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Memória Roda Viva

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Ethevaldo Siqueira

14/12/2004

Os benefícios e perigos do avanço tecnológico na atualidade e no futuro são discutidos pelo jornalista especialista em tecnologia da informação

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Paulo Markun: Boa Noite. O que as novas tecnologias vão mudar em nossas vidas nos próximos dez anos? Como é que o mundo da informática e da comunicação vai invadir o nosso cotidiano e que conseqüências isso terá? Para discutir a nova era digital que se aproxima, o Roda Viva entrevista esta noite o jornalista Ethevaldo Siqueira, especialista em tecnologia da informação e em telecomunicações. Ele reuniu num livro as idéias sobre esse futuro na visão de cinqüenta conhecidos cientistas e futurologistas do Brasil e do mundo.

[Vídeo] [Narração de Valéria Grillo. Imagens do livro de Ethevaldo e de invenções tecnológicas]

2015, Como viveremos O autor apresenta o livro como uma grande reportagem sobre o provável impacto que será provocado pela informática e pelas comunicações nos próximos anos. Há mais de três décadas Ethevaldo Siqueira acompanha o trabalho de pesquisadores e cientistas em laboratórios e universidades no Brasil e no mundo. Colunista do jornal O Estado de S. Paulo desde 1967, já produziu centenas de artigos e vários livros sobre telecomunicações. Nesse último trabalho, ele entrevistou dezenas de cientistas, escritores e personalidades ligadas ao mundo tecnológico, para desvendar os caminhos para 2015, quando milhões de brasileiros estarão utilizando computadores de bolso conectados a celulares integrados a todos os aparelhos ou dispositivos de informática e comunicação. O comércio eletrônico vai alcançar milhões de usuários. Microprocessadores estarão espalhados por todos os lados, até nas roupas. A internet com banda larga vai chegar à maioria da população, oferecendo também telefonia de custo quase zero, e o mundo de entretenimento deverá popularizar produtos de áudio, vídeo e TV digital de alta definição. Informações e serviços de todos os tipos estarão ainda mais disponíveis através de aparelhos e dispositivos que vão invadir o cotidiano das pessoas e provocar grandes impactos na economia.

[Fim do vídeo]

Paulo Markun: Para entrevistar o jornalista Ethevaldo Siqueira nós convidamos João Antonio Zuffo, professor titular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e coordenador do Laboratório de Sistemas Integráveis; Ricardo Kobashi, colunista do Link, veículo cross media do grupo Estado; Mônica Teixeira, editora especial de saúde, ciência e tecnologia da TV Cultura; Lisa Polloni, diretora de relações institucionais da Microsoft Brasil; Murilo Ohl, editor executivo da revista Foco Economia; e Julio Abramczyk, médico e jornalista da Folha de S.Paulo. Acompanham a entrevista em nossa platéia, aqui no estúdio, os seguintes convidados: Fábio Cioque, publicitário; Priscila Rocha, diretora da S2 Comunicação Integrada; Débora Toledo, diretora de atendimento da S2 Comunicação Integrada; Fernando Correa Grizi, pesquisador e diretor do Núcleo do Futuro da Pontifícia Universidade Católica, a PUC de São Paulo; Marcelo Zuffo, professor da Escola Politécnica da USP; Nazareth Amaral, personal stylist; Renata Guerra Machado, estudante de jornalismo da Faculdade Metodista. O Roda Viva é transmitido em rede nacional pela rede pública de televisão para todos os estados brasileiros e também para Brasília e ele pode ser acompanhado pelo site do programa, que é: www.tvcultura.com.br/rodaviva, e por intermédio da rádio Cultura AM em 1200kh. Como o programa desta noite está sendo gravado, não é possível a participação dos telespectadores. Boa noite, Ethevaldo.

Ethevaldo Siqueira: Boa noite, Markun.

Paulo Markun: No seu livro 2015 Como viveremos há uma observação aqui que eu vou me reportar: você menciona duas visões opostas diante da tecnologia que o grande público tem. De um lado a dos deslumbrados e de outro a dos apavorados. Você classifica os deslumbrados de tecnômanos [maníacos por tecnologia] e os apavorados de tecnófobos [avessos a tecnologia]. A pergunta é a seguinte: a sua visão não é mais deslumbrada do que apavorada? Você não é otimista demais ao relatar essa perspectiva de em apenas dez anos nós termos um mundo tão diferente daquele que é hoje em dia?

Ethevaldo Siqueira: Eu diria que não. A primeira impressão é essa. Se eu voltasse dez anos atrás e te dissesse o que o mundo não tinha em dez anos e o cenário de hoje lhe fosse apresentado na época, eu seria muito mais deslumbrado, ou qualquer pessoa também. Vou dar um exemplo só: dez anos atrás o Brasil só tinha dezenove milhões de acessos telefônicos, hoje ele tem cem milhões. Há dez anos só havia quinhentos mil usuários de [telefone] celular, hoje há 63 milhões de usuários. Esses dois números apenas... O número de pessoas que acessam a internet hoje no Brasil é de quase vinte milhões de pessoas, isso é um pouco mais que 10% da população. No entanto, esses vinte milhões de pessoas não poderiam ser imaginados em 1994, quando nós tínhamos menos de duzentas mil pessoas com uma idéia do que era internet. Nesse campo da tecnologia da informação, a evolução é tão rápida... é só lembrar que se você volta vinte anos atrás estava nascendo o Macintosh, um dos computadores pessoais de maior sucesso no mundo. Entre o Macintosh de 1984 e o de hoje, por exemplo, o poder de processamento é de algumas centenas de vezes [mais], está certo? E o que ocorreu, por exemplo, com o computador na segunda década do século XX foi um aumento do poder de computação de dez bilhões de vezes.

Paulo Markun: Pois é, mas eu falo isso, Ethevaldo, não é que eu seja um tecnófobo, evidentemente, nem poderia ser, [mas] pelo seguinte: eu estava vindo para cá de táxi e no meio do caminho o motorista de táxi atendeu ao celular - que, diga-se de passagem, é uma infração que todos nós cometemos, ou grande parte dos motoristas comete com muita regularidade - e aí ele falou assim no telefone – eu estou transmitindo exatamente o que ele disse -: "Oi, filho! Tudo bem? Diz uma coisa: será que esses seus óculos não estão fora do grau? Porque eu fiquei pensando, eu esqueci de falar isso hoje no café da manhã.". E o que aconteceu? Em 1994 ele não teria feito essa chamada. Agora, eu pergunto: primeiro, o que [é] que mudou na vida dele essa chamada?; segundo: eu sei o que mudou na vida desse motorista de táxi na cidade de São Paulo nos últimos dez anos, só piorou, demorou mais tempo para andar, o trânsito estava mais congestionado, as condições da cidade são piores. Então eu não sei se essa... se esse foco excessivo, vamos dizer, no indiscutível, acelerado crescimento da tecnologia da informação não nos deixa um pouco vesgos no sentido de não enxergar que isso... eu sei que há no seu livro, e evidentemente a função aqui da entrevista é criar as provocações, não é? Há o contrapeso. Uns deixam um pouco, digamos, otimistas demais em relação ao que isso pode significar, e eu pergunto: o que muda na vida do motorista ele saber se os óculos do filho dele estão no grau certo ou não estão, pelo celular, ou quando ele chegar em casa de noite?

Ethevaldo Siqueira: Isso é uma questão de comportamento o que você está dizendo. Nós podemos usar a tecnologia corretamente ou incorretamente. O automóvel, que é um grande avanço sob alguns aspectos, é um vilão sob outros. Em toda tecnologia, inclusive, e particularmente onde eu me aprofundei mais ouvindo essas cinqüenta personalidades, a visão predominante é otimista quanto à possibilidade... quanto ao potencial que essa tecnologia tem de melhorar a qualidade de vida, de disseminar muito mais conhecimento, fazer inclusão de milhões de pessoas que não tinham acesso à informação, à educação e ao conhecimento, e que passam a ter. Então, é nesse sentido que... agora, que... eu fico apavorado com garotos adolescentes que passam oito, dez horas na frente de um computador, na internet, e que perdem, segundo os próprios psicólogos e educadores, muito da sensibilidade humana, dá frieza. Eles passam a não ter mais uma noção clara entre o mundo real e o virtual, está certo? E nós sabemos de jovens que acabam cometendo crimes até, em função dessa baixa sensibilidade. Entre metralhar num vídeo game e metralhar numa sala de aula, às vezes a distância pode se tornar pequena. Eu acho que essas preocupações... e eu dou a palavra, por exemplo, a um professor, que é o professor Valdemar Setzer [engenheiro eletrônico e professor aposentado do Departamento de Ciência da Computação da USP], que faz de uma maneira muito mais candente todas essas advertências, talvez até de uma forma muito mais radical do que todos os outros entrevistados. O que eu tenho é uma confiança na possibilidade de o ser humano usar melhor essa tecnologia.

Julio Abramczyk: Eu queria aproveitar... essa evolução... o gancho aqui do Paulo... essa evolução rápida resulta em uma obsolescência acelerada e, vamos dizer, na área médica, com os equipamentos médicos - ultra-sons, por exemplo, ou aparelhos de tomografia computadorizada - o equipamento de hoje daqui a uma semana já está ultrapassado. Os países em desenvolvimento acabam pagando um preço muito alto por essa falta de capacidade de ter tecnologia própria e, por outro lado, também surgem alguns falsos avanços. Quando surgiu a tomografia computadorizada, diziam que 95% das radiografias podiam ser feitas por radiografia comum. Hoje o médico que não pedir uma tomografia não é bom médico. Como é que enfrentamos esse problema?

