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Memória Roda Viva

Listar por: Entrevistas | Temas | Data

Francisco Rezek

3/12/1990

Que tipo de nova ordem mundial viria após a Guerra Fria e o conflito no Iraque? Qual o lugar do Brasil nesse tabuleiro? Passado, presente e futuro analisados no calor do limiar de uma nova era

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Rodolfo Konder: Boa noite! Estamos começando mais um Roda Viva. Este programa é transmitido pela TV Educativas de Porto Alegre, Minas Gerais, Espírito Santo, Piauí, TV Cultura de Curitiba e TV Cultura do Pará. É, ainda, retransmitido para mais quinze emissoras que formam a Rede Brasil, através da TV Educativa do Rio de Janeiro. O convidado desta noite é o ministro das Relações Exteriores, Francisco Rezek. Os telespectadores, hoje, não poderão fazer perguntas, porque este programa foi gravado. Para entrevistar Francisco Rezek convidamos os seguintes jornalistas: Carlos Dias, editor de Internacional do Jornal da Tarde; Jayme Martins, jornalista da TV Cultura; José Márcio Mendonça, comentarista da TV Bandeirantes; José Arbex, editor de Exterior da Folha de S. Paulo; Flávia Sampaio Leite, editora de Internacional da revista IstoÉ Senhor; Carlos Conde, diretor da sucursal do Correio Braziliense de São Paulo; Marcos Emílio Gomes, jornalista de O Estado de S. Paulo; e Roberto Jungmann, coordenador de Nacional do Jornal do Brasil. O advogado Francisco Rezek nasceu em Cristina, Minas Gerais, há 46 anos, cursou a Universidade Federal de Minas Gerais, fez o doutorado em Direito Internacional na Universidade de Paris e fez pós-graduação em Oxford, na Inglaterra. Foi procurador da República e assessor do ministro [João] Leitão de Abreu [(1913-1992), foi ministro do Gabinete Civil de 1981 a 1985] no governo [João Batista] Figueiredo [(1918-1999), presidente da República de 1979 a 1985]. Tornou-se conhecido do grande público ao comandar, como presidente do Tribunal Superior Eleitoral, a primeira eleição para presidente no país, depois de 29 anos. Ao ser nomeado ministro das Relações Exteriores no governo [Fernando] Collor de Mello [1990-1992], este ano, abriu mão de um cargo vitalício no Supremo [Tribunal Federal] em troca das eventuais instabilidades do ministério. Boa noite, ministro!

Francisco Rezek: Boa noite, Rodolfo!

Rodolfo Konder: É um prazer tê-lo novamente aqui, conosco.

Francisco Rezek: O prazer é meu.

Rodolfo Konder: Ministro, dessa troca, dessa corajosa troca - eu poderia dizer, até, arrojada troca -, o senhor está arrependido ou não?

Francisco Rezek: Não, não. Em nenhum momento, desde que foi tomada, por mim, a decisão - cerca de sete ou oito dias depois da instalação do novo governo - até a hora atual, não houve um único instante em que entendesse que agi de modo errôneo ao aceitar o cargo, ao aceitar essa responsabilidade. Eu estava muito satisfeito com o que fazia no judiciário, Rodolfo; eu sempre tive grande apreço pela função judiciária, pelo Supremo Tribunal Federal, no qual entrei há sete anos - e mais ainda, talvez, pela Justiça Eleitoral, onde se acumula, com a função judiciária propriamente dita, uma tarefa gerencial de grande importância em momentos também muito importantes para a vida política do país. Agora, imaginei, quando tomei a decisão, que não deveria deixar de exercitar uma tarefa que talvez utilize melhor certos aspectos da minha formação, que ficavam, de algum modo, neutralizados na função judiciária. E penso, sobretudo - isso talvez seja o aspecto fundamental -, que este é um momento em que dá gosto fazer política internacional, em razão daquilo que se passa no plano global e em razão daquilo que se passa no Brasil quanto à definição do seu perfil frente ao restante do mundo. Houve épocas, Rodolfo, em que era muito difícil cuidar de tarefas relacionadas com política internacional, porque o mundo vivia uma situação de extremo embaraço, de extremo constrangimento ao sabor da Guerra Fria, dos seus desdobramentos, da corrida armamentista [entre Estados Unidos e União Soviética], do gasto absolutamente insano que se fazia em nome de um medo recíproco [de aniquilamento por ataque nuclear maciço], inteiramente fabricado para satisfazer a determinada linha de interesses. Quando isso termina - e termina tão pouco tempo atrás [em 1989, colapsou o bloco soviético, com a queda dos regimes comunistas da Europa Oriental], e termina, ao que tudo faz ver, de modo definitivo -, parte-se para uma época de maior convicção a respeito de que teremos regras confiáveis no plano da política internacional. Essas regras serão, provavelmente, observadas pela larga maioria dos países e poder-se-á viver numa sociedade internacional melhor. E, ao mesmo tempo, um período em que o Brasil se apresenta com uma severa autocrítica de momentos menos brilhantes do seu passado, extremamente convencido de que a transparência é a regra e de que é por meio dela que nós nos conheceremos melhor - não excluindo, naturalmente, o conhecimento que outras nações desejam ter de nós, da nossa realidade e dos nossos problemas; mas desejosos de nunca, nunca mais utilizar o argumento da soberania nacional para frustrar a comunicação crítica e para frustrar aquele esforço que todos fazem para que cada um melhore dentro do conjunto. Eu penso que a época, sobretudo, é um vigoroso incentivo a que se faça pelo país um esforço sem limites nesse domínio em que as compensações têm sido algo muito expressivo. Eu não me arrependi, realmente.

Rodolfo Konder: Ministro, o senhor fala de um quadro internacional aberto, positivo: o fim da Guerra Fria, a paz, a estabilidade. Mas temos aí um foco perigoso de tensão no Golfo Pérsico [refere-se à Guerra do Golfo de 1990-1991]. O Conselho de Segurança [órgão da ONU que discute e decide sobre assuntos relacionados à segurança e aos conflitos armados no mundo, com poder de decidir por intervenções militares] aprovou, inclusive, o uso da força para a solução da crise no Golfo Pérsico. E, nesse caso, considerando, inclusive, o prazo que está sendo dado ao governo do Iraque - até 15 de janeiro -, se houver um conflito - e a possibilidade de que haja um conflito é bastante grande -, como é que o Brasil se situa? Nós vamos mandar, por exemplo, tropas para o Golfo Pérsico?

Francisco Rezek: Respondendo a esse último desdobramento da pergunta, Rodolfo, não. O Brasil não tenciona fazê-lo a título singular, quer dizer, a exemplo de alguns países - em número reduzido, diga-se de passagem - que já o fizeram, sob suas próprias bandeiras. O governo brasileiro, desde o primeiro momento, desde o eclodir da crise da madrugada de 2 de agosto [data da invasão], manifestou o seu veemente repúdio àquele ato de desrespeito à soberania territorial do Kuwait, lamentou o episódio, associou-se às decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas - todas elas, não importando saber o quanto sofríamos economicamente por conta dessa crise - e tomou posições absolutamente unívocas quanto à definição, ao entendimento, à classificação daquilo que estava se passando. O Brasil foi, por sinal, um dos países mais expedientes em transformar em regra do direito interno aquilo que o Conselho de Segurança deliberou quanto ao embargo. Mas, por outro lado, não nos pareceu que pudéssemos encontrar uma explicação muito convincente para uma eventual presença militar brasileira ao lado de tropas americanas, ao lado de tropas egípcias e algumas outras mais. O Brasil não deixaria de cooperar com as Nações Unidas, sob a bandeira e mediante o uso do uniforme das Nações Unidas por elementos das nossas forças armadas. Já aconteceu no passado, poderia acontecer de novo; mas a ONU não deliberou nada nesse sentido. E a remessa de tropas sob a nossa própria bandeira - enfim, num gesto absolutamente espontâneo que, a nosso ver, não encontraria justificativa política imediata -, isso pareceu inoportuno e continua parecendo. Isso é uma possibilidade que o governo brasileiro não vislumbra à sua frente. Agora, quanto a... eu poderia voltar mais tarde, se me parecesse conveniente, ao tema da Guerra Fria e à questão de saber se é possível dá-la por terminada. E, nesse caso, se houve vencedores e vencidos e quais são.

Rodolfo Konder: Por que? O senhor acha que não está terminada?

Francisco Rezek: Não, eu penso que terminou e que esse fecho é um dos eventos mais brilhantes da vida internacional do século XX, sem dúvida. Agora, me parece um tanto precipitada a conclusão de que a Guerra Fria terminou com uma vitória ocidental. Essa é uma das maneiras possíveis de analisar-se o fenômeno do desfecho da Guerra Fria. Poder-se-á dizer que a economia planificada, a tutela estatal absoluta da economia... [hesita]

[...]: Faliu.

Francisco Rezek: ...faliu. Esse sistema revelou-se inapropriado, revelou não conduzir à prosperidade dos povos. Quanto ao aspecto "liberdades políticas", pluralismo, aí, nesse ponto, Rodolfo, me parece que o que havia era um contraste entre a realidade que se operacionalizava nos países da Europa Oriental [sob controle da União Soviética] e o discurso. Porque, no que concerne a determinadas definições teóricas quanto à conveniência desse ou daquele regime, mesmo os países da Europa Oriental sempre apregoaram a necessidade da liberdade, do embate político. E isso somente não acontecia com a facilidade que se espera ou [que] ocorra nas democracias verdadeiras. Agora, me parece que, sem embargo de determinados padrões econômicos do Ocidente terem revelado maior eficácia no sentido de conduzir povos à prosperidade, isso não significa uma vitória do capitalismo em todos os seus aspectos. As coisas não são tão simples assim e reclamam uma análise um pouco mais aprofundada para se saber o que é que triunfou como doutrina e quais os aspectos doutrinários do capitalismo integral que não resultaram vitoriosos. Agora, sobretudo, eu encaro o término da Guerra Fria como algo onde a definição de vitoriosos e de vencidos não deve ser feita de modo palaciano, sob o enfoque palaciano, mas sob o enfoque popular. E, dentro dessa ótica, não seria errado dizer que os grandes vencedores da Guerra Fria foram os povos da Europa Central e da Europa Oriental, que encontraram, finalmente, a sua sempre desejada faculdade de definir o destino político do Estado, de influir decisivamente na determinação do poder. Enfim, eu acho que a Guerra Fria efetivamente terminou, mas que certas conclusões sobre quem a terá vencido são um tanto superficiais.

