: Uma razão a mais. Se não se pode devolvê-lo financeiramente, uma razão a mais para se fazer a conversão da dívida, aliás, a conversão da dívida em ações de propriedades estatais é uma solução não só para a dívida interna, mas também para a dívida externa. A questão é que o governo não tem muita escolha. Em setembro, ele vai ter que começar a pagar cruzeiros. De onde ele vai tirar esses cruzeiros? Ou ele aumenta os tributos, ou ele faz uma química, como a que fez agora com o fundão, ou ele emite papel-moeda, mas não há como escapar.

Luís Nassif: Deputado, o senhor está lançando um livro de memórias, parece que está na fase final. O senhor é uma pessoa que acompanhou os principais fatos da história brasileira dos anos 50 para cá, e eu queria que o senhor fizesse uma avaliação aqui do governo Juscelino. Nos últimos tempos, houve uma ressurreição assim da imagem do Juscelino, como grande governo, o governo que jogou o país na modernidade, mas ainda há algumas avaliações sobre a sua atuação que mostram um sujeito sem muita informação do ponto de vista internacional; muito dado a lances de marketing sem prever desdobramentos, como a Operação Pan-Americana; um sujeito que descontrolou as contas públicas, a ponto de deixar uma herança inflacionária. Qual é a sua avaliação hoje, com o distanciamento que o tempo dá, sobre o governo Juscelino e sobre o Juscelino?

Paulo Nogueira: Eu gostaria que depois o senhor fizesse uma avaliação também sobre o presidente Fernando Collor de Mello. Seria ele é um homem determinado ou também um homem manipulado pelos tais ideais antiempresariais dos economistas da Unicamp?

Roberto Campos: Eu convivi muito com o Juscelino, e eu fui co-autor, com [o engenheiro e político] Lucas Lopes [1911-1994], do Programa de Metas. Eu diria que ele era um grande empreiteiro, não necessariamente um estadista. O que ele queria era fazer obras. Não media muito as conseqüências inflacionárias disso. Eu, por exemplo, junto com Lucas Lopes, quando consultado pelo Juscelino, na fase da campanha ainda, eu propus que fizéssemos três programas, e não apenas o programa de metas – [quanto a] esse tratamento, fui eu até que sugeri a expressão “metas”. Um programa seria reforma cambial, isso era simples, era liberar a taxa de câmbio. Imagine se nós tivéssemos liberado a taxa de câmbio naquela época, muito antes que Hong Kong, que Coréia, que Taiwan penetrassem no negócio; seríamos super-exportadores.

Jayme Martins: [interrompendo] Mas havia o que exportar, industrialmente falando, naquela época?

Roberto Campos: Bom, isso teria orientado o rumo da industrialização, teria sido uma industrialização exportadora, e teria suscitado a diversificação da produção agrícola. Não se pode predeterminar qual será a exportação. Você veja, por exemplo, o Chile: 70% eram cobre, hoje, cobre são 40%. Quer dizer, surgiram novas exportações com as quais os chilenos jamais sonharam. No México, era mais ou menos a mesma coisa, o petróleo era 70% das exportações, hoje são 40%, quer dizer, houve uma enorme diversificação de exportações. Mas o segundo programa era um programa de estabilização monetária, de disciplina orçamentária, aliás, muito sofisticado. Nós planejávamos gastos e recolhimentos do Tesouro, mês a mês, era um primor tecnocrático, torre de marfim etc, um primor tecnocrático de programa de estabilização monetária. O terceiro programa era o programa de metas, era o único pelo qual o Juscelino se interessou. A reforma cambial, ele descartou logo, inclusive por objeções do [ministro da Fazenda no governo Juscelino e vice-presidente do Brasil entre 1964-1967] José Maria Alkmin [1901-1974], que dizia: “Reforma cambial derruba governo”. O governo não queria ser derrubado, [mas] não tinha nada disso. Reforma cambial era perfeitamente compatível com a normalidade democrática, porque a prática do câmbio livre é hoje uma prática democrática, uma democratização do mercado de câmbio. Juscelino se aferrou ao programa de metas, e aí era um animal de um extraordinário vigor e de uma enorme simpatia humana. O [advogado e político] San Tiago Dantas [1911-1964, ministro das Relações Exteriores, entre 1961-1962, e ministro da Fazenda em 1963] me dizia: “Roberto, quem quiser ser inimigo do Juscelino, tem que ficar pelo menos a 30 km de distância, porque se chegar mais perto, é imediatamente”... [risos].

Jayme Martins: Entrega a carteira.

Luís Nassif: Ele foi um bem ou um mal para o Brasil?