Ethevaldo Siqueira: Essa é uma questão que eu acho fundamental num país como o Brasil. Não sendo um país de vanguarda, não sendo também um dos últimos da fila, estando numa faixa intermediária de emergentes, o Brasil tem que dar prioridades. Eu diria [que] a única resposta que se pode dar diante do desafio da tecnologia, dessa rapidez da obsolescência e de todos esses abusos da tecnologia é uma questão de visão cultural e educação. Nós não temos... a grande mensagem que está no meu livro é a importância do futuro como uma perspectiva a ser preparada hoje, está certo? Este país não tem futuro a meu ver, não tem uma visão do futuro no sentido. Por mais que Stefan Zweig [(1881-1942), escritor austríaco que escreveu, entre outras obras, Brasil, país do futuro, quando mudou-se para Petrópolis, no Rio de Janeiro, um ano antes de suicidar-se] tenha chamado este país "do futuro", o futuro é uma miragem. Ninguém estuda o futuro seriamente. Pergunte ao Banco do Brasil o que é que será o financiamento agrícola nos próximos cinco anos e que estratégia ele tem. As grandes entidades, os ministérios de ciências e tecnologia, o próprio Ḿinistério do] Planejamento, quer dizer, falta muito em termos de educação, que é a segunda grande prioridade deste país no livro; quer dizer, diante do desafio, é preciso encarar o futuro, de um lado, e é preciso investir em educação. A única maneira de corrigir todos esses defeitos... você deve ter conhecido o professor Jairo Ramos [(1900-1972) médico clínico geral e cardiologista com particular interesse no ensino da propedêutica e da terapêutica, foi um dos fundadores da Escola Paulista de Medicina, em 1933; destacou-se também como escritor médico e educador], por exemplo.

Julio Abramczyk: Muito!

Ethevaldo Siqueira: Não é? Como cardiologista, ele sabia a grande mensagem que ele transmitia aos seus alunos, de que realmente esse contato humano, o toque e o ouvido, por exemplo, é que poderiam muito mais que qualquer tecnologia. Eu não tenho a menor dúvida. Nesse livro, por exemplo, eu ressalto várias vezes que não há nada que substitua o contato humano e uma escola presencial, o professor frente a frente; no entanto, a tecnologia amplia as dimensões e complementa, e leva a milhões de pessoas... ou até, naqueles horários em que eu não posso ter a presença da escola e das pessoas, eu possa, realmente,...

Julio Abramczyk: [Interrompendo] Pois é, o professor Jairo dizia: primeiro examine o paciente, depois peça os exames. Atualmente, a coisa está invertendo: pedem-se os exames primeiro e depois vai se ver qual é a doença. E o professor Jairo criou a Escola Paulista de Medicina [instituição pública de ensino superior inaugurada em 1933 em São Paulo, reconhecida como importante centro de graduação e pós-graduação no país. Foi elevada definitivamente à categoria de universidade especializada em Ciências da Saúde em 1994, assumindo o nome de Universidade Federal de São Paulo e a sigla Unifesp]. Agora nós estamos entrando na era da informática, em que técnicos vão fazer avaliações e essas avaliações irão para os computadores que acabarão fazendo o diagnóstico. Como é que ficaremos? Sem médicos e apenas com as máquinas?

Ethevaldo Siqueira: Esse é o desafio, Julio. A meu ver, o que falta é um pouco de filosofia da educação e um pouco de uma cultura que não privilegie imediatamente a tecnologia como solução. E ela não é solução, por primeira solução. Da mesma maneira que o que tornou o homem homem, a partir de uma fase de hominídeos e de primatas foi o quê? O domínio do quê? Do fogo, da alavanca, daquilo - e essa antropologia nasce com as técnicas - que era a tecnologia da época. O impacto que teve, por exemplo, a imprensa de Gutenberg [(1390-1468) inventor alemão de uma imprensa funcional, baseada na adaptação da prensa vinícola, que resultaria na massificação das publicações. O primeiro livro impresso por Gutenberg foi a Bíblia, num processo que se iniciou por volta de 1450 e foi concluído cinco anos depois ]... O índice de analfabetismo na França era de 97%. Até então, só 3% da população francesa tinha acesso a livros. Um século depois, mais da metade da população francesa estava alfabetizada. Então, vejam o poder de transformação. Quando nós falamos em tecnologia da informação nós damos saltos dessa maneira. O que o computador fez nos últimos cinquenta anos é muito mais acelerado do que fez a imprensa de Gutenberg na época dela, está certo? Mas são coisas muito parecidas, porque nós estamos trabalhando com uma questão essencial: a matéria prima - realmente - dessa tecnologia é conhecimento, idéia, informação, e é cultura; quer dizer, então é isso que... agora, jamais nós podemos..., a posição deslumbrada que eu menciono e que o Markun tocou é aquela de quem não vê as duas faces, de quem não vê, por exemplo, o desafio e o problema da globalização, quando você mostra a questão do Brasil, que não tem recursos para serem desperdiçados e que fica, às vezes, investindo desnecessariamente ou gastando desnecessariamente em determinadas áreas, realmente onde há soluções mais simples. Você mesmo, já que tocou em medicina - o Julio tem uma vantagem para comigo, ele é o meu cardiologista, quer dizer, se houver qualquer problema, ele vai me socorrer aqui -... mas um soro de água com açúcar e sal, na sua opinião, não salvou bilhões crianças neste país ao longo das últimas décadas?

Julio Abramczyk: No tempo da desidratação.

Ethevaldo Siqueira: Não é verdade? Então, eu vejo e acho que é importante que a gente debata a tecnologia no seu devido lugar, na devida dosagem. Por mais que ela seja - e ela é - fascinante, não há dúvida nenhuma. Eu falava com o professor Zuffo há pouco sobre uma questão tão simples que foi ver o desenvolvimento do poder de emissão de luz das asas de borboletas... e foram transferidas para um celular agora. O celular seu fica iluminado o tempo todo, o display, você pode vê-lo até ao sol, sem consumir a bateria. É uma tecnologia que estará disponível até 2006, quer dizer, em aparelhos comercialmente [distribuídos]. Isso é um avanço, quer dizer... e sem dúvida... e eu pergunto... e isso é fascinante, quer dizer, se nós começamos a descobrir o poder que há realmente, hoje, em termos de informação... você depende violentamente dessa tecnologia. Como é que nós poderíamos viver sem internet hoje? Está certo? E a internet, com todo o lixo que ela tem, 40% ou 50%, a outra metade é extraordinariamente positiva. Eu menciono uma Wikipédia, que é uma mini-enciclopédia [eletrônica construída de forma] colaborativa, hoje em mais de oitenta línguas. Só a enciclopédia em língua portuguesa lá, feita por pessoas que espontaneamente colocaram o seu conhecimento, a sua especialidade... e que foram conferidos [os textos], corrigidos e reescritos por outros especialistas, formam mais de trinta mil artigos. Isso é a maior enciclopédia que nós temos em língua portuguesa hoje. A Wikipédia em língua inglesa hoje chega a mais de trezentos mil artigos. Isso é uma... eu diria, assim, uma... quase que uma utopia. O esperanto está renascendo como uma língua internacional. Não vai dominar o inglês, a meu ver, num horizonte pelo menos previsível, mas o poder que a tecnologia tem de melhorar a vida humana é muito grande.

Mônica Teixeira: Ethevaldo,...

Ethevaldo Siqueira: Pois não.

Mônica Teixeira: O que você entende por convergência digital? Eu queria lhe perguntar o que você entende por convergência digital e se você acha que ela vai se efetivar, e [se ela] é mesmo, sei lá, uma tendência para o futuro até próximo.

Ethevaldo Siqueira: Mônica, eu... eu acompanhei, por ser um jornalista que trabalha nisso há mais de trinta anos... a primeira vez em que se falou numa forma de convergência nessa área foi num relatório francês, na época do Giscard D'estaing [(1926-), político francês de centro-direita, foi presidente da França entre 1974 e 1981. Presidiu da Convenção para o Futuro da Europa de 2002 a 2003, quando redigiu um projeto de Constituição para a União Européia, aprovado em 2004], que... dois especialistas fizeram um estudo sobre a informatização da sociedade francesa e criaram a palavra telemática. Eles achavam que as telecomunicações e o computador ou a informática iriam formar uma área comum e cada vez mais concentrada com os mesmos elementos que a digitalização. Trabalhar com bit [dígito binário (do inglês, binary digit), é a menor unidade de informação que pode ser armazenada ou transmitida, que pode assumir apenas dois valores, como por exemplo 0 ou 1] significa que você pode trabalhar com voz, dados e imagens, e você tem três pólos hoje na... e não apenas dois, como a telemática. A convergência de hoje inclui conteúdos. A televisão, por exemplo, digitalizada, ela tem a sua parte de controle pelo computador, tem a parte de transmissão pelas telecomunicações e todo o conteúdo que nós sabemos, como... o exemplo que eu acabava de te dar da internet é o exemplo mais dominante hoje, mais conhecido. O que era uma visão acadêmica, nos anos 1970, no começo dos anos 1970, e uma visão acadêmica de antecipação do que iria acontecer, bastante realista, se tornou uma realidade total hoje. Eu tenho, digamos... você tem, se você quiser. Eu ouço a Rádio Cultura FM, por exemplo, dentro de... quando estou trabalhando, abro uma janelinha e fico ouvindo, seleciono os programas, não só a Rádio Cultura, como ouço outras rádios, noticiários. Nós temos ali enciclopédia, temos DVD, temos vídeo games, temos acesso a bancos de dados, vamos buscar informação, temos a parte de conversação. O computador, hoje, realmente, principalmente através da internet, ele é o grande, realmente, vetor dessa convergência, não é? Isso está ocorrendo em todas as áreas, quer dizer, a digitalização é um processo que atinge não apenas as comunicações tradicionais que nós conhecemos. Quer dizer, nós chegamos, por exemplo, a controles de todas as formas que são digitais; quer dizer, o cinema passa a ser digital, e o Brasil está avançado nessa área. Eu acho que o que fica e realmente é importante é que o Brasil tem algumas... ele tem uma grande deficiência cultural e educacional, que nós sabemos, mas, para compensar um pouco e nos dar um pouco de confiança, ele tem alguns picos de excelência. Se este país não tivesse investido corajosamente em tecnologia há cinqüenta anos, aproximadamente, num ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica], nós não teríamos hoje uma Embraer [Empresa Brasileira de Aeronáutica, entre as maiores empresas mundiais do setor aeroespacial, fundada em 1969], está certo? Se ele não tivesse investido o que foi investido em conhecimento e pesquisa numa [Escola] Politécnica de São Paulo, nós não teríamos uma montanha de capacitações tecnológicas. Em engenharia civil, a começar... o que o Brasil tem hoje de domínio, realmente, de concreto armado, poucos países têm. Em eletrônica, está aí o professor Zuffo, por exemplo, que nos coloca, realmente, num desses centros de excelência através do trabalho dele, com 250 pesquisadores que trabalham lá, formados e dirigidos, e que criam, realmente, essa possibilidade de termos supercomputadores projetados e construídos no Brasil hoje [enfatiza]. Quer dizer, não é uma visão da próxima década ainda. E sem falar numa Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], que tornou possível realmente esse poder de exportar e de produzir numa área do Brasil que era considerada terra inaproveitável. Eu me lembro do professor Guimarães Ferri, que foi reitor da USP, Mário Guimarães Ferri, me levou em 1973 no cerrado e previu - aí ele fez uma previsão quase que profética - e disse: "Este vai ser o celeiro do mundo, o celeiro do Brasil.". E vai ser. “Nós vamos corrigir a toxidez de alumínio e todas as formas de problemas que... vamos colocar mais cálcio aqui etc... os NPKs” [sigla que designa os três nutrientes principais para as plantas (macronutrientes), quais sejam nitrogênio (N), fósforo (P) e potássio (K)] e todas as fórmulas químicas, para que o cerrado produzisse o que está produzindo hoje. Ele infelizmente não está vivo para ver, para testemunhar realmente a precisão... porque foi um investimento bem feito. A Petrobras [Petróleo Brasileiro S/A, sociedade anônima que tem o governo brasileiro como acionista majoritário. Fundada em 1953 no Rio de Janeiro, a empresa opera hoje em 27 países, no segmento de energia, com ênfase nas áreas de exploração, produção, refino, comercialização e transporte de petróleo e seus derivados] fez investimentos em águas profundas que nenhum outro país tem. Há algumas coisas mais polêmicas que nós temos, mas que funcionam bem. A urna eletrônica, Markun, o primeiro país do mundo, realmente, a ter 100% de votação, de coletas e de apurações eletrônicas, sem que tenha havido uma única fraude. Houve problemas - uma coisa é a falha técnica -, mas... portanto, é um processo seguro e nos deu... e deu lições a uma república maior, está certo? Não é?