Rodolfo Konder: Carlos Dias, por favor.

Carlos Dias: Senhor ministro, os Estados Unidos são, sem dúvida nenhuma, o maior parceiro comercial do Brasil. Só que, nos últimos anos, tem acontecido uma série de contenciosos, como, por exemplo, o da reserva de mercado na informática [da Política Nacional de Informática, que vigiu de 1984 a 1992 e cuja função era fomentar a indústria brasileira de informática por meio de uma reserva de mercado para empresas de capital nacional]. Agora, o presidente [George H. W.] Bush [1989-1993] vem ao Brasil e o Brasil tem uma boa oportunidade de, quem sabe, se aproximar um pouquinho mais do seu maior parceiro. Mas o senhor não acha que, nesses últimos anos, o Brasil tem tratado um pouco mal, levado muito no duro justamente o seu maior parceiro? Muitas vezes com as relações com os países árabes, por exemplo, que têm provocado críticas de como a venda de material bélico, nessa situação... O senhor não acha que o Brasil leva muito no duro o maior parceiro comercial deles?

Francisco Rezek: Não, eu não acho. Eu penso que, em certos momentos, seria até possível dizer o contrário: que, em determinados aspectos do nosso relacionamento com os Estados Unidos da América, o nível de cooperação e cordialidade poderia merecer alguma crítica de determinados setores do pensamento político brasileiro. Agora, de fato, há sempre um clima próximo do clima contencioso, porque uma das características da sociedade norte-americana - veja bem, uma das características da [com ênfase] sociedade norte-americana - que o governo reflete fielmente, é essa extrema consciência do primado dos próprios valores, da elevada qualidade dos valores que ali se apregoam e que ali se praticam. E um desejo - que não chega a ser impertinente -, um desejo de que todos os povos, de algum modo, se acomodem àqueles mesmos padrões, reconheçam a sua excelência, reconheçam a sua utilidade e a tanto se habituem nas suas próprias práticas políticas. Agora, também aí, nesse domínio, as coisas nem sempre são tão simples: é possível que outras sociedades, a todo o momento, entendam que o seu próprio interesse, o seu próprio perfil [se] desenhasse de um modo diversificado nesse ou naquele tópico. Eu não faço uma crítica - sobretudo não faria uma crítica severa - da postura norte-americana, da convicção absoluta que eles têm de que estabeleceram uma pauta de valores cujo rigor, cuja qualidade não tem limites. Mas eu penso que nós temos também o direito de determinarmos os nossos próprios valores, tentar convencer outros povos - inclusive parceiros da mais alta expressão internacional, como esse país - de que a nós nos convém melhor essa ou aquela vertente, essa ou aquela diretriz, dentro da análise deste ou daquele problema político. É por conta, sobretudo, do estilo norte-americano e do estilo de alguns outros países do Hemisfério Norte que enfrentamos, vez por outra, um contencioso político dessa natureza. Quanto à sua lembrança de que as nossas relações com um país como o Iraque mereceram algum desdobramento negativo em um diálogo com os Estados Unidos da América: aí, é importante lembrar que o governo norte-americano, muito bem informado como sempre foi, tem consciência de que o comércio de armas entre o Brasil e Iraque cessou em 1988, cessou em 1988 por razões de índole comercial. De modo que a crise agora, em agosto, não nos surpreendeu numa situação de embaraço, tendo que, às carreiras, pôr termo súbito a uma linha comercial que nos trouxesse problemas por razões de índole política, pelo envolvimento do Iraque em uma iniciativa militar afrontosa a certas regras de direito internacional. Agora, é certo que nem todos os setores da sociedade civil - mesmo do quadro político -, em países como os Estados Unidos da América, têm o mesmo grau de informação atualizada que o governo tem. Não faz muito tempo que tivemos que pedir ao próprio governo norte-americano que nos ajudasse a lembrar a certos senadores norte-americanos que certos dados com que estavam trabalhando eram desenganadamente irreais, eram desatualizados, quando não inverídicos desde a origem - e dados que seriam usados no sentido de uma emenda parlamentar a um texto normativo que, nominalmente, citaria o Brasil como um país não merecedor da transferência de certas linhas de tecnologia. O governo norte-americano revelou-se bem informado quando nos ajudou a esclarecer a esse estrato do parlamento que as coisas não se passavam do modo suposto, no Brasil.

Rodolfo Konder: Jose Arbex.

José Arbex: Ministro, eu queria polemizar na mesma linha, só que no sentido inverso da pergunta dele. Como o senhor mencionou, acabou a Guerra Fria e, com isso, houve uma recomposição de forças na Europa e na Ásia; a nova Europa tenta agora se constituir como região autônoma e independente dos Estados Unidos. A Guerra Fria implicou a dissolução dos blocos geopolíticos e colocou em xeque a hegemonia norte-americana sobre o continente europeu. O Japão estende sua dominação sobre o sudeste asiático e o capital norte-americano enfrenta um sensível recuo geopolítico no nível tanto do continente europeu quanto do sudeste asiático. A pergunta que eu quero fazer ao senhor é: se não existe uma percepção no Itamaraty de que o plano Bush para as Américas [a Iniciativa para as Américas, lançada cinco meses antes desta entrevista] seja uma retomada da Doutrina Monroe adequada às condições do recuo do capital norte-americano no resto do mundo; uma tentativa de aprofundar o seu domínio sobre a América Latina, já que ele está em recuo nas outras regiões geopolíticas. Se esse "Plano Monroe" adequado às condições contemporâneas, que dariam substância ao plano Bush, não implicaria em maior subordinação das economias nacionais da América Latina à lógica do capital norte-americano. E se o Plano Collor, quando abole aquele protecionismo - que, de fato, era burro, ineficaz e incapaz de garantir qualquer desenvolvimento do mercado nacional -, mas, se o plano Collor, ao abolir esse protecionismo burro, ineficaz, também não está preparando as condições para a crescente subordinação do Brasil ao capital norte-americano. Nessas condições, o capital norte-americano precisa garantir o seu domínio geopolítico sobre a América Latina. Eu queria perguntar, portanto, se não existe, no Itamaraty, a percepção de que através, inclusive, do mecanismo de cobrança da dívida externa, o Brasil pode estar preparando as condições para os Estados Unidos retomarem o sistema colonialista de dominação sobre o mercado nacional e aprofundar a dependência brasileira.

Francisco Rezek: Um dos deveres elementares do Itamaraty, Arbex, é formular sempre a percepção de todas as linhas possíveis de interpretação da atitude de determinado país com o qual nos relacionamos; sobretudo, se se cuida de uma potência como os Estados Unidos da América. Então, imaginamos tudo. E, sob essa ótica, é claro que nos ocorre também - embora não nos pareça haver aí malícia maior - o resultado de uma tendência natural à afirmação da unidade geográfica do continente americano num momento, em que, de fato - como foi ponderado por você -, a Europa se retrai quanto àquela antiga aliança com os Estados Unidos da América que resultava do medo do Leste [ou seja, da União Soviética e seus aliados]. Desaparecido o medo do Leste, a Europa se unifica e enfrenta o futuro com grande confiança, dada a sua espantosa vitalidade econômica. Os Estados Unidos da América - veja bem, é natural; eu não vejo isso como solerte, como matreiro, eu vejo como natural -, os Estados Unidos se voltam para a extensão da sua própria área territorial, que é o continente americano, e propõem coisas que se classificam, no figurino econômico, como sadias. Propõem algo que nos conduziria - não se sabe bem a que prazo, por enquanto -, que nos conduziria, um dia, a uma zona de livre comércio continental. Não há ambições maiores na Iniciativa Bush [Iniciativa para as Américas]- quer dizer, pelo menos por enquanto ela não se propõe conduzir a América a um mercado comum [associação de países em que, além de as barreiras comerciais serem eliminadas (como acontece na zona de livre comércio) e de haver uma tarifa aduaneira comum (como na união aduaneira), há a livre circulação dos demais fatores de produção, como capital e trabalho]. A idéia do mercado comum é aquela que se elabora no plano, por exemplo, do Cone Sul [o Sul da América do Sul] e nos outros planos sub-regionais do continente. Agora, veja, se pudesse ser detectado algum substrato ambicioso demais do ponto de vista político ou econômico no fundo da Iniciativa Bush [Iniciativa para as Américas], de qualquer maneira, Arbex, eu não creio que isso representasse risco para nós, porque essa política integracionista se conduz à luz de regras hoje bastante conhecidas. Do ponto de vista do Brasil e dos demais países da nossa área, esse diálogo se estabelece à luz de regras constitucionais e envolve, necessariamente, o Congresso Nacional e tudo aquilo que ele representa num momento de um pluralismo de grande matiz na política brasileira. Por outro lado, há de ver que há alguns efeitos colaterais altamente positivos, num momento em que o presidente norte-americano revela dar uma atenção especial à América Latina e em que os países europeus, entendendo - e com razão -, entendendo de imediato que isso deve significar alguma coisa, assumem outras atitudes em relação a nós, mais cooperativas do que as que vinham mantendo antes. Uma série de fatos no domínio da política econômica, ocorridos nos últimos meses, vem ilustrar o interesse suscitado na Europa ocidental para com a América Latina, em razão da preocupação com a Iniciativa Bush [Iniciativa para as Américas]. Isso, a nós, nos ajuda: o fato de que, em dois núcleos distintos de poder econômico, se esteja pensando com mais seriedade do que antes na América Latina e naquilo que ela pode representar como parceiro comercial.

Rodolfo Konder: Marcos Emílio Gomes.

Marcos Emílio Gomes: Ministro, eu queria voltar um pouquinho para a questão do Iraque. A área do Golfo Pérsico é riquíssima em petróleo e em conflitos. O Brasil é um grande comprador de petróleo daquela região. Uma situação como a atual não demonstra que os esforços brasileiros nessa área poderiam estar direcionados para países do continente americano que têm grandes reservas de petróleo e que poderiam vender muito mais ao Brasil, com muito mais tranqüilidade, sem submeter o país a constrangimentos como esse ocorrido no Iraque, aqueles dos reféns? [273 brasileiros foram retidos com vários outros estrangeiros durante a crise com os Estados Unidos; foram libertados no início de outubro, dois meses antes desta entrevista] Por que, numa situação como essa, é preciso mudar do Iraque para o Irã, em vez de se intensificar o comércio com os países do continente americano?