Roberto Campos: Foi um bem. No balanço, eu acho que foi um bem. Eu diria até que trouxe uma notável contribuição. Lembremo-nos que, até Juscelino, o Brasil era um país introvertido. O nacionalismo de Getúlio Vargas [Getúlio Dornelles Vargas] era um nacionalismo xenofóbico, era antagonístico a capital estrangeiro, tinha medo. Naquele tempo não se usava a expressão “multinacionais”, usava-se “empresa estrangeira”, “capital estrangeiro”, que seja, mas o Juscelino quebrou esse tabu. O Juscelino, ainda como presidente eleito, e eu o acompanhei na viagem, foi à Europa, Estados Unidos, buscar investidores. Foi pedir aos alemães para virem investir no Brasil. Visitamos nove países em 17 dias. O Juscelino, como missionário, tentando atrair capitais para aqui, de modo que ele... O primeiro surto de industrialização brasileira não foi baseado em dívida, foi baseado na atração de capitais de risco. O problema cambial veio depois, por quê? Porque o Juscelino não quis fazer a reforma cambial. Não tendo querido fazer a reforma cambial, as exportações murcharam e a propensão a importar era grande. Ele tinha que fazer uma desvalorização cambial. Mas isso era em 1959, ele estava pensando na eleição, e reforma cambial aumenta o preço de trigo, de papel, de combustível, é impopular, então ele preferiu não fazer a reforma cambial e brigar com o Fundo Monetário, o que lançou o Brasil rapidamente na bancarrota. Eu saí do governo por esse motivo e vários outros, inclusive pelo petróleo na Bolívia, nós fizemos as maiores loucuras. Nós não queríamos contratos de risco na Bolívia, petróleo boliviano. A Petrobras não podia ir para a Bolívia, pelo código de petróleo boliviano, mas nós não queríamos contrato de risco na Bolívia, não era no Brasil, era na Bolívia, veja que loucura. Eu saí do governo por isso e porque não participava da ideologia dele, de briga com o Fundo Monetário Internacional. E também ele ficou ressentido porque eu não me entusiasmei pela Operação Pan-Americana. Ele queria um grande Plano Marshall para a América Latina, e eu dizia: “Mas, Juscelino, antes de a gente pedir dinheiro lá fora, precisamos fazer as reformas internas, precisamos provar que somos um país sério, que estamos fazendo um esforço fiscal”. Muito bem, ele brigou com o Fundo Monetário etc e o Brasil caiu na bancarrota. A primeira tarefa do Jânio Quadros foi chamar o [banqueiro e diplomata] Walter Moreira Sales [1912-2001] e a mim, para irmos lá, de chapéu na mão, arranjar acomodações com os credores, porque o Brasil não tinha como pagar a gasolina, nós tínhamos atrasados de gasolina, naquele tempo se importava gasolina. As refinarias não eram adequadas, importava-se gasolina. Não tínhamos como pagar gasolina, éramos caloteiros de gasolina.

[...]: Mas, deputado, hoje a situação talvez ainda seja pior. Eu quero lhe perguntar o seguinte.

Jorge Escosteguy: Só um minutinho, por favor, desculpe interromper. É que ele não terminou a pergunta do Paulo Nogueira. Ele não respondeu, e eu vou aproveitar, porque tem dois telespectadores que fazem a mesma pergunta, querem uma avaliação do professor Roberto Campos sobre o governo Collor. O José Roberto Nóbrega da Silva, aqui de São Paulo, pergunta inclusive se ele aceitaria ser ministro do governo Collor. E o Paulo Horsel, de São Vicente, ainda pergunta se o presidente Collor, ao completar um ano de governo, o convidasse para subir a rampa do Palácio, o que o senhor faria: o senhor subiria a rampa ou choraria na rampa, como se dizia antigamente? [risos]