Paulo Markun: Ethevaldo, no seu livro 2015 Como viveremos há dois momentos, ou três momentos, que você chamou de ficção, que é uma espécie de antevisão do que seria o futuro da vida, momentos da vida da família Prado: Daniel e Bárbara, um casal que vive em São Paulo. E foram os momentos em que eu tive a impressão que parece mais distante a realidade que a gente vive hoje do que a que eles vivem, porque a casa das pessoas hoje tem muito pouco daquilo que você menciona, como essa possibilidade do tele-trabalho, de você conversar com a geladeira, de você mandar o micro-ondas esquentar pizza do dia anterior e assim por diante. Você acredita realmente que em dez anos isso possa ser realidade? E para que parcela da população?

Julio Abramczyk: Aliás, ele visitou a casa do Bill Gates [Willian Henry Gates III, nascido nos Estados Unidos em 1955, é fundador da empresa de tecnologia informática Microsoft e um dos homens mais ricos do mundo]. Como é a casa dele, heim?

Ethevaldo Siqueira: Eu acho que a nossa casa daqui a dez anos, Markun, vai ser mais avançada do que a do Bill Gates hoje, em termos de uso dessas tecnologias.

Paulo Markun: Mas como isso? Desculpe provocar aqui, mas é o seguinte: eu vejo a geladeira que eu tenho em casa, eu posso falar o que eu quiser com ela, ela não me responde. Aliás, tem um monte de coisas na minha casa que não me responde mais, não é só a geladeira.

Julio Abramczyk: Os seus filhos.

[Risos]

Paulo Markun: Pois é. Então, você... quer dizer, tudo bem, o computador está lá presente, ele pode estar integrado a uma pequena rede, através daí tem a internet, você faz compras e chega pelo correio, mas o que eu vejo na realidade das pessoas é que quem fabrica a geladeira no Brasil, fabrica geladeira, quem fabrica fogão, fabrica fogão... o sujeito faz um sofá, é sofá, não há a participação da tecnologia na informação nessas áreas. Você acredita que em dez anos isso vai entrar?

Ethevaldo Siqueira: Em muito menos. A parte onde eu sou mais conservador é essa, principalmente na visão da casa do casal Prado, aqui no alto de Pinheiros; eles são uma classe média. Em alguns aspectos, eu tenho... eu tenho quase uma casa e eu sou classe média, sou jornalista, como você sabe, e eu já vivo algumas tecnologias, é claro que isoladamente, experimentalmente, está certo? Sabendo... eu tenho acesso a internet banda larga, tenho dois megabits por segundo [(Mbit/s), unidade de transmissão de dados equivalente a mil quilobits por segundo (Kbps) ou um milhão de bits por segundo, muito utilizada para medir aplicações de vídeo], que é uma delícia para você baixar. Mesmo que isso ainda seja um privilégio. É claro que coisas que eu uso hoje eram um privilégio há dez anos, aquele raciocínio. Nós estamos diante de um desenvolvimento tão acelerado, Markun, que essas coisas vão se tornar populares. Coisas que não estavam disseminadas no grau... eu dou o exemplo do celular, [que] é o mais marcante que nós temos hoje. Em 1993, quando o celular foi lançado em São Paulo - portanto nós estamos no começo de 2005; isso você volta, são 12 anos, menos de 12 anos que nós temos aí -, levar um celular para um restaurante era um exibicionismo das pessoas, colocar em cima de uma mesa era um privilégio de poucos, até porque a oferta deles era tão pequena, o custo era tão alto, quer dizer, era analógico, funcionava mal, tinha todos os tipos de... e isso num horizonte tão curto. Hoje você tem câmara digital embutida ali, você tem gravação de MP3 [um dos primeiros tipos de compressão de áudio, com redução de tamanho do arquivo de aproximadamente 90% em relação ao original; à taxa de compressão padrão, de 128 quilobits por segundo (Kbps) as perdas são quase imperceptíveis ao ouvido humano], de música, com fone estéreo já, você tem localização via GPS [do inglês Global Positioning System (Sistema de Posicionamento Global), é um sistema eletrônico de informação que conta com um conjunto de satélites e fornece via rádio a um aparelho receptor móvel a posição desse aparelho com referência às coordenadas terrestres], um sistema de satélite, e isso não é um privilégio mais de milionário; quer dizer, muitas pessoas de classe média estão tendo esses recursos, como estão tendo...

Mônica Teixeira: [Interrompendo] Mas, Ethevaldo, isso não é bom apenas para as companhias telefônicas e para as companhias que vendem celulares? Por que, qual é a... ?

Ethevaldo Siqueira: [Interrompendo] Você usa celular, Mônica?

Mônica Teixeira: Eu uso.

Ethevaldo Siqueira: É bom para elas ou para você?

Mônica Teixeira: Eu acho que é melhor para elas que para mim.

Ethevaldo Siqueira: Não, mas você precisa dele hoje? Você precisa de comunicação?

Mônica Teixeira: Mas eu certamente não preciso de um celular que tire fotografia, que transmita certo volume de dados etc.

Ethevaldo Siqueira: Você não precisa de perfume, Mônica?

Mônica Teixeira: Não, estou fazendo uma pergunta...

Ethevaldo Siqueira: [Interrompendo] Não, estou dizendo: existem graus de necessidade muito maiores.

Mônica Teixeira: Então, por exemplo, voltando naquela casa que você estava descrevendo ali. Por que é que eu precisaria falar com a geladeira? Quer dizer, porque a geladeira precisaria se abrir ou fornecer a água ou qualquer coisa assim mediante à minha palavra?

Ethevaldo Siqueira: Isso é um conforto. Eu acho que é um conforto. Eu não digo que isso seja essencial, que isso vá mudar radicalmente a vida.

Mônica Teixeira: Não, eu não estou nem discutindo a essencialidade, mas...

Ethevaldo Siqueira: [Interrompendo] Mas eu tenho pessoas que dizem assim: “Eu me sinto um idiota se eu tiver que falar com uma geladeira.”. Há uma minoria que pensa assim. Por quê? Isso faz parte da nossa cultura, dos nossos hábitos, está certo? Eu não usava controle remoto, eu levantava ia lá, até é bom para fazer exercício, não é? O controle remoto talvez seja a glória dos preguiçosos, ou do conforto. Então, esses são detalhes na realidade. O que eu mostro é o que pode acontecer, não significa que há uma defesa. Outra coisa: quando se faz uma reportagem, nós publicamos um consenso de opiniões. Eu não escrevi... esse livro não é o lançamento de uma plataforma ou filosofia de vida minha.

Mônica Teixeira: Eu só estou...

Ethevaldo Siqueira: O que eu acho, há uma grande probabilidade de muitas dessas coisas não pegarem, está certo?

José Antonio Zuffo: Existem certas características da microeletrônica que é bom a gente chamar a atenção. Hoje não se sabe o que fazer com a complexidade possível dentro do chip [dispositivo eletrônico criado em 1958, dotado de milhões de circuitos integrados (em alguns casos também microprocessadores), utilizado em aparelhos e equipamentos informatizados]. Por exemplo, a Intel [empresa multinacional norte-americanda fabricante de circuitos integrados, especialmente microprocessadores, fundada em 1968] está lançando agora, em 2005, um chip com dois itanium [micropossessador desenvolvido pela Intel e pela HP, mais eficiente a cada edição, desde sua criação em 2001] e um cachê de 24 megabits [um megabit equivale a um milhão de bits], num total de 1,7 bilhão de componentes. Isso porque eles não sabem o que fazer, e não existe, inclusive, teoria para se otimizarem todos os componentes que são possíveis de serem colocados num chip hoje.

Mônica Teixeira: Parte dessa febre de fotografia, de transmissão, é justamente para ocupar essa capacidade.

José Antonio Zuffo: É exatamente para procurar inovar, porque hoje uma empresa no exterior, quando se projeta um produto, a empresa prevê que esse produto vai custar zero dentro... daqui a quatro ou cinco anos. Então ela precisa estar continuamente inovando para sobreviver. É um problema mais econômico. Isso vem inclusive da observação do...

Julio Abramczyk: E os biochips [chips destinados ao uso biomédico, com destaque para análises clínicas, auxiliando no diagnóstico de doenças e permitindo que os exames laboratoriais sejam feitos em casa ou, no máximo, no próprio consultório médico]? E os biochips?

José Antonio Zuffo: ... do professor Julio. Na área de medicina, a tendência é que os preços caiam violentamente com a informática. Realmente, hoje as empresas procuram esconder os protocolos, por exemplo, de tomografia, os protocolos de ressonância nuclear, porque é o segredo delas... na medida em que esses protocolos se tornam públicos, facilidades da informática podem [...] esses aparelhos a custos muito, mas muito mais baixos, inclusive aparelhos descartáveis com microtecnologias. É possível fazer, por exemplo, sistemas de microfluídica que examina o sangue em tempo real e seja descartável, como hoje é descartável uma seringa. E isso vai revolucionar, eu diria, toda a equação econômica.