Francisco Rezek: As disponibilidades de petróleo, em razão de compromissos assumidos a médio prazo por países vizinhos nossos - incluindo aí o próprio México, mas, destacadamente, a Venezuela, o Equador e, em parte, o Peru -, os compromissos assumidos em matéria de comércio de petróleo por esses países não permitiram que, no calor da crise, nos oferecessem grande coisa a mais. A Venezuela, sim - em termos proporcionais, não em termos absolutos. Em termos absolutos, estamos, hoje, com cinqüenta mil barris venezuelanos por dia, o que é pouco. Mas, como eram apenas sete ou oito mil, proporcionalmente foi um elevado acréscimo, aquilo que o governo do presidente Carlos Andrés Pérez [presidente da Venezuela de 1974 a 1979 e de 1989 a 1993] nos ofereceu, já no romper de agosto. Mas, naquele momento, em que a necessidade, a quebra, por conta de não nos vir mais petróleo do Iraque ou do Kuwait, era de duzentos mil barris diários, nenhum socorro que os nossos vizinhos pudessem nos oferecer seria satisfatório. E foi nesse momento que o Irã - isso tem várias explicações, mas foi nesse momento que o Irã nos disse que não estabelecia limites ao suprimento de petróleo para o Brasil. Observados os preços do mercado, o Irã nos oferecia tudo aquilo de que pudéssemos necessitar. Você não faz idéia, Carlos, de como isso, de imediato e no calor da crise, foi reconfortante. Você sabia? Pois não.

Marcos Emílio Gomes: Isso não indica que, pelo menos a longo prazo, os esforços brasileiros deveriam ser direcionados para mudar os nossos fornecedores? Ou existe um interesse em manter relações comerciais com países que, eventualmente... O senhor lembrou que o Iraque não compra armas do Brasil desde 1988, mas existe ali todo um cardápio de clientes potenciais para compra de armamentos brasileiros: seria essa a razão?

Francisco Rezek: Não. Eu vou lhe dizer uma outra coisa sobre a questão energética na América Latina e o que está sendo planejado. No caso do Irã, foi duplamente bem-vinda a iniciativa de oferecer petróleo sem limites quantitativos e a preços de mercado, pelo fato de isso nos evitar uma preocupação imediata naqueles dias de agosto e pelo fato de sabermos que, no orçamento plurianual, no orçamento programático qüinqüenal iraniano, havia um destaque de uma soma muito expressiva, muito expressiva, superior a dez bilhões de dólares, para prováveis compras ao Brasil. Nesse caso, nós estaríamos garantidamente trazendo o petróleo de alguém que não nos leva divisas, mas nos leva produtos, quase sempre produtos industrializados. Isso é muito importante. Nós não saberíamos em que medida alguns países vizinhos, irmãos muito próximos de nós, teriam como comprar, em produtos brasileiros industrializados, o correspondente àquilo que nos mandassem em matéria de petróleo. De modo que a iniciativa iraniana foi, realmente, bem-vinda. Isso é analisado, naturalmente, com as cautelas que o caso requer. Não podemos nunca concentrar a nossa dependência. É fundamental não concentrar a dependência e não ficar com o destino energético brasileiro ao sabor de crises distantes. Mas, por via das dúvidas, há uma preocupação muito intensa, não só no Brasil mas nos demais países da nossa área, com a questão energética latino-americana. Nós estamos fazendo, neste momento, um plano global: como resolver - a médio prazo, pelo menos - a questão energética na América Latina utilizando todas as suas potencialidades: distribuindo melhor e na própria área o petróleo que alguns países têm em excesso; cuidando de estabelecer um programa hidrelétrico organizado e em comum; e cuidando de explorar certas outras fontes de energia, como energia solar, a questão do álcool também vem aí à mesa. Enfim, há trabalhos bastante concentrados que deverão produzir resultados rápidos nesse sentido. Se pudéssemos chegar à auto-suficiência energética na América Latina a médio prazo, isso seria um grande feito.

Rodolfo Konder: Roberto Jungmann.

Roberto Jungmann: Eu gostaria, ministro, de ainda retomar a carona aqui na pergunta. Parece que o senhor já havia afirmado que não via solução pacífica para a crise do Golfo Pérsico. O senhor ainda pensa assim?

Francisco Rezek: Houve um momento, Roberto, em que eu disse que analistas do fenômeno que se desenvolve hoje no Golfo estavam descrentes de que pudesse haver uma solução pacífica. Eu sempre sustentei um ponto de vista que me parece ser aquele que, da ótica brasileira - da ótica brasileira não apenas governamental, mas [a partir] da consideração de certos elementos de análise que nós temos, da nossa relativa isenção e da nossa possibilidade de examinar o problema de um modo muito seguro e sem preconceitos maiores -, sempre sustentei que era preciso torcer, e torcer com muito entusiasmo, pela solução negociada. Hoje, creio nisso mais ainda do que antes, porque foi possível, nesses meses todos, refletir sobre a crise e sobre as conseqüências de uma solução militar. Sobre as conseqüências de uma solução militar que seriam desastrosas. É importante destacar o seguinte. A crise, tanto quanto inesperada, ela é grave. O que aconteceu foi uma grosseira afronta a regras do direito internacional e existe uma insistência acentuada do governo iraquiano em manter a ocupação territorial do Kuwait mediante argumentos, alguns dos quais não totalmente absurdos, alguns dos quais associados a certas linhas de raciocínio que não soam inteiramente absurdas, mas que não justificam, em hipótese alguma, o empreendimento militar violador da soberania alheia. A crise é grave e para ela, a essa altura, é certo que não há uma saída brilhante, é certo que não há uma saída plenamente satisfatória. O que temos é que escolher o menor dentre os males; dentre vários caminhos desastrosos, os menos desastrosos. E me parece, aí, que a solução negociada é, sem dúvida, o menor dos males. Ela deixará inúmeras pendências; todos se perguntarão, enfrentando o travesseiro: como é que é possível, a essa altura, a dez anos apenas da virada do século, quebrar-se uma norma relacionada com a integridade da soberania alheia e isso ficar sem conseqüências imediatas e severas? Muitas outras pendências relacionadas com a constância do poderio militar iraquiano estarão aí na mesa, mas será possível, com algum vagar, com alguma calma, com muita inteligência e com muito bom senso encontrar saída para isso. Será, de qualquer maneira, menos ruim do que optar por uma solução militar que poderá conduzir a um fenômeno assemelhado ao que sucedeu no Vietnã [referência à intervenção dos EUA na Guerra do Vietnã, entre 1964 e 1975, que terminou com a desmoralização e a retirada das tropas estadunidenses do país] ou algo pior ainda, dadas as condições geográficas da área de conflito. Mesmo que - eu não creio nisso -, mesmo que os mais otimistas dentre os mentores da estratégia ocidental tivessem razão e fosse possível dar um desfecho militar vitorioso fulminante à crise, mediante uma ação que durasse, aí, uma semana ou dez dias ou quinze dias, nós enfrentaríamos, depois, o caos, por causa da desestabilização total do Oriente Médio, da quebra daquilo que se esperava que fosse o clima de relativa estabilidade nas relações internacionais, de ações terroristas um pouco espalhadas pelo mundo todo, resultantes dos ressentimentos que teriam sobrado de um evento dessa natureza. Enfim, é tão sombrio o quadro que se desenha, caso se parta para uma tentativa de solução militar - [com ênfase] ainda que seja ela bem sucedida, de que muito duvido -, que um mínimo de sensatez faz preferir a solução negociada com todos os seus inconvenientes. Embora eu compreenda que não se deve abrandar o discurso. A condenação da atitude iraquiana deve ser inexoravelmente muito firme e o Conselho de Segurança deve tomar decisões em função da gravidade do ocorrido. Não me surpreende, portanto, nem mesmo a decisão que autoriza o emprego da força a partir de uma certa data. Mas eu quero crer que, antes dessas datas terminais, uma solução negociada pode vir à mesa e ela será, pelo menos, sem dúvida, dos males o menor.

Roberto Jungmann: A negociação deve aumentar à medida que o tempo vai passando...

Francisco Rezek: Sim.

Roberto Jungmann: ...a tensão vai ser cada vez mais... isso não dificultaria esse entendimento, essa...

Francisco Rezek: Eu penso que não, eu penso que não. Dependendo de onde ocorrem as tensões, elas são altamente favoráveis a uma solução negociada.

Rodolfo Konder: Flávia Sampaio Leite, por favor.

Flávia Sampaio Leite: Ministro, eu gostaria de retomar a questão européia. O senhor falou em cooperação da Europa em relação ao Brasil e à América Latina. No entanto, nas atuais reuniões preliminares do Gatt [Acordo Geral de Tarifas e Comércio, base da atual Organização Mundial do Comércio], a Europa continua oferecendo resistência a abaixar os seus subsídios à produção agrícola. E o Brasil é potencialmente um exportador agrícola. Eu quero saber de que forma isso poderia comprometer as relações, ou se há acordos em vista que contornariam essa questão.