Roberto Campos: Não, eu admiro o Collor, se me convidasse para subir a rampa, eu preferia descer a rampa. Esse negócio de subir, na minha idade já é meio complicado. Mas não acho que haja interesse para ele em exibir a minha decadência aos olhos públicos, há gente mais interessante a mostrar. Agora, quando me perguntam o que pensar do Collor, eu diria: que Collor? Porque há vários Collor; Collor é colorido. Em primeiro lugar, há o Collor candidato, esse provocou meu destramelado entusiasmo. Era uma mensagem de modernidade, contrastando com a mensagem obsoleta do Brizola, que não pode ser acusado de ter tido nenhuma nova idéia em trinta anos, e eu o conheço desde essa época. Pode ser acusado de várias coisas, mas de ter tido uma idéia nova, jamais. Ele continua falando aí nas perdas internacionais, quando todo mundo quer capitais internacionais para ter ganhos internacionais, e ele fica falando em perdas internacionais. Lula, com uma mensagem de conflito de classes, quando a União Soviética abandona a ideologia do conflito de classes. Então, Collor é uma mensagem super moderna, o Brasil do futuro. Ele pregava o evangelho que eu sempre defendia: combate à inflação, desregulamentação, privatização, liberalização comercial, reinserção do Brasil na comunidade financeira internacional, retorno do Brasil ao mundo e à história. Hoje o Brasil está na contramão da história e talvez fora da história. Collor número dois foi o Collor da primeira fase executiva, e aí eu fiquei muito desapontado. Tinha conversado com ele uns dias antes; nunca imaginei que ele começasse com essas medidas brutalmente heterodoxas, o que eu chamo o “con-con”: congelamento e confisco. E na primeira oportunidade que eu tive de falar com ele, expressei-lhe o meu desapontamento, e ele me disse: “Nossos objetivos são comuns, apenas os meus caminhos são diferentes e lhe parecerão um pouco esquisitos”. Eu disse: “Põe esquisito nisso” [risos]. Depois há o Collor três, em que ele parecia voltar a sua pregação original. Começou a descongelar preços, a fazer desregulamentação, a enunciar mais claramente o propósito de privatização, a fazer liberalização comercial, a falar contra as reservas de mercado, e eu novamente me animei. Eu discordava da condução da política econômica pelo seu sentido intervencionista, mas me seduzia por esses aspectos de reforma estrutural. O desbaste da máquina governamental, o esforço de desregulamentação, a promessa, e era apenas uma promessa, de privatização, mas eu tenho sofrido tanto defendendo a causa privatista que se um governo apenas listar empresas privatizadas, eu já fico cheio de emoção. Porque eu acho que simplesmente você listar as empresas privatizadas já é comprar uma tremenda briga com essa burocracia, essa nomenclatura corporativista, que é carente do todas as tecnologias modernas, exceto uma, a de converter o interesse pessoal em interesse público. Apresentam-se como os grandes defensores do interesse público, [dizem que] as empresas têm que ser estatais para a defesa dos interesses nacionais. Coisa nenhuma, defesa dos interesses corporativos. Collor enunciou o objetivo de privatização e forneceu uma lista de empresas [a serem] privatizadas. Ora, só isso me encheu de ternura, recompensa pelos meus longos anos de labuta.

[...]: [interrompendo] Mas [o senhor] logo se decepcionou.

Roberto Campos: E fez alguma coisa em desregulamentação; agora ainda fez aí o programa de – como se chama? – competitividade industrial, que é uma boa coisa, liberalização de importações de máquinas, a liberalização da informática, particularmente no tocante ao software, desregulamentação, enfim, são aspectos bons, eu já estava, num balanço algébrico, já estava inclinado a dar-lhe um crédito. Mas agora veio o Plano Collor número dois, e aí foi para mim, como um privatista, um anti-intervencionista, um segundo golpe. Eu esperava que ele, desencantado com o primeiro Plano Collor [Plano Collor I e II], não usasse os mesmos instrumentos no segundo Plano Collor. Mas o escritor inglês Evelyn Waugh [1903-1966], de quem eu devia ter lembrado, já nos advertia para a diferença entre desapontamento e desilusão. Ele teve desapontamento com aqueles... mas não tinha desilusão. Era desapontado, mas não desiludido, e replicou a façanha inicial, agora com um colorido novo, não é bem um confisco, não é isso, é uma intervenção no mercado financeiro.

Pedro Cafardo: [interrompendo] O senhor chegou a se arrepender do voto?

Jorge Escosteguy: [interrompendo] O senhor estava desapontado e agora ficou desiludido, professor?

Roberto Campos: É, eu acho que sim [risos].

Pedro Cafardo: Então o senhor chegou a se arrepender do voto?

Roberto Campos: É uma personalidade carismática, sem dúvida nenhuma. Tem carisma, tem um sentido de marketing e é determinado. Ele dizia: “Eu sou determinado”. E eu acho que ele é determinado, é preciso apenas mudar o objeto da determinação.

Armando Ourique: Deputado, o que se pode esperar agora do Congresso Nacional? Existe uma crescente esperança de que o Congresso venha elaborar um projeto nacional, venha ordenar as finanças públicas, venha fazer reformas administrativas, venha, enfim, abrir um novo horizonte, venha realmente discutir um projeto de todo país. Outra coisa ligada a isso: o senhor acha que nós estamos caminhando para uma crise institucional? Uma coisa que me preocupa: o senhor afirmou que não há nenhuma correlação entre o êxodo de programa modernizante, liberalizante e um regime autoritário. O senhor chega ao ponto de achar que o país precisa de um regime autoritário para estabilizar a economia?