Julio Abramczyk: E aqueles biochips que também estão programados?

José Antonio Zuffo: Então, são problemas, assim, estranhos, não é?

Ethevaldo Siqueira: Os biochips são uma questão mais distante ainda, quer dizer, eles... no horizonte de uma década, nenhum dos cientistas diz que nós teremos biochips práticos; o que existe é um grande potencial, como a própria nanotecnologia, que eu acho, essa será uma das revoluções no momento que se esgota a possibilidade da microeletrônica: começar realmente uma tecnologia em proporções moleculares e atômicas, quer dizer, unindo micromecânica com a microeletrônica. Quer dizer, então nós estamos diante de grande potencial. Agora, não me cabe, por exemplo, ao escrever um livro, discriminar se a tecnologia é boa, se é inútil, se é bobagem, isso é secundário, isso é supérfluo. O mundo está cheio de coisas supérfluas e eu digo, Mônica, eu acho que o supérfluo é o mais gostoso da vida.

Lisa Polloni: Ethevaldo,...

Ethevaldo Siqueira: No meu ponto de vista pessoal. Bom, agora não é a tese do livro. O livro mostra o que pode acontecer. O Brasil tem quatrocentos mil quilômetros de cabos de fibras óticas, 95% deles ociosos. Isso foi colocado diante da onda da bolha de telecomunicações e da bolha da internet. A tecnologia em si não resolve; é preciso ter conteúdo; é preciso ter aplicações; é preciso ter soluções, e o que pega é aquilo que resolve o problema humano. Este país tem 91% de televisores, domicílios com televisão.

Mônica Teixeira: Até mais, acho. Eu conheço um número maior que esse, mas tudo bem.

Ethevaldo Siqueira: Esse é o que eu tenho do IBGE, recente. Bom, é um número de primeiro mundo, quer dizer... e nós não somos, nos outros indicadores, parecidos com os países altamente industrializados. Este povo tem uma paixão pela mídia televisão, como tem por algumas tecnologias, e o celular desperta uma paixão semelhante, está certo? Agora, qual vai ser a reação das pessoas falando com as paredes, com as portas ou... [discretos risos gerais]. Eu acho que nós vamos encontrar aplicações. Sabe por quê? O comando mais natural que nós temos é a voz, é a linguagem humana. Agora, é claro, eu gostaria de ditar ao computador ao invés de usar o teclado. Você, como jornalista, teria vantagens também. A sua velocidade de produção, ou até o seu consumo de energia seria menor, lhe permitiria, talvez, raciocinar mais tempo, mais tranqüilamente, ditando ao computador; e já existem softwares que fazem isso, ainda não com a confiabilidade que nós queremos.

Mônica Teixeira: Mas então, aí você está supondo uma coisa, desculpa Ethevaldo, a meu respeito, que absolutamente não é verdade, quer dizer, porque eu seria incapaz de escrever falando. Porque escrever envolve, para mim, uma máquina de escrever. Então...

Ethevaldo Siqueira: [Interrompendo] Eu estou supondo que, dentro do que eu conheço, você está fora da média e eu não conheci...

Mônica Teixeira: [Interrompendo] O senhor vai escrever falando?

Ethevaldo Siqueira: Eu gostaria muito de ditar.

Mônica Teixeira: É genial! [Mônica ri]

Ethevaldo Siqueira: Eu tive, digamos, um bom tempo aí, vinte anos de magistério. Então a gente redige falando, está certo? A gente se policia muito e... você lê em voz alta o próprio texto para analisar? [Mônica assente com a cabeça] É importante isso. O computador podia estar fazendo isso para você, o seu texto. Não sei se é necessário, se é urgente, se pode ser uma coisa supérflua, mas, olha, o Brasil tem que trabalhar realmente para que ele não perca essa onda da história, e ele tem algumas oportunidades extraordinárias nisso, porque muita gente dizia, quando se abriram fábricas de celulares aqui, que isso era um tempo perdido. O Brasil é um dos grandes exportadores - ou tem sido, nos últimos cinco anos -... exportador de celulares, está certo? Hoje eu estava vendo uma estatística sobre o que, em 1900 e... não, em 2004, foi vendido e produzido aqui. Há coisas inexplicáveis do comportamento da sociedade.

Julio Abramczyk: Ethevaldo, o celular foi fabricado com tecnologia própria ou importada de outros produtores?

Ethevaldo Siqueira: Não.

Julio Abramczyk: Nós temos tecnologia própria para celular?

Ethevaldo Siqueira: Não, não temos, como a Suíça não tem, está certo? A Suíça não é um fabricante... O que nós somos é uma plataforma de produção industrial usando as vantagens competitivas que o Brasil tem. Isso sim; eu gostaria que nós tivéssemos uma competência tecnológica para ter projetado. Há celulares inteiramente projetados no Brasil. O que nós não temos são os componentes sofisticados.

Ricardo Kobashi: E o que falta para a gente ter esses componentes?

Ethevaldo Siqueira: Uma política industrial que funcionasse. Nós já tentamos vários caminhos. Nos anos 1970, eu e todos os que conviveram naquela época como usuários de informática sonhávamos que seria a redenção e foi um desastre, realmente, a política de reserva de mercado que nós tivemos. Eu comecei a usar um computador aqui no Brasil nos anos 1980, computador pessoal, que tinha um preço muito superior a qualquer outro preço do mundo; quer dizer... e que tinha todos os problemas possíveis: de qualidade, de compatibilidade, de assistência, de software. Até recebi computador sem manual, porque não existia manual. E software também, processadores de texto com reserva de mercado que eram inaceitáveis; quer dizer, o Brasil nunca investiu continuamente, longamente, em políticas industriais corretas.

Ricardo Kobashi: Mas nós já perdemos o bonde ou ainda tem condições de subir?

Ethevaldo Siqueira: Não, há sempre oportunidades, porque a tecnologia evolui tanto... Nós tivemos uma grande oportunidade na área de fibras óticas; de repente a Telebrás [sistema estatal de empresas criado em 1972, detentor do monopólio dos serviços públicos de telecomunicações no Brasil. Foi privatizado em 1988] dá uma reserva de mercado de cinco anos para uma única empresa, acabou com as perspectivas. Aquilo que tinha sido feito, tanto na USP como no CPqD [Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Telebrás], em termos de criar, de redesenvolver a fibra ótica - está certo? não é? - foi perdido industrialmente. Não é tanto o conhecimento e a capacidade. Este país, o que tem de silício eletrônico, Ricardo, e que não aproveita... nem uma coisa estratégica como essa. Nós mandamos o silício para a Alemanha a dois dólares o quilo e reimportamos os bastões para fazer fibra ótica a mais de cem dólares o quilo, está certo? Com esse turismo de vai e volta, e o valor agregado, nós estamos perdendo não só tempo, dinheiro... quer dizer, quando isso era uma tecnologia prioritária para o país desenvolver; agregar valor a uma matéria-prima onde nós somos detentores de mais de 80% do silício de grau eletrônico do mundo com quartzo brasileiro, está certo? Então nós cometemos uma porção de erros desse tipo no passado.

Murilo Ohl: E o que é necessário para essa virada? Como é que a gente vai desenvolver uma industria nacional de tecnologia?

Ethevaldo Siqueira: Hoje não é mais... eu não vejo mais como estratégia, não sei. O professor Zuffo pode dizer muito melhor do que eu se seria vantagem nós investirmos na produção de hardware [conjunto de componentes, circuitos integrados e placas que constituem a parte física do computador, destinada a processar as instruções e dados enviados por sua parte lógica, o software], de chips, que são commodity [produto primário ou padronizado usado na fabricação de produtos industrializados] hoje, está certo?

Lisa Polloni: Ou de propriedade intelectual?

Ethevaldo Siqueira: Ah sim, muito mais. Nós temos uma coisa... esse é o grande patrimônio do país: a inteligência; inteligência para criar, criar programas. A Índia não vai investir em microeletrônica hoje, vai investir muito mais em software. A China, tendo um grande mercado, ela pode fazer isso; ela optou por isso.

Lisa Polloni: Mas com os índices de pirataria aqui no Brasil cada vez aumentando mais e a economia informal tendo um espaço relativamente grande, a gente fica alarmado de ver os índices, não só na área de tecnologia, mas em vários setores. Na prática, como acontece isso?

Ethevaldo Siqueira: Esse é um problema cultural e um problema industrial, e político também. Dificilmente a gente aceitaria, por mais tentador que fosse, comprar um objeto furtado, está certo? No entanto, quanta gente que aceita softwares pirateados com a maior naturalidade... quer dizer, a propriedade intelectual que foi furtada de alguém, está certo? Os discos que foram pirateados, CDs, softwares que foram pirateados. Na nossa cultura ainda não existe realmente uma ética capaz de resistir. Alguém diz assim: “Olha, eu estou furtando isto aqui porque o Roberto Carlos [(1941- ), famoso cantor e compositor brasileiro, conhecido como "Rei"] é milionário.”, está certo?

Lisa Polloni: Ou o Bill Gates.

Ethevaldo Siqueira: “Eu vou piratear os seus CDs, ou seu artista...", ou dizer que o Bill Gates é bilionário. "Então vamos piratear todos os softwares.”. Sabendo que isso reduz a própria... o próprio estímulo e as perspectivas de o Brasil produzir essas coisas.

Lisa Polloni: Mas, Ethevaldo, você não acha que isso pode criar, de um lado... quer dizer, os países que investem bravamente em pesquisa e desenvolvimento e proteção à criação, à idéia, à propriedade intelectual, num hemisfério e num outro, países sem políticas definidas de desenvolvimento, principalmente na área de tecnologia... quer dizer, qual é o Brasil? Qual é o bonde que o Brasil vai pegar? Como é que é 2015?

Ethevaldo Siqueira: Bom, o que ele vai [ser] eu não sei. O que eu prego é que nós temos que ter um mínimo de seriedade nessa área, [que] essa possa ser... porque o Brasil, ele é hoje um país emergente na indústria de software, está certo? Se ele não protege o software importado ou internacional, o dele também não será protegido. E vai haver pirataria com o próprio software daqui. Quer dizer, então ele tem de criar uma política de proteção à propriedade intelectual. Da mesma maneira que nós não permitimos que uma invenção, que uma criação artística, ou qualquer outro tipo de criação intelectual seja piratada, pirateada, nós temos que proteger aquilo que é o mais precioso hoje da tecnologia, nessa área da informação, que é a parte de software, de programas, de aplicativos e de tudo isso; quer dizer, essa é uma prioridade que o país devia ter.