Francisco Rezek: Existem várias maneiras de se manter o aspecto positivo da cooperação, Flávia: no plano bilateral, sobretudo; e algumas linhas de cooperação coletiva, não exatamente da Comunidade Econômica Européia [com países de nossa área], mas de países economicamente um pouco mais expressivos daquela área com grupos de países da nossa área. Agora, o que está acontecendo realmente no Gatt é muito grave. A sua pergunta já o deixou claro e não me parece que deva ser mais otimista do que você. A situação, o que está se passando agora, na proximidade do desfecho da Rodada Uruguai [série de negociações para a diminuição das barreiras comerciais entre os países, que durou de 1986 a 1994 e culminou com a instituição da Organização Mundial do Comércio em 1995] do Gatt, é alarmante. Porque parece que a comunidade econômica européia não vê como abrir mão de uma política extremamente retrógrada em matéria de comércio internacional, e isso por uma razão que não é lá muito exemplar: é para que determinados países, sobretudo dois ou três mais do que os outros, atendam ao lobby das exportações agrícolas, à pressão - pressão que tem reflexos eleitorais aparentemente sérios - dos setores econômicos interessados em manter a política de exportações agrícolas à custa do subsídio, à custa da tutela cartorial, à custa do patrocínio dos dinheiros públicos. A análise política nos faz ver como muito curioso que isso ocorra: como certas sociedades, vistas na sua integralidade, não reagem à submissão do governo, à submissão do poder público, a determinados grupos de interesses econômicos locais. Eu acho que entre nós, entre países semelhantes ao Brasil, seria bem mais fácil, com o apoio do conjunto da sociedade, o governo descartar dos seus ombros a pressão a que pretende submetê-lo esse ou aquele grupo de industriais ou de exportadores - enfim, de determinantes da atividade econômica. O que está acontecendo, portanto, é muito sério: não apenas não quereriam abrir mão da política de subsídio às exportações agrícolas - com isso, ameaçando seriamente a nossa competitividade, porque o nosso produtor, o nosso exportador agrícola não conta com esses favores tirados dos cofres públicos: ele compete, realmente, a preços reais por conta do que produz -, como também há uma outra agravante, que se somou ao que já vinha acontecendo nas últimas semanas: é o tema do rebalancing, uma técnica que se inventa, agora, dentro do contexto da proposta européia e que nos cria problemas ainda maiores. São modos de compensar determinados favores tarifários a certos produtos carregando de um modo mais pesado outros produtos - e, aí, entraria a linha dos derivados da soja, que é prioritária para nós. De modo que, infelizmente, nesse ponto eu não tenho o que lhe dizer de confortador: eu compartilho as suas apreensões. Eu acho que a questão é séria, pode conduzir a um impasse nas negociações da semana que vem. Guardo sempre a esperança de que o bom senso prevaleça. Percebe-se que não é fácil. Poderia acontecer uma coisa: o que era para ser o desfecho da Rodada Uruguai em Bruxelas na semana que vem pode se transformar numa penúltima etapa. Para não terminar mal, deixa-se de terminar e joga-se em fevereiro um encontro, esse sim terminativo da Rodada. E, aí, com alguma esperança de que as consciências se aclarem até lá.

Rodolfo Konder: Jayme Martins. Ministro, como nós estamos, já, nos aproximando do fim da primeira rodada... eu sei que os assuntos são complexos, mas eu pediria ao senhor que, se possível, abreviássemos as resposta para todos poderem fazer suas perguntas antes do primeiro intervalo. Jayme Martins, por favor.

Jayme Martins: Resolvida no fundamental a contradição Leste-Oeste, que aparecia no pós-guerra [o pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945)] como a principal contradição global, na opinião do chanceler, qual emerge, agora, como a contradição global mais importante: a Norte-Sul, especialmente no que diz respeito ao nível de desenvolvimento? Ou a competição entre os grandes blocos ou megablocos? E quais os parâmetros da política externa brasileira diante da mesma?

Francisco Rezek: Nós precisaríamos analisar, então, o que terá, como problema a povoar os espíritos nesse final de século, o que existirá aí para substituir a Guerra Fria, já que parece haver uma necessidade indissociável da criatura humana de contar com um problema prioritário como núcleo das suas preocupações. O que substituiria a Guerra Fria? Já nos referimos por várias vezes a esse risco de que partamos para uma cisão Norte-Sul, cisão entre países pós-industriais e países em luta pelo desenvolvimento, em um quadro em que não parece reduzir-se a largura deste fosso: ele parece, pelo contrário, acentuar-se cada vez mais. E o tema da dívida contribui para que isso - quanto ao seu aspecto político e quanto ao seu aspecto econômico - não figure um problema próximo de solução. Agora, existem outras maneiras possíveis de tentar encontrar um substitutivo para a Guerra Fria. Há receios relacionados, por exemplo, com uma cisão, um tanto associada à questão confessional, à questão religiosa, à questão biológica. Por isso, eu me preocupo tanto com os resultados de uma solução militar para a crise do Golfo: esse receio de que o Islã, unificado por um profundo ressentimento, constitua esse pólo de antagonismo ao restante da sociedade internacional. Isso não é uma especulação periférica: esse é um risco verdadeiro que os analistas da Crise do Golfo deveriam levar em conta. De qualquer maneira, nós podemos enfrentar os dois problemas: nós podemos nos situar, a curto prazo, frente a um confronto Norte-Sul, a um confronto "países abastados"-"países em sérias dificuldades" e há um outro confronto de matizes ideológicos e confessionais que poderia resultar de um desfecho infeliz da crise do Golfo.

Rodolfo Konder: Carlos Conde.

Carlos Conde: Vamos falar um pouco de política interna. O governo Collor tem apenas oito meses e meio, mas apesar disso, como é tradição no Brasil, já começam a surgir algumas candidaturas à Presidência da República - algumas até de forma natural, um pouco como herança da eleição do ano passado: a de [Luís Inácio] Lula [da Silva, presidente do Brasil de 2003 a 2010] pelo PT [Partido dos Trabalhadores], a de [Leonel] Brizola [(1922-2004), governador do Rio de Janeiro de 1983 a 1987 e de 1991 a 1994] pelo PDT [Partido Democrático Trabalhista], e agora surge, dentro do PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro], uma candidatura muito forte, a do governador [Orestes] Quércia [governador de São Paulo de 1987 a 1991]. Os murmúrios de Brasília e a palavra de alguns dos principais analistas de política interna na imprensa indicam que o presidente Collor poderia ter uma carta, já, na manga, e que essa carta seria o senhor. Eu pergunto se o senhor permitiria que a mosca azul fizesse evoluções em torno da sua figura.

Francisco Rezek: Não, eu sou vulnerável a muitas coisas, mas, decididamente, não à mosca azul. Ano passado, durante a campanha e na minha condição de presidente do Tribunal Superior Eleitoral, me foi perguntado isso. E eu disse - e disse com uma sinceridade da qual procurei sempre e procurarei ainda não abrir mão em nenhuma circunstância - que não me via em campanha política, eu não me via dirigindo-me às pessoas e chamando-as de "companheiros", "meu povo", "minha gente" ou algo assim. E continuo enfrentando alguma dificuldade em visualizar o contexto de uma campanha eleitoral. Quereria muito fazer um bom trabalho à frente da Secretaria de Estado das Relações Exteriores. E tenho, a esse respeito, esperanças muito seguras, menos por conta de méritos que possua, mais por conta das circunstâncias que têm a ver com o perfil do Brasil sob a ótica internacional e que têm a ver com a evolução dos próprios hábitos e métodos dentro da sociedade internacional. Se eu conseguir isso, estarei muito satisfeito. E tenho a certeza de que, em qualquer circunstância, no próximo pleito eleitoral não faltarão - como não faltaram no de 1989 - candidaturas representativas de tudo o que possa existir nesse imenso laboratório político que é a sociedade brasileira. E é isso que importa: que não faltem opções, que nenhum setor do eleitorado se sinta frustrado pela falta de uma candidatura representativa daquilo que deseja.

Rodolfo Konder: José Márcio Mendonça.

José Márcio Mendonça: Ministro, em várias entrevistas, nos últimos dias, o presidente do Banco Central - até para explicar a retomada do processo inflacionário [a hiperinflação brasileira dos anos 1980 e 1990] - tem dito que o governo brasileiro foi surpreendido com o alcance e a durabilidade da crise no Golfo Pérsico. Ele chega a dizer que o governo brasileiro subestimou, no início, esse problema. Eu lhe pergunto o seguinte: em que ponto falharam as informações do governo brasileiro?

Francisco Rezek: Não; na realidade, José Márcio, a crise do Golfo foi inesperada na medida em que não se podia supor que houvesse, por parte do governo iraquiano, um nível tão elevado de audácia. Havia, sim, preocupações - preocupações veladas, preocupações no fundo do arquivo - com a militarização do Iraque, com o potencial militar que aquele país desenvolveu nos últimos anos e que tornava as coisas desequilibradas ali, naquela região. Mas não se imaginava que a iniciativa pudesse dar-se como se deu naquele momento, com aquela intensidade e com aquela extremada audácia. A partir do momento em que a crise se produziu no romper de agosto, José Márcio, o governo brasileiro e outros governos em igual situação - ou seja, pacientes das conseqüências econômicas da crise, à conta do que sofriam por causa da elevação do preço do petróleo - passaram a apostar - era um desejo que contaminava a convicção puramente analítica - que a crise terminasse o mais cedo possível, porque ela estava nos penalizando injustificadamente. Não dava, a partir desse momento, para fazer previsões outras. Eu acredito que os nossos economistas agiram como agiria qualquer brasileiro diante daquele quadro. Aconteceu o que eu não esperava no plano internacional, aconteceu algo que me causa um profundo prejuízo econômico e vou desejar que prevaleça o direito, que prevaleça a razão e que aquilo que me pesa diretamente no bolso saia de cena. Infelizmente, os meses se passam e continuamos com a crise no que ela tem de político, embora o preço do petróleo não tenha continuado - e seria quase que inimaginável que continuasse - em ascensão. Há, até, previsões de que, suceda o que suceder, esses preços tenderiam a encontrar um patamar mais razoável - para baixo, digo - à conta do aumento de produção em países da própria área e em países distantes, mas também produtores de petróleo.

José Márcio Mendonça: Essas são informações, ou também uma torcida?

Francisco Rezek: É uma informação. É uma informação. Há essa previsão. As comunidades européias trabalharam analiticamente sobre isso e tenho informações seguras no sentido de que vai acontecer, qualquer que seja o desfecho da crise. Se bem que, no caso de um desfecho armado, eu duvido muito que o próprio prognóstico econômico relacionado com o preço do petróleo possa manter-se.

Rodolfo Konder: Ministro, após a pergunta do José Márcio Mendonça, nós vamos a um pequeno intervalo, e voltamos em seguida.

[intervalo]

Rodolfo Konder: Muito bem, voltamos aos estúdios aqui da TV Cultura com o programa Roda Viva, que hoje está entrevistando o ministro das Relações Exteriores, Francisco Rezek. Ministro, o senhor falava, há pouco, que alguns analistas se referem a uma possível cisão, também de natureza até religiosa, em função dessa crise no Golfo. E eu pensava o seguinte: uma das grandes questões deste final de século é, sem dúvida, a afirmação de valores universais - inclusive, os valores universais da democracia. Num certo sentido, seria possível imaginarmos que se estabeleça aí - ainda dentro da pergunta do Jayme Martins - uma nova divisão entre civilização e barbárie, no sentido de que os valores já consagrados da democracia, do respeito aos direitos humanos, estariam também sendo colocados em jogo nessa divisão de um mundo que ficou esquecido pela história, que ficou atrasado e que se coloca hoje frontalmente contra esses valores? É possível pensar nisso ou há dose excessiva de maniqueísmo nessa formulação?