Roberto Campos: Não, nada disso, se a gente contempla o mundo, verifica que os países de industrialização madura e bem-sucedida são países democráticos. Parece até que há uma correlação positiva entre alto grau de industrialização e democracia. Dir-se-á: mas a Rússia é altamente industrializada e não é democrática. Isso é verdade, mas a Rússia tem um tipo especial de industrialização, é uma industrialização distorcida. Toda a simpatia marxista é pelas indústrias pesadas, quando a industrialização verdadeira é aquela orientada não pelas ambições do produtor, que quer grandes [...] e grandes máquinas, mas pela soberania do consumidor. A industrialização moderna é, portanto, uma industrialização diversificada e pode ser até leve, eletrônica. Então, não é necessário nenhum regime autoritário para se chegar à industrialização. O que eu disse é que autoritarismo não é incompatível com o saneamento financeiro. Tanto assim, que houve esses exemplos que citei: Taiwan, Coréia etc. Que se pode esperar do Congresso? Eu acreditava que o Congresso ia melhorar, até porque eu achava que era impossível piorar. O Congresso que fabricou essa Constituição que aí está, que é um regulamento, uma espécie de consolidação das leis trabalhistas...

Jayme Martins: [interrompendo] Uma lista telefônica [...].

Roberto Campos:...uma lista telefônica, um catálogo de aspirações, freqüentemente sem contato com a realidade, um Congresso que fez essa Constituição de má qualidade, eu esperava que um novo Congresso fosse de melhor qualidade. Fiquei animado, inclusive parece que há duzentos empresários, ou que seja, portanto, maior chance de a gente marchar para a economia de mercado. O Congresso ainda não está estruturado, os novos ainda não se desinibiram, mas esse voto aí em favor de uma proposta do PDT, de vedar o acesso de capital estrangeiro ao fundão, quer dizer, um total irrealismo na rejeição de capital estrangeiro, me deixa um pouco desanimado. Não se deve sobre-estimar a capacidade do legislativo de combater a inflação, aliás, de nenhum legislativo. Não se deve criar esse mito de que o legislativo é necessariamente austero, cortador de despesas, não, senhor. Nos países desenvolvidos de hoje, o ônus do combate à inflação repousa apenas parcialmente sobre o executivo, ligeiramente sobre o legislativo e fundamentalmente sobre o Banco Central. Não é o Congresso americano que controla a inflação; o presidente [dos Estados Unidos Ronald] Reagan, desesperado, só faz aumentar de despesas, é preciso o Federal Reserve Board dar um tranco. Quem combate a inflação na Alemanha não é o Bundesbank, não é o parlamento; de alguma maneira, é o executivo. O executivo tende a ser mais moderado, porque tem que pagar as contas. O legislativo nem precisa pagar as contas, ele simplesmente volta à despesa, às vezes sabendo que as despesas excedem a receita. É o Banco Central independente que, na maioria dos países, se responsabiliza pelo combate à inflação. E o problema brasileiro é: enquanto nós esperarmos que o executivo combata a inflação, que o legislativo combata a inflação, nós nos arriscaremos a frustrações enquanto não criarmos um Banco Central independente, proibido de financiar o governo.

[...]: [interrompendo] Vide Nova Zelândia.

Roberto Campos: Vide Nova Zelândia.

Armando Ourique: O Banco Central permitiu, em fevereiro, uma expansão da base monetária [de] 38%. Como nós vamos sair desse programa, desse congelamento e qual o risco, como eu havia lhe perguntado, de uma crise institucional, do agravamento da situação econômica até lá?

Roberto Campos: Hoje é difícil sair do congelamento. Se você tem essa bruta expansão monetária, é de se esperar, afrouxados os controles, uma explosão de preços. Agora, isso tem que ser balanceado contra o mal dos controles. Em existindo controles numa situação inflacionária, você desorganiza a economia, porque a oferta tende a ser obstruída. O cidadão que poderia produzir fica com medo: como é que eu vou produzir? Como é que eu vou montar minha fabriqueta, se no fim da linha eu vou encontrar não o risco do mercado, nesse eu estou preparado para correr, mas o arbítrio do burocrata? Então, agora nós estamos numa entaladela, e o Castelo Branco dizia muito isso. Nós, em 1964, liberamos os preços agrícolas completamente. Quanto aos preços industriais, criamos o sistema de incentivos. As firmas que se comportassem voluntariamente, de acordo com uma determinada norma de preços, teriam benefício fiscal; as que não quisessem aceitar a norma de preços teriam uma punição fiscal, mas não havia congelamento nem sequer mesmo controle prévio. E ao Castelo Branco, quando ministro, diziam: “Tem que congelar os preços; não é possível, eles continuam subindo; a política fracassou”. Castelo Branco dizia: “O congelamento é como a ditadura: é muito fácil de entrar, agora, é difícil sair. Eu quero não entrar no congelamento, para poder sair elegantemente da ditadura”. A ilusão que ele tinha, com a Constituição em 1967, que previa... a esperança dele era que fosse implementada por um sucessor civil.

Jayme Martins: Tratando de aliviar um pouco a tônica financeira, o senhor, que quando jovem, teria sido considerado por seus colegas de seminário um possível papa, como se sente hoje, na idade papável, dando lições de marxismo a muitos dos intelectuais marxistas brasileiros e às esquerdas brasileiras em geral?