Ricardo Kobashi: E como é que o senhor vê a política do governo federal que incentiva o uso do software livre [programa informático de código-fonte aberto, que pode, portanto, ser usado, copiado, estudado e aperfeiçoado. Sua forma de distribuição pode ser gratuita ou comercial]? Como é que o senhor imagina que em 2015 o software livre vai estar? Quer dizer, ele vai ser dominante?

Ethevaldo Siqueira: Não creio, eu não creio, não creio que ele seja dominante, primeiro porque software livre tem que ser livre, não pode ser imposto. Se o governo incentiva, ele faz muito bem. O que ele não pode é impor como única opção, nem para as próprias empresas estatais. Não teria sentido, quer dizer, cada... o Banco do Brasil tem o direito...

Paulo Markun: [Interrompendo] Assim, eu não entendi, eu não entendi, eu não entendi. Eu acho o seguinte: se o governo não estabelece que uma empresa estatal use o software livre, o que [é] que ele faz?

Ethevaldo Siqueira: Obrigatoriamente, você diz?

Paulo Markun: Não, não é obrigatoriamente.

Ethevaldo Siqueira: Ah, estimular eu estou plenamente de acordo. É isso o que eu estou dizendo.

Paulo Markun: Acontece o seguinte: uma empresa estatal é um ente, está certo? Então ela tem 450 computadores interligados em rede, algumas têm muito mais do que isso. Das duas uma: ou ela usa um software livre ou ela usa um software de uma empresa que produz, tenha propriedade intelectual e obriga que cada máquina nova receba uma cópia daquele software, está certo? Agora, como é que faz as duas coisas ao mesmo tempo é que eu não consigo entender, ou faz uma coisa ou faz outra. Ou não?

Ethevaldo Siqueira: Olha, se você... a universidade, a de São Paulo [USP] é um exemplo onde cada pesquisador pode escolher o que ele quiser, cada unidade lá pode escolher.

Paulo Markun: Aí tudo bem, mas não é uma empresa que você tem todo o conhecimento daquela empresa, o banco de dados, de contas a pagar, o grupo de fornecedores, todas as transações ou trafegam pelo software livre ou trafegam por um software de uma determinada empresa.

Ethevaldo Siqueira: Não são as duas únicas opções. Elas podem conviver, é isso que eu estou dizendo.

Paulo Markun: Como?

Ethevaldo Siqueira: Bom, se você... eu uso uma rede de Linux, está certo? E uso softwares proprietários; eu uso Macintosh, por exemplo. Eu vou encontrar que soluções em Linux? Se você tiver... e que custe mais barato e faça a mesma coisa, eu terei.

Paulo Markun: Eu não tenho nem proprietário; gostaria de ter proprietário, livre, talvez não proprietário, eu estaria mais feliz, mas eu não tenho nem uma nem outra.

Ethevaldo Siqueira: Eu estou dizendo que cabe a nós... quer dizer, inclusive eu acho Linux uma solução extraordinária. Ele é derivado de um Unix, que é o software mais poderoso para aplicações de cálculos e de ciência e de pesquisa, está certo? E que tem qualidades. Eu uso um derivado dele, que não é o Linux, que é o sistema X do Macintosh - está certo? -, mas que tem uma montanha de aplicativos já prontos. É isso que eu estou dizendo: software livre significa que é aberto, primeiro na sua caixa preta, que não é mais [bloqueada], e que pode ser modificada. É como a enciclopédia colaborativa: eu posso colocar lá dentro a minha contribuição. Agora, ele... ele... não quer dizer que ele substitui tudo, ele não é uma panacéia, é isso que eu estou dizendo, respondendo. Em 2005... em 2015, nós podemos ter uma popularização muito maior do Linux e até podem surgir outras formas de software abertos, até competindo com o Linux, o que eu não vejo como salvação do país, como único caminho para inclusão digital e nem para usos nas áreas governamentais como única opção. Cada setor do governo... se uma empresa padronizou o Linux como rede, perfeito. Ela padronizou escolhendo como usuária, está certo? Mas não que isso seja um decreto que manda. Como nós tínhamos na época da reserva de mercado, nós tínhamos... eu queria importar um produto, não podia; quer dizer... e essas limitações levaram o país a um atraso.

Paulo Markun: Ethevaldo, eu sou um fanático por ficção científica, devorei a maior parte das obras dessa época, e volta e meia releio, hoje em dia muitas vezes dando muita risada, porque a gente se surpreende com determinadas coisas, que você conhece melhor do que eu; uma delas foi a incapacidade dos autores de ficção científica de imaginarem a microinformática, quer dizer, a miniaturização do chip e, portanto, que os computadores pudessem ser pequenos e acessíveis. Eu me lembro de um conto de um deles, não me lembro se é do Arthur Clark [(1917-2008), escritor e inventor britânico, autor do conto The Sentinel, que inspirou o filme 2001: Uma Odisséia no Espaço, dirigido por Stanley Kubrick, em 1968], creio que sim, em que havia na universidade, em 2045, um [enfatiza] computador portátil que o sujeito carregava para casa, era do tamanho de um carro, praticamente. E com esse computador, esse sujeito, que teria um acesso limitadíssimo, consegue descobrir um crime. Agora, o que o me preocupa na perspectiva de 2015 é que o casamento entre a escola e o computador parece extremamente difícil, mais difícil do que o casamento entre o computador e a geladeira, não é? Daquilo que eu havia mencionado no bloco anterior. Por quê? Porque ele já funciona, na medida em que os filhos da gente fazem os trabalhos escolares a partir do computador de casa, copiando coisas da internet muitas vezes, quando não compram pura e simplesmente trabalhos prontos para apresentar para seus professores. No entanto, na escola, o computador, no máximo, está reservado a uma sala onde o sujeito vai aprender informática. Você acha que nesse curto espaço de quinze, de dez anos nós teremos esse casamento consumado?

Ethevaldo Siqueira: Em São Paulo já existe uma resposta bastante positiva para a sua pergunta. Há um Educa Rede [portal educativo dirigido a educadores e alunos do Ensino Fundamental e Ensino Médio da rede pública, e a outras instituições educativas] aqui, há um Acessa São Paulo [programa de inclusão digital do governo do estado de São Paulo, instituído em julho de 2000], quer dizer que são projetos onde o uso do computador em escolas e o uso para as comunidades que não dispõem de poder realmente para comprar e de ter todo acesso... Eu sou otimista vendo o que está acontecendo e se nós projetarmos isso até lá, o computador se torna uma coisa muito mais rotineira. Ele não pode...

Paulo Markun: [Interrompendo] Mas, desculpa interromper, o governo do estado, por exemplo, está fazendo um enorme esforço de colocar computadores em todas as escolas e também de oferecer para todos os professores da rede pública a possibilidade de comprar um computador, pagando 50% o governo e financiando 50%. Mas a minha questão é a seguinte, é que isso não significa a ligação entre a escola e o computador, ou seja, as formas de ensino, os modelos pedagógicos, os currículos escolares, a cobrança da nota no final do ano, nada disso passa pela tecnologia.

Ethevaldo Siqueira: Nós temos aí uma espécie de divórcio entre duas eras, está certo? Nós estamos num conflito e é o que hoje, se você for à Escola do Futuro da USP [núcleo de pesquisa de novas tecnologias aplicadas à educação, criado em 1989 com o objetivo de explorar e implementar propostas inovadoras de ensino e aprendizagem, utilizando recursos como a internet e a multimídia], esse é o tema central: aproximar esses dois mundos, o mundo tradicional da educação, do professor, todas as técnicas que ele usava, algumas excessivamente verbalistas - está certo? - com o computador e com o potencial que o computador nos dá. É um desafio, Markun. Eu acho que não só no Brasil como no mundo inteiro. Só para dar um exemplo, a grande crise da educação é uma crise de informação cultural humanística, coisa mais simples. Foi feita uma pesquisa nos Estados Unidos, e quem me contou foi o presidente da FCC [Federal Communications Commission], que é a Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações] deles, agência reguladora das telecomunicações, senhor Michael Powell, filho do Colin Powell [(1937-), foi o 65º Secretário de Estado dos Estados Unidos, durante o governo de Geroge W. Bush, entre 2001 e 2005]. O que [foi] que ele disse? Que ficou impressionado [pois] 72% das crianças em idade de 7 a 11 anos responderam erradamente à seguinte pergunta: "O que é que se comemora nos Estados Unidos no dia 4 de julho?". Então, o nível de mais de 70% dessas crianças que estão numa escola primária lá, a ponto de ignorar muitas das perguntas... mais de vinte dias comemoramos uma festa [...].

Paulo Markun: Esse processo... vamos registrar [já] que se tiver alguma dessas crianças nos assistindo, que se trata do dia da independência norte-americana.

Ethevaldo Siqueira: Senão as nossas crianças vão continuar não sabendo também, principalmente. É como se o nosso sete de setembro [Independência do Brasil] fosse ignorado. Eu não sei, eu não quero correr o risco de submeter a mesma pesquisa à escolas brasileiras, nem estou dizendo que a deles está pior do que a nossa. Eu entrevisto, aí no meu livro, o principal educador francês que eu pude... com quem eu pude falar. Ele realmente faz uma crítica extremamente dura e pessimista do estado atual da educação francesa. E não é o computador que vai fazer esse milagre de melhorar, não. Ele poderá ser bem utilizado, mas é preciso que...

Paulo Markun: [Interrompendo] Mas ele poderá, ele poderá ser uma ferramenta desde que os currículos escolares, a estrutura organizacional das escolas, os professores...

Ethevaldo Siqueira: [Interrompendo] A cabeça dos professores.

Paulo Markun: Assim o examine, não é?

Ethevaldo Siqueira: Eu tive professores de matemática que me proibiam de usar calculadora na universidade, está certo? Então por aí se vê. Eles achavam que isso... eu tinha que ficar fazendo cálculos [faz o gesto com a mão, de calcular], as quatro operações do lado, tirar... imagine extrair uma raiz quadrada .. quadrada nem tanto, mas uma raiz cúbica, [imagine extraí-la] "na unha", porque o professor achava que a calculadora "emburrifica", quer dizer...