Francisco Rezek: Esse é aquele prognóstico sombrio do [escritor britânico] Herbert George Wells [(1866-1946), conhecido como H. G. Wells], em A máquina do tempo. Poderíamos chegar, em um momento futuro, àquela bipolarização em que estariam antagonizando, [de um lado,] os vitoriosos na luta pelo triunfo no plano internacional e, [de outro,] os povos de algum modo vencidos, descartados, alijados, postos à margem da história. Sim, esse risco existe. Não com todo o colorido, não com todos os matizes e desdobramentos daquele clássico romance, mas um risco de algo parecido com o que previu Herbert George Wells. Existe. Isso poderia um dia acontecer: nós encontraríamos um mundo dividido entre, [de um lado,] as nações que puderam realizar a felicidade geral à luz de certos padrões materiais, sem dúvida, dos seus povos e, [de outro,] as nações que não alcançaram o estágio necessário a oferecer iguais padrões. O problema da dívida externa dos países em desenvolvimento [referência à crise da dívida dos anos 1980, principalmente na América Latina] me preocupa particularmente, quando esse tipo de fantasma vem ao espírito. O que está acontecendo é uma perda de vista da circunstância de que a dívida foi tomada num momento em que ela era aberta, ostensiva, quase que agressivamente uma imposição do oferecedor de dinheiro, daquele que, por razões ligadas à economia do Hemisfério Norte, se voltava para esse flanco do mundo e manifestava um desejo intenso de que os seus dinheiros fossem tomados à luz de determinadas regras que, depois, iriam regular a questão dos juros, a questão dos serviços - que eram regras flexíveis, mas sem que houvesse grande transparência, naquele momento, de quais seriam as conseqüências possíveis dessa flexibilidade. Depois, por conta de medidas econômicas que visavam a conter a inflação dentro das suas próprias sociedades, o governo norte-americano e outros governos criam uma situação em que os juros sobem espantosamente e o serviço da dívida passa a ser algo de tecnicamente insuportável. Aí, não é uma questão de vontade política, não há jeito de arcar pontualmente com o serviço da dívida. Nesse momento - independentemente do problema brasileiro atual, do problema tópico de saber quanto satisfaria os banqueiros a título de juros atrasados -, é de qualquer maneira agrícola, ao […] necessário que os credores - e, fundamentalmente, os credores privados, que parecem obstinados em ignorar o substrato político da dívida - é fundamental que pensem isso, que pensem naquilo que poderia resultar do fosso ainda maior a formar-se entre credores e devedores, entre países desenvolvidos, hoje pós-industriais, e países incapacitados de chegar, impossibilitados de chegar nesse nível, em razão, sobretudo, das conseqüências econômicas do pagamento do serviço da dívida. Eu não pretenderia que banqueiros privados chegassem a elaborar em torno da fábula de Wells e a pensar nessa divisão dramática da sociedade humana em duas castas absolutamente incompatíveis a partir de um certo momento. Mas proporia que raciocinassem de modo um pouco mais imediatista e não tão elaborado e considerassem que o devedor aniquilado é um devedor insolvente. Que o interesse do credor está em ver recuperada a vitalidade do devedor, de modo que, a médio prazo e no futuro, o próprio principal da dívida seja integralmente honrado. Por vezes, me parece que há alguma dificuldade do banqueiro, do credor privado, no caso da dívida externa de países como o Brasil, em entender isso: que certos interesses de curtíssimo prazo colidem com aquilo que seria o interesse verdadeiro a prazo maior. Muitos economistas explicam isso dizendo que a preocupação é realmente imediatista, que a preocupação do banqueiro credor é, realmente, a de, nos dias seguintes, oferecer aos seus acionistas um balancete em que se aponte algum recebimento de numerários, de dinheiro sonante; e o futuro seria algo a respeito de que nunca se propõe pensar em profundidade. Se é assim, é algo patológico. Mas eu quero crer que não; eu quero crer que, com algum esforço, pela persuasão nós chegaremos a bom termo. Isso, considerando a dívida nos seus aspectos globais e envolvendo países que não o Brasil. Não pensando estritamente no nosso problema de hoje, que é saber quantos milhões de dólares são necessários para que se aplaquem determinadas cóleras.

Rodolfo Konder: Flávia, por favor.

Flávia Sampaio Leite: Insistindo na bipolarização, eu gostaria de mencionar que o Leste [a referência parece ser especialmente ao Leste Europeu, os antigos países do bloco comunista] parece se aproximar muito mais dos países do Terceiro Mundo, em termos de condições globais, do que dos países do Primeiro Mundo. Gostaria de saber se haveria uma possível aliança entre esses países do Terceiro Mundo - e, agora, incluindo o Leste. Ou seja, o Brasil poderia ver no Leste uma forma de canalizar suas expectativas de exportação? E se a visita do presidente Collor à Tchecoslováquia [pais que existiu na Europa do leste entre 1918 e 1993, quando então se dividiu nas atuais República Tcheca e Eslováquia] já elaborou alguma coisa nesse sentido.

Francisco Rezek: Sabe, Flávia, essa é uma das incógnitas que se colocam hoje na mesa. Que rumo tomará o Leste Europeu em matéria de agregação? A muitos observadores, parece um tanto simplória a idéia de que a Europa se construirá em termos geograficamente coesos e será uma só. Como você observa, aqueles países do flanco oriental da Europa estão mais próximos de nós do que dos seus homólogos ocidentais. Alguns fatos políticos evidenciam isso. Por exemplo, um daqueles países, a Iugoslávia [antigo país existente de 1918 a 2003 nos Bálcãs, correspondente às atuais Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegóvina, Montenegro, Kossovo, Sérvia e Macedônia], ela participa com o Brasil, com a Índia, com a Malásia, com o Egito, dos chamados Grupos dos 15 - aquilo que sobrou de realmente válido de certas tentativas de agregação terceiro-mundistas no passado [o Movimento dos Não-Alinhados, iniciado em 1955, contra a divisão do mundo em dois blocos, capitalista e comunista]. Por outro lado, os europeus ocidentais freqüentemente lembram que, mesmo sob a ótica deles, a América Latina é um parceiro comercial de maior confiabilidade - na medida em que se recomponha, superado esse problema imediato da dívida -, porque aqui se praticam as regras de mercado com uma larga tradição. Países como o Brasil, a Argentina e o México, sobretudo, têm economias relativamente aquecidas e com tradição de prática das regras de mercado, que é o que falta lá [na Europa Oriental, que, em 1989, havia saído do bloco soviético, de economia fortemente planificada, no processo simbolizado pela Queda do Muro de Berlim]. É muito difícil convencer profissionais que durante décadas estagnaram suas próprias cabeças naquele sistema extremamente bitolado do Estado que tudo controla, que não se habituaram em nenhuma forma de competitividade, é muito difícil treiná-los a curto prazo para o exercício da competição econômica, da produção competitiva. Sob essa ótica, portanto, poder-se-ia dizer que os interesses europeus ocidentais na América Latina não ficam muito prejudicados, não ficam muito ensobrecidos pelo que acontece na Europa do leste. O fator geográfico seria menos importante do que alguns imaginam. Isso conduziria, por outro lado, a uma possível associação - em função do estágio de desenvolvimento e da relativa debilidade econômica - entre a Europa Oriental e países do tão chamado Terceiro Mundo - mas de maior poder econômico, de maior expressão econômica como o Brasil, a Índia, a Argentina, o México - e nos conduziria a formas diversas de associação. É possível que, para fins didáticos, para fins de proporcionar o treinamento de povos da Europa Oriental, para que se habilitem às regras da competitividade, ao jogo do mercado, nós tenhamos igual qualidade que aquela de americanos e europeus ocidentais, e maior paciência e uma maior propensão a exercer, aí, uma didática não-paternalista, em razão da igualdade de condições econômicas.

Rodolfo Konder: José Arbex.

José Arbex: Com o fim da Guerra Fria e o fim dos blocos [ou seja, o fim da divisão do mundo entre o bloco soviético e os aliados dos EUA], as instâncias plurilaterais deram uma nova importância às Nações Unidas - e, dentro das Nações Unidas, ao Conselho de Segurança, como a gente acabou de ver na questão do Iraque. Mas, também, isso revelou um novo problema: os Estados Unidos, com o apoio do Brasil, foram bastante rápidos na condenação do Iraque, em assumir o bloqueio do Iraque etc., que há três meses ocupa o Kuwait - mas Israel ocupa há 23 anos os territórios da Cisjordânia e Gaza, o que também foi condenado pela ONU; e os Estados Unidos, em dezembro, invadiram o Panamá [para derrubar o ditador Manuel Noriega, sob a alegação de que transformara o Panamá num centro de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro], se arrogando o papel de xerife do mundo, não sei com que direito. Sei que o Itamaraty, de fato, assumiu sua posição - no meu entender, corajosa - de condenação a uma atitude que eu acho que violava os direitos internacionais. Então, a pergunta que eu quero fazer é a seguinte: se se configura um quadro em que os Estados Unidos e as potências do Conselho de Segurança passam a instrumentalizar a ONU para a defesa dos seus próprios interesses geopolíticos - ou seja, o Conselho de Segurança passa a assumir a função de uma cúpula permanente das potências que fazem partilha do mundo e fazem a festa no cenário mundial como bem entendem -, qual vai ser a atitude do Itamaraty - se existe uma estratégia planejada em relação a isso -, em particular na defesa aos interesses da soberania dos Estados latino-americanos?