Roberto Campos: É interessante, eu não me arrependo de ter abandonado o seminário, porque eu seria mau padre, eu seria indisciplinado, porque eu nunca aceitei a disciplina do index librorum prohibitorum, o índice dos livros proibidos. Eu queria especular, refletir, duvidar. Não tinha a capacidade de seguir conselhos dos jesuítas: perinde ac cadaver, paciente imóvel, passivo como um cadáver ante os ditames da obediência eclesiástica. Por isso, lancei-me no grande mundo. Nunca me seduzi pelos extremismos. No meu ingresso, por exemplo, na carreira diplomática, por concurso, àquela ocasião, o nazismo e o integralismo eram tendências dominantes no Itamaraty. Eu resisti a essa tendência dominante, e quando me perguntavam: mas você não acha inevitável a vitória do Eixo [países que lutavam contra os Aliados na Segunda Guerra Mundial, liderados pela Alemanha, Itália e Japão]? Como é que você explica essa esperança numa reversão? E realmente, àquela ocasião, a vitória parecia inevitável. Eu disse: bom, lembrem-se, talvez nós estejamos no momento do apogeu napoleônico. Quem, em 1806, após a Batalha de Jena [que opôs os exércitos de Napoleão Bonaparte ao exército da Prússia; em poucas horas, este foi derrotado], ousaria duvidar que o império napoleônico duraria para sempre, e seis anos depois ele caía. Assim eu digo: Hitler e as potências do Eixo acumulam vitórias sobre vitórias. Isso era fim de 39, 40, começo de 41, mas eu acho que a mobilização aliada, com a entrada dos Estados Unidos na guerra, vai acabar mudando os termos da equação, e eu prefiro guardar a minha ilusão libertária. Também não me seduzi pelo comunismo. Chamavam-me, aliás, no Itamaraty - porque era um reformista impetuoso - de comunista. Até o [político e diplomata] Osvaldo Aranha [1894-1960] me mandou para Cuba. Eu fui lá, indisciplinado, às Nações Unidas, era um funcionário lá da delegação brasileira, tornei-me um incômodo para o Osvaldo Aranha, que estava presidindo a assembléia geral, o secretário-geral se queixou, porque eu me aliava ao delegado russo contra o secretário-geral da ONU, porque eu queria que se implantasse o princípio da distribuição geográfica do secretariado, e eles só queriam nomear franceses, europeus, anglo-saxões, [mas] eu me aliei aos russos, então, para solapar essa tese. Por isso fui chamado de comunista, enviaram-me para Havana, antes de Fidel Castro, aliás, mas eu nunca me seduzi pelo dogma comunista. Agora, estudei bastante o marxismo, eu diria que mais do que a maioria dos marxistas, e com eles não troco idéias, porque eu sei que não haveria reciprocidade, eu trocaria idéias e não teria nada em troca.

Stephen Kanitz: Eu tenho uma preocupação com relação ao futuro do Brasil: se ele vai agüentar esse número de pacotes econômicos. Pelos meus cálculos, existem cinco variáveis importantes na economia: taxa de câmbio, taxa de emprego, taxa de juros, que podem ser combinados: ou eles aumentam, ou continuam como estão, ou eles diminuem. Permutando cinco variáveis, três a três, isso dá um total de 273 políticas econômicas, das quais parece que nós já adotamos umas cem. A minha pergunta é a seguinte: o Brasil vai agüentar mais 173?

Roberto Campos: Eu acho que agüentaria em condições de estagflação. O que é estagflação, senão um impasse institucional? Não se cresce e não se combate a inflação. Se continuarmos com esses experimentos sucessivos, perpetuaremos uma situação de estagflação. Os países podem não dar certo. Nós temos hoje no mundo dois contrastes interessantes. De um lado, você tem os países asiáticos que provaram que é possível a gente passar da pobreza à riqueza no curso de uma só geração, provando incidentemente três coisas: primeiro, que é possível o desenvolvimento sem recursos naturais – esses nossos bobocas aí querem preservar os recursos naturais no subsolo, impedir a cobiça das multinacionais –, recurso natural não é nada, o importante é o recurso artificial. Bom, é possível o desenvolvimento sem recursos naturais. É possível o desenvolvimento com razoável distribuição de renda, ao contrário do que se pensava: [que] capitalismo na fase inicial, não na fase final, é necessariamente associado a uma má distribuição de renda. Não é este o caso do oriente. E terceiro, é possível um desenvolvimento sustentado, passando-se então da pobreza à riqueza. [O período de] só 25 anos foi o suficiente para países que pareciam inviáveis... Hong Kong, 5,5 milhões de chineses numa ilha com 1.100 quilômetros quadrados, se incluirmos os novos territórios alugados da China, sem água, tem hoje uma renda por habitante quatro vezes superior à média brasileira, e não tem território. Então é possível o desenvolvimento sem recursos naturais, com boa distribuição de renda, sem território e de forma contínua. Agora, existe o caso oposto. Também é possível passar-se da riqueza à pobreza no curso de uma só geração. É o caso da Argentina. Passou da riqueza à pobreza no curso de uma só geração. E o que me apavora é a perspectiva de o Brasil seguir no mesmo caminho, o caminho do empobrecimento, se continuar intervencionista, instável em política, confundindo manipulação dessas cinco variáveis. E eu acrescentaria uma sexta: a taxa de burrice, que é uma variável importante, e esta está crescendo alarmantemente. Se nós continuarmos a manipulação doida dessas variáveis trêfegas, nós corremos o risco da estagflação: executarmos uma façanha diametralmente oposta à dos asiáticos.