Mônica Teixeira: Ethevaldo, deixa eu mudar um pouquinho de assunto.

Ethevaldo Siqueira: Pois não.

Mônica Teixeira: E o governo eletrônico? O que vai ser governo eletrônico daqui a dez anos? O que é hoje? O que é governo eletrônico? - eu queria que você contasse - e o que você acha que vai ser no Brasil, que perspectiva há para um avanço dessa ferramenta?

Ethevaldo Siqueira: Esse é um dos temas que eu acho mais fascinantes. Acho que não só a população, mas o governo, o próprio governo deveria dar muito mais atenção e o Brasil hoje tem algumas iniciativas extremamente positivas. O governo eletrônico é nós colocarmos ao alcance do cidadão, primeiro, todas as informações e todos os serviços possíveis através da tecnologia. Então...

Mônica Teixeira: Da tecnologia da informação, não é?

Ethevaldo Siqueira: Através da informação. Você, para marcar uma consulta em qualquer, digamos, órgão público da previdência, da medicina socializada brasileira, você usa [...] a internet ou o telefone. Isso é governo eletrônico, é uma das formas mais simples que nós temos. [Para] Buscar uma certidão não precisa ir pessoalmente e ficar lá na 14ª junta - estou chutando uma junta qualquer - e ficar como gado, numa pequena sala, diante de um guichê pequeno, sendo mal tratado por funcionários para receber uma folha de papel, porque simplesmente a credibilidade daquela sentença ou daquele processo só existe tradicionalmente no papel, quando você pode ter uma assinatura eletrônica, uma assinatura digital, que facilitaria imensamente a vida do país. O Brasil tem muita coisa que já é feita; quer dizer, se você analisar, o governo do estado de São Paulo é um dos mais avançados: informatizou toda sua administração na Secretaria do Planejamento, integrando todos os municípios à capital, através de uma intranet, quer dizer, de uma internet interna deles, de maneira que o orçamento de cada município é acompanhado pela Secretaria do Planejamento, centavo por centavo e em tempo real, está certo? Então, todos os municípios já estão integrados. Uma iniciativa que reúne várias áreas do governo para servir o cidadão e deu um PoupaTempo [projeto do governo do estado de São Paulo, criado em 1996 e administrado pela Prodesp (Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo), com o objetivo de oferecer serviços de natureza pública ao cidadão, como emissão de cédulas de identidade e carteira profissional] é uma coisa extremamente positiva. A urna eletrônica é uma questão. Nenhum país do mundo atingiu o nível de 95% de declarações de imposto de renda feitas via internet, quer dizer, isso é um fato brasileiro, sendo que a internet está... é claro que só a classe média, [e dela] para cima é que declara imposto de renda, mas, de qualquer maneira, são milhões de declarações feitas ou diretamente da casa, ou um despachante ou alguém que tem o computador e o software. E, infelizmente até, um governo que fala tanto em Linux e software não deixou um software aberto em Linux para a população usar nesse horário, nessa hora, está certo? Então, o governo eletrônico é uma prioridade, no sentido de levar os benefícios possíveis que a tecnologia dá ou pode dar - está certo? - a cada cidadão e à empresa também.

Ricardo Kobashi: O que a gente tem visto, na verdade, é que o governo eletrônico está sendo muito mais ágil no que se refere aos deveres do cidadão do que aos seus direitos.

Ethevaldo Siqueira: Você não esperava outra coisa, não é, Ricardo? [risos]

Ricardo Kobashi: A gente paga imposto pela internet, mas a gente não sabe pela internet como esse dinheiro foi utilizado. Há uma perspectiva de mudança disso ou a gente vai ter que esperar que todos os nossos deveres estejam informatizados para que os direitos entrem na fila?

Ethevaldo Siqueira: Tem duas opções: ou mudar a cabeça do governo, por alguma campanha, por algumas ONGs, ou, nas próximas eleições, se tentar...  [Ethevaldo sorri] Eu acho que é uma questão de cultura e de opinião, quer dizer... e falta muito a perspectiva do futuro. O futuro de curto prazo, quando eu falo em dez anos, parece que todo esse cenário - não é? - é um pouco imaginário, de ficção, um pouco gratuito, mas na verdade eu simplesmente recolhi opinião de quem vive pensando nisso. Eu cito com particular satisfação dois brasileiros: um é o professor Zuffo, que está aqui e que tem um livro com três volumes publicados já. Diga o título do seu livro, professor.

João Antonio Zuffo: A sociedade e a economia no novo milênio, em que eu trato a parte de evolução de tecnologia, sociedade, trabalho, macroeconomia e microeconomia.

Ethevaldo Siqueira: Dentro da bibliografia que eu cito, eu não encontrei nada melhor para esta década, Markun, com tanta abundância de informação. A bibliografia que ele cita é das coisas mais ricas, com mais de setecentas obras citadas lá, consultadas por ele, e uma conclusão extremamente sólida, comparada, com opinião de pessoas. Outro brasileiro que eu cito é o Jean Paul Jacob, por exemplo - já deve ter estado atuando aqui, suponho, não é? - e que é... que pesquisa na IBM - e ele é dos líderes da IBM - para pensar o futuro, para pensar para onde a tecnologia vai, que tipo de soluções... Porque inventar uma máquina da nossa cabeça e pensar que ela vai ter sucesso é ingenuidade, está certo? É preciso conhecer problemas e buscar soluções, e testar, antes de qualquer coisa, o desenvolvimento de novas aplicações, que é o grande desafio do que está aí.

Julio Abramczyk: Ô Ethevaldo,...

Ethevaldo Siqueira: Pois não.

Julio Abramczyk: Por falar em novas aplicações, numa parte de seu livro você aborda o problema dos combustíveis para automóveis. Com essa crise do petróleo, você fala sobre hidrogênio e que hidrogênio também é um explosivo que pode acabar matando o seu condutor. Mas a água tem hidrogênio também. Você acha que algum dia vão inventar um aparelho que vai tirar o hidrogênio da água e ele vai andar assim direitinho?

Ethevaldo Siqueira: Eu acho, eu até preferia... depois eu gostaria de ouvir um pouquinho o professor Zuffo só dizer em que estágio nós estamos, ele tem muito mais informações científicas do que eu teria. Há muito avanço no hidrogênio e a decomposição da água para produção de hidrogênio é um dos caminhos, não sei se é o melhor.

José Antonio Zuffo: É, realmente a célula combustível [bateria cujos reagentes, tipicamente hidrogênio e oxigênio, são alimentados continuamente, com a vantagem de ser altamente eficiente e pouco poluente] é uma promessa muito importante, embora o que importe no hidrogênio... ele precisa ser colocado sob pressão e, energeticamente, ele tem menos energia do que os hidrocarbonetos. Então se discute muito essa questão do hidrogênio, mas talvez hidrogênio associado com a energia solar, por exemplo através de painéis solares, poderia resolver o problema. Então, durante o dia se faria eletrólise e se geraria hidrogênio. Durante a noite, quebraria o hidrogênio em células combustíveis, alimentando as casas ou as linhas de alimentação, fazendo um sistema distribuído de geração de energia.

Julio Abramczyk: E aí acabaria a dependência do petróleo?

João Antonio Zuffo: Acabaria praticamente a dependência do petróleo.

Ethevaldo Siqueira: Eu acho que vai chegar o momento em que, embora não seja a área realmente onde... tecnologia da informação... eu coloquei realmente algumas opiniões, porque nós dependemos de baterias ou de pilhas, realmente... que ele citou o caso das células de combustível e as mini-células de combustível, que é um calcanhar de Aquiles [expressão que significa ponto vulnerável, inspirada na mitologia grega, segundo a qual o herói Aquiles tinha um único ponto vulnerável em seu corpo, que era o calcanhar] hoje, do celular, do laptop, do... da câmera digital, você ter uma bateria, uma que não resista àquilo. Então, com células de combustível você vai ter energia para o seu microcomputador, seu laptop, funcionar uma semana, um mês...

Paulo Markun: [Interrompendo] E não poluindo.

Ethevaldo Siqueira: E não poluente, quer dizer, porque ele combina o hidrogênio com o oxigênio do ar e o resultado é vapor d'água, está certo?

Murilo Ohl: Ethevaldo, como vai ser a competição no mercado brasileiro de telecomunicações em 2015? O ano que vem, 2005, nós teremos a revisão dos contratos nas concessionárias de telefonia fixa. O que deve ser ajustado no ano que vem para que em 2015 a competição seja mais efetiva de fato?

Ethevaldo Siqueira: Murilo, esse é o ponto crucial de qualquer modelo de telecomunicação do mundo hoje. Quer dizer, é encontrar meios para se incentivar na prática a competição e implementá-la. Nós temos algumas áreas onde é muito mais fácil. Em longa distância, nós temos 19 empresas competindo, oferecendo longa distância, por métodos que não funcionam muito. Você tem que selecionar a cada ligação qual é a operadora que você vai escolher naquela ligação, sem que você tenha informação de... É uma escolha no escuro, quer dizer, é uma coisa muito sem mérito. No celular você tem uma relativa competição. Em São Paulo nós temos três operadoras aqui, e você pode escolher, pode mudar de uma para outra; não é fácil não, mas pode. No Rio de Janeiro, você tem quatro - está certo? não é? - você tem mais opções.

Paulo Markun: Mas há competição? Desculpa interromper [...]. Uma é mais barata do que a outra?

Ethevaldo Siqueira: Ah, sim.

Paulo Markun: Porque a sensação que eu tenho é [de] que troca seis por meia dúzia.

Ethevaldo Siqueira: Eu não posso citar uma que é mais barata que a outra por razões éticas, mas eu já me benefício. E outra, você tem que aproveitar o mais barato, que são as promoções, você entrar naquele momento, quer dizer, pode não ter neste momento, mas é como longa distância. Eu falei horas e horas com o exterior, com os meus amigos, quando a Embratel [empresa brasileira de serviços de telecomunicação criada em 1965] e a Intelig [empresa de telefonia criada em 2000, como concorrente da Embratel em chamadas de longa distância nacionais e internacionais] brigaram e baixaram a sete centavos o minuto, certo? E agora a tecnologia oferece uma arma ainda mais poderosa, que é voz sobre o IP, voz sobre o protocolo IP. Há um software que o mundo conhece, que é o do Skype, que você liga de computador a computador, não é? Você fala com uma qualidade de alta fidelidade e praticamente de graça.