Francisco Rezek: Olha, Arbex, durante esses eventos a que você se referiu, a posição da diplomacia brasileira foi, também, de franca condenação. Não fizemos mais do que isso, como agora, também, no caso da crise do Golfo, não fizemos mais do que assimilar, como membros leais da Organização das Nações Unidas, aquilo que a própria Organização deliberou. Mas não fomos mais adiante, de modo que há um certo equilíbrio de posições entre aquelas que a Casa assumiu, que a diplomacia brasileira assumiu nas crises anteriores - incluída essa que tem a ver com a questão palestina - e o nosso modo de enfrentar a crise do mês de agosto no Golfo. Agora, nos preocupa, sem dúvida alguma, o futuro das Nações Unidas como Organização. Veja que um dos problemas maiores que hoje o governo norte-americano enfrenta é convencer a inúmeros outros governos, a inúmeras outras sociedades e ao seu próprio povo, ao seu próprio elemento, à opinião pública interna, que a situação é tão unívoca quanto o governo norte-americano propõe no caso da crise do Golfo. Há inúmeras vozes que se levantam nos Estados Unidos da América a dizer que as coisas não são tão simples assim, exatamente porque há outras resoluções do Conselho de Segurança da ONU mais antigas e não executadas até hoje, com uma relativa complacência de governos vários, a começar por aquele. Então, é isso que faz com que, pela não simplicidade do quadro, se possa prever uma solução negociada para a crise do Golfo. Seria difícil justificar, perante consciências mais ou menos isentas, uma ação militar drástica. Agora, acreditamos, sem dúvida alguma, no futuro das Nações Unidas. A Organização pode emergir, após essa crise, fortalecida. O final da Guerra Fria contribui nesse sentido, mas é preciso corrigir uma série de problemas estruturais que a Organização enfrenta e que, nesse momento, o desfecho puro e simples da Guerra Fria não resolveu. A composição do Conselho de Segurança, neste momento, tornou-se quase que monolítica. E a própria idéia alimentada por Brasil, Índia, Japão, Alemanha, de que o Conselho devesse ter o seu número de membros acrescido - de que houvesse, então, uma terceira categoria, a dos membros permanentes sem direito de veto -, tem muito a ver com isso: com a tentativa de mitigar os vícios da estrutura da Organização, em especial do seu Conselho de Segurança. A ONU tem que ser confiável. Não é grave para a sociedade internacional que este ou aquele governo, singularmente considerado, não seja tão confiável à luz das opiniões generalizadas. Mas a Organização, sim: se ela se torna inconfiável, se ela parece tendenciosa, se ela parece marcada pelo estigma de dois pesos e duas medidas, aí não vemos futuro pela frente; quer dizer, aí, a lei da selva prevaleceria nas relações internacionais. Porque tudo aquilo que se quisesse conceber de sadio dentro dessa relação coletiva deve ser apoiado no esquema das Nações Unidas. Não há esquema alternativo.

José Márcio Mendonça: Ministro, o governo brasileiro fez um acordo nuclear com a Argentina [a "Declaração sobre Política Nuclear Comum Argentino-Brasileira", assinada em Foz do Iguaçu em 28 de novembro de 1990, um mês antes desta entrevista] e está acreditando que esse acordo - que é uma repetição, praticamente, que é um avanço pequeno daquele acordo do México [o Tratado de Tlatelolco, ou Tratado para a Proibição de Armas Nucleares na América Latina e o Caribe, assinado pelos países das duas regiões na Cidade do México em 1967] - terá resolvido o problema de que estão barrando o acesso brasileiro à tecnologia mais avançada. O problema tem sido sempre colocado, de que o Brasil não assine o Tratado de Proliferação [Nuclear, o TNP, negociado no âmbito da ONU e aberto para assinaturas em 1968; o Brasil aderiu em 1998]. Eu pergunto o seguinte: o governo brasileiro tem alguma informação de que esse acordo assinado com a Argentina vai satisfazer os Estados Unidos e os outros países? Ou o governo brasileiro está fazendo uma concessão no escuro, sem saber se isso vai lhe dar retorno?

Francisco Rezek: Olhe, o TNP é posterior ao de Tlatelolco. Tlatelolco se fez em 1967 para garantir a não-militarização da energia nuclear na América Latina; o TNP foi feito no ano seguinte num plano global. O TNP, todo ele contaminado por certos vícios de elitismo, de preconceito, de não-proscrição da verticalidade no desenvolvimento da tecnologia nuclear militar - vícios que Tlatelolco não possui; [Tlatelolco] é um tratado bem mais isento, bem mais correto -; o TNP procura estabelecer um clube de detentores da tecnologia nuclear sem limites, militares ou não, e o resto da massa humana, aí sim, proibida até mesmo a certa linha de cooperação horizontal puramente pacífica. Então, o Brasil tem razões históricas, como vários outros países, para considerar o TNP como um tratado mal-nascido, cheio de vícios de origem e a respeito do qual gostaríamos de não mais dispender as nossas energias críticas - visto que, sobretudo, nós temos um outro compromisso, anterior em um ano e bem melhor, e que dá satisfação ao restante da comunidade internacional, sobretudo se associamos a obediência a Tlatelolco com vínculos com a Agência Internacional da Energia Atômica [AIEA, que promove e fiscaliza o uso pacífico das tecnologias nucleares e desencoraja o seu uso militar] das Nações Unidas. Esqueçamos, então, o TNP, que é uma página um tanto bastarda da história dos compromissos internacionais, a nosso ver. Bom, sucede que Tlatelolco está ratificado pelo Brasil [desde 1968], mas não ainda implementado, por conta daquela nossa reserva ao Artigo 28 [que dá aos signatários do Tratado de Tlatelolco a faculdade de dispensar algumas das exigências nele constantes para que entre em vigor nos seus territórios; como o Brasil não fez as dispensas, a validade do Tratado no território nacional continuou pendente até 1994, quando o Brasil dispensou as exigências ainda não satisfeitas] - quer dizer, o Brasil adotou aquela cláusula quando todos... ou seja, ratificamos, mas não está valendo, senão no momento em que todos países da área houverem ratificado e alguns países de longe que tenham interesses coloniais na área o tiverem feito quanto ao Anexo 1 [ou Protocolo Adicional I, que exige que os Estados que tenham responsabilidade de jure ou de facto sobre territórios na área de aplicação do Tratado, como as potências coloniais, apliquem o estatuto de desnuclearização para fins bélicos incluído no Tratado; essa exigência é também uma das possíveis de serem dispensadas incluídas no Artigo 28]. Então, faltava a Argentina, Cuba e a França. A Argentina se prontifica conosco a ir adiante no necessário [a Argentina ratificou o tratado em 1994]. Cuba parece insinuar, também, o seu desejo de ratificar Tlatelolco tão cedo quanto possível [fê-lo em 2002]. A própria França não faria grandes obstáculos a assinar o Anexo 1 [na verdade, assinou-o em 1979, mas ratificou-o só em 1992]. De modo que esse tratado é um tratado que tem futuro, e futuro imediato, e no qual convém confiar - sobretudo porque o argumento de que ele não aplaca todas as angústias lá longe, em razão de ser regional, esse argumento pode ser neutralizado no momento em que a Agência de Viena - a Agência Internacional da Energia Atômica das Nações Unidas - entra em cena com o sistema cooperativo de supervisão desse controle mútuo do uso estritamente pacífico da energia nuclear. O que aconteceu, então, em Foz do Iguaçu foi um evento de grande importância. E isso não passou despercebido a ninguém. Isso soou bem alto pela voz do professor [Hans] Blix, o diretor-geral da Agência de Viena [de 1981 a 1997]. E nenhum governo, a essa altura, teria como voltar ao tema do TNP para dizer que ainda sobram resíduos de inconfiabilidade nos nossos propósitos. Não, nós sabemos muito bem o que queremos. Sabemos, sobretudo, o que não queremos. E não gostaríamos de sofrer mais prejuízo por conta de tropelias na informação, por conta de trucagens na informação. A esse respeito, José Márcio, eu lhe pondero que, alguns meses atrás, esteve aqui o embaixador [norte-americano na AIEA, Richard] Kennedy - que é um homem extremamente votado a esse tema, à luz das diretrizes do governo norte-americano - e ele tocou - penso que pela última vez - no TNP; a visita de Kennedy foi marcada pela temática do TNP. Mas eu acho que fomos convincentes, porque, alguns dias depois, o presidente Bush, em uma iniciativa telefônica junto ao presidente Fernando Collor, dava notícia ao Chefe de Estado brasileiro de que tinha todo o entusiasmo pelo nosso gosto pela pronta implementação de Tlatelolco, pela associação das nossas iniciativas à Agência de Viena e não falou mais nos TNP. Esse telefonema é histórico pelo que ele não disse. Não se falou mais, desde então, em TNP; e parece que compreenderam que tínhamos razões para hostilizar esse compromisso porque ele nos é, sobretudo, de par com o preconceituoso e mal-nascido - ele nos é inútil. Nós temos coisa melhor e praticaremos a nossa índole pacifista quanto à energia nuclear à luz de um compromisso melhor elaborado.

José Márcio Mendonça: Na prática, isso resolve o problema do supercomputador? Ele agora virá?

Francisco Rezek: Eu acho que já devia ter vindo, Mendonça. Houve uma condicionante. O supercomputador, tem-se falado muito nele, ao ensejo da visita Bush; mas o supercomputador já devia estar aí. Na realidade, o que atrapalhou a expediência dessa operação foi a iniciativa daqueles dois senadores americanos que queriam insinuar uma emenda, um texto de lei, dizendo que o Brasil figurava entre países não confiáveis em razão da venda. Uma total distorção da realidade, que a missão [de outubro de 1990 de] Ozires Silva [ministro da Infra-Estrutura de 1990 a 1991] e [José] Goldemberg [secretário da Ciência e Tecnologia de 1990 a 1991] neutralizou a tempo [eles convenceram os congressistas norte-americanos a não excluírem o Brasil de uma lei que facilitaria a venda de supercomputadores fabricados nos EUA a outros países]. De modo que eu penso que a máquina vem aí e já vem um pouco tarde [no entanto, o presidente George Bush vetou a lei em 21 de novembro].

Rodolfo Konder: Jayme.

Jayme Martins: Ministro, tratando de explorar um pouco mais a minha questão anterior, parece-me que a identificação da contradição global principal é uma questão-chave, a pedra de toque para a definição estratégica da política externa brasileira, para que a nave do Itamaraty navegue saudavelmente no grande oceano da política internacional. A questão religiosa, parece-me que pode ser, assim, uma contradição nacional - quando muito regional -; não chegaria nunca a ser uma contradição global. Parece-me que esta questão está por ser definida - ou não felizmente definida - desde o tempo do chanceler [Afonso] Arinos [de Melo Franco (1905-1990), ministro das Relações Exteriores em 1961 e 1962], passando pelo [Antônio Francisco Azeredo da] Silveira [(1917-1990), ministro de 1974 a 1979], pelo [João Augusto de] Araújo Castro [(1919-1975), ministro de 1963 a 1964)] até o chanceler [Roberto da Costa de Abreu] Sodré [(1917-1999), ministro de 1986 a 1990, antecessor de Rezek]. Parece-me que, das questões globais em pauta atualmente, as que estariam mais na ordem do dia seriam a Norte-Sul e a competição comercial e econômica entre os megablocos. O Itamaraty avançaria no estudo dessa questão?