Paulo Nogueira: A saída seria [o aeroporto de] Viracopos, como sugeriu o empresário Antônio Ermírio de Moraes?

Roberto Campos: Bom, há mais de uma saída: há Galeão e Viracopos.

[...]: E Cumbica.

Pedro Cafardo: Eu gostaria de perguntar o seguinte. Por que é que o senhor...?

Roberto Campos: [interrompendo] Eu diria que há três: há Galeão, Viracopos ou Cumbica, se quiser, e o liberalismo. Esta saída existe.

Pedro Cafardo: Pois é, mas o liberalismo, se eu entendi bem o que o senhor propõe com o liberalismo, uma coisa fundamental é fechar a porta do cofre do Banco Central, evitar financiar o deficit do governo e fazer um programa de austeridade e tal. Agora, o que as pessoas costumam dizer é que o grande problema desse programa são os seus efeitos sociais, ou seja, recessão dramática, desemprego, crise social e, eventualmente, uma grave crise política. Por que o senhor acha que isso não aconteceria?

Roberto Campos: O mundo está em recessão? O mundo liberal está em recessão? Eu pensei que fosse o contrário. O mundo dirigista, o mundo socialista, onde há preocupação com o desemprego, com a assistência social, esse mundo é que está em desintegração. O mundo liberal está em prosperidade, ou esteve em prosperidade. Há um momento de rejeição temporária, que se espera seja curta, mas depois de oito anos de inédita expansão na história mundial. Então o liberalismo não pode ser associado à idéia de depressão, de recessão, por quê? Porque o liberalismo é essencialmente a liberação das energias produtoras da sociedade. O que, sim, é criador de problemas sociais de desemprego é o intervencionismo. Nós estamos experimentando isso: o intervencionismo é que está causando desemprego. Controle de preços, congelamento é um fator enorme de desemprego. Muita gente que podia produzir cessa de produzir, porque os preços não são atraentes. Outros que planejavam investimentos ficam incertos: “Quanto vai durar o congelamento? Qual será o nível de preços depois do congelamento?”

Luís Nassif: [interrompendo] Embaixador, só pegando o ponto de vista...

Roberto Campos: [A idéia de] que o liberalismo implica em recessão é errada. Socialismo implica em recessão, dirigismo implica em recessão.

Luís Nassif: Embaixador, o conceito é ele e suas circunstâncias. Hoje em dia o ideal liberal está francamente vitorioso, conquistando corações e mentes. Agora, quando a gente pega esse debate dos anos de 45 pra cá, o senhor diria que naquela fase inicial, quer dizer, todo aquele processo de implantação da infra-estrutura do Getúlio, que criou uma base tão mais poderosa que a dos asiáticos, se o Juscelino tivesse seguido a sua sugestão de liberar o câmbio, graças a essa infra-estrutura talvez o país estivesse hoje muito melhor que os asiáticos? O senhor diria que mesmo naquela fase inicial quando, por exemplo, o doutor [Eugênio] Gudin [(1886-1986) ministro da Fazenda entre 1954-1955] duvidava da capacidade do brasileiro de fazer caixa de fósforo, mesmo naquela circunstância o liberalismo teria sido a melhor saída naquele momento?

Roberto Campos: Ah, sim, nós teríamos provavelmente crescido muito mais rapidamente. E o fenômeno americano? Que foi o fenômeno americano senão um crescimento em condições de liberdade? Que foi o fenômeno canadense? Que foi o fenômeno australiano?

Luís Nassif [interrompendo] Mas existia um capitalismo se desenvolvendo desde o século XIX, eram circunstâncias um pouco diferentes.

Roberto Campos: Mas nós tínhamos a mesma coisa...

Luís Nassif: Não, eu estou falando de 50 para cá.