Mônica Teixeira: Mas e a telefonia fixa, [sobre] que o Murilo perguntou? Esse é um problema... nós aqui em São Paulo...

Ethevaldo Teixeira: [Interrompendo] Não temos. Nós temos o quê?

Paulo Markun: [Interrompendo] Em nenhum lugar do Brasil, eu diria.

Ethevaldo Teixeira: No Brasil inteiro, quer dizer. Nos Estados Unidos, depois de vinte anos de “suposta”  [faz o sinal de aspas com as mãos] competição as dominantes ainda ocupam 85% do mercado, quer dizer, só 15% realmente de concorrentes estão enfrentando, detêm, estão fora dessas dominantes lá no mercado. Eu acho um desafio... Em energia elétrica, a coisa mais difícil é você ter uma segunda fornecedora. É muito mais rígido ainda o mercado. Em telecomunicações, com a comunicação sem fio, quer dizer, nós podemos, a Embratel vem disputar em São Paulo com a Telefônica [conglomerado mundial de serviços de telecomunicações, de origem espanhola, criado em 1924. Ingressou no Brasil em 1962, no Rio Grande do Sul. Comprou a empresa paulista Telesp em 1999 e hoje atua também em outros estados brasileiros], com uma força muito maior do que tinha a Vésper, que foi comprada por ela, está certo? Outra coisa é que existe uma competição do celular com o fixo. Esta é que está dando, fazendo com que muita gente deixe de usar o fixo em função de um celular pré-pago, está certo?

Murilo Ohl: Pois é, em 2015 vai fazer algum sentido falar em fixas e celulares e outras redes? Como é que vai ser?

Ethevaldo Teixeira: Não. Isso... eu toco nesse aspecto. Em 2015 nós teremos uma integração fixo-móvel, está certo?

José Antonio Zuffo: Provavelmente o fixo se torne semi-móvel, com o WLL?

Ethevaldo Teixeira: Exato. O WLL, que é Wireless Local Loop, está certo? Quer dizer, é uma maneira de você fazer a conexão sem fio. Hoje, a última milha é sempre um pedaço que está na mão de uma empresa dominante. Aquele pedaço que sai do cabo da rua e vai até dentro da sua casa. Esse último pedaço, esse último passo tinha que ser físico. Agora, no momento, você tem a solução da conexão sem fio, o WLL, quer dizer, no jargão, e formas evoluídas de WLL; não a primeira geração, que era muito ruim. Agora a tendência é realmente nós termos uma competição muito maior, está certo? E uma competição que se faz, talvez, até numa rapidez que desmonta o modelo de negócios...

José Antonio Zuffo: [Interrompendo] Inclusive a TV a cabo vai entrar nessa área de telefonia, a fibra ótica, até o quarteirão, até a porta de casa.

Ethevaldo Teixeira: A rede elétrica vai ser...

José Antonio Zuffo: [Interrompendo] A rede elétrica vai ser possível. Estão surgindo muitos novos autores, não é?

[Sobreposição de vozes]

Ethevaldo Teixeira: Um Power Line Comunication [tecnologia de transmissão de dados e voz em banda larga por meio da rede de energia elétrica], quer dizer... não é?

Lisa Polloni: E a TV digital, Ethevaldo? O Brasil vai criar um padrão diferente do resto do... ?

Ethevaldo Teixeira: [Interrompendo] É, essa é uma novela nos governos brasileiros, na Anatel e no Ministério das Comunicações, não é? Nós já devíamos ter pelo menos uma política, né? Não precisa ter a tecnologia dominada nem desenvolvida, não é? E acho que há duas teses aí, uma de nós adotarmos simplesmente um padrão internacional e outra é tentar desenvolver um padrão brasileiro. Quer dizer, eu acho que esse é um grande debate e acho muito difícil a gente, digamos, tomar uma decisão, primeiro porque infelizmente nem o segundo mandato do Fernando Henrique nem esse primeiro do Lula encararam a questão com importância. Eu digo, não é só a TV digital: todas as comunicações são relegadas a segundo plano. Quando o Fernando Henrique colocou lá um Pimenta da Veiga [João Pimenta da Veiga Filho (1947-), político brasileiro que ajudou a fundar o PSDB, partido que presidiu de 1994 a 1995. Foi nomeado ministro das Comunicações em 1998, após a morte do então ministro Sérgio Motta, e deixou o ministério em 2003]. Ele quis dar um recado para o país: "Minha gente, telecomunicações não tem a menor importância neste país". Quando o Lula coloca o... primeiro o Miro Teixeira [ligado ao PDT, (1945-) foi ministro das Comunicações de 2003 a 2004] e agora o senhor Eunício [Eunício Oliveira (1952-) foi ministro das Comunicações de 2004 a 2005, sucedido por Hélio Costa], são pessoas que não têm a menor familiaridade e que vão agir como político populista que quer prometer uma coisa, como o senhor Miro Teixeira prometeu na Copa de 2006 uma transmissão em TV digital. Isso é uma brincadeira, está certo?

Mônica Teixeira: O presidente da República disse que em 2006 ele iria assistir à Copa na televisão digital brasileira.

Ethevaldo Teixeira: Você acreditou?

Mônica Teixeira: Não. Claro que não.

Ethevaldo Teixeira: Eu também não. [Ethevaldo sorri]

Mônica Teixeira: Totalmente infactível. Pois é.

Ethevaldo Teixeira: Exatamente. Então, são frases desse tipo e são “diretrizes”, entre aspas, tão levianas, dessa natureza, que fazem com que você tenha hoje um processo de desmonte das agências; quer dizer, as agências todas reguladoras estão primeiro com o seu poder terrivelmente limitado, um projeto que ameaça transferir novamente até o poder concedente para os ministérios; significa uma politização político partidária. Quer dizer, o processo, coisas que nós combatemos no passado, todos aqueles que se opunham realmente a essa barganha de favores na distribuição de licenças para rádio, televisão, concessões; quer dizer, isso a Anatel que deveria ter participado, e transformar-se numa agência nacional de comunicações e não só de telecomunicações. Deveria ter um investimento maciço em cultura, em pesquisa, em um quadro de pessoal capaz de dar ao país uma política adequada, quer dizer, junto com o Ministério das Comunicações - ele traça políticas públicas e ela executa -, mas sem nenhum ciúme, sem nenhum conflito, como os países civilizados fazem. A Inglaterra é um exemplo de convívio desses... aliás, não precisa nem de Ministério das Comunicações. O próprio governo pode, a qualquer momento, e o parlamento, podem definir algumas prioridades, e a agência vai preservar regras corretas profissionalmente, tecnicamente. Quer dizer... e que não permita... e que dê realmente - do ponto de vista tecnológico, do ponto de vista de modelo de negócio - ao país um cuidado que eu acho fundamental, que é preservar a competição, incentivar... os novos contratos de concessão deste ano novo de 2005, por exemplo, são essenciais, porque senão nós não vamos estimular o investimento, nós vamos fazer com que empresas que podem contribuir muito mais não tenham interesse em continuar no país.

Paulo Markun: Ethevaldo, eu como moro em Florianópolis e trabalho aqui na TV Cultura, eu sou, de certo modo, uma dessas pessoas que se beneficia obviamente das tecnologias do tele-trabalho. Agora, justamente por isso sou um usuário de aeroporto daqueles heavy user, quer dizer, viajo muito.

Ethevaldo Teixeira: Calejado.

Paulo Markun: É. E o que eu vejo - imagino que você assista a isso também - é uma quantidade imensa de tele-trabalhadores que, na verdade, são vendedores. O sujeito é diretor da empresa, é gerente não sei do quê, mas o que ele está fazendo é comprando e vendendo coisas o tempo todo, e todos os instrumentos que ele utiliza ali... é o telefone celular, a agenda eletrônica ou Palm Top, muitas vezes o computador já ligado numa rede sem fio que permite que ele fique ali, minutos antes [do embarque], no aeroporto, com aquela vozinha chata no alto falante azucrinando a vida da gente, e ele fica lá entrando em contato. O que ele está fazendo? Ele está comprando e vendendo. A minha pergunta é: é a isso que se resume a tecnologia da informação? Porque é isso que eu assim enxergo, quer dizer, toda a outra parte bacana - e eu poderia até citar, um exemplo, o livro que eu fiz sobre Anita Garibaldi [Ana Maria de Jesus Ribeiro (1821-1849), mais conhecida por Anita Garibaldi ou ainda "Heroína dos Dois Mundos", foi companheira do revolucionário Giuseppe Garibaldi em episódios como a Guerra dos Farrapos e é considerada uma das mulheres mais fortes e corajosas de sua época], eu descobri a principal fonte de informação na Carolina do Sul, numa universidade, um fantástico acervo, obviamente por intermédio da internet, não é? -, mas isso aí eu penso que é minoria, a maioria do negócio, e o que mobiliza as empresas de telecomunicações, as firmas de tecnologia da informação, as fornecedoras de prestação de serviço de celular, de telefone fixo, de internet banda larga, disso, daquilo, de computador e o diabo a quatro, é comprar e vender. Estou errado na minha... no meu pessimismo?

Ethevaldo Teixeira: Não, e eu vou voltar ao final da Idade Média e lhe dizer que as grandes ferramentas que permitiram o Renascimento são ferramentas extremamente simples e que estavam voltadas para o comprar e vender. O comércio de especiarias era uma das razões das grandes navegações. Vasco da Gama [(1469-1524), navegador português que comandou os primeiros navios a realizarem o trajeto mais longo da época: a viagem direta da Europa à Índia. Foi também vice-rei da Índia portuguesa durante um breve período no final de sua vida]... não preciso lembrar isso aí, e eram coisas simples que deram a superioridade aos portugueses para navegar e descobrir, e aos espanhóis, usando aquela tecnologia da época: astrolábio [antigo instrumento naval, inventado cerca de 150 anos a. C., usado para medir a altura dos astros em relação ao horizonte da Terra e também na agrimensura], bússola [antigo aparelho de orientação geográfica baseado no magnetismo, muito útil nas navegações. Sua agulha magnética aponta sempre para o Norte], e pequenas coisas desse tipo, e a caravela, como uma grande tecnologia, mas era para comprar e vender. Fernão de Magalhães [(1480-1521), navegador português que comandou a primeira viagem de circunavegação, a serviço do rei da Espanha. Foi o primeiro europeu a navegar no Oceano Pacífico e emprestou seu nome ao estreito de Magalhães, por tê-lo atravessado pela primeira vez] deu a volta ao mundo [faz gesto circular] - aliás, ele morreu nas Filipinas -, mas, digamos, das cinco [mostra a mão espalmada] caravelas que [se] tinha, era para voltarem abastecidas de especiarias, e era comércio o objetivo. Quatro delas naufragaram [mostra o número quatro nos dedos da mão], está certo? A última caravela que veio foi em 1519 a 1522; nessa viagem de circunavegação, essa última caravela veio abarrotada de especiarias, pagou o prejuízo das quatro que foram perdidas e ainda deu um lucro, segundo os historiadores da época, de mais de 200%. Então o objetivo... os Médicis, na Itália... quer dizer, enfim, toda a glória e a arte de Florença...