Francisco Rezek: Sem dúvida. Eu insinuei aquela outra questão, a questão confessional, à conta da previsão - que quero evitar - de um desfecho sangrento para a crise do Golfo. Eu achei que é...

Jayme Martins: É mais crise energética do que de religião.

Francisco Rezek: Exato. Nessas circunstâncias, me pareceu, de toda maneira, que poderíamos ter isolado o contexto islâmico do restante da comunidade internacional. E aquilo ali não é uma força humana, não é uma força política inexpressiva. Mas vamos descartar isso, sobretudo porque somos mais otimistas em relação ao desfecho da crise, e ficar na questão da alternativa entre Norte e Sul, entre abastados e desfavorecidos, e a questão dos megablocos. Não, nós compartilhamos um empenho generalizado e sempre apregoado por países do Hemisfério Norte no sentido de que não ocorra isso, de que não exista antagonismo e não exista nenhuma competitividade não-sadia por conta da formação dos blocos... da formação inevitável dos blocos econômicos mais coesos. Isso não poderia degenerar para aspectos mórbidos; isso deveria poder ajudar a construir uma sociedade econômica global mais forte. Nesse sentido é que caminhamos, também no que nos diz respeito para a integração, em plano mais ambicioso, no Cone Sul. Falou-se durante décadas na integração latino-americana; ela não acontecia. Ela não acontecia porque ela era geograficamente muito ambiciosa. Queria-se começar com algo que envolvesse as vinte e poucas repúblicas da área e, aí, os valores são tão díspares, são tão diferentes que não dava para pensar em algo que realmente funcionasse. Quando partimos para ambições territoriais mais modestas, pensamos em países mais semelhantes e começamos com o Cone Sul. E por que o Cone Sul? Porque os países andinos já tem um pacto [o Pacto Andino, atual Comunidade Andina das Nações, formado por Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela, sendo que esta última saiu em 2006], também pendente ao mercado comum. Às vezes, se coloca em cena o problema da Bolívia: por que [o Mercosul] não foi com ela? Porque não se pode pertencer ao mesmo tempo a duas zonas de livre comércio. Não é possível pertencer, ao mesmo tempo, a dois mercados comuns, e a Bolívia já está inscrita no contexto andino. Razão por que nós nos contentamos com o Cone Sul - com Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai. Estamos em uma absoluta fé em que isso operará e que não chegamos ao final de 1994 sem um mercado comum consolidado no Cone Sul. É uma questão de vontade política dos governos envolvidos; é uma questão, sobretudo, de entusiasmo das classes privadas, das classes produtivas no êxito desse projeto. Com isso, nós não estaremos defasados quando os demais países partem para a formação de blocos econômicos e não conversaremos, nenhum de nós conversará isoladamente com tais blocos. Nós constituiremos, de nossa parte e independentemente daquilo que a Iniciativa Bush [Iniciativa para as Américas] possa conduzir... Mas, considerando que os nossos projetos são mais consistentes, são mais ambiciosos quanto àquilo a que devem conduzir, nós estaríamos, então, organizados a curto prazo para dialogar harmonicamente com blocos econômicos que se formem lá fora. Não poderíamos, de momento, ir além disso.

Roberto Jungmann: Ministro, eu gostaria de mudar somente um pouquinho o tema, virar um pouquinho para as eleições que acabaram de acontecer [para governador, deputado estadual, deputado federal e senador, que ocorreram em 3 de outubro]. E ao senhor, como ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral, eu gostaria de perguntar como é que o senhor vê esse alto índice, altíssimo índice de votos brancos e nulos nessas eleições estaduais. E se isso não poderia ser interpretado como um sinal de desânimo da população em relação ao governo federal, [em relação] ao que estamos atravessando?

Francisco Rezek: Olhe, sem nenhuma ironia, eu colocaria a coisa com outras palavras. Não houve, não é exatamente desânimo, desprezo, repúdio, protesto: é, sim, falta de entusiasmo, falta de um grau elevado de entusiasmo pelas eleições do ano de 1990. Nós somos um país em que se pratica o voto obrigatório. A lei não faculta que as pessoas licitamente fiquem em casa, cruzem os braços. Se assim procederem, deverão justificar-se ou pagar, mais tarde, multa. O voto é, portanto, obrigatório. Comparecendo às urnas um número elevadíssimo de eleitores, preferem a opção por anular a cédula ou de devolvê-la como foi recebida. Eu seria apenas menos enérgico no uso das palavras. Não veria aí um sintoma de uma brutal irritação do eleitor com os candidatos, com o esquema político, mas, sem dúvida alguma, uma falta de entusiasmo por essa eleição. Pode-se até supor que isso seja um fenômeno que se produz por contraste com o inevitável entusiasmo que a eleição presidencial de 1989, depois de um hiato tão longo [não havia eleições diretas para presidente no Brasil desde 1960], trouxe às pessoas. Eleições desse gênero, parlamentares, para os governos estaduais, nós temos tido esses anos todos [para governador, desde 1982]. A eleição direta para Presidência da República, essa era a que faltava. Ocorreu em 1989, conduziu as pessoas em índices elevadíssimos, sobretudo se comparada ao que acontece em outros países também de voto obrigatório. As pessoas foram em massa às urnas. E as circunstâncias justificavam: era uma eleição presidencial direta tão esperada, com tantas candidaturas, com representatividade para todos os setores do pensamento político brasileiro. Esse ano, talvez, o eleitorado não se tenha entusiasmado tanto, em razão do próprio tamanho da eleição, desse vendaval, dessa enxurrada de candidaturas a preencher, além do Congresso, as Assembléias Legislativas estaduais e tudo mais.

Roberto Jungmann: O senhor diria que o eleitor estaria ressacado, houve uma ressaca eleitoral?

Francisco Rezek: Essa idéia me parece primorosa. A idéia da ressaca me parece bem mais sensata do que outra mais radical, que é a idéia do repúdio ou da perda do gosto pela prática eleitoral. Eu penso que, no próximo pleito, nem que seja um pleito plebiscitário, nós teremos uma afluência maior às urnas.

Flávia Sampaio Leite: Você não acredita na vitória do partido do branco e do nulo, então?

Francisco Rezek: Não, não, não, isso é realmente temporário. Eu não acho que isso tenha fundamento em convicções profundas do eleitor, mas no seu relativo desinteresse, depois do pleito de 1989, por uma eleição mais ampla, pelas candidaturas tão numerosas e pela inevitável queda do nível da campanha, com tantos candidatos correndo vertiginosamente pelo horário gratuito. Isso, sem dúvida, desalenta o eleitor, faz com que ele assuma uma veia crítica que ele compartilha com seu meio familiar, com o seu meio social, e que o conduz, por fidelidade, a tudo que disse à família e aos amigos: a ir à urna e não dizer nada.

Marcos Emílio Gomes: Ministro, eu queria falar um pouquinho na sua gestão no Itamaraty. O presidente Collor anunciava, logo após a eleição, que pretendia inserir o Brasil em um contexto de Primeiro Mundo e não mais na luta para liderar o Terceiro Mundo. Segundo o relato que o senhor vem nos fazendo, nossa atitude diante dos acontecimentos no Leste Europeu, por enquanto, são de expectativa para ver para onde se encaminham. Sofremos um problema de pressão na Comunidade Econômica Européia nas negociações do Gatt; sofremos um problema de pressão americana nas questões tributárias; e até para liberar o nosso supercomputador a gente precisou negociar com a Argentina etc. etc. O senhor foi submetido a muitas pressões nesse momento e ainda não foi possível desenvolver os esforços de uma diplomacia que venha efetivamente inserir o Brasil no Primeiro Mundo? Ou existem iniciativas nesse sentido sobre as quais nós não podemos conversar neste programa?

Francisco Rezek: Veja, essa questão do Primeiro Mundo, a tomada de assento à mesa do Primeiro Mundo, tem que ser depurada corretamente. Não se referiu o presidente Fernando Collor, quando falou nisso, a uma mesa de festa, a uma mesa de celebração, mas a uma mesa de trabalho. Era sobretudo a idéia de que nós apreciaríamos que a nossa voz fosse, finalmente, ouvida com a seriedade correspondente ao merecimento da sociedade brasileira àquilo que já fizemos e àquilo que estamos dispostos doravante a fazer. Nunca perdemos de vista o fato de que não se parte da condição de país em desenvolvimento para aquela de país desenvolvido por singular vontade política, pelo fato de desejar-se. Isso reclama uma série de requisitos no plano do desenvolvimento econômico, cujo atendimento não depende só de querermos e cujo ritmo, sobretudo, é, também, marcado por certas condicionantes externas. Mas, quanto a sermos ouvidos com seriedade na mesa do Primeiro Mundo, esse objetivo me parece alcançado. Porque nós temos podido observar que, sob a ótica de governos estrangeiros em todos os matizes - isso vai de Moscou a Washington, de Cingapura a Buenos Aires -, aquilo que se passa no Brasil tem sido corretamente assimilado; todos os equívocos, todas as tropelias têm partido de setores não governamentais do quadro estrangeiro - dois ou três senadores aqui, membros do parlamento acolá, membros de um partido político avulso em um outro ponto, um prelado em determinado país europeu, uma entidade civil benemérita em um outro país europeu -; e não é difícil, postos em mesa esses incidentes avulsos, explicar determinadas coisas e restabelecer determinadas verdades. Eu penso que, sob essa ótica, a nossa credibilidade no Primeiro Mundo se vê restaurar a passo muito acelerado. Isso deveria ter conseqüências no plano econômico que nos conduzissem - e conduzissem os nossos vizinhos e homólogos imediatos - a um verdadeiro primeiro-mundismo econômico, que parece ainda não tão próximo de nós. Quanto a isso, sim: o ritmo ditado por aquilo que se passou lá fora, nesses meses transcursos desde a instalação do novo governo no Brasil, o ritmo deixa muito a desejar. As regras do jogo internacional, em matéria de economia, ainda são muito duras, ainda nos penalizam muito.