Roberto Campos: Nós absorvíamos imigrantes, nós podíamos fazer capital. O Getúlio é que era um homem de visão curta, ele tinha um medo danado de capital. Enquanto os Estados Unidos absorviam capital e tecnologia doidamente, praticando um nacionalismo integrativo, um nacionalismo de absorção, Getúlio praticava um nacionalismo de rejeição, um nacionalismo negativo.

Luís Nassif: No segundo governo também?

Roberto Campos: Também no segundo governo.

Luís Nassif: [...]

Roberto Campos: Getúlio nunca, a rigor, se corrigiu. Basta a carta de morte, o testamento de Getúlio. O que é? Ele lutava pelo desenvolvimento e forças ocultas e estranhas – [não eram] forças ocultas e estranhas, era incompetência gerencial – lhe teriam levado ao sacrifício final. Não tinha nada de força internacional impedindo o crescimento do Brasil. Não estava impedindo o crescimento do Canadá, nem dos Estados Unidos, de coisa nenhuma. Era a incompetência. Getúlio foi um governante razoável, apenas razoável na primeira fase, mas não se reciclou. Aliás, os gaúchos têm pouca capacidade de reciclar. Esse filhote de ditadura, o Brizola, é filhote da ditadura Vargas. Ele acusa todo mundo de ser filhote da ditadura, mas ele é um grande filhote da ditadura Vargas [a referência irônica é ao fato de Brizola ter chamado Paulo Maluf de “filhote da ditadura” em debate durante as eleições presidenciais de 1989]. Pois ele não fala até hoje que o problema do Brasil são as perdas internacionais? Quer dizer, não se reciclou, fala isso há trinta anos. Getúlio não se reciclou. Quando ele voltou ao governo, numa onda de popularidade, ele tinha as estruturas mentais, a gestalt, como dizem os alemães, da época anterior, de um Brasil menor, de um Brasil antes do...

Luis Nassif: [interrompendo] Mas o senhor não dá importância para aquele investimento em infra-estrutura que foi feito no segundo governo Vargas?

Roberto Campos: Sim, o investimento do segundo governo Vargas em infra-estrutura teve um defeito: foi um investimento estatizante. Nós podíamos ter desenvolvido a infra-estrutura através do capital privado, mas Getúlio tinha essa idéia de que a infra-estrutura tem que ser governamental. Então, toma lá Eletrobrás, toma lá Petrobras, toma lá sei lá o quê.

Luís Nassif: [interrompendo] Mas existia capital privado para isso?

Roberto Campos: A Embratel e a Telebrás vieram já com o Jânio, mas ainda era a mentalidade do Getúlio. O governo tem a responsabilidade da infra-estrutura, por quê? O governo não é responsável pela infra-estrutura nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, as ferrovias são privadas; a eletricidade é privada; o telefone é privado. Vá ao Japão, é a mesma coisa: telefone está sendo privatizado; energia elétrica é privada.

Luís Nassif: Mas naquele momento o país tinha capital disponível? Tinha condições para atrair esse capital?

Roberto Campos: Em primeiro lugar, quem fez a infra-estrutura aqui? Foi a [empresa] Light and Power [Company], não foi? Quem é a responsável pela industrialização paulista? É a Eletrobrás? É Getúlio Vargas? Foi a Light and Power, capitais canadenses. Nós tínhamos capital nacional e capital estrangeiro. As ações das empresas de eletricidade eram cotadas nas bolsas de valores. Era um processo normal de levantamento de capitais. Getúlio ainda nos pespegou – aliás, é injusto dizer isso dele – esse monstrengo da Petrobras. É injusto porque, na realidade, o projeto encaminhado pelo Getúlio Vargas ao Congresso não previa o monopólio estatal. Previa uma companhia majoritariamente brasileira, mas com participação estrangeira. Foi no Congresso [que houve] uma aliança entre os militares à esquerda e a UDN [União Democrática Nacional, oposicionista a Vargas], um partido burro de homens inteligentes, que forçou a adoção... No Brasil existe isso: às vezes o conjunto não tem limites para baixo e a soma das partes é menor que as partes. Eu acho por exemplo que o Itamaraty – e eu sou funcionário do Itamaraty – tem um soberbo elenco de pessoas, mas o conjunto é burro [risos]. Nós fizemos todas as apostas erradas: [o Itamaraty] foi contra assinatura do Tratado de Não-Proliferação [de Armas Nucleares, assinado em 1968, com o objetivo de evitar a disseminação de armas nucleares e viabilizar o uso pacífico de tecnologia nuclear], que condenou o Brasil ao ostracismo tecnológico; embarcou loucamente nesse negócio de terceiro-mundismo, que só fez dificultar a absorção de capitais estrangeiros, de tecnologia estrangeira, antagonizou o Primeiro Mundo, em busca de quê? De um Terceiro Mundo que não admira senão o poder econômico. É admirar o Brasil na medida em que o Brasil é um país de rápido crescimento. Quando o Brasil se estagnou, cessou toda a admiração africana. Nós ficamos com os ridículos abacaxis na mão. Créditos generosos dados a este país sem contrapartida. O Itamaraty apostou numa política de informática absolutamente estúpida. O Brasil é contra a inclusão de serviços no GATT [Acordo Geral de Tarifas e Comércio, mais tarde tornou-se a Organização Mundial do Comércio], ignorando que fatalmente os serviços se equipararão aos bens comerciais e talvez os superarão com percentagens do comércio internacional, de modo que a gente tem que ingressar no disciplinamento dessas atividades como parte do contexto internacional, senão o serviço acaba sendo regulamentado sem nós. Então, fizemos todas as apostas erradas. Bom, Getúlio Vargas não estimulou a criação do monopólio, mas aceitou-a alacremente. E eu acho que o problema é grave. Há um grave problema cultural, e eu fico desanimado, às vezes...