Paulo Markun: Quer dizer: navegar é preciso, mas comerciar é mais importante.

Ethevaldo Teixeira: Sim, e é o comércio eletrônico que é a grande alavanca de tudo isso, da maneira que ele vai chegar. Como a Revolução Industrial, ela não estava ali, realmente, para salvar as almas e a cultura de ninguém, está certo? Ao inventar uma máquina a vapor, quer dizer, James Watt [(1736-1819), engenheiro escocês reconhecido por seus desenvolvimentos sobre o motor a vapor, de grande importância para a Revolução Industrial], por exemplo, estava querendo resolver problemas extremamente prosaicos de produzir e ganhar dinheiro, certo? E é claro que hoje o comércio eletrônico é muito mais fácil. Eu fico, às vezes... eu tenho uma faxineira que faz pedidos pela internet, em casa, para um supermercado que entrega lá o pedido. Eu me... eu fico aliviado, porque eu posso conferir tudo, não preciso ir mais, perder tempo, está certo? Ir ao supermercado. Isso passou a ser uma coisa natural, mas veja como nós compramos livros e é uma delícia comprar livros pela internet hoje. Você não tem, no Brasil... você tem vários sites internacionais que entregam em casa, está certo? Então, esse comércio é a maior... mas não é a única, tem coisas maravilhosas. Eu citei de passagem a Wikipédia. Há coisas extremamente... nós tínhamos aquela mulher nigeriana, que eu digo que é salva por uma avalanche de mensagens que o mundo lançou sobre a Nigéria... e convenceu os juízes...

Paulo Markun: [Interrompendo] ...da segunda instância [de] que ela não devia ser apedrejada.

Ethevaldo Teixeira: Da segunda instância a absolvê-la, ou por falta de provas, de qualquer maneira, mas o mundo, através da internet, num caso individual, salvou uma mulher de ser apedrejada - está certo? -, o que é de um obscurantismo total. Não vou discutir nem mérito, religião, nem conteúdo, mas o mundo demonstrou isso e há coisas extremamente idealistas que são feitas.

Paulo Markun: Para não perder a oportunidade de fazer uma promoção aqui, o programa Roda Viva estará, até o final de 2005, integralmente, a sua informação, no formato texto, num portal que está sendo desenvolvido pela Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo] e pelo Labjor [Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo] da Unicamp, junto com a TV Cultura. Assim a gente já anuncia essa iniciativa.

Ethevaldo Teixeira: Estamos aí.

Julio Abramczyk: Na área do comércio, a telemedicina também ajuda de um lado e pode até prejudicar de outro. Telemedicina é ótima para regiões remotas e vai ajudar muita gente, mas nos Estados Unidos está criando um grave problema para os médicos radiologistas. O exame radiológico é feito, nos Estados Unidos, transmitido, por banda larguíssima, aí, para a Índia.

Ethevaldo Teixeira: Para onde?

Julio Abramczyk: Para a Índia. E médicos indianos fazem o relatório. O exame radiológico é feito por técnicos, não mais por médicos, e o relatório volta para os Estados Unidos em questão de segundos, ou minutos, com um custo muito, muito baixo. Então, esse entrosamento é também da área do comércio, não é?

Ethevaldo Teixeira: Sem dúvida. Eu vejo que... eu não vejo pecado. O mundo, ele é feito... só para dizer, as melhores ferramentas que nós temos hoje na tecnologia da informação nós tiramos da Guerra Fria. Por mais repulsa que todos nós possamos ter pela guerra em si e a corrida armamentista, a internet é fruto disso. O correio eletrônico, o e-mail, quer dizer, a realidade virtual e toda comunicação via satélite... ela nasceu, realmente, primeiro com objetivos bélicos, está certo? E depois [transferiu-se para] o uso civil e o uso cotidiano. Quer dizer, hoje, ninguém... não é por isso que isso deixou de ter valor... quer dizer, ora, eu vejo que falta ao Brasil e à maioria dos países, realmente, essa visão de que a tecnologia tem que ser uma ferramenta posta a serviço cotidiano do cidadão; quer dizer... e quanto mais amplo for esse acesso a essa tecnologia, mais benefícios ela vai trazer. E cabe a nós direcionarmos as aplicações melhores. É evidente que toda tecnologia, seja... você estuda o hidrogênio com perigo de explodir. A primeira fase do uso da eletricidade na história do mundo provocou centenas e milhares de acidentes de crianças eletrocutadas, está certo? Até que as pessoas soubessem utilizar e a conviver [com] a eletricidade, colocavam um fio, um arame, dentro da tomada e levavam choque. Morreram de um choque de chuveiro elétrico, certo? E diziam até que, em Lisboa, um guitarrista foi eletrocutado com a primeira guitarra elétrica, que [ele] plugou na parede, está certo? Isso é uma... é evidente, é uma piada, uma brincadeira. Eu me sinto um privilegiado, sob vários aspectos, de ter vivido numa época da humanidade com tantos avanços na área da tecnologia da informação, trabalhando com informação; eu acho isso extraordinário. Eu dizia isso numa palestra e me vem lá um professor muito mais realista que assistia à palestra e dizia assim: “Ethevaldo, eu não sinto a menor simpatia pela tecnologia da informação - é até capaz de me tirar algum emprego aqui -, o que eu gostei mesmo é que, aos 70 anos, a minha potência caiu quase a zero e eu encontrei alguns medicamentos que me fazem... me trouxeram alegria de viver.”. Depende do ângulo que a gente vê. Isso é tudo tecnologia, é descoberta. E há alguns que esperam que as células tronco façam outros milagres.

Julio Abramczyk: Não, nessa idade ele tem mais passado do que futuro. [risos discretos]

Ethevaldo Teixeira: Sim, mas a tecnologia ofereceu[-lhe] pelo menos uma prorrogação no segundo tempo, certo? Não é?

Lisa Polloni: Ethevaldo, mesmo... eu, lendo o seu livro, fiquei o tempo todo com uma pergunta na minha cabeça; é uma coisa que a gente está sempre discutindo dentro da indústria de tecnologia, né? Quer dizer, com tanta tecnologia mudando, influindo, impactando a sua relação de trabalho, acessibilidade... tenho acesso no aeroporto, eu pego as minhas mensagens no meu celular, mudam as suas relações pessoais, educação, inclusão digital. Em 2015 vai sobrar mais ou menos tempo?

Ethevaldo Teixeira: Essa era a grande ilusão que nós tínhamos, que a tecnologia ia aumentar o nosso tempo de lazer, nosso tempo. Aliás, o Domenico Di Masi [(1938-) professor italiano de Sociologia do Trabalho da Universidade La Sapienza de Roma. Alguns de seus textos e livros lançam uma nova visão sobre o ócio e seu papel criativo] faz realmente uma grande análise disso aí, certo? Nós acabamos aproveitando o chamado tempo livre para fazer mais coisas, para trabalhar mais, está certo? E essa é uma obsessão que tem que ser combatida. Nós temos que tomar as rédeas da nossa agenda e do nosso tempo para conseguir viver com uma produtividade maior em um tempo menor e poder realmente utilizar, está certo? Esse é um sonho que eu tenho. Eu estou dando uma receita que eu...

Paulo Markun: [Interrompendo] Você está conseguindo realizar?

Ethevaldo Teixeira: Não, infelizmente. Mas eu não consigo viver em Santa Catarina, eu ainda estou...

Paulo Markun: [Interrompendo] E se eu disser para você que o meu problema lá é tempo também você não vai acreditar. [risos]

Ethevaldo Teixeira: Também. Eu acredito.

Paulo Markun: Para finalizar, o nosso tempo está acabando, inclusive o tempo do programa. Qual é a... ou qual foi para você a transformação mais surpreendente que você assistiu nesses últimos, sei lá, trinta anos?

Ethevaldo Teixeira: A transformação... eu tenho quase que, na mesma posição, dois, dois avanços que realmente me encantam e me deslumbram, aí sim, porque eles são extraordinários. Quanto à aplicação deles é outra discussão, mas a internet, de um lado, e o celular, do outro, são coisas que realmente não foram previstas dessa maneira, está certo? Nós discutimos um dia, na Politécnica, e o professor Zuffo me lembrou que a única pessoa que realmente teve uma visão futura da internet em 1945 foi um cientista e professor norte americano Vannevar Bush [(1890-1974), engenheiro e político norte-americano conhecido pelo seu papel político no desenvolvimento da bomba atômica e por idealizar o conceito pioneiro da armazenagem de informações em hipertexto, o memex], que conseguiu provar que...

Paulo Markun: [Interrompendo] O bom Bush, não é?

Ethevaldo Teixeira: O bom Bush, nada tem a ver com os Bushs posteriores, não é? [referindo-se aos ex-presidentes dos Estados Unidos, Geroge Herbert Wlaker Bush e George Walker Bush, pai e filho, respectivamente] E ele foi... dirigiu uma espécie de CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], quer dizer, distribuiu seis mil bolsas; quer dizer, ele cuidou diretamente de seis mil casos de pós graduação e previu tudo isso. A internet que ele previa não era bem a que nós temos hoje, mas, de qualquer maneira, a visão... e principalmente a internet acaba fazendo uma coisa que é a universalização do conhecimento e da informação, queiramos ou não, está certo? Quer dizer, não é questão de filantropia, passou a ser inerente ao processo. Isso é extraordinário, nós temos que aprender a tirar os benefícios e temos que, a meu ver, colocar um pouco de ordem na casa e evitar todos os abusos e toda fraude que se comete dentro da internet.

Paulo Markun: Ethevaldo, muito obrigado pela sua entrevista, boa sorte pelo seu livro, obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. E nós voltaremos na próxima segunda feira com mais um Roda Viva. Uma ótima semana e até segunda.

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