Rodolfo Konder: Carlos Conde.

Marcos Emílio Gomes: [...] sofre muito, nessa situação?

Francisco Rezek: Sem dúvida sofre muito. Não... [corte de dois ou três segundos na gravação] ...um grande profissional, terá o máximo de êxito que seja possível ter em nome do Brasil neste momento, mas é uma função muito ingrata, porque envolve questões de fundo - e algumas questões de forma muito ásperas, também, como, vez por outra, o próprio diálogo com determinados credores privados estrangeiros não muito habilidosos na maneira de conduzir as coisas.

Rodolfo Konder: Carlos Conde, por favor.

Carlos Conde: Ministro, agora que se adota um pouco essa vertente primeiro-mundista no Itamaraty como uma das alternativas da estratégia diplomática brasileira, alguns dos seus colegas, digamos assim, do Itamaraty se consideram um pouco injustiçados; e mesmo governos anteriores, ao serem um pouco acusados como terceiro-mundistas. Terceiro-mundistas no sentido, digamos, pejorativo, como se tivessem adotado uma filosofia de política externa que fosse excludente do Primeiro Mundo, e que parece que não acontecia. A partir do governo [Ernesto] Geisel [(1907-1996), presidente de 1974 a 1979], como sabemos, reabilitando um pouco o que foi feito no curto período de Jânio Quadros [(1917-1992), presidente de janeiro a agosto de 1961] e, depois, no período João Goulart [(1919-1976), presidente de 1961 a 1964], se adotou uma política de grande aproximação com países em desenvolvimento. O senhor acha que havia realmente uma política externa dos governos anteriores - sobretudo, a partir de Geisel - terceiro-mundista, nesse sentido pejorativo? Ou era uma política externa realista que, levando em conta, inclusive, a situação interna brasileira de que temos uma Bélgica e uma Índia [comparação em voga na época para caracterizar o grau de desigualdade de renda brasileira], procurava manter paralelamente relações com o Primeiro e com o Terceiro Mundo?

Francisco Rezek: Veja, Carlos, um dos maiores empenhos do Itamaraty na hora atual é não permitir que se produza um rotundo equívoco sobre o que se pensa hoje, na diplomacia brasileira, a respeito daquilo que se produziu na diplomacia brasileira dos últimos anos na fase chamada "terceiro-mundista". O Itamaraty é muito cioso da idéia de que aquilo que, no governo Collor, se faz, no sentido de erguer o país ao plano de um diálogo aberto e arejado com nações de vanguarda econômica que são muito importantes para o nosso próprio desenvolvimento econômico... Isso não deveria, em absoluto, ser interpretado como uma crítica - e, sobretudo, como uma crítica desrespeitosa - a um passado que foi absolutamente correto no estabelecimento das suas diretrizes. Hoje, o vocábulo "terceiro-mundista" ganhou uma conotação pejorativa que aconselha evitá-lo, mas a política desenvolvida a partir do embaixador Araújo Castro, no exercício da chancelaria brasileira, era profundamente coerente com os interesses brasileiros [com ênfase] naquela época. Hoje, se nos aproximamos dos Estados Unidos da América a vários títulos, se nos aproximamos de nações da Europa Ocidental a outros tantos, o que isso significa, na realidade, é o resultado de objetivos que hoje se desenham no horizonte brasileiro e que devem ser alcançados de imediato - e que terão a sua durabilidade medida pelo rumo que as circunstâncias tomem. Mas, naquela época, uma atitude que não houvesse sido aquela significaria um alinhamento e uma subserviência insuportáveis. Este é o momento de estabelecer laços um pouco mais cordiais com nações pós-industriais - diferentes, portanto, daquilo que é o nosso estágio de desenvolvimento - e visando a que consigamos alcançar esse patamar de desenvolvimento maior. Naquela época, afastarmo-nos dos nossos homólogos e assumir uma postura de alinhamento incondicional, como alguns países assumiram, seria um suicídio político e um sepultamento da nossa auto-estima. Tudo o que se fez na diplomacia brasileira de Araújo Castro até o término da fase chamada terceiro-mundista foi absolutamente apropriado para sua época. E nós temos muito empenho em não deixar perder-se de vista essa realidade. O chamado primeiro-mundismo de hoje, interpretado nas suas linhas exatas, não deveria significar uma contestação histórica do que aconteceu antes.

Carlos Conde: Só para completar, 15 dias antes da posse do presidente Collor, surgiram pressões que se expressaram na imprensa, no sentido de fechamento de algumas embaixadas brasileiras na África e no sentido de se destroçar, digamos assim, a política africana do Brasil. Essas ameaças, essas pressões, estão afastadas, esse problema está resolvido?

Francisco Rezek: Afastadas e afastadas com muita energia, com muita energia. Sim, quando se falou em fechamento de embaixadas, era por quê? Reforma administrativa, enxugamento, economia. O país precisa dispender menos. Aliás, nunca como nessa fase chamada de primeiro-mundista o Itamaraty se defrontou com situação tão modesta nos seus recursos mínimos de funcionamento no dia-a-dia. Mas, em razão da reforma administrativa - bem-vinda a todos os títulos, bem-vinda pelo próprio serviço público, mais bem-vinda ainda pela sociedade civil brasileira como um todo -, em razão da reforma administrativa, nós tivemos que adotar certas linhas de enxugamento e de economia. E onde fomos economizar? Em Viena, em Londres, em Genebra, em Roma. Não economizamos um centavo à custa do desgaste político perante países para os quais a simpatia do Brasil é importante, cujos laços com o Brasil representam muito para nós e mais ainda para eles. Não fechamos uma só embaixada na África. Pelo contrário: com alguns países, como Moçambique, Angola, Cabo Verde e outros de expressão portuguesa no continente africano, as relações nunca estiveram tão boas, por conta... O Brasil não tem ainda possibilidade econômica de desenvolver atividades assistenciais lá fora. Mas nós podemos, no domínio cultural, no domínio científico, sem dispêndio de dinheiros públicos, esquentar as nossas relações com países africanos. E é o que temos feito.

José Márcio Mendonça: Ministro, quanto à questão da retirada dos brasileiros do Iraque...

Francisco Rezek: Sim.

José Márcio Mendonça: ...ficaram muitas dúvidas por aí. Qual o nível de acordo brasileiro com o governo iraquiano? Houve ou não houve um acerto secreto? Qual o nível do aval que o governo brasileiro deu à [empreiteira] Mendes Júnior para ela se retirar de lá? Se a Mendes Júnior não puder cumprir os compromissos, quem paga?

Rodolfo Konder: Ministro, eu vou pedir ao senhor para responder de uma maneira bem breve, porque nós já estamos chegando ao fim do programa.

Francisco Rezek: Nenhum acordo secreto, José Márcio. Eu penso que governos anteriores não terão feito nada desse gênero, a Constituição não permite, a prerrogativa do Congresso Nacional, o respeito pela lei fundamental, nada disso seria solapado, sacrificado, posto no chão durante a minha administração das Relações Exteriores. O fato é que se deu ali - não sei, nós somos uma carreira muito competitiva e talvez uma ou outra consciência individual não tenha gostado muito disso -, mas deu-se ali um trabalho diplomático da maior qualidade e com o melhor êxito possível. Um um trabalho, diante dos iraquianos, de estrita persuasão de que a crise vai acabar um dia, os países vão sobreviver e não se deveriam desgastar mutuamente as imagens - quer dizer: sobretudo, os iraquianos não deveriam fazer a tolice [com ênfase] extrema de deixar criar-se contra eles, na sociedade brasileira, por conta do caso dos brasileiros lá retidos, uma prevenção depois indestrutível. O trabalho, portanto, foi um trabalho de mera persuasão. Quanto aos contratos entre empresas privadas brasileiras e as suas homólogas iraquianas ou o próprio governo iraquiano, o que houve foi um testemunho e uma garantia de empenho na execução do compromisso mais elementar possível, do compromisso significativo do mínimo necessário de honradez e de correção: de que essas empresas, cessada a crise, cessado o embargo, retomarão os trabalhos, honrarão os contratos que um dia, em caráter privado, celebraram. Não era preciso mais nada; os iraquianos não pediram nada além disso. E o que pediram não era absolutamente difícil de aceitar-se.

Jayme Martins: O chanceler poderia adiantar quais as principais reivindicações que o Brasil formulará ao presidente Bush durante a visita [ao Brasil], especialmente no que diz respeito às barreiras erguidas pelos Estados Unidos à Comunidade Européia e ao Japão, como acaba de fazer o presidente [Carlos] Salinas [de Gortari, no cargo de 1988 a 1994] no México?

Rodolfo Konder: Ministro, temos apenas meio minuto.

Francisco Rezek: Nós teremos, seguramente, agendado determinados temas que não comportarão reivindicações do presidente Fernando Collor ao presidente Bush, mas que estarão na mesa da conversação entre os dois. Um deles é, sem dúvida, a Rodada Uruguai, a questão do subsídio agrícola em que os dois governos estão falando a mesma linguagem. O tema da dívida externa, certamente, virá à mesa, e quereríamos que o governo norte-americano lançasse, no espírito dos credores privados, um ingrediente político, um lembrete relacionado com a importância do fator político. Estarão na mesa temas outros, mas eu destacaria a questão da transferência de tecnologia. O Brasil está, aí, sempre agindo ombro a ombro com seus homólogos - nunca houve uma diplomacia tão harmônica entre Argentina, Brasil, Uruguai, Chile, Paraguai como há nesse momento -, mas nós temos algumas razões - nós, o Brasil - para falar um pouco mais enfaticamente sobre o tema da transferência de tecnologia do que os nossos próprios vizinhos. Isso, sem dúvida alguma, tomará algum tempo nesse encontro.

Rodolfo Konder: Ministro, Francisco Rezek, em nome da TV Cultura, agradeço muito a sua presença aqui. Infelizmente, nosso tempo chegou ao fim. Agradeço também aos jornalistas que nos ajudaram a fazer a entrevista e aos convidados da produção. E convido os telespectadores a estarem novamente conosco na próxima segunda-feira, às nove e meia da noite, com mais um programa Roda Viva. Muito obrigado e até lá.

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