Jorge Escosteguy: Professor, por favor.

Roberto Campos: O Brasil não poderá se candidatar à modernidade enquanto mantiver esse fetiche: Petrobras, monopólio da Petrobras. A Petrobras pode existir, deve existir, [mas] o monopólio da Petrobras, por quê?

[...]: Deputado.

Roberto Campos: Porque nenhum país não chegou à modernidade, não chegou a um nível mínimo de racionalidade se ele confunde um combustível sujo com um ídolo religioso [risos].

Jorge Escosteguy: Deputado, o Sérgio Rondino tem uma pergunta. Eu gostaria que as perguntas e as respostas fossem breves, porque nós estamos já no final do programa.

Sérgio Rondino: Voltando à questão das saídas e deixando de lado a saída dos aeroportos, porque 99% não têm dinheiro para pagar a passagem. Eu queria saber se o senhor concorda ou não com as pessoas que dizem que um dos problemas graves do Brasil é o fato de que nós temos um poder legislativo muito preocupado em atender as demandas sociais porque não tem nenhuma responsabilidade em gerir depois o atendimento dessas demandas. Eu quero saber, resumindo, se o senhor é parlamentarista ou não? E como vai votar em 1993?

Roberto Campos: Eu era presidencialista. Não por nenhuma rigidez doutrinária, mas porque achava que o parlamentarismo exigia pelo menos três precondições não satisfeitas pelo Brasil. Primeiro: partidos estruturados em número razoável, quer dizer, pluripartidarismo sem multipartidarismo. E para isso eu acho que seriam necessárias, de novo, duas precondições: o voto distrital, simples ou misto, e o requisito de fidelidade partidária. Curiosamente, ambas essas coisas já estiveram no texto constitucional e foram daí retiradas. Em segundo lugar, eu achava que o parlamentarismo pressupõe uma burocracia profissionalizada e apolítica, para garantir continuidade de governo, e nós não temos isso. Em terceiro lugar, o parlamentarismo exige, a meu ver, um Banco Central independente. Porque caem os governos, mas [...] gabinetes se sucedem, uma dança às vezes macabra, mas fica o Banco Central governando a moeda. E, por exemplo, no governo italiano houve 49 gabinetes no pós-guerra e apenas seis presidentes do Banco Central. Não tendo essas precondições, eu achava que era inevitável uma experiência presidencialista preparatória e o parlamentarismo. Mas agora eu receio que nós nos encaminhemos para uma crise institucional. Estou disposto a rever posições e considerar a possibilidade de um parlamentarismo açodadamente implantado.

Jorge Escosteguy: Professor, por favor, o nosso tempo já está se esgotando. Eu lhe faria uma última pergunta. Aliás, quem faz a pergunta é a telespectadora Rubia Prado, aqui de São Paulo. Se o senhor puder também dar uma resposta breve, ela quer saber se o senhor considera a ministra Zélia, apesar de ser mulher, uma pessoa capaz?

Roberto Campos: Considero sim, considero capaz, considero-a devotada. Acho que apenas ela, depois de ter feito uma profissão de fé liberal, recaiu em seu passado dirigista. Ela, como todos sabemos, vem da esquerda, de simpatias marxistas, de modo que é uma cristã nova do liberalismo, e os cristãos novos têm fé débil [risos].

Jorge Escosteguy: Nós agradecemos então a presença esta noite aqui no Roda Viva do professor e deputado federal Roberto Campos. Agradecemos também a presença dos nossos companheiros jornalistas e a atenção dos telespectadores. Lembramos que as perguntas que foram feitas por telefone e que não puderam ser feitas no ar serão entregues ao nosso entrevistado. O Roda Viva volta na próxima segunda-feira às nove horas da noite. Uma boa noite a todos e até lá.

Nacido em Cuiabá/MT, em 1917, Roberto Campos morreu de infarto agudo do miocárdio, em 9 de outubro de 2001, em sua casa, no Rio de Janeiro, onde se recuperava de outros problemas de saúde.

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